Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5072/07.4TDLSB.L2-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
MÉDICO
ACTO MÉDICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I-Não pode usar-se como fundamento de não pronúncia “que não foram violadas as legis artis”, se tal conceito se não mostra objectivado em factos, no próprio despacho.

II-É que Legis Artis e cuidado objectivo devido não são conceitos coincidentes, sendo a violação das legis artis apenas um indício da violação do dever objectivo de cuidado.

III-Constando de relatório médico o “conteúdo” em concreto das invocadas legis artis, impostas ao exercício da actividade médica no atendimento da urgência hospitalar, deveria o tribunal ter apreciado esse relato conjugando-o com a restante prova documental e testemunhal existente nos autos e concluir pela verificação de indícios suficientes para fundamentar um despacho de pronúncia.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:   Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO.

                    No âmbito do processo registado sob o n.º 5072/07.4TDLSB do 1º. Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, o Mº.Pº decidiu pelo arquivamento do inquérito instaurado com vista ao apuramento dos factos que puderiam integrar a prática do crime de homicídio negligente p.p. pelo artigo 137-1 do C.P. praticado pela médica, arguida S..., considerando que a morte do paciente tratado por aquela, resultou de factores adversos e não foi possível indiciar a existência de responsabilidade jurídico criminal da arguida no resultado da morte do paciente ( cfr. fls. 385 a 390 dos autos).

               Inconformado com o despacho arquivamento o Assistente O... veio requerer a abertura de instrução e requerer diligências.

Liminarmente rejeitado na 1ª.Instância, o requerimento acabaria por ser admitido por ordem do Tribunal desta Relação, em acórdão proferido em 21 de Setembro de 2011, que determinou que deveria ser aberta a instrução para efectivação das diligências requeridas pelo assistente e bem como outras que oficiosamente venham a ter lugar. (cfr. fls. 576 dos autos).

               Realizada a instrução foi proferida decisão instrutória em 29 de Novembro de 2012, na qual o Tribunal decidiu não pronunciar a arguida pela prática dos crimes de homicídio negligente p.p. pelo artigo 137 nº. 1 e 2 do C.P. e do relativo a intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos p.p. pelo artigo 150 do C.P.

              Desta decisão de não pronúncia recorre o Mº.Pº e o  assistente O....

Recurso do Mº.Pº.

 

O Mº.Pº motivou o seu recurso nos autos, de fls. 796 a 807, concluindo:

(transcreve-se por scanner):

1.º O presente recurso tem como objecto a Decisão instrutória no processo identificado em epígrafe - e constante a fls. 757 a 766 dos autos —, na parte em que não pronunciou a arguida S..., por considerar que não há indícios suficientes da prática, por esta, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.° do Código Penal.

2.° A situação visada nos presentes autos está devidamente explanada no requerimento de abertura de instrução do Assistente, e que constitui fls. 476 a 491, para as quais se remete e que aqui se dão por reproduzidas por questões de economia processual.

3.° Na decisão ora posta em crise, transcrita acima na parte que para aqui releva, verifica-se que a Mm. Juíza de Instrução Criminal assentou a sua decisão na presunção quanto à prova pericial consubstanciada nos relatórios do IML de fls. 345 e 619-620 dos autos, nos termos do artigo 163.°, n.° 1 do C.P.P., aduzindo ainda que as dúvidas que os autos levantam, levariam com maior probabilidade a uma absolvição atendendo ao princípio “in dúbio pró reo”.

4.º Entendemos, salvo o devido respeito pela Mm.a juíza, que a prova pericial destes autos é frágil, pois que, em bom rigor, tais pareceres do IML divergem de toda a mais prova produzida nos autos, quer em inquérito quer em sede de instrução, pelo que deveria ter sido a mesma objecto de discordância judicial nos termos do disposto no artigo 163.°, n.° 2 do C.P.P..

5.° De facto, no dia 22 de Agosto de 2007, pelas 05h51m da madrugada, foi admitido de urgência nos Hospital de S. José, em Lisboa, transportado em ambulância do INEM, M...(designadamente, diário clínico a fls. 215); e quando deu entrada no serviço de urgência do referido Hospital, já estava referenciado pelos técnicos do INEM como tendo uma ferida na cabeça, causada por possível queda, tendo sido encontrado «deitado na posição dorsal e com sangue a cair da boca juntamente com vómito» (designadamente fls. 235); sendo que minutos após, pelas 06h06m, foi visto pela enfermeira na triagem que consignou que o mesmo havia sido encontrado caído com poça de sangue e vómito em seu redor, bem como verificou pessoalmente que este tinha “alteração do estado de consciência” bem como “ferida incisiva no occipital + presença de sangue no canal auditivo esquerdo”, o que determinou que a mesma o considerasse paciente na prioridade clínica de “muito urgente” (designadamente fls. 232).

6.° Apesar da sintomatologia descrita ser claramente indiciadora de traumatismo craniano e de ter sido considerado como paciente “muito urgente” no atendimento, e não obstante na disponibilidade destas informações clínicas, que a arguida consultou, a arguida, pelas 07h23m efectua sutura da ferida no couro cabeludo e e não ordena uma TAC; sendo que cerca de quase três horas depois, apesar ainda de o paciente M... manter o mesmo estado aquando visto pela arguida, cerca das 08h30, é visto por duas médicas diversas da arguida, tendo a primeira, Dra. N... ordenado a transferência para o SO do Hospital e a segunda, Dra. Ma... ordenado a realização de «TAC CE urgente com apoio anestésico» (designadamente fls. 215).

7° Em consequência dessa omissão, não foi possível intervir de forma atempada e eficaz e M...veio a falecer, sendo a causa de morte «às graves lesões traumáticas crânio-vasculo-encefálicas» (designadamente fls. 60).

8.° Estes factos, para além dos documentos apontados encontram ainda corroboração nos documentos juntos a fls. 57 a 60 (relatório de autópsia), 209 a 242; nos depoimentos das testemunhas id. a fls. 101-102, 103-104, 268-269, 270-271; e nas próprias declarações da arguida a fls. 274 a 276 (que não sentiria necessidade de esclarecer «que não verificou sangramento no ouvido de M... quando o examinou, pelo que deduziu que o sangue teria escorrido da ferida em direcçõo ao ouvido», se não entendesse tal sintomatologia seria determinante para que pedisse um TAC).

9.º Ademais, a reforçar o já expendido, a testemunha A..., professor de medicina e médico na Suécia, foi, em sede de instrução, ouvida por vídeo-conferência e confirmou o relatório que elaborou, após consulta dos elementos clínicos disponíveis neste processo, e que consta de fls. 606 a 608, bem como forma isenta, declarou que o atraso em questão na realização do TAC, que tinha de ser pedido atenta a sintomatologia desde logo indicada pela equipa do INEM, determinou a morte de M..., sendo que a ter sido pedido, teria possibilitado que este tivesse (50%) hipóteses de haver sobrevivido.

10.º Por último, os pareceres médicos em que se escuda a decisão instrutória de não pronúncia não são claros e contradizem os elementos, mesmo a prova documental, deste processo: por um lado, o primeiro parecer consta de fls. 345 e, se bem atentarmos no mesmo, não responde devidamente a qualquer dos quesitos plasmados no despacho de fls. 302-303, limitando-se a concluir e sem fundamentar minimamente (basta a mera confrontação entre fls. 302-303 e 345 para se chegar a esta conclusão); e o segundo relatório, surge na sequência do despacho de fls. 613 (que ordena a resposta às questões formuladas a referidas fis. 302-303), consta de fls. 619-620 e, quanto a este constata-se que contraria a documentação (mesmo médica) constante do processo e acima aludida.

