Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15489/18.3T8SNT-B.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CITAÇÃO
RECURSO DE REVISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Configurando-se como provável que a dispensa da citação da devedora, requerida no processo de insolvência, não tenha obedecido ao estritamente previsto no artigo 12.º, n.º 2, do CIRE, deve ser admitido o recurso extraordinário de revisão por tal fundamento ser suscetível de se enquadrar na alínea e) do artigo 696.º do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
No processo de insolvência que corre termos sob o n.º …/… no Juízo de Comércio de Sintra, em que é requerente SH…, LIMITED e requerida MJ…, foi proferida, em 21/11/2018, sentença que decretou a insolvência da requerida, tendo a mesma transitado em julgado.
A sentença foi proferida na sequência do despacho de 25/10/2018 (Ref.ª 115734805) que dispensou a audição da requerida, com o seguinte teor:
«Tendo em conta as múltiplas diligências efectuadas para citação da requerida, a qual não se logrou, e não se vislumbrando que outra possa alcançar tal desiderato, dispenso a sua audição, conforme requerido, ao abrigo do previsto no art. 12º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa».

Por Apenso ao processo de insolvência, em 21/01/2019 (Ref.ª 31285423), a requerida veio interpor recurso extraordinário de revisão com fundamento nas alíneas c) e e) do artigo 696.º do CPC.
Pediu a revogação do despacho proferido em 25/10/2018, que dispensou a audição da requerida nos termos do artigo 12.º do CIRE, e a anulação de todos os termos do processo posteriores e, ainda, que fosse determinada a citação da requerida, com domicílio no Condomínio M…, Lote … ….º esquerdo, Palmarejo, Praia-Santiago, Cabo Verde ou, caso assim não se entenda, a audição de um parente da requerida, designadamente a sua filha CS…, com domicílio na Av. …, n.º ….º, ….º Dt.º, Sassoeiros, …-… Carcavelos.

Em 28/01/2019 (Ref.ª 117398328) foi proferido despacho, que vem a ser o recorrido, que indeferiu o recurso extraordinário de revisão.

Inconformada, apelou a requerida, apresentando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida, em 28 de janeiro de 2019, pela Meritíssima Juiz … do Juízo de Comércio de Sintra, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, que indeferiu o Recurso Extraordinário de Revisão interposto pela Requerente, ora Recorrente, e que corre por apenso aos autos de ação especial de insolvência.
2. Resulta do artigo 662.°, n.° 1 do CPC que o Tribunal ad quem "deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa".
3. No que concerne à decisão que recaiu sobre a matéria de facto que os autos garantem, deve ser reformulada a redação dada ao ponto 3. da matéria de facto, por forma a que onde se escreveu “Foi expedida carta registada para tal morada, para citação da Requerida, em 11-09-2018” dever-se-á escrever que "Foi expedida carta registada para a morada indicada pela Requerente na sua Petição Inicial, para citação da Requerida, em 11-09-2018" artigo 614,° do CPC, aplicável aos Despachos ex vi artigo 613.° do mesmo diploma legal, e artigo 249.° do Código Civil.
4. Tal é o que resulta inequívoco dos elementos que constam dos autos, designadamente da carta de citação, elaborada no dia 11.09.2018, e junta aos autos principais de insolvência com a referência Citius 114887005.
5. Resulta, igualmente, dos elementos constantes dos autos que nos termos da Cláusula Décima Sétima, número Um, alínea a) do Contrato junto como documento n.° 3 com a Petição Inicial, as partes convencionaram a seguinte morada relativamente à ora Recorrente: Caixa Postal …/…/…, Praia, Cabo Verde.
6. Deverá, pois, ser aditado um ponto à matéria a ter em conta, sugerindo-se, muito respeitosamente, a seguinte redação:
Consta da Cláusula Décima Sétima, número Um, alínea a) do Contrato junto como documento n.° 3 com a Petição Inicial, a seguinte morada, relativamente à ora Recorrente, convencionada entre as partes: Caixa Postal …/…/…, Praia, Cabo Verde.
7. Aquando da prolação do Despacho cuja revisão se pretende, e conforme o próprio Tribunal a quo reconhece, era conhecido o nome dos filhos da ora Recorrente e que residiam em Portugal — por via do documento n.° 17 junto com a Petição Inicial.
8. Assim, deverá ser aditado um ponto à matéria a ter em conta, sugerindo-se, muito respeitosamente, a seguinte redação:
 Do Registo Predial de Cabo Verde junta pela Requerente com a sua Petição Inicial constam, como filhos da Requerida, IM…, CS… e PS…, todos com residência em Portugal.
9. Alegou e demonstrou a ora Recorrente que por via de carta de citação, registada e com aviso de receção, datada de dia 05-12-2018 e com a referência Citius 139466503, foi CS… citada para deduzir oposição, querendo, à ação especial de insolvência que, sob o n.° …/…, corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira — Juiz …, na qual é Requerente, a também aqui Requerente, SH…, LIMITED e Requerida a HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE RS…, representada por MJ…, aqui Requerida e ora Recorrente, e pelos seus filhos PS…, IM… e CS…, na qualidade de herdeiros de RS… (Documentos n.°s 1, 2 e 3 que se juntaram com o Recurso Extraordinário de Revisão).
