Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1657/14.0TYLSB-N.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
SENTENÇA
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que é reconhecido um determinado crédito a um dos credores, a ser pago em 1º lugar pelo produto da venda de um imóvel da massa da insolvência, não pode, após o trânsito em julgado dessa sentença, vir tal direito a ser discutido de novo.
- Tanto mais que o crédito em causa – com o valor do dobro do sinal por incumprimento do contrato promessa relativo à compra de um imóvel -  foi verificado e graduado em tal sentença, estando o tribunal perfeitamente ciente que, após venda por propostas em carta fechada, o imóvel fora adjudicado aos titulares de tal crédito, promitentes compradores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

Por despacho datado de 23 de Janeiro de 2017, foi a credora A , Comissão de Credores e Liquidatário judicial notificados para se pronunciarem sobre eventual incompatibilidade do exercício simultâneo entre o direito ao recebimento do sinal em dobro por incumprimento do contrato de promessa de compra e venda da fração GV do prédio constituído em propriedade horizontal e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 827/970701 e, a aquisição da aludida fração prometida na liquidação, pela promitente compradora. A credora A pugnou pela admissibilidade de ambos os direitos em simultâneo, sendo que a Comissão de Credores e o Senhor Liquidatário Judicial, pugnaram pela inadmissibilidade.
Tendo sido decidido que “deverá ser mantido o reconhecimento do crédito de A pelo valor de € 798.076,64 (setecentos e noventa e oito mil e setenta seis euros e sessenta e quatro cêntimos), graduado em primeiro lugar pelo produto da venda da fração"GV" do prédio constituído em propriedade· horizontal e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n. o 827/970701, não obstante a aquisição da aludida fração em sede de liquidação, o que determino.           
Está assente que:
1) A credora A reclamou créditos no valor de €  798.076,64 a titulo de sinal em dobro no âmbito de contrato de promessa de compra e venda celebrado com a falida relativamente à fração autónoma GV correspondente a apartamento T5 sito no 12º andar, letra B do nº .. do Campo Grande e arrecadação com 3 lugares de estacionamento, descrito na Conservatória do Registo predial de Lisboa sob o nº 827/970701.
2) Pagou oitenta milhões de escudos e prestou garantia bancária no valor de quarenta milhões de escudos.
3) Tomou posse da fração que se mantém à data de hoje.
4) Que o imóvel foi apreendido para a massa falida.
5) Que lhe foi reconhecido crédito com direito de retenção sobre a aludida fração no valor de € 798.076,64 por sentença datada de 15 de março de 2004, confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado .de 19 de setembro de 2006.
6) Que a credora adquiriu o imóvel à massa falida em sede de liquidação pelo preço de € 673.377,16, por escritura celebrada no dia 26 de setembro de 2005.
Inconformado, recorre o credor B, concluindo que:
- A decisão tomada no Douto Despacho recorrido foi extraída por directo influxo das razões e dos argumentos novos nunca antes invocados, através de requerimento com que a Credora A se veio pronunciar aos autos;
- À ora Recorrente não foi dado o devido conhecimento do teor da pronúncia da Credora nos autos A, tendo-lhe sido vedada a possibilidade de a discutir, de a contestar e de a valorar, e que assim não pôde conhecer nem considerar para o concreto exercício do seu direito ao contraditório;
- O exercício do direito ao contraditório pela ora Recorrente era especialmente exigido e imprescindível in casu, em virtude de a decisão tomada pelo Douto Despacho recorrido ter sido extraída por directo influxo das razões e dos argumentos novos constantes da pronúncia da Credora nos autos A, e em total oposição a decisão já tomada pelo mesmo Mmo Juiz a quo, em anterior Despacho de fls. 1832/1833 dos autos (Doc.2);
- "O princípio do contraditório só é correctamente observado se for de molde a que cada uma das partes possa, não apenas, deduzir as suas razões, de facto e de direito, e oferecer as suas provas, mas também controlar as provas do adversário, discreteando sobre o valor e resultado de umas e de outras. "
 - "A não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 201.!! do CPC [art. 195º do actual CPC)" - cfr. Ac. RE de 1-04-2004;
- O Douto Despacho recorrido está ferido de NULIDADE por ter sido proferido com violação do princípio do contraditório que aqui se argui para que seja declarado nulo e de nenhum efeito nos termos da previsão legal da norma do art. 195º do CPC;
- O Douto Despacho recorrido violou ainda o princípio da igualdade das partes, consagrado pela Constituição da República e previsto no art. 4º do CPC que determina que “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, ou uso de meios de defesa ... "; - Sem absoluto se conceder quanto à NULIDADE supra arguida do Douto Despacho recorrido aqui se impugna veementemente a decisão nele contida, que salvo todo o muito devido respeito foi proferida com manifesto e notório erro de julgamento.