11.º Ademais, no que tange ora aos indícios suficientes, permitam-nos citar, num caso similar, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que confirmou a sentença condenatória referente ao Processo Comum Singular n.° 1148/98.5TAVIS do 2.° juízo do Tribunal Judicial de Viseu e publicado na Internet, no sítio da Verbo Jurídico - http://www.verboiuridico.com/iurisp/linstancialliviseurgenciamedica.pdf.

12.° Por todo o exposto, entendemos que há, nestes autos, indícios suficientes da prática do crime de homicídio por negligência por parte da arguida, devendo ter a Mm.a Juíza de Instrução discordado dos referidos pareceres médicos de fls. 345 e 619-620 e pronunciado a arguida pelo crime apontado, p. e p. pelo artigo 137.°, n.° 1 do Código Penal e, não o tendo feito, que a decisão instrutória de não pronuncia violou o disposto no artigo 137.° do Código Penal, e nos artigos 163.°, n.° 2, 286.°, n.° 1 e 308.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.

Pelas razões que se aduziram entendemos que deve ser revogada a Decisão recorrida e ser a mesma substituída por outra que pronuncie a arguida por um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.°, n.° 1 do Código Penal.

Mas VOSSAS EXAS. FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!

**

 

Recurso do Assistente.

Por seu turno, no recurso interposto pelo Assistente, cujas motivações constituem fls. 813 a 853, constam as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

A. A decisão ora recorrida não apreciou correctamente os indícios existentes nos autos quanto à prática pela ARGUIDA S... de factos que integram um crime de omissão de tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150.° do Código Penal e um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.°, n.° 2 do Código Penal, factos cuja prática foram determinantes para a morte de M...;

B. O Assistente demonstrou e produziu prova apta a demonstrar, sem sombra de dúvida, que não foi empregue a diligência expectável de uma profissional de medicina;

C. Pois, não atendeu a Arguida a relevantes sintomas exibidos pela vítima quando esta deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de S. José;

D. Daí decorrendo não ter esta identificado a patologia de que o M... sofria;

E. Com o que não logrou praticar, ou fazer praticar, os actos médicos necessários e suficientes a combater e eliminar as lesões de que a infeliz vítima padecia;

E. Comportamentos esses que se mostravam essenciais e obrigatórios em face dos sintomas do paciente;

G. Circunstâncias que a Arguida não devia ignorar e tinha obrigação de saber;

H. A decisão Instrutória em recurso foi sustentada pela Sra. Juíz de Instrução Criminal em dois relatórios do INML constantes dos autos;

L. Estes assentam em pressupostos ostensivamente errados, quando se pretendem fundamentar alegando que ainda que diagnosticada que fosse a tempo a lesão de que o M... padecia, seria improvável que a mesma tivesse cura cirúrgica;

J. Todavia, o Assistente produziu prova apta a demonstrar que M... teria boas hipóteses de sobrevivência, caso tivessem sido oportunamente efectuados os diagnósticos e tratamentos necessários;

K. Ao contrariar directamente a prova documental e prova testemunhal produzida, a decisão instrutória deveria, pelo menos, ter apresentado fundamentação idónea a justificar o motivo pelo qual ignorou toda a prova produzida nos autos;

L. Realmente, o INML não leu devidamente a documentação médica constante dos autos nomeadamente, do INEM e da triagem efectuada pelos serviços de Urgência do Hospital de S. José, não se tendo pronunciado igualmente quanto a aspectos essenciais constantes da mesma, formulando juízos conclusivos quanto ao estado de embriaguez do paciente, sem cuidar da verificação dos dados constantes do processo clínico da infeliz vítima que, para além de um grau de alcolemia baixo, demonstravam a existência de sinais de otorragia no paciente, e hoje infeliz vítima;

M. Efectivamente, ainda que o paciente aparentasse estar embriagado para um qualquer leigo em medicina, a Arguida, com os conhecimentos que possuía como médica, ao reconhecer ter visto otorragia à esquerda, e verificado que o paciente tinha vomitado, nunca poderia ter descurado o que indiciavam esses sintomas, ademais, quando estas referências já constavam, quer do relatório de triagem, quer do que tinha sido verificado pelos membros do INEM que transportaram a vítima do Bairro Alto até ao Hospital;

N. Ora, conjugados, não um, mas dois dos mais clássicos e consabidos sintomas de traumatismo craniano para a ciência médica, a Arguida deveria ter agido com a diligência necessária, pelo menos, para excluir os piores cenários da perspectiva neurológica, o que não fez, contra toda uma série de indícios que revelavam a existência de lesão neurológica grave: vómito repetido e otorragia;

O. Também a aparente embriaguez bastamente assinalada na documentação, nada mais era que aparente conforme veio a confirmar-se, não tendo sido adequadamente despistada em momento oportuno

P. Efectivamente, há um conjunto de circunstâncias que razoavelmente não poderiam ter sido ignoradas e tratadas como meras coincidências mas, antes, analisadas no seu todo, o que levariam a concluir que, pelo menos, o paciente deveria ter sido avaliado do ponto de vista neurológico;

Q. Por fim, e corno resultou demonstrado, com uma análise neurológica oportuna e atempada, a vida de M... poderia ter sido salva;

R. Como tal, a Decisão de Não Pronúncia agora notificada ao Assistente enferma de erro manifesto quando pugna pela falta de matéria indiciária suficiente da prática de factos pela Arguida susceptíveis de integrar o preenchimento objectivo e subjectivo dos ilicitos que lhe são imputados pelo Assistente

S. Estando, pois, assim claramente indiciada a prática de comportamento negligente, por parte da Arguida que, na qualidade de médica que assistiu M...  no serviço de urgência do Hospital de S. José naquele dia 22 de Agosto de 2007, deveria ter ordenado a realização de exames adequados que lhe poderiam ter salvo a vida, se atempadamente solicitados e efectuados, de modo a diagnosticar de forma rigorosa as necessidades do paciente e, consequentemente, adoptar as medidas adequadas, em face dos sinais ostentados pelo paciente e que a Arguida não podia, nem devia ignorar;

T. A Arguida limitou-se a suturar a ferida na cabeça do paciente, administrando-lhe terapêutica para pacientes etilizados — sem ter efectuado análises sanguíneas previamente e, portanto, desconhecendo se o paciente estava, realmente, etilizado (cfr. fls. 120 e 215 dos autos), descurando os evidentes sinais de alarme que lhe foram transmitidos referentes a sintomatologia clássica de um possível traumatismo craniano, tanto pelos técnicos do INEM, como pela Enfermeira da Triagem (Tânia);

U. Com efeito, e como se veio a comprovar pelas análises clínicas constantes de fls. 217, registadas às l0hl4m, a taxa de alcoolemia (etanol) de M...  era de 51,8mg/dl, ou seja, na unidade de medida usada quotidianamente, cerca de 0,5g/l de álcool, valor esse não passível de gerar o grau de desorientação que o paciente apresentava, e que se encontra descrito nos autos;

V. No entanto, a ora Arguida, apesar dos sinais em sentido contrário que lhe foram presentes quando analisou o estado do M..., bem como dos documentos constantes do relatório clínico que lhe foram apresentados antes desta análise, partiu do pressuposto que o estado do paciente se devia apenas ao seu eventual estado etilizado, sem ter sequer verificado se tal corresponderia à verdade;

W. Recorde-se, conforme resulta dos documentos já mencionados, o paciente tinha vomitado, perdido sangue, quer da boca, quer proveniente da ferida incisa no occipital, bem como de uma hemorragia no ouvido esquerdo