10. Deverá ser aditado um ponto à matéria a ter em conta, sugerindo-se, muito respeitosamente, a seguinte redação:
A Requerente SH…, LIMITED apresentou Petição Inicial no dia 28.09.2018, no âmbito do processo que, sob o n.° …/…, corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira — Juiz …, indicando a filha da Requerida, ora Recorrente, CS…, COM residência na Avenida …, n.° …, …° Direito, Sassoeiros, Carcavelos.
11. Como o próprio Tribunal a quo concorda, nos termos do artigo 362.° do Código Civil "[d]iz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, objecto ou facto".
12. O escrito traduzido no requerimento apresentado pela Requerente, aqui Recorrida, no dia 24.10.2018 (cfr. requerimento com a referência Citius 13372124) e corporizando as declarações — falsas — de não ser conhecida à Requerida outra morada, em Portugal ou em qualquer outro país, que não a inicialmente indicada e que também não era possível localizar um parente da Requerida, designadamente os seus filhos, inclui-se quer na "noção ampla e rigorosa", quer na "noção restrita e usual" de documento.
13. A noção de documento a que se refere a alínea b) do artigo 696.° do CPC ultrapassa a mera corporização de uma "declaração de verdade ou ciência (declaração testemunhal: destinada a representar um estado de coisas)", pelo que não deve reduzir-se a um documento em sentido estrito, havendo, isso sim, é de tratar-se de um documento que tenha "uma finalidade probatória".
14. O Tribunal a quo ao referir que "(...) quando dispensou a audição da requerida, ora recorrente, não o fez por ter por bom o referido pela requerente, mas antes porque estão juntos aos autos prints das informações constantes das bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira, da Segurança Social e dos Serviços de Identificação Civil que indicam, como sendo a morada da Requerida, a indicada pela Requerente da insolvência.", violou o disposto no artigo 82.° n.° 1 do Código Civil, tanto mais que inexiste uma presunção legal de domicílio legal, designadamente para efeitos de citação.
15. O disposto no n.° 1 do artigo 12.° do CIRE não pode ser interpretado e aplicado sem ter em consideração o referido no n.° 2 do citado preceito legal, porquanto o aludido n.° 2 é claro ao dispor que "[n]os casos referidos no número anterior, deve, sempre que possível, ouvir-se um representante do devedor, ou, na falta deste, o seu cônjuge ou um seu parente, ou pessoa que com ele viva em união de facto" (realce nosso).
16. Não podia o Tribunal a quo, simplesmente com o fundamento de estarem "juntos aos autos prints das informações constantes das bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira, da Segurança Social e dos Serviços de Identificação Civil que indicam, como sendo a morada da Requerida, a indicada pela Requerente da insolvência" dispensar, sem mais, a audição da Requerida, ora Recorrente.
17. O Tribunal, no Despacho a rever com a referência Citius 115734805, ao referir "conforme requerido" não podia senão estar a aludir ao requerimento apresentado pela Requerente, aqui Recorrida, no dia 24.10.2018 (cfr. requerimento com a referência Citius 13372124) e corporizando as declarações — falsas — de não ser conhecida à Requerida outra morada, em Portugal ou em qualquer outro país, que não a inicialmente indicada e que também não era possível localizar um parente da Requerida, designadamente os seus filhos,
18. Sendo, pois, inequívoco que teve o mencionado requerimento apresentado pela Requerente, aqui Recorrida, no dia 24.10.2018 (cfr. requerimento com a referência Citius 13372124) "uma finalidade probatória" de convencer o Tribunal a ordenar a dispensa de citação e audição da Requerida, aqui Recorrente.
19. Resulta evidente o preenchimento de todos os requisitos estabelecidos na alínea b) do artigo 696.° do CPC:
(a) a Requerente, aqui Recorrida, SH…, LIMITED, apresentou documento traduzido na alegação de factos que bem sabia serem falsos (i) quanto ao desconhecimento de outra morada da Requerida, aqui Recorrente, (ii) quanto ao desconhecimento de um parente da Requerida, aqui Recorrente, designadamente a sua filha CS…, com domicílio na Avenida …, n.° …, ….° Dto., Sassoeiros, …-… Carcavelos,
(b) tendo tais factos falsos determinado o Despacho com a referência Citius 115734805, nos termos do qual e por referência à Requerida e aqui Recorrente se decidiu que "Tendo em conta as múltiplas diligências efetuadas para citação da requerida, a qual não se logrou, e não se vislumbrando que outra possa alcançar tal desiderato dispenso a sua audição, conforme requerido, ao abrigo do previsto no art. 12°, n° 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa" (sublinhado e realce nosso) e
(c) não tendo a matéria da possível audição de um parente da Requerida, aqui Recorrente, designadamente da sua filha CS…, com domicílio na Avenida …, n.° …, …º Dto., Sassoeiros, …-… Carcavelos, sido objeto de qualquer discussão no âmbito dos presentes autos.
20. As preocupações de celeridade derivados do carácter urgente do processo de insolvência não devem restringir de uma forma intolerável o direito de defesa, fazendo-se sempre com observância do designado due process of law, possuindo quer o princípio da igualdade das partes, quer o princípio do contraditório, dignidade constitucional — artigo 20.° da Lei Fundamental — e derivando ambos, em última instância, do princípio do Estado de Direito Democrático.
