Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3411/2006-5
Relator: SIMÕES DE CARVALHO
Descritores: ACUSAÇÃO
PRAZO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1 - Não estava vedado à Mm.ª Juiz que presidiu à instrução ordenar a remessa dos autos ao Mº Pº, após ter declarado nula a acusação pública, para efeito de formulação de novo libelo acusatório;
2 - O prazo de dez dias para dedução de acusação por parte do Mº Pº, consagrado no Art.º 283º, n.º 1 do C.P.Penal, é meramente indicativo e não peremptório, pelo que a respectiva violação não acarreta consequências jurídicas, originando só eventual responsabilidade disciplinar.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Processo n.º 32/99.6TAPDL-A do 4º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, o arguido A., por não se conformar com o despacho, datado de 27-01-2006 (cfr. fls. 37 a 44), que declarou nula a acusação deduzida nos autos pelo Mº Pº, dele interpôs o presente recurso.

A respectiva motivação é rematada com as seguintes, e únicas, conclusões (cfr. fls. 48 a 59) que se transcrevem:

«1. A acusação pública foi declarada nula por despacho proferido pela Meritíssima Juiz de instrução, após o encerramento do debate instrutório,
2. tendo, na sequência, ordenado a remessa dos presentes autos ao Ministério Público.
3. Ora, com o devido respeito, entendemos que uma vez declarada nula acusação pública, em sede de instrução, o Tribunal “a quo” só poderia ter proferido o competente despacho de não pronúncia.
4. Com efeito, o Código de Processo Penal estipula claramente que a instrução termina com o despacho de pronúncia ou não pronúncia, inexistindo qualquer outro desfecho, após a fase da abertura da instrução,
5. Conforme decidiu, entre outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo n.º 0008183, in www.dgsi.pt.
6. Caso assim não se entenda e nos termos do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Processo n.º 03P3668, in www.dgsi.pt, deveria o Tribunal “a quo”, uma vez verificada a nulidade da acusação pública, absolver o arguido da instância,
7. sendo que em ambas as determinações acima consideradas como possíveis ocorria, inequivocamente, a imediata extinção do procedimento criminal.
8. Acresce que, a decisão do Tribunal “a quo”, permite ao Ministério Público formular uma nova acusação, desta vez sem o vício que, anteriormente, a inquinou.
9. Não obstante, entendemos que a possibilidade que é concedida ao Ministério Público para repetir o acto ferido de nulidade, encontra um obstáculo intransponível: o esgotamento do prazo – peremptório, conforme decidiu o Acórdão do Plenário das Secções Criminais do S.T.J. n.º 2/96 de 06 de Dezembro de 1996, in Diário da Republica I-A Série, de 10.01.1996 - assinalado no nº. 1 do artº. 283º. que preceitua que: Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.”
10. Pensar de outro modo, ao permitir a repetição do acto nulo, fora do prazo acima estabelecido, seria ferir e violar o respectivo comando legal, dado a extemporaneidade da nova acusação pública, ultrapassado que se encontra, e em muito, o prazo respectivo para a sua dedução.
11. Dito de outro modo, a renovação da acusação pública nula no caso sub judice não é mais possível uma vez que se esgotou o prazo peremptório para a sua prática.
12. A Lei estabelece um prazo peremptório para que o arguido possa requerer a abertura da instrução (artigo 287º. do C. P. Penal).
13. Ora, se em sede de instrução e o Tribunal declarar nula a acusação e, na sequência, determinar que se remeta os autos para o Ministério Público para formular uma nova e devidamente corrigida acusação, para além do prazo fixado no artigo 283º. n.º 1 do C.P.Penal, entendemos que tal decisão não respeita as garantias de defesa do arguido, sendo, por isso, inconstitucional por violação do artigo 32º. n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
14. Pelo exposto, e tendo em sede de instrução, após a realização do debate instrutório, o Tribunal “a quo” declarado a nulidade da acusação pública, deveria em consequência ter proferido o inerente despacho de não pronúncia do arguido, aqui recorrente.
15. Sempre com o devido respeito, violou a douta decisão, que agora se recorre, o preceituado no artº. 122º., 283º. n.º 3, 307º. n.º 1 todos do Código de Processo Penal, e ainda o artigo 208.º do Código Processo Civil aplicável “ex vi” do artigo 4.º do Cód. Proc. Penal.
Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogada a douta decisão instrutória, substituindo-a por outra que declare nula a acusação pública, com o consequente despacho de não pronúncia do arguido, aqui recorrente, bem como dos demais arguidos, ou caso V. Exas. assim não o entendam, deve o douto despacho recorrido ser substituído por outro que declare nula a acusação pública e determine a absolvição da instância do arguido, aqui recorrente, bem como os demais, ordenando-se, em qualquer dos casos, a extinção do procedimento criminal, por assim ser de Direito e da mais elementar JUSTIÇA!».