X. Estes sintomas, como é do conhecimento da ciência médica, são sinais evidentes de traumatismo crânio encefálico — circunstância que a prova produzida com a contribuição do Assistente demonstrou de forma inquestionável, nomeadamente, através dos Pareceres emitidos pelo Professor A..., médico de origem sueca, que sustentam esta afirmação, respondendo a todas as questões que o Ministério Público suscitou nos autos como necessárias à qualificação do comportamento da Arguida, enquanto médica;

Y. Questões, que nunca foram respondidas pelos dois relatórios elaborados pelo INML nos quais, recorde-se, se sustentou a decisão instrutória em recurso

Z. Considera o Assistente que embora não seja conhecida a causa que levou a que o falecido apresentasse tal lesão, contribuiu também de forma decisiva para a sua morte, a negligência com que foi atendido no Hospital de S. José, designadamente, a omissão por parte da Arguida dos mais básicos deveres de cuidado inerentes à sua profissão;

AA. Salienta-se que uma hora depois da última avaliação da Arguida, o paciente entrou em coma profundo e apenas às 8h48m, três horas depois de ter dado entrada no referido Hospital (às 5h51m), foi pedida pela médica de serviço (outra que não a Arguida) a realização de uma TAC urgente;

BB. Com efeito, apenas quatro horas e meia depois de ter dado entrada no Hospital de S. José — ou seja, às l0h30m - daria o paciente entrada no Serviço de Neurocirurgia, onde veio a falecer, com confirmação do óbito às 02h00m, no dia 24 de Agosto de 2007 (cfr. fls. 209);

CC. Estando demonstrado que a causa da morte do M... foram “às graves lesões crânio vasculo-encefalicas” (cfr. fls. 60 dos autos) — Relatório da Autópsia.;

DD. Os atrasos e omissões acima referenciados foram determinantes para um evidente e fatídico atraso no diagnóstico correcto do estado clínico do M..., tendo impedido a adopção tempestiva de medidas terapêuticas eficazes e adequadas a evitar o agravamento do seu estado, bem como a realização de uma intervenção cirúrgica, condutas susceptíveis de salvar a sua vida;

EE. É opinião inequívoca do Professor  A...que houve erro médico, uma vez que, da análise que fez dos documentos, profunda e isentam, constatou “vários erros graves, atrasos, negligência e acções inapropriadas tiveram então lugar no tratamento inicial do Sr.  nos Serviços de Urgência entre a sua chegada às 05:51 e a sua transfrrência tardia para a Neurocirurgia e Cuidados Intensivos às 10:00 da manhã de 22 de Agosto de 2007. Estes erros incluem atrasos inaceitavelmente longos na 1) realização de exames neurológicos clínicos de rotina apesar dos sinais claros de traumatismo craniano e consciência comprometida, 2) obtenção de leituras de níveis de alcoolemia e 3) requisição de exames de tomografia computadorizada do cérebro. Os sintomas do Sr.  foram mal interpretados e tomados como estando relacionados com o consumo de álcool, quando na verdade eles foram causados por graves lesões cerebrais com elevada hemorragia intracraniana;

FF. Estas lesões graves não foram detectadas até ser tarde demais devido à supra referida série de erros e atrasos;

GG. Não se coibiu este profissional de afirmar que houve má conduta, e grave, por parte da Arguida;

HH. Em face dos elementos constantes dos autos, entende o Assistente que a Arguida descurou os claros sinais que lhe foram transmitidos pelos seus colegas (técnicos de ambulância e enfermeira na secção de triagem), de que o falecido havia sofrido um traumatismo crânio encefálico grave e que necessitava de tratamento imediato, o que não veio a acontecer em tempo útil, contribuindo de forma decisiva para a sua morte

II. Ignorou proceder à exclusão dos cenários da via neurológica, porquanto presumiu, sem verificar que o paciente estava etilizado, não associando os alertas do INEM e da Enfermeira da Triagem e os alertas dos sintomas efectivamente demonstrados, a saber, a otorragia os vómitos e a desorientação a qualquer problema de foro neurológico, concretamente ao mal que se veio a verificar;

JJ. Negligenciou ainda o estado do paciente, ao ignorar os evidentes sinais de o paciente carecia de outros cuidados, não realizando, nomeadamente, de imediato, exames que lhe poderiam ter salvo a vida, como é exemplo clássico na medicina o TAC, se atempadamente solicitados e efectuados;

KK. Foi atacado de forma ostensiva o direito à vida de M..., o qual é protegido pelo artigo 24.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa;

LL. Dispõe o artigo 137.º do Código Penal que «quem matar outra pessoa por negligência é punido com prisão até três anos ou com pena de multa» e nos termos do n.° 2 do referido normativo legal, «em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos»;

MM. Por seu lado, o artigo 13.° do Código Penal dispõe que os factos praticados com negligência só são puníveis nos casos especialmente previstos na lei — como é o caso do homicídio por negligência. - definido no artigo 15.º do Código Penal, dispondo que «age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto»;

NN. No que diz respeito à tipificação legal específica, tendo em conta os referidos conhecimentos especiais do agente, estatui o artigo 150.° do Código Penal que «1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade fisica» e que «2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das fmalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.»;

OO. A observância das legis artis consiste na obediência das regras teóricas e práticas de profilaxia, diagnóstico e tratamento aplicáveis no caso concreto em função das características do doente e dos recursos disponíveis pelo médico;

PP.No âmbito do Estatuto Disciplinar dos Médicos, dispõe o artigo 2.° do Dec.-Lei n.° 217/94, de 20/8, que «comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou algum dos deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Médicos, do Código Deontológico, do presente Estatuto, dos regulamentos internos ou das demais disposições aplicáveis»,

QQ. Dispondo o artigo 3.°, n.° 1 do mesmo diploma que «a responsabilidade disciplinar perante a Ordem dos Médicos concorre com quaisquer outras previstas por lei», desde logo a responsabilidade criminal acima referenciada;

RR. De acordo com o disposto no artigo 284.° do Código Penal, impende sobre o médico o dever de tratamento, nos termos aí prescritos;

SS. Tomando em consideração o enquadramento jurídico exposto, bem como os factos apurados nos presentes autos, é de concluir que os mesmos contêm todos os elementos constitutivos dos dois tipos legais de crime imputados à Arguida;

TT. Em face dos elementos constantes dos autos, entende o Assistente que a Arguida descurou os claros sinais que lhe foram transmitidos pelos seus colegas (técnicos de ambulância), de que o falecido havia sofrido um traumatismo crânio encefálico grave e que necessitava de tratamento imediato, o que não veio a acontecer em tempo útil, contribuindo de forma decisiva para a sua morte;

UU. A Arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, e não procedeu com o cuidado devido, a que, em face do estado em que se encontrava o paciente, estava obrigada e de que era capaz, ao atender o paciente no serviço de urgência hospitalar, bem sabendo que isso lhe era proibido, não tendo contudo representado como possível que o mesmo em virtude dessa falta de cuidados médicos e tratamento viesse a falecer;

VV. A conduta da Arguida é, assim, subsumível, à pratica por esta de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137.°, n.° 2 do Código Penal;

WW. Atentos os factos indiciários acima mais bem identificados e de acordo com os quais se poderá vir a configurar com razoável margem de probabilidade a condenação da Arguida, justifica-se a pronúncia desta como autora dos crimes de omissão de tratamentos médico cirúrgicos, p. e p. pelo art.° 150º do Código Penal e de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.° 137°, n.° 2 do Código Penal;

XX. Violou, assim, o despacho sob recurso o disposto nos art.°s 159.°, 163.°, n.°s 1 e 2, 283.°, n.° 1 e 308.°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal,

YY. Como tal, estando indiciada suficientemente a verificação de omissão de tratamentos médicos cirúrgicos deve ser revogada a decisão recorrida por outra que Pronuncie a Arguida pela prática dos crimes supra referidos, uma vez que a prova produzida ao longo da Instrução, documental, pericial e testemunhal, é apta a demonstrar em julgamento uma mais que provável condenação da Arguida, suficientemente demonstrados que estão os factos que preenchem os elementos do tipo legal dos crimes supra citados, por ser de

JUSTIÇA!