21. Similarmente, não poderá deixar de se fazer apelo ao princípio da proporcionalidade que legitima a restrição de direitos, liberdades e garantias, nos termos estatuídos no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
22. O Tribunal, cerca de um (1) mês e meio (V) depois de instaurada a referida ação especial de insolvência por quem optou por aguardar mais de onze (11) anos depois da celebração do contrato promessa de compra em venda em apreço e mais de oito (8) anos da data do falecimento de RS…, decidiu que a celeridade do processo exigia ordenar a imediata dispensa de audição da Requerida, ora Recorrente, sendo tal manifestamente desproporcional e excessivo e merecendo a censura do Venerando Tribunal ad quem.
23. Ao contrário do que o Tribunal a quo faz, não basta, para que possa ser ordenada a dispensa da audição do devedor no âmbito de uma ação especial de insolvência, que a citação acarrete demora excessiva pelo facto de o devedor, sendo uma pessoa singular, residir no estrangeiro ou ser desconhecido o seu paradeiro.
24. A lei determina, ainda, que o Tribunal "deve, sempre que possível, ouvir-se um representante do devedor, ou, na falta deste, o seu cônjuge ou um seu parente, ou pessoa que com ele viva em união de facto" — n.° 2 do citado preceito legal.
25. No caso ora em apreço não foram cumpridas todas as formalidades com vista à citação/ audição da Requerida, aqui Recorrente, previstas no CIRE.
26. Não diligenciou a Requerente, aqui Recorrida SH…, LIMITED, como lhe competia ao abrigo dos princípios da cooperação e da boa-fé processual, nos termos do disposto nos artigos 7.°, n.° 1 e 2 e 8.° do CPC, aplicáveis ex vi artigo 17.°, n.° 1 do CIRE, no sentido de alertar o Tribunal da existência de uma morada alternativa, nomeadamente a morada constante do Contrato de Promessa de Compra e Venda, igualmente por si junto aos autos (cfr. documento n.° 3 junto com o Requerimento Inicial),
27. Sempre teria, porque era possível e era conhecida da Requerente, aqui Recorrida SH…, LIMITED, ouvir-se um parente da Requerida, designadamente a sua filha CS…, com residência na Avenida …, n.° …, …° Direito, Sassoeiros, Carcavelos.
28. Não atentou o Tribunal, antes de decidir pela dispensa da audição da Requerida, aqui Recorrente, nos elementos que já então constavam dos autos e que indicavam a morada da Requerida em Cabo Verde (documentos n.°s 3, 14 e 19 juntos pela Requerente com a sua Petição Inicial) e bem assim a existência de parentes, no caso, filhos, da Requerida (documentos n.°5 17 e 19 juntos pela Requerente com a sua Petição Inicial).
29. O Tribunal não ordenou que fosse efetuada qualquer pesquisa nas bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social relativamente aos filhos da Requerida, ora Recorrente.
30. A Requerente, aqui Recorrida, sabia da existência e morada dos três (3) filhos da Requerida, ora Recorrente. De igual forma, constava dos autos elementos dos quais resultava a existência de parentes, no caso, filhos, da Requerida (documentos n.°s 17 e 19 juntos pela Requerente com a sua Petição Inicial), pelo que,
31. Não foram cumpridas as formalidades exigidas pelo artigo 12.°, n.° 2 do CIRE. Sendo de salientar que teria sido perfeitamente possível ouvir um parente da Recorrente, nomeadamente a sua filha CS…, com residência na Avenida …, n.° …, ….° Direito, Sassoeiros, Carcavelos.
32. Resulta dos autos que:
- A Requerente SH…, LIMITED apresentou Petição Inicial no dia 07.09.2018, tendo indicado, como morada da Requerida, ora Recorrente, a Alameda …, n.° …, ….° esquerdo, …-… Oeiras, morada na qual foram efetuadas três tentativas de citação, todas elas infrutíferas;
- No contrato-promessa cuja cópia foi junta aos autos pela Requerente consta que a Requerida reside em Palmarejo, Praia, morada para a qual não foi efetuada qualquer tentativa de citação;
- No contrato-promessa cuja cópia foi junta aos autos pela Requerente consta que a Requerida convencionou como sua morada Caixa Postal …/…/…, Praia, Cabo Verde, morada para a qual não foi efetuada qualquer tentativa de citação;
- Do Registo Predial de Cabo Verde junta pela Requerente SH…, LIMITED com a sua Petição Inicial constam, como filhos da Requerida, IM…, CS… e PS…, todos com residência em Portugal; Não foi efetuada qualquer pesquisa nas bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social relativamente aos filhos da Requerida, ora Recorrente;
- A Requerente SH…, LIMITED apresentou Petição Inicial no dia 28.09.2018 indicando a filha da Requerida, ora Recorrente, CS…, com residência na Avenida …, n.° …, …° Direito, Sassoeiros, Carcavelos;
- Em 24.10.2018 a Requerente SH…, LIMITED requereu a dispensa da citação prévia da Requerida, ora Recorrente, tendo proferido declarações — falsas — de não ser conhecida à Requerida outra morada, em Portugal ou em qualquer outro país, que não a inicialmente indicada e que também não era possível localizar um parente da Requerida, designadamente os seus filhos;
- Em 25.102018 o Tribunal dispensou a audição da Requerida, ora Recorrente.