- Foi com manifesto e notório erro de julgamento que o Douto Despacho recorrido, em oposição com o Douto Despacho anterior de fls.1832/1833 dos autos manteve “O reconhecimento do crédito de A pelo valor de € 798.076,64 (seiscentos e noventa e oito mil e setenta seis euros e sessenta e quatro cêntimos), graduado em primeiro lugar pelo produto da venda da fracção"GV" do prédio constituído em propriedade horizontal e descrito na Conservatória do registo Predial de Lisboa sob o nº 827/970701, não obstante a aquisição da aludida fracção em sede de liquidação ... »;
- No seu anterior Douto Despacho de fls.1832/1833, o mesmo Mmo Juiz a quo que proferiu o Douto Despacho recorrido havia determinado que "Ao exercer o direito ao recebimento do sinal em dobro abdica do direito de adquirir o prédio na liquidação e vice-versa. Uma vez que a credora adquiriu o prédio na liquidação, deverão ser ponderadas consequências no que concerne ao direito de crédito já reconhecido por sentença. ";
- No Douto Despacho recorrido o Mmo Juiz que o proferiu declarou que "0 tribunal, na pessoa do ora subscritor tem entendido, em casos semelhantes, ser incompatível o exercício simultâneo dos direitos de receber da massa falida ou insolvente do crédito correspondente ao montante em dobro do sinal paqo no âmbito de contrato de promessa de compra e venda de determinado imóvel e a aquisição desse mesmo imóvel em sede de liquidação, quando não tenha havido interrupção na posse do imóvel nem no interesse do promitente-comprador na aquisição do mesmo.";
- No caso dos autos nunca houve interrupção na posse do imóvel pelos Credores representados pela Credora nos autos A nem no seu interesse como promitentes-compradores na aquisição do mesmo;
- Com fundamento na morosidade da Justiça e no principio da segurança jurídica, em absoluta contradição com a Jurisprudência que havia invocado nos termos aqui supra transcritos e a despeito de reconhecer a incompatibilidade da titularidade em simultâneo de ambos os direitos no âmbito do mesmo Processo de falência/insolvência, o Douto Despacho recorrido veio porém a reconhecer, em simultâneo, aos mesmos Credores representados pela Credora nos autos A que adquiriram o direito de propriedade do imóvel em liquidação da massa falida, o direito ao crédito do sinal em dobro originado pela não concretização da aquisição daquele mesmo imóvel;
- A morosidade da Justiça e o principio da segurança jurídica não podem por nenhuma forma constituir fonte de direito ou suporte ou fundamento passível nem adequado a anular a incompatibilidade que no âmbito do mesmo Processo de falência/insolvência impedê "que o direito de propriedade do imóvel e o direito ao crédito do sinal em dobro originado pela não concretização da aquisição daquele mesmo. imóvel sejom conferidos em simultâneo;       
- Os Senhores Doutores Fernando …. e A foram admitidos como Credores no presente Processo, porquanto então não se achar ainda celebrado o Contrato de Compra e Venda do imóvel apreendido a favor da massa falida cuja aquisição lhe estava prometida, tendo reclamado um crédito correspondente ao dobro do sinal de 80.000 contos que haviam entregue à Falida com a assinatura do contrato-promessa de Compra e Venda do imóvel que estaria garantido por um direito de retenção do qual, então, seriam ainda titulares;
- Resulta claro e inequívoco do que se expende no Parecer Jurídico junto ao presente RECURSO, que os Credores Doutores Fernando …. e A deixaram de ser titulares do crédito que tinham vindo reclamar no presente Processo de Falência, o que, tal como havia sido requerido no Processo o Douto Despacho recorrido devia consequentemente ter declarado;
- A perda da qualidade de Credores das referidas pessoas verificou-se automaticamente no Processo em 26 de Setembro de 2005 por ser a data da Escritura Pública de Compra de Imóvel, a qual teve lugar em momento anterior ao trânsito em julgado da Sentença de Graduação de Créditos que ocorreu em 11 de Outubro de 2006 e que, apreendido a favor da massa falida no presente processo, anteriormente tinha sido prometido comprar por contrato-promessa pelos mesmos igualmente outorgado.