***

Apresentou resposta o Mº.Pº., conforme articulado junto aos autos- fls. 877 a 884, no qual conclui:

1°. O Assistente interpôs recurso da Decisão instrutória nos autos identificados em epígrafe — que constitui fls. 757 a 766 dos autos —, que não pronunciou a arguida S..., por considerar que não há indícios suficientes da prática, por esta, de um crime de omissão de tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150.° do Código Penal; e um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo artigo 137.°, n°s 1 e 2 do Código Penal, nos termos e com os fundamentos constantes de fls.813 a 853.

2°. Desde já se consigna que o Ministério Público recorreu igualmente da decisão em causa, mas apenas na parte em que versa a não pronúncia pelo crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.°, n.° 1 do Código Penal, conforme resulta de fls. 796 a 807 destes autos.

3.° Assim, por razões de economia processual não desenvolveremos nesta sede a nossa argumentação, apenas aduzimos que, para além dos argumentos já por nós expendidos em sede de recurso quanto a este crime, aderimos igualmente à fundamentação expendida no recurso do Assistente, pois que entendemos também que, quanto ao crime de homicídio por negligência (médica), deve a arguida ser pronunciada.

4.º Já no que se refere ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, por omissão, tratando-se, desde logo, de um crime de perigo concreto, e sendo que o que ocorreu com o filho do Assistente, M..., foi que este veio efectivamente a falecer horas depois da sua entrada no Hospital, não há lugar à aplicação do artigo 150.°, n.° 2 do Código Penal (artigo 1.º do Código Penal).

5°. Ademais, nos presentes autos não há qualquer elemento de prova que permita inferir que a arguida agiu com dolo, e este tipo de crime só é punível na forma dolosa.

6.° Destarte, entendemos assistir razão ao Recorrente, pois que há indícios suficientes do crime de homicídio por negligência por parte da arguida, pelo que a decisão instrutória em causa violou o disposto nos artigos 163.°, 283.° e 308.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, e não assistir razão ao Recorrente, no que se refere ao invocado crime de omissão de tratamentos médico-cirúrgicos, pois que não está preenchido o tipo objectivo e subjectivo do mesmo, pelo que, nesta parte, a decisão não violou qualquer norma, designadamente, o disposto nos artigos 283.° e 308.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.

Pelas razões que se aduziram entendemos que deve ser dado provimento parcial ao recurso.

Mas Vossas Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!

***

Respondeu a arguida, aos dois recurso, conforme consta de fls.896 a 900, aderindo ao decidido na decisão instrutória e pugnando pela improcedência dos recursos.

***

Nesta Relação, a Ex.mª. Procuradora-Geral Adjunta, emitiu o seu parecer, aderindo á posição do Mº.Pº. na 1ª.Instância, pugnando pela procedência do recurso do Mº.Pº. e pela procedência parcial do recurso interposto pelo assistente.

Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II - MOTIVAÇÃO.

É jurisprudência constante e pacífica (p. ex. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

           No presente processo, temos dois recursos, com fundamentação semelhante, apenas divergindo no que toca à incriminação jurídica, que no entender do assistente preenche a tipologia de dois crimes e na perspectiva do Mº.Pº. de um só.

          Antes de avançarmos para o conhecimento dos recursos, vejamos o teor da decisão instrutória em causa, transcrevendo-se a mesma:

Nos presentes autos o Ministério Público procedeu a inquérito, findo o qual proferiu o despacho de arquivamento que faz fls. 385 a 390 dos autos.

A assistente O..., por discordar do despacho de arquivamento proferido nos autos, veio requerer a abertura da instrução, pedindo que a arguida S... seja pronunciado pela pratica de um crime p. e p. pelo art° 150° do Cod. Penal e de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art° 137° n°1 e 2 do Cod. Penal.

Foi declarada aberta a instrução, tendo no decurso desta sido junto aos autos documentos, ouvidas testemunhas e elaborada e junta a Consulta técnico-científica, elaborada pelo IML.

Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância das formalidades legais.

*

CUMPRE DECIDIR:

O Tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.

Não existem nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Conforme resulta do art° 286° do CPP a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com a vista a submeter ou não os factos a julgamento.

No caso dos autos a instrução visa a comprovação judicial de não acusar, ou seja, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada à arguida uma pena, pela pratica dos ilícitos que lhe são imputados pel(o)a assistente, no requerimento de abertura da instrução.

Dispõe o art° 308° n° 1 do CPP que se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o Juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário, profere despacho de não-pronuncia.

Resulta por outro lado do art° 283° n° 2 do CPP, para onde remete o art° 308° nº 2 do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.

O despacho de não pronuncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento — v. G.Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, 205-.

Para ser proferido despacho de pronúncia embora não seja preciso uma certeza da infracção é necessário que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes, para que logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpa do arguido.

Pretende (o)a assistente a pronuncia da arguida pela prática de um crime de um crime p. e p. pelo art° 150º do Cod. Penal e de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art° 137° n°1 e 2 do Cod. Penal.

No que se refere aos mencionados ilícitos importa referir o seguinte.

Dispõe o art° 15° do Código Penal que:

“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstancias, está obrigado e de que é capaz:

a)Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;

b)Não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto.”

A estrutura típica de um crime negligente é constituída por um elemento objectivo e por um elemento subjectivo (neste sentido, ver Santiago Mir Puig, in, Derecho Penal - Parte General - 3 Ed. 1990).

Em sentido contrário Yescheck, in Tratado de Derecho Penal - Parte General - 2° Vol..

O preenchimento da tipicidade objectiva do crime negligente exige a verificação dos seguintes requisitos:

A) A existência de um dever objectivo de cuidado;

B)Uma acção ou omissão objectivamente violadora daquele dever;

C)Um resultado típico;

D)A imputação objectiva do resultado ao agente que, por sua vez exige que:

1 - A acção ou omissão violadora do dever objectivo de cuidado seja causa adequada à produção do resultado - Sendo para tal possível para o homem medianamente diligente, do tipo social e profissional do agente, com os particulares conhecimentos deste e situado no seu circunstancialismo concreto prever que, daquela acção ou omissão violadora do dever objectivo de cuidado podia decorrer o resultado típico -;

2 - O resultado fosse evitável pela conduta adequada à observância do dever objectivo de cuidado; e,

3 - O resultado esteja no âmbito de protecção da norma.

Por sua vez o preenchimento da tipicidade subjectiva do crime negligente exige a verificação de dois elementos:

a) Um elemento positivo que consiste em o agente ter querido a conduta violadora do dever objectivo de cuidado;

1 - Se o agente conhece o perigo daí decorrente, ou seja, se o agente previu a possibilidade de realização do resultado age com negligência consciente;

2 - Se o agente nem sequer previu essa possibilidade age com negligência inconsciente.

b) E um elemento negativo que consiste em o agente não ter querido a realização do tipo criminoso.

A arguida é médica de profissão, sendo os factos que constituem o objecto dos presentes autos, praticados por aquela no desempenho da sua actividade profissional.

Como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial Tomo 1, pagina 266, no que respeita à actividade médica, na apreciação do cumprimento por parte do médico do dever objectivo de cuidado, assumem particular importância as legis artis, a que alude o art° 150º do Cod. Penal.

Do art° 150° do Cod. Penal, resulta que as intervenções médicas, não constituem em principio ofensas corporais.