33. Não devem os Tribunais sacrificar os valores da Justiça Material ao mero formalismo positivista, havendo, no caso dos presentes autos, que aflorar "a invocação da ideia de justiça como fundamento de decisão".
34. A dispensa de citação! audição da Requerida equivale, no contexto em que a mesma foi determinada, a falta de citação, verificando-se o fundamento da alínea e) do artigo 696.° do CPC.

Foi apresentada resposta ao recurso pela requerente, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do despacho recorrido.
O recurso foi admitido por despacho de 13/03/2019.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a questão essencial a decidir prende-se com os pressupostos de admissão do recurso extraordinário de revisão.
B- De Facto
A 1.ª instância considerou na decisão recorrida a seguinte matéria de facto:
1. A Requerente SH…, LIMITED indicou na Petição Inicial, como morada da Requerida MJ…, a Alameda …, n.º …, ….º esquerdo, …-… Oeiras.
2. No contrato-promessa cuja cópia foi junta aos autos pela Requerente consta que a Requerida reside em Palmarejo, Praia.
3. Foi expedida carta registada para tal morada, para citação da Requerida, em 11-09­-2018.
4. Tal carta foi devolvida aos autos com a menção: “Mudou-se (Morada Desconhecida) em 2018-09-21”.
5. Foram efetuadas pesquisas nas bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social, em 24-09-2018, das quais resultou residir a Requerida na morada indicada pela Requerente.
6. Foi expedida nova carta registada para tal morada, para citação da Requerida, em 24-09-2018.
7. Tal carta foi devolvida aos autos com a menção: “Mudou-se (Morada Desconhecida) em 2018-10-02”.
8. Em 04-10-2018, a Secção de Processos solicitou a citação por agente de execução.
9. Em 09-10-2018, a Agente de Execução consultou a base de dados de identificação civil da qual resultou residir a Requerida na morada indicada pela Requerente.
10. Em 19-10-2018, a Agente de Execução juntou aos autos certidão negativa onde consta que:
“se deslocou à morada indicada no dia 17/10/2018, pelas 15h30, não sendo possível efectuar a diligencia, porque a requerida já não reside naquela morada há mais de três anos.
Assim, obteve-se a informação, através da D.ª NS…, habitante naquele imóvel, propriedade do seu filho TS…, que mais tarde através de contacto telefónico, informou a AE que a requerida já não reside naquele local há muito tempo e, que há um ano que não sabe precisar o paradeiro desta.”.
11. Em 24-10-2018, a Requerente SH…, LIMITED requereu a dispensa da citação prévia da requerida.
12. Em 25-10-2018, o Tribunal dispensou a audição da Requerida MJ….

C- De Direito
1. A apelante requer ao abrigo do artigo 662.º n.º 1, do CPC que seja alterada e aditada determinada matéria à factualidade que o tribunal a quo considerou para fundamentar de facto o despacho recorrido.
Vejamos, então.
Quanto ao ponto 3 da decisão de facto, a apelante tem razão.
Este ponto tem a seguinte redação: «Foi expedida carta registada para tal morada, para citação da Requerida, em 11-09-2018».
A referência a «tal morada» a seguir ao ponto 2 onde é referido que no contrato-promessa a requerida reside em Palmarejo, Praia, induz em erro, uma vez que resulta da carta registada expedida em 11/09/2018 que a citação foi enviada para a morada indicada na petição da ação de insolvência - Alameda …, n.º …, ….º esquerdo, Oeiras - e não para a morada que consta do contrato-promessa.
Trata-se de um erro material suscetível de retificação nos termos dos artigos 613.º, n.º 3 e 614.º, n.º 1, do CPC.
Consequentemente, altera-se a redação do ponto 3 da decisão de facto que passa a ter a seguinte redação:
«3. Foi expedida carta registada para citação da requerida, em 11/09/2018, para a morada referida no ponto 1 da decisão de facto.»

Alega apelante que do doc. n.º 3 junto com petição inicial resulta que nos termos da Cláusula Décima Sétima, número Um, alínea a) do Contrato, as partes convencionaram a seguinte morada relativamente à ora Recorrente: Caixa Postal …/…/…, Praia, Cabo Verde, pelo que pretende que seja aditado à decisão de facto o seguinte: «Consta da Cláusula Décima Sétima, número Um, alínea a) do Contrato junto como documento n.° 3 com a Petição Inicial, a seguinte morada, relativamente à ora Recorrente, convencionada entre as partes: Caixa Postal …/…/…, Praia, Cabo Verde».
Da leitura do contrato-promessa decorre que as partes convencionaram uma morada para efeitos de comunicação entre elas «relativamente ao presente contrato».
Assim, adita-se à decisão de facto o ponto 2-A, com o seguinte teor:
«2-A. Consta da Cláusula Décima Sétima, número Um, alínea a) do Contrato junto como documento n.° 3 com a Petição Inicial, que as partes convencionaram que as comunicações entre as partes, dirigidas aos promitentes vendedores relativamente ao contrato-promessa, seriam enviadas para: Caixa Postal …/…/…, Praia, Cabo Verde».