  -  Pois se a compra e venda acaba por ser celebrada, verifica-se que verdadeiramente não há incumprimento do contrato-promessa, porquanto, pese embora ser a “verdade que a compra e venda foi celebrada por portas-travessas, cabe considerar que ela é um sucedâneo da compra e venda prometida”.
- “Pois os sujeitos activo e passivo são os mesmos, e o objecto é também o mesmo (o montante do preço, sendo distinto daquele que foi prometido, não é contudo elemento essencial nem do contrato promessa de compra e venda nem do contrato de compra e venda”.
- A perda de interesse do credor na realização da prestação avaliada objectivamente constitui causa de incumprimento definitivo de uma obrigação (artigo 808º nº 1, Código Civil);
- Como se conclui no Parecer Jurídico junto ao presente RECURSO, “se os promitentes-compradores tivessem perdido o interesse na celebração da compra e venda prometida, não teriam surgido, depois, a comprar na venda judicial! Se o fazem é certamente por a aquisição da fracção autónoma em causa lhes interessar manifestamente (até por fazerem a proposta mais alta)»;
- Por forma ínvia, é certo, o Liquidatário Judicial no presente Processo, tendo certamente ponderado a diferença entre o preço acordado no contrato-promessa e o valor real do mercado do imóvel em causa decidiu optar por solução de venda judicial que em seu entender acautelasse todos os interesses em causa, incluindo o interesse dos Senhores Doutores Fernando …. e A;
- O Liquidatário Judicial no presente Processo optou pela solução de venda que acautelou quer os interesses da massa falida, quer o interesse dos demais Credores, não deixando de permitir que os Senhores Doutores Fernando …. e A pudessem ver igualmente acautelada a satisfação da sua pretensão em adquirirem o imóvel que tinham prometido adquirir com a assinatura do contrato-promessa, e de consequentemente poderem aproveitar a seu favor o valor de 80 000 contos que haviam entregue a título de respectivo sinal;
- O contrato-promessa acabou a final por ter sido cumprido, dada a irrelevância da alteração do preço que os Credores  se obrigaram a pagar no Processo de Falência para celebrarem o Contrato de Compra e Venda do imóvel, pois “o montante do preço, sendo distinto daquele que foi prometido, não é, contudo, um elemento essencial nem do contrato-promessa de compra e venda, nem do contrato de compra e venda - art. 883º, nº 1, do Código Civil)”;
- O montante de 80 000 contos correspondente ao valor do sinal entregue com a assinatura do contrato-promessa, pôde assim ser "usado" pelos Senhores Doutores Fernando …. e A como pagamento de parte do valor total do preço da compra, do qual foram desde logo dispensados de pagar no acto de aquisição do imóvel levada a efeito com a assinatura da Escritura Pública do Contrato de Compra e Venda;
- Os Senhores Doutores Fernando …. e A não deixaram de ver satisfeita a sua pretensão de adquirirem o imóvel em causa, com a consequente retirada da massa falida do bem que era objecto do contrato prometido e aproveitamento da quantia correspondente ao sinal que haviam entregue à Falida, no referido valor de 80.000 contos;  
- Até ao presente  os Senhores Doutores Fernando …. e A pagaram só parte do valor total do preço devido e a que se obrigaram para a aquisição do imóvel, o referido valor de 80 000 contos que, entregue no momento da assinatura do contrato-promessa, lhes foi assim deduzido ao valor total obrigados a entregar no acto da Escritura Pública através da qual celebraram aquela aquisição;
- A quantia de € 168.344,29 (cento e sessenta e oito mil, trezentos e quarenta e quatro Euros e vinte e nove cêntimos), que por força da Lei e dos Despachos Judiciais proferidos em respectivo cumprimento foram obrigados a depositar à ordem do presente Processo, não corresponde a paqamento devido pela aquisição do imóvel mas para efeito de garantia do pagamento de despesas, custas, taxas, etc., processualmente impostas, a qual no momento próprio e adequado será objecto de devolução aos Senhores Doutores Fernando … e A;
- 0 direito de retenção extinguiu-se automaticamente no preciso instante em que se realizou a Escritura Pública de Compra do imóvel, por se tornar inconcebível um direito real de garantia (de retenção ou de outra espécie) sobre coisa própria: a caracterização deste direito como iura in re aliena típico determina a sua necessária extinção no instante em que o pretenso credor adquire a propriedade da coisa sobre a qual ele incidia - [artigos 408 nº 1, e 879º alínea a), Código Civil};
