Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23959/17.4T8LSB.L1-8
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE PARTILHA
OBJECTO DO CONTRATO
OBRIGAÇÃO DE OBJECTO DETERMINÁVEL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1– O contrato-promessa tem de definir o conteúdo, ou objecto mediato, do contrato prometido nos mesmos termos que sucederia se já se estivesse a celebrar este último, o que significa desnecessidade de negociações/diligências subsequentes para especificação de tal conteúdo , apresentando-se aquele exequível por si;
2– Assim, no contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio o acervo dos mesmos deve estar especificado e concretizado sem recurso a conceitos ou expressões vagas e imprecisas como “ recheio da casa de família “ e “ participações sociais em diversas sociedades“;
3– A indeterminação e indeterminabilidade do referido conteúdo, ou objecto, é passível de gerar a nulidade prevista no artigo 280º do Código Civil, invalidade essa de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa no seguinte.


I–Relatório:


A, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra B, casado,  pedindo a condenação do Réu no seguinte:
“a)- Pagar à Autora o diferencial das prestações pagas desde Janeiro de 2012 a Novembro de 2016, correspondente a 6.744,00 €, acrescidas de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
b)- Pagar à Autora as prestações vencidas e não pagas desde Dezembro de 2016 até Setembro de 2017 que perfazem a quantia de 25.497,00 €, acrescidas de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
c)- Entregar à Autora, a título indemnizatório 151.386 acções da Sociedade Entreposto Gestão e Participação (SGPS), S.A., correspondente a 50% da participação de 3,03% do capital detido pelo Réu, ou em alternativa, caso tal entrega não seja voluntariamente cumprida pelo Réu, por ocultação, desvio ou qualquer outra causa, reembolsar a Autora do seu valor, que estima não inferior a 2 milhões e 250 mil euros;
d)- Pagar à Autora, metade das quantias recebidas pelo Réu por efeito do contrato de venda das acções Pão de Açúcar à Auchan, que for apurado, mas que reputa não inferior a 2,5 milhões de euros, acrescidas de juros à taxa legal desde a data do seu recebimento pela Autora, ou seja 2002, até integral pagamento.
O pedido ora formulado nas alíneas c) e d) encontra sustentação na resolução do contrato de promessa de partilha celebrado em 11 de Junho de 1986.

Mas se porventura se entender, o que só por mera hipótese se previne, que a actuação do Réu não configura uma situação de incumprimento definitivo e culposo, geradora da resolução do contrato, então, subsidiariamente, nos termos do artigo 544º do Código de Processo Civil, deve o Réu ser condenado no pagamento das alíneas a) e b) invocadas…e ainda no pagamento das prestações mensais entretanto vencidas após Setembro de 2017, no valor mensal de 2.533,00 €, e que se vierem a vencer após a propositura da presente acção.”

Alegou, em suma , que casou com o Réu em 04 de Janeiro de 1960, que se divorciaram um do outro por mutuo consentimento por sentença proferida em 02 de Fevereiro de 1987, acrescentando que celebraram entre si em 11 de Junho de 1986 um contrato denominado “ Contrato de Promessa de Partilha “, que o Réu incumpriu de forma definitiva e culposa, geradora, no seu entender, de resolução do mesmo.

Citado, o Réu contestou a acção por impugnação pugnando pela improcedência e sua consequente absolvição de todos os pedidos contra si formulados, a título principal, ou subsidiário, invocando ainda a nulidade, por falta de forma, do teor da cláusula 6ª do contrato – promessa de partilha dos autos no que à fixação da renda vitalícia respeita.

Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador-sentença, julgando-se a acção totalmente improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do Réu dos pedidos contra si formulados.