Aludindo ao doc. n.º 17 junto com a petição inicial  (registo predial emitido em Cabo Verde), a apelante vem alegar que consta desse documento o nome dos filhos da apelada, ali constando que «residem em Portugal», pelo que o despacho recorrido deveria ter levado em conta a morada da filha CS… mencionada nos docs. 1, 2 e 3 juntos com o recurso extraordinário de revisão.
Nessa sequência, pretende que se seja aditada à decisão de facto a seguinte factualidade: «A Requerente SH…, LIMITED apresentou Petição Inicial no dia 28.09.2018, no âmbito do processo que, sob o n.° …/…, corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira — Juiz …, indicando a filha da Requerida, ora Recorrente, CS…, COM residência na Avenida …, n.° …, …° Direito, Sassoeiros, Carcavelos.»

O pedido de aditamento não colhe, porquanto a apelante visa que se tenha em conta documentos posteriores à decisão que dispensou a citação da requerida, mas não invoca como fundamento do recurso extraordinário de revisão o circunstancialismo previsto na alínea c) do artigo 696.º do CPC, que prevê precisamente como fundamento do recurso de revisão a apresentação de documento objetiva ou subjetivamente superveniente.
Improcede, assim, o referido pedido de aditamento.

2. Vejamos, agora, os fundamentos invocados pela requerida no recurso de extraordinário de revisão
O recurso extraordinário de revisão é um meio processual que permite a quem tenha ficado vencido ou prejudicado num processo, onde já tenha sido proferida decisão transitada em julgado, a sua reabertura, mediante a invocação de certas causas taxativamente previstas na lei, que se encontram elencadas no artigo 696.º do CPC.
A marcha processual do recurso de revisão consta dos artigos 698.º e seguintes e reparte-se por duas fases: a fase rescindente e a fase rescisória. A primeira destina-se a apreciar o fundamento do recurso, mantendo-se ou revogando-se a decisão contestada; a segunda propõe-se conseguir a decisão que deve substituir-se à recorrida.
A fase rescindente inicia-se nos termos previstos no artigo 698.º do CPC com a interposição do recurso onde são alegados os fundamentos do recurso por referenciação ao artigo 696.º do CPC.
Este requerimento é submetido a exame preliminar, porquanto pode haver razão para ser logo indeferido, não só pelos motivos gerais de indeferimento constantes do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como também pelos motivos especiais indicados no artigo 699.º do CPC.
Assim, o recurso deve ser indeferido por intempestividade, por ilegitimidade do recorrente, por o requerimento não se encontrar deduzido ou instruído nos termos do artigo 698.º do CPC e também quando se reconheça logo que não há motivo para a revisão.
Se o recurso for admitido, segue-se a fase do julgamento da revisão (artigo 700.º do CPC).
Se o tribunal decidir que o fundamento procede, profere então juízo rescindente, revogando a decisão impugnada, que deixa de produzir qualquer efeito e, consequentemente, abre-se a fase rescisória destinada a novo exame e a novo julgamento da causa (artigo 701.º do CPC).
No caso dos autos, a tramitação processual não ultrapassou a fase rescindente, já que foi indeferida a admissão do recurso de revisão.
Assim, o que está em causa neste recurso é apenas e tão só decidir se, em face dos fundamentos invocados no recurso de revisão, deve o mesmo ser admitido para que, seguidamente, se dê cumprimento ao princípio do contraditório previsto no n.º 2 do artigo 699.º do CPC e se proceda ao julgamento da revisão como previsto no artigo 700.º do CPC.
Consequentemente a pretensão da recorrente formulada na parte final das conclusões de recurso apenas pode ser acolhida, se for caso disso, quanto à revogação do despacho que não admitiu o recurso de revisão, ordenando-se o seguimento da subsequente tramitação processual prevista nos normativos supra citados, não competindo ao Tribunal ad quem pronúncia sobre a anulação dos termos do processo referentes à citação da requerida e processado subsequente.
Dito isto, passemos à apreciação dos fundamentos da revisão em ordem a aferir da admissibilidade do referido recurso.
A apelante invoca como primeiro fundamento o disposto na alínea b) do artigo 696.º do CPC, alegando que o requerimento apresentado pela requerente da insolvência em 24/10/2018 corporiza falsas declarações quando alega que não é conhecida outra morada à requerida, em Portugal, para além daquela em que foi tentada a citação, e que também não era possível localizar um parente da requerida, designadamente os seus filhos.
Efetivamente lê-se naquele requerimento que não foi possível localizar a requerida, não obstante as diligências levadas a efeito (que menciona), mantendo a requerida a sua morada desatualizada no «registo civil» e na «administração tributária». Em relação à identificação dos parentes da requerida, refere-se no dito requerimento que não se conhece à requerida a existência de qualquer representante; que é viúva, e que não foi possível localizar um seu parente, designadamente os filhos, mais acrescentando: «…sabe a Requerente, através de diversas tentativas de contacto desde há muito iniciadas, se encontram inalcançáveis», referindo para ilustrar o alegado os documentos 1, 16 e 19 juntos com a petição inicial.