- A extinção do direito ao dobro do sinal de que eram titulares os Credores Senhores Doutores Fernando … e A verificou-se desde logo também automaticamente desde a data da Escritura Pública de compra do imóvel, pois como se conclui no Parecer Jurídico junto ao presente RECURSO, "Extinto o direito de retenção, os privilégios dele resultantes para o credor que dele beneficiava consideram-se obviamente exterminados, dado que estes pressupõem aquele";
- Como se conclui no Parecer Jurídico junto ao presente RECURSO "nem a extinção por consolidação do direito de retenção a que alude o artigo 755º nº 1, alínea f) do Código Civil, é susceptível de acarretar algum prejuízo aos promitentes-compradores, pois estes obtiveram, directamente, a partir do mesmo promitente-vendedor, o objecto desde sempre pretendido";
- A insubsistência do crédito ao dobro do sinal antes titulado pelos Senhores Doutores Fernando …. e A não podia aliás por nenhuma forma deixar de ter verificação, pois como se escreveu supra uma coisa é certa: os promitentes-compradores não podem pretender, em simultâneo, a devolução do sinal em dobro e a aquisição da propriedade pela compra e venda ... »;
- A permanência do direito de retenção e a manutenção do crédito ao dobro do sinal, como se escreve no Parecer Jurídico junto ao presente RECURSO, constitui "exercício abusivo artigo 334º do Código Civil na hipótese típica de exercício manifestamente desequilibrado, pois a sua actuação gera desproporcionalidade entre a vantaqem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem»";
 - Como se conclui em Douto Acórdão do STJ: "1 - «Adquirindo o promitente-comprador a propriedade do bem sujeito ao direito de retenção de que ele próprio era titular extingue-se este por confusão. Por conseguinte, sendo essa aquisição efectuada por compra em processo executivo, o adquirente, até então titular do direito de retenção, não pode já fazer valer esse direito para exercer o seu crédito sobre o promitente-vendedor relativamente ao produto da venda do bem em causa. Mesmo a entender-se que, simultaneamente à extinção do direito de retenção por confusão, caduca também o mesmo direito nos termos do nº  2 do artigo 824º do Código Civil, esse conflito de efeitos jurídicos deve resolver-se pela prevalência do efeito substantivo da confusão»";
- Se o Douto Despacho recorrido não for revogado e persistir o reconhecimento do crédito ao dobro do sinal com a consequente manutenção do direito de retenção associado, os Senhores Doutores Fernando …. e A estarão a financiar com prejuízo dos demais Credores, a compra que outorqaram com o promitente-vendedor (através do liquidatário judicial) aproveitando-se da quantia que obtiveram a partir deste a título de restituição do referido sinal em dobro. E esta será devida, no entendimento dos promitentes-compradores, à falta de transmissão do direito de propriedade sobre a fracção. A verdade, no entanto, é que este lhe foi transmitido e, mais, por quem devia realmente fazê-lo por ser o Liquidatário Judicial o órgão falimentar que substituiu o promitente-vendedor no exercício dos seus poderes;
- É indubitável que se operou a extinção do direito de retenção de que eram titulares os Senhores Doutores Fernando … e A, justificada e imposta desde logo pela "regra básica, no que à titularidade de direitos reais respeita, segundo a qual a reunião, na mesma pessoa, de dois (ou mais) direitos sobre a mesma coisa, provoca a extinção de um deles através precisamente da consolidação [artigos 1476º, nº 1, alínea b}, 1536º, nº 1, alínea d) e 1569º, nº 1, todos do Código Civil}";
- Nestes termos, nos mais de direito, e com a consideração de todas as questões de constitucionalidade que ao longo da Motivação do presente RECURSO foram assim de forma processualmente adequada sendo devidamente suscitadas, se requer que:
- Por ter sido proferido com violação do direito ao contraditório seja com todas as consequências legais inerentes declarada a NULIDADE processual do Douto Despacho recorrido prevista no art. 195º do CPC;
- Sem  em absoluto se conceder quanto à NULIDADE supra em a} requerida, e por ter sido proferido com erro de julgamento que o inquina, seja o Douto Despacho recorrido consequentemente revogado;