Inconformada, veio a Autora apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, o qual foi admitido, alinhando as seguintes conclusões:
“1.- Não está em causa nos presentes autos a invocação da nulidade por ofensa da  “ regra de metade”, conforme prevê o artigo 1730º, n.º 1 do Código Civil, como a própria sentença reconhece.
2.- O facto de as partes terem elencado de forma simplificada e lacónica as participações sociais e também os bens comuns a dividir, não significa a impossibilidade da sua identificação.
3.- Não há qualquer divergência entre os contraentes quanto à identificação das participações sociais do casal à data do divórcio que, aliás, constitui facto dado como provado.
4.- O contrato de promessa de partilha fornece os meios directos e indirectos para a determinação concreta dos bens.
5.- Está unicamente em causa o incumprimento definitivo e culposo do Réu, quanto à obrigação assumida na cláusula 6ª do contrato, em proceder ao pagamento da quantia mensal fixada, actualizável anualmente segundo os índices do INE.
6.- A obrigação foi cumprida pelo Réu desde Fevereiro de 1987 a Dezembro de 2016.
7.- Conforme refere Galvão Teles (em Direito das Obrigações 1973/74) “o contrato de promessa só se torna exequível se para a sua concretização se tornarem necessárias subsequentes negociações”.
8.- No caso em apreço não se verificam quaisquer divergências entre as partes sobre a identificação das participações sociais, não sendo necessárias quaisquer negociações para o estabelecimento de um acordo complementar.
9.- O contrato prometido não está igualmente ferido de nulidade por se obrigar a uma prestação impossível.
10.- Reitera-se que não está em causa nesta sede a avaliação de equilíbrio proporcional na repartição dos bens entre as partes, mas sim o não cumprimento pelo Réu da obrigação contida na cláusula 6ª do contrato de promessa, ou seja do pagamento à Apelante da quantia fixada a título de rendimento presumível das prestações sociais adjudicadas ao Réu, cujo conteúdo não é indeterminado e muito mesmo indeterminável.
11.- Só a determinação dos valores recebidos por efeito da aplicação da cláusula 6ª, em confronto com os valores das participações sociais poderia demonstrar o desequilíbrio da divisão entre as partes contraentes.
12.- A cláusula 6ª do contrato de promessa de partilha tornou-se definitiva por aplicação do disposto na cláusula 7ª que converteu o contrato de promessa em contrato definitivo, tornando efectiva a partilha.
13.- Os novos factos invocados pelo Réu na contestação que na sua perspectiva são impeditivos do cumprimento da obrigação prevista na cláusula 6ª do contrato, tal como se encontra desenhada, deverão fazer parte da base instrutória como tema de prova.
14.- O não cumprimento da responsabilidade obrigacional ou contratual acarreta a resolução do contrato com todas as consequências indemnizatória daí decorrentes, conforme foi comunicado ao Réu, em 23 de Setembro de 2017, ao abrigo dos artigos 432º, 436º e 808º, todos do Código Civil.
15.- O incumprimento definitivo por motivo imputável ao Réu e resolução do contrato subsequente conferem à Apelante o direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos, incluindo o direito à repartição em espécie, às participações financeiras a que tinha direito e o recebimento dessas participações financeiras depois de decretado o divórcio, em termos igualitários aos auferidos pelo Réu.
16.- As participações sociais atribuídas ao Réu estão identificadas, não havendo qualquer divergência entre elas.
17.- A obrigação contraída pelo Réu nos termos da cláusula 6ª não é indeterminada, nem indeterminável, mas constitui uma prestação fixa.
18.- A validade da cláusula 6ª do contrato nunca foi posta em causa pelas partes.
19.- A pretensão deduzida nos termos das alíneas a) e b) do artigo 73º da petição inicial deverá ser englobada, em primeiro lugar, no valor indemnizatório requerido pela Apelante, sendo que para além das quantias estipuladas nas alíneas c) e d) deverá o Réu pagar à Apelante o valor das prestações vencidas até à data da resolução do contrato, ou seja até Setembro de 2017.
20.- Apenas no caso de ser decidido que a actuação do Réu não configura uma situação de incumprimento definitivo geradora da resolução do contrato, deverá proceder o pedido subsidiariamente deduzido pela Apelante nos termos do artigo 544º do Código de Processo Civil do pagamento das prestações mensais vencidas após Setembro de 2017, no valor mensal de 2.533,00 € e as que se vierem a vencer após a propositura da acção, para além naturalmente do pagamento das prestações mensais das quantias previstas nas alíneas a) e b) do artigo 73º da petição inicial.
21.- É o que resulta da pretensão deduzida no artigo 75º da petição inicial que a douta sentença recorrida subverte.
22.- Em suma, nem a cláusula 6ª, nem o contrato de promessa têm um objecto indeterminado ou indeterminável de que resulte a sua nulidade, razão pela qual a sentença proferida ao fazer incorrecta aplicação do disposto nos artigos 280, nº 1, 286º, 289º, 432º, 436º, 808º, 1710º, 1730º, todos do Código Civil e do artigo 544º do Código de Processo Civil, deverá ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento da acção para avaliação das versões da Apelante e Réu em confronto e determinação do valor das participações sociais adjudicadas e rendimentos auferidos pelo Réu, para atribuição do valor indemnizatório à Apelante, mantendo-se o pedido principal e subsidiário tal como vem formulado no artigo 75º da petição inicial. “
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O Apelado não apresentou resposta às alegações da Apelante.
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Colhidos os Vistos legais cumpre decidir.
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II–O Objecto do Recurso:
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do C.P.C., o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que a questão a apreciar e decidir traduz-se em aferir se o denominado “ Contrato-Promessa de Partilhas“ enferma do vício de nulidade, por indeterminabilidade do seu conteúdo, ou objecto mediato.
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III–Fundamentação de Facto:
Decorre da sentença recorrida a seguinte matéria considerada provada:
“ 1.- A. e R. casaram em 04.01.1960, sob o regime da comunhão de adquiridos, tendo sido decretado o seu divórcio por mútuo consentimento por sentença de 02.02.1987, transitada em julgado em 19.02.1987, proferida no Proc. n.º 5829/86, da 2.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Família de Lisboa, conforme documento de fls. 27 a 34, que se dá por reproduzido;
2.- Na acta da 1.ª conferência de divórcio, declararam os então cônjuges não haver bens comuns e prescindirem mutuamente de alimentos e acordaram em atribuir a cada de morada de família à ora A., conforme decorre do mesmo documento;
3.- No dia 11.06.1986, a A., como primeira outorgante, e o R., como segundo outorgante, celebraram entre si o acordo escrito cuja cópia consta de fls. 35 a 37, denominado “Contrato de Promessa de Partilha”, que se dá por integralmente reproduzido;