Os documentos em causa referem-se ao averbamento no registo predial da Praia dos sucessores do falecido marido da requerida (viúva e 3 filhos) e uma carta enviada pela ora apelada aos mesmos, datada de 21/06/2016, para a caixa postal referida no contrato-promessa, em Paria, Cabo Verde, e para a morada referida no ponto 1 da decisão de facto, em Oeiras.
Porém, a questão que se coloca em relação a este fundamento é se o mesmo encontra acolhimento na alínea b) do artigo 696.º do CPC, ao prescrever que a decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando «Se verifique a falsidade de documentos ou atos judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida.»
A decisão recorrida não considerou que no conceito de «documento» previsto na norma se pudesse incluir um requerimento da parte, por a falsidade se reportar a elementos de prova e não a requerimento da parte, que, embora consubstanciem juridicamente um documento não consubstancia prova documental, acrescentando, ademais, que não se verifica um nexo de causalidade entre a alegada falsidade e a decisão proferida, uma vez que a mesma se baseou nas informações colhidas nos autos nas bases de dados consultadas que indicam, como sendo a morada da requerida, aquela que a requerente iniciou na petição inicial.
A apelante defende, ao invés, que o articulado apresentado é um documento para os efeitos da norma legal, que não acolhe um sentido estrito de documento, ali se inserindo os documentos que tenham «finalidade probatória».
A razão, porém, não está do lado da apelante.
A alínea d), bem como a alínea c), do artigo 696.º do CPC reportam-se a fundamentos relativos à formação do material probatório, referindo-se a primeira à falsidade das provas ou dos atos judiciais, sendo estes últimos os praticados pelo juiz no exercício do seu múnus (artigo 451.º do CPC).
As provas aludidas na alínea d) reportam-se a meios de prova, constituídos por documentos, depoimentos ou declarações de peritos e de árbitros, tendo como função a «demonstração da realidade dos factos» (artigo 341.º do Código Civil).
A prova documental, como estipula o artigo 362.º do Código Civil, é a que resulta de um documento, definido este como «qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto».
O requerimento apresentado por um parte num processo não é um documento na aceção do artigo 236.º do Código Civil por não ser um meio de prova ou de formação de prova, é antes, um documento através do qual a parte faz ao juiz uma solicitação. Trata-se de um ato processual praticado pela parte por escrito (cfr. artigo 144.º do CPC) e que pode adquirir várias designações, por exemplo, petição inicial, contestação, resposta, oposição, requerimento executivo, requerimento injuntivo, recurso, etc.
Assim, o requerimento escrito não é nada mais nada menos do que o meio processual através do qual a parte articula afirmações ou alegações de facto (e de direito) que vão ser submetidas à apreciação do tribunal em face dos meios de prova que venham a ser apresentados ou produzidos no processo (cfr. artigos 341.º a 396.º do Código Civil e artigos 423.º a 526.º do CPC).
Tem a finalidade probatória que a apelante refere, mas no sentido atrás dito, de alegação de factos, não de prova dos mesmos.
Deste modo, a apresentação do requerimento aludido pela apelante não é mais do que a formulação por escrito dirigida ao juiz visando a dispensa de citação da requerida. Não consubstancia um documento na aceção da alínea b) do artigo 696.º do CPC e não constitui, por essa razão, fundamento para o recurso de revisão.
A questão do nexo de causalidade nem sequer releva para a apreciação deste fundamento por o mesmo não se verificar «tout court», dada a falsidade invocada não se reportar a um meio de prova documental.

A requerente alega ainda outro fundamento para justificar o pedido de revisão que enquadra na alínea e) do artigo 696.º do CPC, quando refere que o Tribunal a quo antes de decidir a dispensa da audição da requerida não atentou nos documentos juntos aos autos que indicavam uma morada em Cabo Verde e nem levou em atenção que a requerente tem 3 filhos, não tendo ordenado pesquisas na base de dados oficiais para apurar a morada dos mesmos.
Vejamos, então.
A alínea e) do artigo 696.º do CPC, estipula que constituiu fundamento do recurso de revisão quando «Tendo corrido a ação e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a citação ou que é nula a citação feita».
Estando em causa um processo de insolvência o normativo carece de ser aplicado levando em conta o preceituado no artigo 12.º, n.º 1, do CIRE que dispensa a citação do devedor em determinadas circunstâncias: quando acarrete demora excessiva pelo facto do mesmo, sendo pessoas singular, residir no estrangeiro ou por ser desconhecido o seu paradeiro. Ainda assim, como refere o n.º 2 do mesmo artigo 12.º, deve sempre que possível, ouvir-se um representante do devedor, ou, na falta deste, o seu cônjuge ou um seu parente, ou pessoa que com ele viva em união de facto.
A preterição do princípio do contraditório encontra-se, assim, sujeita a condicionantes. Se a dispensa for autorizada em violação dos requisitos legais, o que se verifica é a falta de citação.