- Mantendo-se a aquisição do imóvel, seja declarado no Processo o não reconhecimento do direito ao recebimento do sinal em dobro pelos Senhores Doutores Fernando ….. e A;

- Seja consequentemente declarada no Processo a perda da qualidade de Credores dos Senhores Doutores Fernando …. e A;
- Sejam os Senhores Doutores Fernando …. e A obrigados a pagar à massa falida a quantia de 55 000 contos, ou seja, 274.338,84 € (duzentos e setenta e quatro mil, trezentos e trinta e oito Euros e oitenta e quatro cêntimos), a qual, adicionada à quantia correspondente ao valor do sinal de 80 000 contos (399.038,32 € - trezentos e noventa e nove mil e trinta e oito Euros e trinta e dois cêntimos) perdido a seu favor pela massa falida, perfaz o valor total do preço de 135 000 contos, ou seja, 673.377,16 € (seiscentos e setenta e três mi/, trezentos e setenta e sete Euros e dezasseis cêntimos) a que se comprometeram com a aquisição do imóvel;
- Até que o respectivo depósito se mostre efectuado, seja determinada a constituição da hipoteca sobre o imóvel, a favor da massa falida, para garantia do valor dos 55 000 contos, ou seja, 274.338,84 € (duzentos e setenta e quatro mil, trezentos e trinta e oito Euros e oitenta e quatro cêntimos) que os Senhores Doutores Fernando …. e A devem pagar à massa falida;
Seja o presente RECURSO admitido com efeito suspensivo da decisão recorrida, nos termos da alinea e) do n.º 3 do Art.º 647.º.

A parte contrária apresentou contra-alegações em que sustenta a bondade da decisão recorrida.
Cumpre apreciar.
O presente recurso envolve a invocação de nulidade do despacho recorrido, por não ter sido respeitado o contraditório e o erro no julgamento de direito da questão em litígio.
Quanto ao primeiro ponto há que dizer que não assiste razão ao recorrente.
No caso em apreço o tribunal convidou a comissão de credores e a credora Maria G…. para se pronunciarem sobre o teor do despacho de fls. 1832/1833, nomeadamente sobre a questão da incompatibilidade entre o direito a receber, com preferência sobre os demais credores, o crédito correspondente ao sinal em dobro, e o direito a adquirir o imóvel por compra na liquidação.
As partes em causa tiveram pois a oportunidade de se pronunciarem sobre tal matéria, vindo em seguida a ser proferido o despacho recorrido.
Ora, este despacho pode ter sido influenciado pelas razões expostas pela ora recorrida, mas não assentou em factos novos, antes retomou factualidade constante do processo há largos anos, nomeadamente a de fls. 12, 18, 23 a 47, 56, 155 a 159 do apenso de liquidação, 32 e 33 do apenso de apreensão de bens e de fls. 668, 669, 969 e 970 dos autos principais em conjugação com a sentença de graduação de créditos constante de fls. 325 a 334 do apenso de reclamação de créditos.
Com a consequência de o tribunal deixar de considerar assente o ponto nº 7 do despacho de fls. 1833, com o seguinte teor:
A intenção de adquirir o prédio na liquidação não foi ponderada na sentença de graduação de créditos em primeira instância e a aquisição do prédio não foi ponderada no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
Perante isto, o tribunal tomou a decisão ora recorrida. Note-se que o despacho anterior, de fls. 1832/1833 não tomava qualquer decisão sobre o presente objecto do pleito, antes convidava as partes a pronunciarem-se como acabámos de referir.

O princípio do contraditório foi respeitado e foi evitada uma decisão surpresa, ou seja, uma decisão assente em factos novos sobre os quais as partes não se tenham podido pronunciar.
Ora estamos perante factos muitos deles anteriores a 2005, constantes dos diversos apensos do processo de falência de Maria …… e dos próprios autos principais.
A recorrida chamou a atenção do tribunal para tal factualidade, mas não introduziu qualquer elemento novo nos autos.
E o tribunal, perante os arguimentos que lhe foram apresentados pelas partes sobre a questão suscitada, tomou uma decisão.
Que o Mº juiz tenha sugerido qual a sua posição sobre o problema da incompatibilidade de direitos no despacho de fls. 1832/1833 não é de modo algum impeditivo que, perante os argumentos de uma das partes, venha a tomar uma decisão diferente – mas não exactamente oposta – no despacho recorrido. A não ser assim, não valeria a pena convidar as partes a pronunciarem-se sobre a questão.