Para que tal não aconteça, isto é que as intervenções médicas não constituam ofensa à integridade fisica, como se refere, in BMJ, n° 332, pag. 68, no estudo realizado pelos Senhores Professores Jorge Figueiredo Dias e Jorge Sinde Monteiro,

“Posto é que tais intervenções e tratamentos:

a) Sejam medicamente indicados (isto é, nas palavras da lei «que segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados»);

b) Sejam «levados a cabo, de acordo com as legis artis, por um médico ou outra pessoa legalmente autorizada a empreendê los));

c) Possuam finalidade terapêutica no mais amplo sentido, isto é, sejam empreendidos «com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar uma doença, um sofrimento, uma lesão ou fadiga corporal ou uma perturbação mental».

Do art° 150º do Cod. Penal resulta que uma intervenção médica conduzida de “acordo com as legis artis”, como atrás se refere não constitui uma ofensa corporal. Actuando o médico de acordo com as legis artis, com os conhecimentos médicos adequados, com os meios que tem aos seu dispor e com as finalidades mencionadas na al. c), acima referida, não pratica qualquer crime, nem viola qualquer dever objectivo de cuidado.

Compulsados os autos e da analise critica de toda a prova, no mesmo reunida, depoimentos, declarações documentos e perícias, considero que não se mostra indiciada a pratica de factos pela arguida susceptíveis de integrar o preenchimento, da tipicidade objectiva e subjectiva dos ilícitos que a assistente lhe imputa.

Efectivamente resulta indiciado dos autos que, M...  deu entrada no Hospital de S. José em Lisboa, no dia 22/8/2007, tendo ali vindo a falecer no dia 24/8/2007, constando do relatório de autopsia forense realizado como causa da morte “as graves lesões crânio-encefálicas” —cfr. fls. 60 dos autos-.

Dos documentos juntos aos autos, bem como dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas no decurso destes e das declarações prestadas pela arguida, resulta que a vitima quando foi transportada para o hospital, aparentava estar alcoolizada, estava consciente, teria uma ferida na cabeça que foi suturada e foi medicado.

Refere nas suas declarações arguida que quando examinou a vitima não verificou existir, sangramento no ouvido daquela, tendo deduzido que o sangue existente no ouvido teria escorrido da ferida que a vitima apresentava.

Referiu ainda não ter solicitado de imediato a realização de um TAC, porquanto os critérios que determinariam tal pedido não se mostravam preenchidos.

A testemunha indicada pela Assistente Professor Ake Sjoholm, residente na Suécia e ouvida por vídeo-conferência (a cuja inquirição se procedeu, por tal ter sido determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa) em síntese, no seu depoimento corroborou o teor do documento junto aos autos e cuja tradução se mostra junta de fls. 606 a 608 dos autos. Tal testemunha referiu que no seu entender, se impunha a imediata realização de um TAC, após a entrada da vítima no hospital S. José e que a realização deste tardiamente levou a que não fossem de forma atempada detectadas as lesões de que padecia a vitima. Tal diagnóstico atempado e a realização de cirurgia adequada, teriam 50% de hipótese de evitar a morte da vítima.

Pese embora o teor de tal depoimento as conclusões que resultam das perícias elaboradas pelo IML, que fazem fls. 345 e 619 a 620 dos autos, concluem de forma diversa.

Refere-se a fls. 345 no parecer referido, que:

“Não houve da parte dos profissionais de saúde que intervieram na Assistência prestada ao Sr. M... qualquer violação da “legis artis “. De facto, o quadro neurológico à entrada no Serviço de Urgência não obrigaria a obtenção imediata de uma TÁC cranioencefálica.

Por outro lado, o doente progrediu muito rapidamente de um estado de vigilidade a estado de coma, secundário a uma lesão traumática do lobo frontal que pela sua natureza não seria susceptível de cura cirúrgica.

A evolução subsequente foi a habitual em traumatismos desta natureza.”

Por sua vez na consulta técnico-científica, prestada pelo IML, já nesta fase processual, na sequência dos esclarecimentos pedidos, que faz fls. 619 a 620 dos autos e que aqui na integra se dá por reproduzida, consta igualmente que aquando da admissão da vitima no Hospital de S. José, face ao quadro apresentado por aquela “não se impunha a obtenção imediata de uma TAC” (ver ponto 1 de fls. 620).

Mais se refere no ponto 2 de fls. 620 que seria possível que a realização de TAC “tivesse revelado lesões traumáticas crânio-encefálicas, embora, por vezes, o aparecimento de hemorragia no seio de uma área de contusão não seja imediato.”

Mais se refere, no ponto 4 de fls. 620, da mencionada consulta técnico cientifica, que “. . .a obtenção de uma TAC logo no momento da admissão não era uma medida de diagnóstica obrigatória” naquele contexto clínico.. .“por outro lado, que a situação clínica evoluiu com uma rapidez invulgar, e que a primeira TAC é obtida menos de duas horas após a chegada da vitima ao hospital. Acresce o facto de a lesão traumática não ter indicação cirúrgica, pelo que não nos parece ter havido erro ou omissão determinantes para a evolução desfavorável que ocorreu.”

Conforme resulta do disposto no art° 163° do CPP, que tem como epígrafe “valor da prova pericial”, o juízo técnico científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. Resultando do n°2 do mencionando preceito legal que sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

Após analise critica de todos os elementos de prova que dos autos constam e considerando igualmente o referido nas referidas consultas técnico-científicas elaboradas pelo IML, considera este Tribunal ser de concluir que efectivamente a arguida aquando do atendimento da vitima no Hospital de S. José, no exame que efectuou aquela e na assistência médica e medicamentosa que lhe prestou, actuou em conformidade com o que impunham as legis artis, não tendo violado qualquer dever objectivo de cuidado.

Por outro lado do teor do parecer elaborado pelo IML, resulta a conclusão de que a realização do TAC, em principio revelaria as lesões traumáticas crânio-encefálicas da vítima, mas que por vezes a hemorragia no seio de uma área de contusão não é imediato (ponto 3 de fls. 620). Por outro lado refere-se igualmente no ponto 4 de fls. 620 que a lesão traumática não tinha indicação cirúrgica e o que igualmente é referido no parecer de fls. 345, onde se diz “Por outro lado, o doente progrediu muito rapidamente de um estado vigilidade a estado de coma, secundário a uma lesão traumática do lobo frontal que pela sua natureza não seria susceptível de cura cirúrgica “ (subinhado nosso)

Ora assim sendo e ainda que se concluísse ter existido violação das legis artis por parte da arguida, ficaria a dúvida sobre se a realização de TAC, diagnosticaria com certeza absoluta as referidas lesões crânio encefálicas da vitima e se na sequencia deste seria realizada ou não a intervenção cirúrgica, de imediato, (face ao referido no ponto 4 de fls. 620) e ainda se a realização desta evitaria ou não a morte da vitima.

Assim para além de se concluir que os autos não indiciam que a arguida tenha violado as legis artis, ou seja qualquer dever objectivo de cuidado, surge a dúvida se outro comportamento da arguida mormente o referido pela Assistente, realização imediata de TAC, levaria ao diagnóstico do exacto estado da vitima, bem como e na afirmativa se na sequência da realização do TAC, seria ou não realizada a referida cirurgia, de imediato, e, se esta evitaria ou não o resultado que se veio a verificar.

Assim sendo tendo em conta os elementos que dos autos constam e fazendo um juízo de prognose, considero que em julgamento é muito mais provável a absolvição da arguida do que a sua condenação pela prática dos ilícitos que a Assistente lhe imputa nos autos, dado não se indiciar a pratica de factos pela arguida susceptíveis de integrar o preenchimento objectivo e subjectivo dos ilícitos que lhe são imputados no requerimento de abertura da instrução pela Assistente.