Como já se teve o ensejo de referir no Acórdão da Relação do Porto de 17/06/2013[1] (onde se mencionam preceitos do CPC 1961, cujo regime se mantem no atual CPC), «… o princípio do contraditório é um princípio essencial do direito a um julgamento mediante um processo equitativo, garantido nos termos do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Aliás, tal princípio encontra-se igualmente plasmado em convenções internacionais vigentes no nosso país, mormente, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direito do Homem (CEDH). É sabido que na densificação do princípio, o direito de defesa e o direito ao contraditório encontra um lugar de destaque.[2]
Também ao nível do processo civil, a transversalidade do princípio do contraditório é incontornável, conforme decorre, entre outros, do artigo 3.º do CPC, só sendo admitido o seu não cumprimento nas situações especialmente previstas na lei, o que também decorre do princípio da igualdade (artigo 3.º-A, do CPC), este também com dignidade constitucional (artigo 13.º da CRP).
Por conseguinte, ainda que em sede de CIRE, mesmo na fase anterior à apreciação do pedido de declaração de insolvência, a lei permita a dispensa da citação do devedor, em prol da celeridade, o legislador não afastou totalmente o dever do tribunal diligenciar de forma adequada e nos termos previstos na lei para as demais situações, pela obtenção de elementos com vista ao apuramento do paradeiro do devedor e à realização de diligências, que cumpram as formalidades previstas na lei processual civil, aqui aplicada subsidiariamente.
Introduzindo, ainda, uma outra figura, a da audição, sempre que possível, das pessoas mencionadas no n.º 2 do artigo 12.º do CIRE, minorando o afastamento do exercício do princípio do contraditório por parte do devedor, de modo a que, por esta via, e dada a proximidade das referidas pessoas em relação ao devedor, ainda possam “exprimir a tutela os interesses do substituído”.»[3]
Assim, considerando a finalidade deste preceito, a audição das pessoas aí referidas não pode deixar de ser entendida como uma formalidade essencial à dispensa de citação. Ainda que a sua audição esteja submetida a uma condição ou possibilidade, competindo ao juiz aferir da sua existência em face de cada caso concreto, tem de corresponder a uma real e efetiva tentativa de audição das mesmas, o que implica a realização das diligências tidas por adequadas e necessárias à sua notificação.
Em face do exposto, ponderando o processado praticado com vista à citação do devedor e audição dos seus familiares, embora o artigo 12.º do CIRE encerre um mecanismo, ao dispor do juiz, para obviar a demoras excessivas na citação do devedor ou para ultrapassar manifestos expedientes dilatórios, não preclude o dever do tribunal diligenciar pelo cumprimento integral das formalidades essenciais à citação do devedor.
Tendo as mesmas sido preteridas, nos termos acima melhor referenciados, não se encontram reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para deferir o exercício do contraditório para momento posterior, com a inerente dispensa da citação do devedor.»
No caso em apreço, resulta do processo principal as diligências com vista à citação da devedora enunciadas nos pontos 3 a 10 da decisão de facto, que se afiguram conforme aos ditames legais previstos no artigo 12.º, n.º 1, do CIRE e nos artigos 255.º, n.º s 1 e 2, alínea b) e c), 228.º e 236.º do CPC, estes aplicáveis subsidiariamente ao CIRE por via do artigo 17.º.
A citação foi expedida para a morada conhecida nos autos, não só por ser aquela que a requerente indicou na petição inicial, mas também por ser a que resultava das bases de dados consultadas.
A morada referida no contrato-promessa como sendo a da residência da devedora fora de Portugal, mais concretamente em Palmarejo, Praia, Cabo Verde, não se encontrava completa (como bem demonstra a morada indicada na procuração forense junta aos autos em 22/01/2019, onde consta que a apelante reside no Condomínio …, Lote …, ….º esquerdo, Palmarejo, Praia-Santiago, Cabo Verde); a caixa postal referida naquele contrato-promessa não corresponde a uma morada do domicílio (residência), pelo que a citação também não podia realizar-se nessa morada, sob pena da mesma ser nula, atento o disposto no artigos 228.º, n.º 1, do CPC.
Sendo a requerida uma pessoa singular a citação por via postal é enviada para a sua residência ou local de trabalho (artigo 228.º, n.º 1, do CPC ex vi do artigo 17.º do CIRE), uma vez que o CIRE não regula o modo de operacionalização da citação pessoal a que se reporta o seu artigo 29.º, n.º 1, quando prescreve que «se a petição não tiver sido apresentada pelo próprio devedor e não houver lugar para indeferimento liminar, o juiz manda citar pessoalmente o devedor…»
Assim, são aplicáveis à citação da pessoa singular alvo do pedido de insolvência as regras gerais previstas do CPC, mormente as dos artigos 225.º e seguintes.
Prevê o artigo 225.º do CPC as modalidades de citação pessoal. Entre as que relevam para o caso em apreço, encontra-se a citação por carta registada com aviso de receção (artigos 225.º, n.º 2, alínea b), 228.º e 230.º do CPC) e citação mediante contato pessoal do agente de execução ou do funcionário judicial com o citando (alínea c), do n.º 2 do artigo 225.º e 231.º, do CPC).
Caso seja impossível a realização da citação, por o citando se encontrar em parte incerta, importa levar em conta o disposto no artigo 236.º do CPC que prescreve, exemplificativamente, as diligências que a secretaria, mediante prévio despacho judicial, deve levar a cabo com vista a obter informações sobre o último paradeiro do citando.