Admitido o recurso (cfr. fls. 60), e efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta o Mº Pº (cfr. fls. 62), concluindo:

«Que deduzirá nova acusação contra os arguidos.
Pelo que, deve manter-se a decisão da Mmª. Srª. Juiz “a quo”.
JUSTIÇA».

A Sr.ª Juiz a quo manteve na íntegra a decisão recorrida (cfr. fls. 64).

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (cfr. fls. 69 e 70), defendendo que o recurso deve ser rejeitado.

Apesar de ter sido dado cumprimento ao disposto no n.° 2 do Art.º 417° do C.P.Penal, o arguido não se pronunciou.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Compulsados os autos, há a destacar o seguinte:
- Findo o inquérito, o Mº Pº, a 03-03-2005, veio deduzir acusação, entre outros, contra o arguido R., imputando-lhe a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma continuada, p. e p. pelos Art.ºs 36º, n.ºs 1, 2 e 5, alínea a) e 39º do Decreto-Lei n.º 28/84 de 10 de Janeiro e 30º, n.º 2 do C. Penal (cfr. fls. 2 a 36);
- Realizada a instrução oportunamente requerida pelo arguido R., teve lugar o competente debate instrutório;
- Encerrado este, foi proferido o despacho recorrido (cfr. fls. 37 a 44) que, no que interessa agora, assim reza:

«O Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos RRR., imputando aos arguidos RR. a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo art. 36º, n.º 1, 2 e 5, al. a), e art. 39º, do Dec. Lei n.º 28/84, de 10 de Janeiro, e aos restantes arguidos a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma continuada, p. e p. pelo art.º 36º, n.º 1, 2 e 5º, al. a) e art. 39º do Dec. Lei n.º 28/84, de 10 de Janeiro e art. 30º, n.º 2, do Código Penal.
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Inconformado com a acusação, o arguido R. requereu a abertura da fase de instrução, sustentando, em síntese, que:
Não interveio, nem de qualquer modo recebeu subsídio pelas candidaturas apresentadas pelas pessoas identificadas nas páginas 14 a 17 da acusação;
Não recebeu qualquer quantia por animais que não possuísse (virtuais);
Passaram pela sua exploração, por os haver comprado, pago e serem seus, uma média mensal de 700 animais, que exportou desta ilha;
É possível tratar de 700 animais com três trabalhadores, que foi o que o fez;
Nunca trocou brincos dos seus animais para obter subsídio a que não tivesse direito.
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No âmbito da instrução foi requerido aos Serviços de Desenvolvimento Agrário de São Miguel informação relativa ao n.º de animais exportados pelo arguido R., no período compreendido entre 1996 e 1998, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelo arguido R., designadamente T. (fls. 2499),T1. o (fls. 2500), T2. (fls. 2501), T2. (fls. 2501 e 2502), T4 (fls. 2502 e 2503), T5 (fls. 2503), e foi solicitado ao INGA informação relativa à identidade das pessoas que receberam os subsídios solicitados pelas pessoas referidas a fls. 14 a 17 da acusação, e se o arguido R. recebeu em nome delas fosse o que fosse (fls. 2542 a 2544).
O arguido R. prestou declarações no âmbito da instrução (cfr. fls. 2558 a 2560).
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Realizou-se o debate instrutório, com observância das formalidades legais, conforme consta da respectiva acta.
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O Tribunal é competente.
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Questão prévia.
Da nulidade da acusação.
Resulta do disposto no art. 308º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que, no despacho de pronúncia ou não pronúncia, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Em sede de debate instrutório foi posta em causa a inteligibilidade da acusação, por falta de narração de factos concretos que impossibilita aos arguidos saber concretamente o que lhes é imputado para poderem exercer o seu direito de defesa.
Referimo-nos às defesas dos arguidos R. e R1., por um lado, e do arguido R2., por outro, que alegaram, além do mais, o seguinte: “o Ministério Público limitou-se a referir genericamente a duplicação dos brincos sem que tenha investigado a trajectória desses animais cabendo agora aos arguidos o ónus de o fazer”, “a acusação proferida contra o ora arguido é, em nosso entendimento, ininteligível dado que limita-se a atirar para uma folha de papel números de animais bovinos, sem qualquer tipo de identificação dos mesmos, nomeadamente quanto aos números dos brincos em causa com referência ao animal, com referência a expressões igualmente ininteligíveis, o que torna absolutamente impossível o exercício do contraditório e da boa defesa do arguido, até porque, como conclusão a acusação refere que o ora arguido trocou duzentos e setenta e cinco brincos e recebeu um valor de 8.709.250$00, não referindo as premissas, nem os factos, imprescindíveis em qualquer acusação, que permitissem concluir como se conclui”.
Ou seja, invocou-se a falta de cumprimento do disposto no n.º 3, al. b), do art. 283º do Código de Processo Penal, preceito que impõe ao Ministério Público o ónus de narrar na acusação, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
O referido preceito consagra o princípio do acusatório, do qual decorre que a acusação deverá conter a narração de todos os factos necessários a servir de suporte a uma pena, estando vedado, nomeadamente ao juiz de instrução ou de julgamento, sob pena de nulidade, pronunciar ou condenar o arguido, conforme a fase do processo, por factos não constantes da acusação (cfr. art. 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e arts. 309º e 379º. al. b), ambos do Código de Processo Penal).
Conforme refere Gomes Canotilho, in Constituição da República Portuguesa anotada, 2º edição, pág. 217, “Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; b) proibição de acumulações subjectivas a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa”.
Na fase de instrução, a estrutura acusatória do processo penal significa que o seu objecto é fixado pela acusação que delimita a actividade cognitiva e decisória do juiz de instrução criminal, tendo em vista assegurar as garantias de defesa do arguido, protegendo-o contra a alteração ou o alargamento do objecto do processo.
É por este motivo que a acusação constituiu, do ponto de vista da defesa, a peça processual de maior importância.
Ora, no caso em apreço o Ministério Público imputa aos arguidos a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, cometido em candidaturas a subsídio “prémio especial aos bovinos machos”, criado pelo Reg. CEE 805/68, na redacção do Regulamento C.E. 2222/96 (art. 4ºB), entre os anos de 1996 a 1998.
Na acusação, o Ministério Público, por referência a cada um dos arguidos, após uma introdução genérica onde explica, num parágrafo, a natureza do subsídio e as suas premissas, e noutro parágrafo, explica genericamente tratar-se de candidaturas com recurso a animais inexistentes ou com identidade trocada, cujos candidatos eram angariados, limitou-se a enunciar, por referência a cada um dos arguidos, sob a forma de lista, o n.º de candidaturas efectuadas pelas pessoas que identifica, e que se presume serem aquelas que figuram como candidatas nas candidaturas (sem fazer qualquer referência ao n.º de identificação das candidaturas e sem referir as datas de apresentação ou aprovação das mesmas), a quantidade de animais candidatados (sem os identificar, apesar de serem identificáveis pelo n.º de brinco e resenha), referindo tratar-se de “brincos trocados” ou animais “virtuais”.
Ora, são elementos do tipo de crime de fraude na obtenção de subsídio imputado na acusação aos arguidos:
a) que o agente forneça informações inexactas ou incompletas às entidades competentes sobre si ou terceiros, ou que omita contra o disposto no regime legal da subvenção ou do subsídio, informações sobre factos importantes para a sua concessão, ou que utilize documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas ou incompletas;
b) que essas informações sejam importantes para a concessão do subsídio, que o subsídio lhe seja concedido e o nexo de causalidade entre o fornecimento de informações inexactas ou a omissão de informações;
c) e a obtenção de subsídio.
Porém, constatamos que na acusação deduzida não figuram todos os factos necessários à integração da actuação dos arguidos no referido tipo de ilícito, omitindo-se nomeadamente:
a) Em que data foram apresentadas, aprovadas e formalizadas as concessões do subsídio, por referências aos respectivos candidatos (elementos de facto imprescindíveis à determinação do momento da consumação dos crimes que alegadamente integram uma continuação criminosa – nesta matéria veja-se cfr. Ac. STJ de 08-10-1998, in CJ, t. III, pág. 187 e Ac. STJ de 28-10-94, in CJ, t. III, pág. 221);
b) Os elementos falsos que foram concretamente declarados pelos candidatos, por referência a cada uma das candidaturas, nomeadamente no que respeita aos animais, igualmente por referência à sua identificação do animal (n.º do brinco) – elemento este integrador do próprio tipo de crime imputado;
c) As quantias concretamente concedidas em cada uma das candidaturas, forma e data de pagamento (já que a atribuição do subsídio é um dos elementos constitutivos do tipo de ilícito).
Em suma, da descrição da conduta dos arguidos feita na acusação, resulta que não são apontados "factos" concretos aos arguidos, pois fazem-se em relação a eles meras afirmações fácticas com conteúdo genérico, não especificamente concretizadas.
Na verdade, se a acusação tem de conter, sob pena de nulidade, "A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada", então não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o modo, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, e em alguns casos não perceptível (vg. referência a animais vendidos).
De resto, as afirmações genéricas, contidas na acusação, não são susceptíveis de contradita, conforme bem foi salientado pela defesa do arguido R., na medida em que o arguido não pode refutar factos que não conhece.
Na verdade aceitar as afirmações genéricas feitas na acusação como “factos”, seria aceitar que recairia sobre os arguidos, perante a imputação genérica que lhes é feita, o ónus de perscrutar nos autos todos os elemento de prova, por forma a conhecerem os factos concretos premissas dos juízos genéricos efectuados na acusação, diligências estas que lhes permitiriam organizar uma defesa, sujeita, ainda assim, à incerteza resultante da não conformação do objecto do processo pelo Ministério Público, a quem cabe o exercício da acção penal, o que constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição, em especial do princípio do acusatório e do direito a um contraditório efectivo.
Por isso, nesta fase processual, e perante o teor da acusação resta-nos constatar que na acusação não são narrados factos concretos contra os arguidos, relativos ao cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, pois como tal não podem ser tomadas as afirmações genéricas constantes do libelo acusatório, pelo que, consequentemente, a acusação terá de ser considerada nula, por violação do disposto no art. 283º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal e art. 32º, n.º 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Poder-se-ia sustentar que tais deficiências da acusação poderiam ser sanadas pelo juiz de instrução.
Acontece que não cabe ao juiz de instrução, por tal ser violador da lei, perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos concretos, não narrados na acusação, que se poderão indiciar como cometidos pelos arguidos, sob pena de se estar a transferir para o juiz de instrução o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais vigentes.
Acresce que, a inclusão na pronúncia de outros factos que por si só ou conjugados com aqueles descritos genericamente na acusação integrassem a prática do crime de fraude na obtenção de subsídio equivaleria à pronúncia dos arguidos por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos na acusação, o que é vedado pelo artigo 309º do Código de Processo Penal.
Nesta matéria há que ter em consideração que se de acordo com a definição do artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, há alteração substancial dos factos descritos na acusação quando a nova factualidade tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, por maioria de razão existirá alteração substancial dos factos sempre que os descritos na acusação não integrem qualquer crime e os novos, por si ou conjugados com aqueles, passem a integrá-lo (neste sentido veja-se Acórdão da Relação do Porto de 23.05.2001, in CJ, tomo III, pág. 238, que sustenta esta posição, por referência ao requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente).
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A nulidade verificada na acusação, constitui, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 119º, n.º 1, e 283º, 3º, al. b), do Código de Processo Penal, uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, vício este que torna inválido o acto em que se verifica, (no caso a acusação), bem como os que dele dependerem e resultem afectados pela nulidade (cfr. art. 122º do Código de Processo Penal).
No caso concreto entendemos que os actos probatórios realizados na fase de instrução não resultam afectados pelo vício agora declarado, pelo que consideramos válidas todas as diligências de prova efectuadas na fase de instrução, declarando-se inválida a acusação e todos os demais actos subsequentes, com excepção da prova produzida na instrução.
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Pelo exposto e em conformidade decido:
a) Declarar nula, por violação do disposto no art. 283º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal e art. 32º, n.º 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa a acusação deduzida nos autos pelo M.P.;
b) Declarar inválida a acusação bem como os demais actos subsequentes, com excepção de todas as diligências de prova efectuadas na fase de instrução, as quais são válidas;
c) Remeter os autos ao Ministério Público, após trânsito em julgado da presente decisão, para efeitos de dedução de nova acusação.
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Sem custas.
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Notifique.»
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Vejamos:

São as “conclusões” formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto – Art.ºs 403º e 412º do C.P.Penal.
Como resulta das transcritas conclusões do mesmo, as questões que se nos colocam, fundamentalmente, são as seguintes:
- Encontrava-se vedado à Mm.ª Juiz que presidiu à instrução ordenar a remessa dos autos ao Mº Pº, após ter declarado nula a acusação pública, para efeito de formulação de novo libelo acusatório, uma vez que apenas lhe cabia, nos termos legais, proferir despacho de não pronúncia?
- Torna-se impossível renovar a acusação pública, uma vez que, no caso sub judice, se mostra esgotado o prazo peremptório para a sua prática?

Apreciemos, pois, as mesmas, de forma conjugada:

Impõe-se, de imediato, salientar que, nos termos do Art.º 283º, n.º 3, alínea b) do C.P.Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Por outro lado, de acordo com o disposto no Art.º 308º, n.º 1 do mesmo Código, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Sendo certo que, neste despacho, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer (cfr. n.º 3 do supra aludido normativo).
Assim, interpretando conjugadamente as supra mencionadas disposições legais, verifica-se que, tendo a Mm.ª Juiz a quo constatado que, na acusação de fls. 2 a 36, não se encontravam narrados factos concretos contra os arguidos, relativos ao cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, importava apreciar essa invocada nulidade, antes de proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
E foi isso que ela fez, declarando nula a sobredita acusação, com a sua consequente invalidade, bem como dos demais actos subsequentes, à excepção de todas as diligências de prova efectuadas na fase instrutória, em função do que determinou a remessa dos autos ao Mº Pº para efeitos de dedução de novo libelo acusatório, o que se nos revela acertado, dado que não se vislumbra qualquer motivo para, perante tal vício, se absolver, de imediato, o arguido da instância.
É que, em face do que acaba de se expender, ultrapassada estava, por conseguinte, a possibilidade de se optar por um eventual despacho de não pronúncia dos arguidos, nomeadamente do aqui recorrente, susceptível de conduzir, também, à extinção do procedimento criminal.
Pelo que, torna-se forçoso referir, desde já, que, em nossa opinião, a Exm.ª Juiz de 1ª Instância, ao agir da predita forma, não violou qualquer preceito de natureza processual penal e/ou constitucional, limitando-se, pelo contrário, a cumprir, escrupulosamente, tudo o que a própria Lei lhe impunha, tal como bem sustenta a Digna Magistrada do Mº Pº junto deste Tribunal.
Além do mais, o prazo de dez dias para dedução de acusação por parte do Mº Pº, consagrado no Art.º 283º, n.º 1 do C.P.Penal, é meramente indicativo e não peremptório, pelo que a respectiva violação não acarreta consequências jurídicas.
Pode-se mesmo dizer que o decurso do prazo legal para que a acusação seja deduzida não extingue a faculdade de exercício da acção penal, originando só eventual responsabilidade disciplinar (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 25-11-1992, C. J., Ano XVII - 1992, Tomo V, Págs. 258 e seg.).
De qualquer forma, não se pode olvidar, para este efeito, que o direito de punir é um direito do Estado, cuja sobrevivência nunca poderia depender, designadamente, da não diligência dos seus servidores a quem compete exercê-lo, sendo certo até que este circunstancialismo nem sequer se verifica, já que, in casu, a pretensa extemporaneidade da nova acusação pública mais não decorre do que dum acto jurisdicional que declarou a nulidade do pretérito libelo acusatório, o qual terá sido, de certo, atempadamente proferido nos autos.
Interessa, ainda, mencionar que o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/96 do S.T.J., de 06-12-2005, publicado in D.R. I-A Série, de 10-01-1996, estabelece que a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, pelo que a abertura da instrução tem de ser requerida no prazo, peremptório, de cinco dias, previsto no Art.º 287º do C.P.Civil.
Deste modo, mais nada nos resta senão concluir pela sua inaplicabilidade à situação em causa, uma vez que tal aresto não se refere, de forma patente, a nenhum prazo peremptório de acusação, ao contrário do que sustenta o recorrente.
Outrossim, também não se nos afigura que a decisão em crise afecte, de alguma forma, as garantias de defesa do arguido, antes as pretendendo salvaguardar, conforme, manifestamente, decorre do respectivo texto.
Inexiste, portanto, qualquer inconstitucionalidade, maxime por violação do estatuído no Art.º 32º, n.º 1 da C.R.P..

Surge, pois, claro e evidente que, porque não se impõe qualquer alteração ao despacho recorrido, o recurso não merece provimento.
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Assim, do exposto, tudo visto e sem a necessidade de maiores considerações:
Acorda-se em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se integralmente o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.