Logo, não foi proferida decisão surpresa nem violado o princípio do contraditório, não padecendo o despacho em causa da nulidade apontada.
Quanto ao alegado erro de julgamento.
A questão, como se coloca na decisão, não é já a de apurar se existe incompatibilidade entre os direitos mas antes a de, compulsados os autos e a decisão no apenso de reclamação de créditos se ter concluido pela existência de caso julgado.
Cumpre lembrar que essa questão de incompatibilidade de direitos assenta no seguinte:
A credora A celebrara contrato-promessa de compra e venda de uma fracção. O contrato comportava o direito de retenção do imóvel. Perante o incumprimento da promitente vendedora, entretanto declarada falida, pediu a promitente-compradora o pagamento do sinal em dobro, manifestando contudo a vontade de adquirir a fracção, o que veio a suceder no liquidação.
Ora, é efectivamente incompatível o direito à indemnização – sinal em dobro – pelo incumprimento do contrato e, por outro lado, a aquisição do imóvel, que constituía o objecto do mesmo contrato. Além disso, com a compra do imóvel extingue-se o direito de retenção, por confusão, já que na esfera jurídica da mesma pessoa não pode coexistir o direito de retenção com a posse e propriedade do imóvel supostamente retido.
Contudo, se observarmos o despacho recorrido, esta é igualmente a perspectiva do Mº juiz a quo. Mais ainda, considera que o exercício simultâneo dos dois direitos configura uma situação de abuso de direito nos termos do art. 334º do Código Civil.
Portanto, a polémica não se situa ao nível de apurar se a promitente-comprador, gozando do direito de retenção sobre o imóvel prometido vender, não tendo a sua posse sobre o mesmo sido interrompida, pode pedir a restituição do sinal em dobro por incumprimento do contrato e simultaneamente adquirir o imóvel. Estamos de acordo com o Mº juiz a quo e com o recorrente que tal não é juridicamente admissível.
O fulcro da decisão recorrida assenta na sentença de reclamação de créditos de 15/03/2004. Nessa sentença, há muito transitada em julgado, foram reconhecidos os créditos reclamados por Maria Inês Carmona e Fernando Gouveia, no montante de € 798.076,63 (ou seja, o correspondente ao sinal em dobro). Tal crédito foi graduado em 1º lugar, a ser pago sobre o produto da venda da fracção GV ( sobre a qual detinham os ora recorridos direito de retenção).
Tendo havido recurso de tal sentença, veio a ser finalmente proferido acórdão pelo STJ em 19/09/2006, no qual foi confirmada a decisão da 1ª instância.
No despacho proferido em 23/01/2017, foi entendido como provado (no seu nº 7) que a intenção de adquirir o prédio na liquidação não foi ponderada na sentença de graduação de créditos em primeira instância e a aquisição do prédio a que se alude não foi ponderada no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
A perspectiva do Mº juiz a quo seria pois a de que a sentença de graduação de créditos reconheceu e graduou o crédito correspondente ao dobro do sinal, por não considerar que houvesse intenção desses dois credores de adquirirem a fracção sobre que detinham direito de retenção. Uma vez adquirida a fracção, deixaria de se poder falar em incumprimento – pois o objecto do contrato promessa, a compra e venda da fracção, fora consumado – e o próprio direito de retenção extinguia-se por confusão com o direito de propriedade dos adquirentes.
Contudo, alertado pelas considerações feitas por esses dois credores, o Mº juiz a quo, reapreciando os autos e nomeadamente tais decisões relativas ao reconhecimento e à graduação dos créditos, veio afirmar que a decisão proferida nessas sentenças, deveria ser mantida.
 E isto por duas razões, sendo nelas que radica a essência do despacho recorrido e não na incompatibilidade dos direitos referidos. 
 A primeira das razões prende-se com o a alteração daquilo que se havia considerado provado em 7) do despacho anterior, de 23/01/2017 e que acima transcrevemos. Passou a considerar-se que “a intenção da promitente compradora e credora em adquirir o prédio na liquidação foi efectivamente ponderada na sentença de graduação de créditos.”