Pelo exposto não será a arguida pronunciada pela pratica dos factos e ilícitos referidos no requerimento de abertura da instrução — cfr. art° 283° n°2 do Código Processo Penal -.

DECISÃO

Tendo em conta o exposto as considerações expandidas e as disposições legais citadas, não pronuncio a arguida S..., pela prática de um crime p. e p. pelo art° 150° do Cods. Penal e pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art° 1370 1101 e 2 do Cod. Penal, pelo que e consequentemente, determino o arquivamento dos autos.”

***

Conhecendo.

Umas breves notas gerais sobre a apreciação dos recursos neste Tribunal da Relação.

            Desde já, necessário se torna, ter em mente que não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se no seu conjunto são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. É isso que resulta do art. 286º do C.P.P.: a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento.

A estrutura processual assente na separação funcional do Mº.Pº. e Juíz de Instrução tem os seus reflexos no que respeita ao direito probatório. Assim, na preparação investigatória da fase do inquérito, o Juíz tem uma acção tipificada, intervindo em regra quando estão em causa actos que interfiram com os direitos fundamentais.

Também na fase da Instrução, devido à estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”. A prolação de despacho de pronúncia depende - para além da “existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento do mérito da acusação”, - da recolha, até ao encerramento da instrução de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art. 283º do C.P.P., aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º do mesmo diploma legal: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.[1]

 A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra“in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.[2] 

         O grau de exigência quanto à consistência e verosimilhança dos indícios é menor do que aquele que é imposto ao juiz do julgamento, sem, no entanto, se prescindir de um juízo objectivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos, sendo a decisão instrutória de pronúncia uma decisão de conteúdo meramente processual, onde se declara a verificação dos pressupostos indispensáveis para a submissão a julgamento dos factos descritos na acusação.
Dito de outra forma, na pronúncia não se profere decisão sobre a prática ou não dos crimes ou dos seus autores, mas apenas se declara que os autos fornecem indícios materiais da existência dos factos e da sua autoria na forma descrita na acusação ou no requerimento de abertura da instrução, isto é, não se exige que só valham, também como para efeitos de acusação, os indícios que conduzam à certeza da futura condenação, bastando os trazidos ao processo que persuadam de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do agente.
No caso em apreço, está em questão a verificação ou não de responsabilidade penal médica, praticada no serviço de Urgência Hospitalar.
Desde já se diga que não é fácil delimitar a fronteira penal e a civil da responsabilidade médica. Digamos de uma forma simples que estamos no domínio penal sempre que a conduta verificada integre a tipicidade de um determinado ilícito criminal.
 Nem sempre que se verifica um prejuízo na saúde do doente haverá responsabilidade penal; nem quando o médico comete um erro este se traduz sempre num dano para o paciente e, nem todos os erros médicos que geram danos se traduzem necessarimaente num comportamento jurídico com cobertura penal.
Fácil também não é concretizar o dever de cuidado no exercício da actividade médica. Para que se preencha um tipo de ilícito negligente não basta a não observância geral do cuidado que a pessoa deve ter, é preciso averiguar se foi violado o dever objectivo de cuidado no caso em concreto (artº. 15 C.P.), segundo as circunstâncias. Como entende a Prof. Sonia Fidalgo, na obra adiante  mencionada, “para além deste critério da lei, há que considerar outros que concretizam o dever objectivo de cuidado: as normas jurídicas de comportamento, as normas corporativas e do tráfego (não jurídicas) correntes em determinados domínios de actividade, os costumes profissionais e, em último termo, a “figura-padrão”).
No domínio penal, que agora nos ocupa, o caso em questão também não se apresenta como tarefa tão simples como se sugere na decisão instrutória com a conclusão de que “ a arguida actuou de acordo com as legis artis ou seja não violou qualquer dever objectivo de cuidado”.
 É que Legis Artis e cuidado objectivo devido não são conceitos coincidentes, sendo a violação das legis artis apenas um indício da violação do dever objectivo de cuidado.[3]
 Pode acontecer que o médico que não actuou de acordo com as legis artis não tenha violado o dever objectivo de cuidado na situação concreta, ou acontecer uma violação objectiva de cuidado do médico, ainda que tenha cumprido as legis artis.[4]
Assim, o que estará em causa será aferir se o médico, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, e, tendo ainda em conta a sua liberdade na escolha dos meios de diagnóstico e tratamento( artº. 142 do C.D.) se encontrava em condições de cumprir o dever de cuidado que integra o tipo negligente. Só respondendo afirmativamente a esta questão poderá afirmar-se que o médico documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade perante o direito e as suas normas, pelas quais tem de responder, ou seja, só assim se poderá concluir que o médico actuou com culpa negligente. E, para determinar se o médico se encontrava ou não em condições de cumprir o dever de cuidado que integra o tipo negligente, há-de ter-se em conta não o poder (de fazer) do médico concretamente em causa, mas sim os conhecimentos e as capacidades pessoais dos outros médicos como o agente, ou seja, se, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e a teriam evitado.[5] ( “o profissional-padrão”).
               Quanto às chamadas legis artis, elas emergem de um conjunto de regras fixadas pelos profissionais da medicina, expressas no Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em declarações de princípios emanadas de Organizações Internacionais  e Nacionais de Médicos, das chamadas guidelines resultantes de protocolos de actuação[6] e de reuniões de consenso e dos pareceres das Comissões de Ética.[7]
E, não haverá que esquecer que como legis artis, se trata de um conceito dinâmico sempre em actualização com o progresso científico e, muitas vezes, de regras não reduzidas a escrito.
Em resumo, não é uma questão fácil e simples a averiguação da violação do dever objectivo de cuidado (sobretudo quando o temos de aferir por uma figura-padrão) e, por essa razão deve ser cuidadosamente fundado e objectivado.
Não basta conclui como o fez a decisão instrutória, que a arguida não violou as legis artis, porque isso mesmo foi concluído no relatório do IML.  Adiante já explicamos melhor este entendimento.
               Citando a Ilustre professora Sónia Fidalgo que descreve na obra citada, as dificuldades com que o Juíz se depara perante as questões médicas sobre as quais não tem um conhecimento específico, “ com vista a uma maior segurança (e credibilidade) das decisões judiciais, seria desejável um acesso fácil às regras standard aplicáveis em cada caso clínico”. E, citando também o Prof. Guilherme de Oliveira[8] “…uma determinação mais clara dos standards de comportamento exigíveis tornaria mais previsível o comportamento..”, com a inerente vantagem de incentivo do empenho do corpo médico na discussão técnica nos colégios da especialidade e nos serviços hospitalares.
Cabe aqui também a propósito citar o entendimento expresso por Romeo Casabona[9] de que quanto maior for a gravidade da doença, maiores são os riscos que o médico pode assumir na sua actuação, daí que o seu dever de cuidado (médico) deva ser tanto maior quanto maiores forem os riscos inerentes á sua intervenção ( p. ex. quando aplicou uma técnica minoritariamente aceite pela comunidade científica).
Cabe ainda uma outra nota sobre as diversas especificidades dos deveres dos cuidados médicos, isto é, dos diferentes cuidados exigidos no acto médico de diagnóstico, de tratamento, de prgnóstico.
Na fase do diagnóstico, há que ponderar as dificuldades derivadas de deficiência de conhecimentos do médico, da ausência de meios complementares de diagnóstico, de particularidades do próprio caso clínico- elementos que podem impedir a clareza do diagnóstico.
É que, a falta de saber, falta de experiência ou de sensibilidade não podem fundamentar a culpa negligente; essa inabilidade pessoal inibe o cumprimento ou a percepção do dever objectivo de cuidado. É por isso que se deve apurar também das condições pessoais e profissionais em que o médico exercia a sua actividade.[10]
Embora nesta fase se possa e actue muitas vezes com o “olho clínico” ( citamos novamente a Drª. Sónia Fidalgo), no caso, esta referência nunca seria possível no que toca ao “cheiro” do paciente, a fim de se conclui que estava etilizado de tal modo que apresentava desorientação de consciência, como parece sugerir-se da interpretação dada às declarações da arguida. Sem o necessário exame ( por ar expirado ou por análise de sangue) nunca seria possível dizer que um indivíduo está alcoolizado com estado de narcose e confusão de consciência.
 Assim se perspectivando a análise do caso em apreço, é imprescindível que os conceitos e conclusões tenham tradução em factos concretos e objectivados quer nos depoimentos das pessoas inquiridas, quer nos documentos e perícias juntas aos autos, sempre analisados de forma crítica mas concreta, objectivável em factos.
Ora, no caso em apreço, esta tarefa não se nos apresenta com especial dificuldade perante os depoimentos documentados e a vasta documentação fornecida pelos autos.
Desses elementos de prova, analisados segundo o sentido e parâmetros que supra deixámos expostos, forçoso é considerar que está suficientemente indiciado o seguinte:

1. Os presentes autos de inquérito tiveram origem na morte de M... , a qual veio a ocorrer no dia 24 de Agosto de 2007 (cfr. relatório de autopsia a fls. 49 e ss. dos autos), no Hospital de S. José, em Lisboa, depois do mesmo ter sido transportado pelos serviços do INEM, no dia 22 de Agosto de 2007, do Bairro Alto para o referido Hospital.

2. A autópsia forense realizada indica como causa da morte "as graves lesões crânio-vasculoencefalicas" (fls. 60 dos autos).

3. A fls. 101 e ss. dos autos consta do depoimento da técnica de ambulância do INEM, F..., que recolheu o falecido que "com o indivíduo na ambulância percebeu que então o doente teria um traumatismo craniano, occipital".

4. O mesmo concluiu P..., técnico de ambulância de emergência, que a fls.103 declarou "tendo também percebido que este teria um traumatismo craniano"

5. Da análise do documento "Verbete socorro do CODU" (fls. 75, mais legível a fls. 235) resulta que M...  apresentava "sangue a sair da boca, juntamente com vomito" e o motivo da chamada foi "(...), tc com hemo", ou seja, traumatismo craniano com hemorragia.

6. Ao dar entrada no Hospital de S. José, M...  foi encaminhado para a triagem, onde foi avaliado pela Enfermeira T...l, (cfr. resulta do doc. a fls 232) que traduz o estado clínico em que M...  foi encontrado e como se encontrava quando chegou ao referido Hospital, referindo o documento, expressamente: 'ferida incisa no occipital + presença de sangue no canal auditivo esq" e ainda, manuscrito, os seguintes dizeres: "apresentou vómito na triagem".

7. Como também consta do documento a prioridade clínica foi assinalada como “muito urgente”.[11]

8. Após a triagem, M...  foi encaminhado para a pequena cirurgia onde foi atendido pela Arguida, por volta das 07.23h

9. Esta, certamente, antes de abordar M...  teve acesso à documentação supra referida (documento do CODU/INEM e documento da Triagem), documentação essa que lhe facultava os elementos clínicos suficientes para avaliar a situação em que se encontrava o paciente.

10. Sendo que, de tal documentação resultava evidente a forte possibilidade do paciente ter sofrido um traumatismo crânio encefálico.

11. A própria Arguida, no "Diário Clínico – Médico", constante de fls. 215, às 07h37m, do dia 22 de Agosto de 2007, atestou "haver referências a otorragia a esquerda".

12. Ou seja, tudo apontava para que o paciente apresentava um quadro clínico de gravidade: tinha vomitado, perdido sangue, quer da boca, quer proveniente da ferida incisa no occipital, bem como de uma hemorragia no ouvido esquerdo.

13. E que tudo isso são sinais evidentes de traumatismo crânio encefálico, resulta patente em qualquer manual clínico e em variada literatura clínica acessível na internet.

14. No entanto, em vez de tomar as medidas adequadas ao estado do paciente – que seriam, designadamente, de acordo com as leges artis:

a) Solicitar análises clínicas ao sangue a fim de avaliar o grau de alcoolemia do paciente, nomeadamente, a fim de contemplar a hipótese do estado de semiconsciência do mesmo não se dever ao presumido elevado grau de alcoolemia.

b) Solicitar a realização de uma TAC (Tomografia Axial Computadorizada), que permitia avaliar / comprovar a extensão da lesão do paciente.

c) Reencaminhar o paciente de imediato para o Serviço de Neurocirurgia do Hospital

 15. constata-se que a Arguida optou por suturar a ferida do paciente, administrando-lhe terapêutica para pacientes etilizados (cfr. fls.120 e fls. 215) sem dar relevância aos evidentes sinais da gravidade da situação e que lhe foram transmitidos antes, quer pelo CODU quer pela Triagem.

16. Com efeito, e como se veio a comprovar pelas análises constantes de fls. 217, registadas às 10h14m, a taxa de alcoolemia (etanol) de M...  era de 51,8mg/d1, que não justificava os sinais de perturbação da consciência manifestados pelo paciente.

17. No entanto, a ora Arguida apesar dos sinais em sentido contrário que lhe foram dados, partiu do pressuposto que o estado do paciente se devia apenas ao seu estado etilizado, sem ter sequer verificado se tal correspondia à verdade.

18. Também, no "Diário Clínico – Médico" (fls. 215), as novas referências ao estado de M...  "ainda bastante etilizado" e "apesar de haver referências a otorragia a esquerda neste momento o doente não apresenta saída de sangue".

19. Donde se pode concluir que da parte da Arguida houve um ignorar dos evidentes sinais do estado de saúde do paciente e de uma outra actuação adequada à gravidade apresentada.

20. Assim, uma hora depois da última avaliação feita pela Arguida, o paciente entrou em coma profundo tendo então sido observado pela Dra. N... e de seguida pela Dra. Ma... (cfr. diário clínico a fls. 215 e ss.), que às 8h48m. (a Dra. Ma... ) pediram a realização de uma TAC urgente, (três horas depois de ter dado entrada no referido Hospital, às 5h51m.).

21. Também em declarações, a Dra. Ma...  (quando inquirida a fls. 270 dos autos) refere expressamente: "afigura-se à depoente que M... deveria ter sido transferido para o S.O. de cirurgia e não de medicina". Tendo ainda referido que a opção de realizar ou não a TAC passa pela conversa que tem com os pacientes, "coloca-lhes várias questões a fim de apurar as razões em que ocorreram os traumatismos".

22. Ora, se confrontarmos este depoimento com o depoimento da Arguida, facilmente concluímos que a mesma não teve sequer o cuidado de tentar apurar a razão de ser do ferimento que M... apresentava (vd.fls.275), limitando-se a assumir que o mesmo estaria etilizado, o que, se percebe, não era prática clínica habitual naquele hospital.

23. Tais atrasos e omissões de tratamento impediram a adopção tempestiva de medidas terapêuticas adequadas a evitar o agravamento do seu estado clínico, como seria a realização de uma intervenção cirúrgica susceptível de salvar a sua vida.

24. Nada aponta no sentido de não ser exigível à arguida, uma correcta avaliação do estado clínico do paciente, uma impossibilidade de cumprimento dos protocolos e standards médicos mais adequados e maioritáriamente aceites pela comunidade médica.