4.- Na cláusula 3.ª do referido acordo é referido que:
«Os bens do casal são os seguintes:
Verba 1– recheio da casa de família sita em Cascais
Verba 2– um automóvel marca Nissan Mycra, propriedade da sociedade Finantécnica
Verba 3– participações sociais em diversas sociedades ligadas à actividade do segundo contraente»;

5.- Na cláusula 4.ª do referido acordo é referido que:
«Pelo presente contrato-promessa as partes acordam em celebrar no futuro a partilha dos bens referidos na cláusula anterior nos termos seguintes:
a)– Bens a atribuir à primeira outorgante: Verba 1 e dois (…);
b)– Bens a atribuir ao segundo outorgante: Verba 3»;

6.- Na cláusula 5.ª do referido acordo é referido que:
«Considerando que à primeira outorgante é atribuída no divórcio a casa de morada de família as partes acordam em que o segundo outorgante não terá que pagar tornas à primeira outorgante em função do presente contrato e da partilha agora prometida»;

7.- Na cláusula 6.ª do referido acordo é referido que:
«Tendo no entanto em consideração os valores que o segundo outorgante recebe através da verba n.º 3 atrás referida o 2.º outorgante atribuirá à primeira outorgante a título de participação nos rendimentos daquelas posições accionistas a quantia mensal de 124.000$00 (…) que será actualizável anualmente de acordo com o índice de inflação fixado pelo instituto Nacional de Estatística no mês de Outubro anterior.
Parágrafo único: A quantia referida nesta cláusula não abrange quaisquer prestações de alimentos aos filhos do casal e que o segundo outorgante suportará»;