Importa referir que o artigo 229.º do CPC regula a citação quando haja domicílio convencionado. Mas como resulta do preceito a sua aplicação reporta-se a litígios referentes ao cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
A ação de insolvência não corresponde a uma ação para cumprimento de obrigações pecuniárias de um determinado contrato incumprido. Como decorre do artigo 1.º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou na liquidação do património do devedor insolvente e repartição do produto obtido pelos credores.
Por conseguinte, a menção ao domicílio convencionado aludido pela apelante é irrelevante para  efetuação da citação na ação de insolvência.
Estas razões, em nosso entender, justificam que a citação não tenha sido enviada para outra morada que não fosse a conhecida em Portugal e não propriamente pelas razões mencionadas antepenúltimo parágrafo do despacho recorrido, tanto mais que a dispensa de citação não foi justificada com base nesse fundamento – residência da devedora no estrangeiro.
A apelante refere que ocorreu violação do artigo 82.º, n.º 1, do Código Civil, mas não vemos de que modo essa violação se verificou, uma vez que a morada em Portugal para onde foi enviada a citação, coincidente com a indicada pela requerente e pelas bases de dados consultadas, indicavam que essa era a residência habitual da devedora, não revelando qualquer outro domicílio, mormente em Cabo Verde.
Acompanhamos, pois, o despacho recorrido no segmento em que refere terem sido realizadas diligências adequadas, mas infrutíferas, tendentes à citação da devedora.
Já não assim em relação ao acatamento do disposto no n.º 2 do artigo 12.º do CIRE.
Refere-se no despacho recorrido sobre esta questão o seguinte:
«Aquando da prolação do despacho em crise, apenas era conhecido nos autos o nome dos filhos da Requerida, por constarem do Registo Predial de Cabo Verde, como titulares do imóvel prometido vender, como habilitados na herança deixada por óbito de seu pai, sendo desconhecidas as suas moradas, apenas ali constando que os mesmos, tal como a Requerida, residem em Portugal.
Tal informação não permitia, por manifestamente insuficiente, ouvir os filhos da devedora, como previsto no art. 12º, nº 2, do CIRE.
Temos assim que foram integralmente observadas as formalidades previstas na lei – art. 191º, nº 1, do CPC – aquando da dispensa da audição da Requerida, pelo que não é possível falar em irregularidade que equivalha à falta de citação.»
Efetivamente, a informação que constava dos autos sobre os filhos da devedora era apenas o seu nome e a informação que residiam em Portugal, não estando indicada qualquer morada.
Mas essa circunstância só podia ser impeditiva da audição de algum deles se não fosse possível obter informação sobre as respetivas moradas. O que determinava que fossem feitas diligências nesse sentido, nos termos previstos no artigo 236.º do CPC, aplicável mutandis mutandis, porquanto a audição de um parente do devedor que não foi possível citar (por residir no estrangeiro ou ser desconhecido o seu paradeiro) integra as formalidades essenciais previstas na lei para que possa ser dispensada a citação do devedor.
E sendo assim, configura-se como provável que a dispensa da citação da devedora não tenha obedecido ao estritamente previsto no artigo 12.º, n.º 2, do CIRE.
Sabendo que a dispensa de citação do devedor, requerido num processo de insolvência, constitui um desvio ao princípio do contraditório, somente deve ser considerado nos estritos termos que que a lei aceita e regula, donde a alegada falta de citação invocada pela recorrente configura-se como suscetível de fundamentar o recurso de extraordinário de revisão intentado pela ora apelante.
Consequentemente, em termos de aferição liminar dos fundamentos do recurso extraordinário de revisão, entende-se que o fundamento previsto na alínea e) do artigo 696.º do CPC, invocado pela recorrente não é de molde a reconhecer-se «de imediato que não há motivo para a revisão», como imposto pelo n.º 1 do artigo 699.º do CPC para não admitir o recurso de revisão.
Nestes termos, e ainda que apenas em relação ao fundamento previsto no citado normativo – alínea e) do artigo 696.º do CPC – o recurso extraordinário de revisão deveria ter sido admitido liminarmente.
Procede, assim, parcialmente a apelação.
Dado o recíproco decaimento, as custas ficam a cargo da apelante e apelada, respetivamente, na proporção de 1/4 e 3/4 (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando o despacho recorrido, admitindo-se o recurso extraordinário de revisão de modo a prosseguir a sua normal tramitação no Tribunal a quo, improcedendo a apelação no demais peticionado.
Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 11 de Junho de 2019

Maria Adelaide Domingos - Relatora
Ana Isabel Mascarenhas Pessoa – 1.ª Adjunta
Eurico José Marques dos Reis - 2.º Adjunto

[1] Processo n.º 629713.7TBPNF-B.P1, em www.dgsi.pt, também relatado pela ora Relatora.
[2] Cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Vol. 1, Coimbra Editora, 4.ª ed., 2007, p. 415 (XI) que referem a propósito da densificação do princípio do processo equitativo que “o direito de defesa e o direito do contraditório [se traduz] fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas.”
[3] CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol I, Quid Juris, 2006, p. 107 (8).