E prossegue o despacho recorrido:
“A credora, após adjudicação do prédio por ter apresentado a melhor proposta em carta fechada, requereu a graduação imediata do crédito ou, em alternativa, a dispensa do depósito do preço, por ser titular do direito de retenção, tendo sido (por decisão de fls. 668 e 669) indeferida a primeira pretensão e relegada para momento posterior a segunda pretensão, pelo facto de não ter sido ainda proferida sentença de graduação de créditos, entendendo à data o tribunal que a celebração da escritura pública só se deverá realizar após ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos, uma vez que só então pode ser proferido despacho sobre a dispensa de depósito do preço.”
Sublinhando-se ainda no despacho agora em crise que  “a sentença de verificação e graduação de créditos foi proferida em 15/03/2004 pela mesma Mª juiz que proferiu a decisão  de fls. 668 e 669 dos autos principais, a decisão de deferimento de dispensa do depósito do preço foi proferida em 16/09/2004 e a escritura pública de compra e venda celebrada em Setembro de 2005.”
Ora, perante isto, é evidente que o tribunal ao proferir a sentença de verificação e graduação de créditos não podia ignorar que o imóvel havia sido adjudicado à promitente-compradora e a realização da escritura ocorreria logo que reconhecido e graduado o seu crédito. Mesmo assim, contudo, reconheceu e graduou o crédito reclamado correspondente ao sinal em dobro.
É aqui que se situa a segunda das razões que conduzem à decisão recorrida. O caso julgado formado pela sentença de verificação e graduação de créditos.
Dispõe o art. 619º nº 1 do CPC que “transitada em julgado a sentença (...), a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”.
Não estamos perante o recurso de revisão previsto nos mencionados artigos 698º a 702º.
Como refere Lebre de Freitas – Código de Processo Civil Anotado, 2º, pág. 678 -  “seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada. Mas quando constitui uma decisão de mérito (decisão sobre a relação material controvertida) a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual”.   
A sentença que verificou e graduou o crédito dos ora recorridos, definiu e declarou o direito destes. Tal direito consiste num crédito de € 798.076,64 a ser pago, em 1º lugar, entre os demais credores, pelo produto da venda da fracção GV do prédio acima identificado.
E ao proferir tal sentença não podia o tribunal ignorar, no próprio exercício das suas funções, que esses dois credores tinham apresentado a proposta em carta fechada mais elevada, sendo-lhes adjudicado o imóvel e ficando a realização da escritura pendente exactamente da sentença de graduação de créditos.
Por outro lado, em 16/09/2004, foi proferida decisão – igualmente transitada em julgado - que deferiu a dispensa de depósito do preço, afirmando-se para tal “esse bem foi pelos mesmos requerentes adquirido pelo valor de € 673.377,16, tendo sido entregue a quantia de € 202.013,15. Os créditos reconhecidos ascendem, pois, a um valor superior ao valor da aquisição”.
E em 2015 no âmbito de recurso de revisão interposto pela falida Maria …., invocando a extinção do direito de retenção, o STJ veio a decidir que tendo-se realizado a aquisição do imóvel pelo promitente comprador, mas não ao promitente-vendedor e sim à massa insolvente, “está-se aqui perante a titularidade de um direito de crédito, obrigacional, a que a lei reconhece, sem necessidade de outras formalidades, a garantia de reter o bem até que esse crédito seja satisfeito”.
Saliente-se ainda que a invocada situação de abuso de direito, que atrás abordámos, não se pode verificar no caso dos autos, já que os promitentes compradores (e credores) em 02/04/2002 interpelaram a Liquidatária Judicial para o cumprimento do contrato promessa de compra e venda, disponibilizando-se então, como se refere na decisão ora recorrida, para renunciar “nesse caso e só nesse ao direito de receberem o dobro do sinal prestado (...) e consequente direito de retenção”. Mas nem a Senhora Liquidatária nem a Comissão de Credores acederam a tal proposta.
Concluindo-se assim que:
Proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que é reconhecido um determinado crédito a um dos credores, a ser pago em 1º lugar pelo produto da venda de um imóvel da massa da insolvência, não pode, após o trânsito em julgado dessa sentença, vir tal direito a ser discutido de novo.
Tanto mais que o crédito em causa – com o valor do dobro do sinal por incumprimento do contrato promessa relativo à compra de um imóvel -  foi verificado e graduado em tal sentença, estando o tribunal perfeitamente ciente que, após venda por propostas em carta fechada, o imóvel fora adjudicado aos titulares de tal crédito, promitentes compradores.

Assim e pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.

LISBOA, 10/1/2019

António Valente
Teresa Prazeres Pais
Isoleta Almeida Costa