8.- Na cláusula 7.ª do referido acordo é referido que:
«A partilha agora prometida terá lugar por forma automática logo que transite em julgado a sentença homologatória do divórcio entre os outorgantes, sem prejuízo de se entenderem devidos os alimentos desde já»;
9.- Na cláusula 8.ª do referido acordo é referido que:
«Em caso de incumprimento do presente contrato por falta imputável a qualquer das partes obriga-se a parte em falta e indemnizar o outro outorgante no montante do prejuízo causado»;
10.- O casal possuía um conjunto de participações financeiras, nomeadamente do Grupo Entreposto e nas empresas participadas que o integravam, de que o R., para além de accionista, era administrador (por acordo das partes);
11.- Aplicados os níveis de inflação até ao ano de 2011, o quantitativo a pagar pelo R. à A. nos termos da cláusula 6.ª do acordo referido, passou a ser de 2.403,00 € (por acordo);
12.- O R. nunca mais procedeu a qualquer actualização a partir de Outubro de 2011 (por acordo);
13.- O R. procedeu ao pagamento da quantia de 2.403,00 € mensais até Dezembro de 2016, inclusivé deixando de o fazer a partir de então (por acordo);
14.- No dia 05.12.2016, o R. remeteu à A. o e-mail cuja cópia consta de fls. 38, que se dá por reproduzido;
15.- No dia 06.12.2016, a A. respondeu ao R., através do e-mail cuja cópia consta de fls. 39, que se dá por reproduzido;
16.- No dia 27.12.2016, o R. remeteu à A. o e-mail cuja cópia consta de fls. 40 a 43, que se dá por reproduzido, no qual refere, nomeadamente: «(…) a partir de Janeiro, tal como aconteceu já neste mês de Dezembro, por todas as razões referidas, deixarei de te transferir o valor que. Meramente por boa vontade, até agora transferia. Ainda assim, para te continuar a ajudar, proponho-te transferir mensalmente, doravante, metade do que até agora fazia»;
17.- No dia 23.01.2017, a A. respondeu ao R., através do e-mail cuja cópia consta de fls. 44, que se dá por reproduzido, no qual refere, nomeadamente: «(…) Quando te declaras desobrigado de me pagar o que quer que seja, não posso concordar contigo. Estamos perante o incumprimento de contrato de partilhas e não de incumprimento de pensão de alimentos. O não pagamento do rendimento fixado no contrato, abre inclusivamente a possibilidade de vir a ser reclamado, a título indemnizatório, o valor do capital a que tinha direito no momento da partilha»;
18.- No dia 20.02.2017, o R. remeteu à A. o e-mail cuja cópia consta de fls. 45, que se dá por reproduzido, no qual refere, nomeadamente: «Fico, pois, a aguardar que me digas se estás disponível para negociarmos uma revisão do valor que te pago»;
19.- A A. remeteu ao R., sob registo e aviso de recepção, a carta cuja cópia consta de fls. 46 a 48, datada de 22.09.2017, que se dá por reproduzida, na qual refere «o não pagamento da quantia respeitante à participação dos rendimentos das participações sociais dos bens comuns do casal coloca V. Ex.ª numa situação de incumprimento definitivo (…). Nestas condições, caso V. Ex.ª não efectue no prazo máximo de 8 dias todas as prestações me falta, actualizadas anualmente, conforme dispõe a cláusula 6.ª do contrato, acrescidas dos juros legais, considera-se a obrigação contratual não cumprida em definitivo, tendo tal conduta como consequência a resolução do contrato com todas as consequências indemnizatórias dai decorrentes»;
20.- O R. não respondeu à A. (por acordo);
21.- Os índices de inflação, referentes aos anos de 2011, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016 foram os seguintes: 2011 3,7%; 2012 2,8%; 2013 0,3%; 2014 0,0%; 2015 0,5%; 2016 0,6% (por acordo).