                            

                    Por outro lado não se compreende o afastamento do Parecer do Professor  A...(fls. 332 e ss.), pela Srª.Juíz, dando total aceitação ao parecer do IML, que, como resulta da sua leitura (fls. 619 e 620)  não avalia as informações do INEM, da Triagem, dos relatórios do serviço de Observação das Urgências e, não alude ao concreto e adequado procedimento standard para os casos semelhantes. Quanto ao relatório junto a fls. 345 nem sequer nos dá a conhecer que teve em atenção o conhecimento de toda a situação concreta em que o paciente foi admitido e atendido no serviço de urgências do Hospital de S.José, nem faz qualquer objectivação concreta sobre os adequados procedimentos que foram adoptados e aqueles que se impunham em cumprimento das legis artis. (cujo conteúdo não concretiza) e, contrariamente, ao parecer médico junto pelo assistente, atribuído ao Professor Âke Sjõholm, onde se refere: "Vários erros graves, atrasos, negligência e acções inapropriadas tiveram então lugar no tratamento inicial do Sr.  nos Serviços de Urgência entre a sua chegada às 05:51 e a sua transferência tardia para a Neurocirurgia e Cuidados Intensivos às 10:00 da manhã de 22 de Agosto de 2007. Estes erros incluem atrasos inaceitavelmente longos na 1) realização de exames neurológicos clínicos de rotina apesar dos sinais claros de traumatismo craniano e consciência comprometida, 2) obtenção de leituras de níveis de alcoolemia e 3) requisição de exames de tomografia computadorizada do cérebro. Os sintomas do Sr.  foram mal interpretados e tomados como estando relacionados com o consumo de álcool, quando na verdade eles foram causados por graves lesões cerebrais com elevada hemorragia intracraniana. Estas lesões graves não foram detectadas até ser tarde demais devido à supra referida série de erros e atrasos. Com base nos factos apurados e com mais de 20 anos de experiência clínica, é minha forte e firme convicção que os cuidados e tratamento do Sr.  no Serviço de Urgências do Hospital de São José a 22 de Agosto de 2007 não estiveram em conformidade com os padrões médicos contemporâneos e aceitáveis. É, portanto, minha forte e firme opinião que as lentas e deficitárias acções dos médicos do Serviço de Urgências envolvidos no tratamento do Sr. M...  constituem negligência grosseira e má conduta profissional grave." Não mereceu adequada apreciação na decisão instrutória.

Em suma.

Dos factos acabados de analisar, não podia o Tribunal deixar de concluir pela existência de indícios da actuação negligente da arguida nos cuidados devidos ao paciente que lhe vieram a causar a sua morte, sendo suficientes para admitir a reunião dos necessários pressupostos para a fase processual seguinte da submissão da arguida a julgamento, pela prática do crime de homicídio negligente, p.p. no artigo 137.°, n.° 2 do CP.

Deverá assim proceder integralmente o recurso do Mº.Pº. e, parcialmente o do Assistente e proferir-se despacho que pronuncie a arguida S... pela prática do crime p.p. pelo artigo 137 nº. 1 e 2 do C.P., desde já se sugerindo o seu enquadramento na factualidade descrita pelo Assistente no requerimento de instrução e que se encontra perfeitamente delineada no Acórdão proferido nesta Relação, constante de fls. 569 a 575 destes autos, na parte que pressupõe a qualificação jurídica supra mencionada.

Na nossa perspectiva, no caso não há indicícios da prática do ilícito com previsão no artigo 150 do C.P. uma vez que se trata de um crime de perigo concreto que, subjectivamente exige a verificação do dolo (a violação das legis artis tem de ser acompanhada do dolo)- cfr. Figueiredo Dias e  Costa Andrade[12]. Assim, remetendo-nos para o que a Exmª. Magistrada do Mº.Pº escreveu na sua resposta ao recurso do Assistente, citando Manuel da Costa Andrade na anotação ao artigo, no Comentário Conimbricense: “ o nº. 2, introduzido pela reforma de 1998, pôs de pé uma incriminação nova: a criação de um perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, como consequência da violação das legis artis.(…) os médicos passariam a responder por um novo crime, que terá sido pensado como um crime de perigo concreto. (…) No plano objectivo, a infracção configura um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. No tipo subjectivo só é punível o dolo (…).

Assim se entendendo não temos por adequada a verificação dos indícios necessários à integração da conduta da arguida na tipologia do artº. 150, mas sim na do artigo 137-1 e 2 do C.P.


III – DECISÃO.


Termos em que acordam os juízes da 9ª Secção do Tribunal desta Relação em:

- dar total provimento ao recurso interposto pelo Mº.Pº;

- dar parcial provimento ao recurso interposto pelo assistente;

- revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por um outro que pronuncie a arguida pelos factos integrantes dos pressupostos objectivos e subjectivos do crime de homicídio por negligência, p.p. pelo artigo 137 nº. 1 e 2 do C.P.

Não são devidas custas.

Elaborado em computador e revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

Lisboa, 23/05/2013                                                                        

                                                              

(Maria do Carmo Ferreira)

(Cristina Branco)

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[1] Conforme se pode ler no Ac.R.Évora de 1/3/2005-em www.dgsi.pt: “Por indícios suficientes entendem-se suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele”. A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo.

[2] A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo – cf. Prof. Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, 105, p. 142.

[3]  Já na Grécia antiga

Platão (427-347 a.C.), As Leis:

o médico deve estar isento de qualquer castigo, já que uma pessoa é curada pelo médico, mas morre por si mesmo.

Mas, Hipócrates (460 a 377 a.C.), De Lege, mostrava insatisfação pelo facto de os tribunais gregos não punirem suficientemente os erros dos médicos.
Sobre os erros médicos só com Carlos V em 1532 quando aprovada a Constitutio Criminalis Carolina nas Cortes de Regensburgo se verifica um tratamento expresso no artigo 13.
[4] Paula Ribeiro de Faria- Comentário Conimbricense, p.900
[5] Responsabilidade penal por negligência no exercício da medicina em equipa- Centro de Direito Biomédico de Coimbra- Sónia Fidalgo- p.94.
[6]  Exemplos de guidelines temos o guia para o transporte de doentes críticos (sociedade portuguesa de cuidados intensivos); protocolo de actuação dos serviços de urgência e de suporte avançado de vida em adultos (Conselho Europeu e Português de Ressuscitação)

[7] A relação médico-paciente é essencialmente assimétrica a todos os níveis:

“De um lado a postura de dependência, a “fraqueza” existencial e o desconhecimento por parte do paciente; do outro a competência técnica, a especialização, o poder e a autoridade do médico. Essa assimetria pode ser atenuada através de regras jurídicas e regulamentações…”

André Pereira- Prof. Centro de Direito Biomédico de Coimbra.

[8] Estrutura jurídica do acto médico, consentimento informado –Temas do direito da medicina, do C.D.B. de Coimbra. C.editora 2005.
[9] El medico e el derecho penal, p. 238- ed.comares-Granada.
[10] Pode acontecer que a conduta do médico que provocou a morte de um paciente tenha revelado uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e sensatez e, neste caso poderá vir a considerar-se que o médico cometeu um homicídio com negligência grosseira, previsto no nº. 2 do artigo 137 do C.P.- Direito Penal, Prof.Figueiredo Dias- I, 36.
[11] Pulseira laranja- tal como resulta da aplicação do Protocolo de Classificação de Risco do Hospital e que pode ser consultado no site do próprio Hospital.
[12] Comentário Conimbricense-notas do artº. 150.
Segundo Figueiredo Dias, nem sempre que há violação das legis artis a intervenção constituirá uma ofensa à integridade física, ou seja, se do “error artis não derivar uma ofensa no corpo ou na saúde do paciente, a conduta do médico não será, por causa daquele erro, criminalmente punível (ressalvada a tentativa)- Responsabilidade médica em Portugal; Determinação da responsabilidade por negligência- Sónia Fidalgo, ob. Cit.