IV–Fundamentação de Direito:
Resulta do artigo 410º , nº 1, do Código Civil ( doravante C.C. ), que “ À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato - promessa. “
Daqui ressalta que o contrato-promessa rege-se pelas normas jurídicas atinentes aos contratos em geral e, para além delas, pelas normas relativas ao contrato prometido com as duas excepções mencionadas na parte final do citado nº 1 (normas respeitantes à forma do contrato e normas alusivas ao contrato prometido que pela sua razão de ser se revelem incompatíveis com a natureza do contrato – promessa.).
Por seu turno prevê o artigo 405º , nº 1 , do C.C., que “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. “.
Nesta medida é admissível o contrato de partilha de bens comuns entre ex-cônjuges cujo matrimónio tenha sido concretizado designadamente sob o regime de bens de comunhão de bens adquiridos dependendo, porém, a sua validade do respeito desde logo pela chamada “ regra da metade “, atenta a imperatividade da mesma.

Com efeito resulta do artigo 1730º, nº 1, do C.C. , o seguinte:
“ 1– Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer disposição em sentido diverso. “
Por seu turno estatuiu-se no artigo 1714º , nº 1 , do C.C que , “ Fora dos casos previstos na lei , não é permitido alterar , depois da celebração do casamento , nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.
Porém, as proibições previstas neste último normativo referido possuem carácter excepcional, pelo que é de entender que o mesmo não tem aplicação ao contrato - promessa de partilha de bens comuns do casal , dado que com este último o regime de bens permanece, assim como se mantém a classificação do bem ou bens concretos.
Como tal é de considerar válido o dito contrato - promessa de partilha, sendo que “ o decretamento do divórcio funciona como condição suspensiva, por determinação legal, para a sua validade “, impondo o sistema, por força do citado artigo 1730º, nº 1, do C.C., a “ solução correctiva restritiva de nele se ter de atribuir participação aos cônjuges por metade no activo e no passivo da comunhão sob pena de nulidade. “ ( vide Acórdão do S.T.J. de 09/12/1999 , in CJ/STJ, 1999 , 3º - 132 ).

Neste mesmo sentido se pronunciou mais recentemente noutro acórdão o STJ ao decidir que:
“ I– O contrato – promessa de partilha de bens, celebrado pelos cônjuges, no decurso da acção de divórcio, subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio, é válido “;
II– No entanto , o mesmo estará ferido de nulidade se violar a « regra da metade», por atribuir a um dos cônjuges quotas de bens manifestamente desproporcionais relativamente ao outro ( vide Acórdão de 22 /02/2007, Procº 07B312, acessível in www.dgsi.pt).

Na conformidade exposta temos de convir, então, que o contrato-promessa de partilha, a par de qualquer outro contrato-promessa, está sujeito, como sucede com todo o tipo de contratos definitivos, às regras gerais de validade do negócio jurídico, pelo que o contrato-promessa de partilha deve definir o conteúdo do contrato prometido de modo a que não se tornem necessárias negociações subsequentes para completar a definição dos termos do futuro contrato definitivo a celebrar.

Conforme se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 20/01/2005 (in CJ, 2005 , 1º - 8), “ O objecto do contrato definitivo tem de se encontrar determinado ou ser determinável nos termos do contrato–promessa “.

Na mesma esteira veio a decidir-se , por seu turno , no acórdão desta mesma Relação de Lisboa de 13/12/2007, (Procº 10340/2007.6, relator Granja da Fonseca, acessível em www.dgsi.pt e www.ecli.pt), que, No contrato-promessa tem de se “ definir o conteúdo do contrato prometido nos mesmos termos em que haveria que fazê-lo se se estivesse já a celebrar este. O conteúdo do contrato prometido deve ficar logo convenientemente precisado, de maneira que não se tornem necessárias subsequentes negociações. É mister, sob pena de nulidade do contrato–promessa que este se apresente exequível por si, sem necessidade de completar a definição dos termos do contrato futuro a celebrar. “

E ainda sufragando idêntico entendimento surge-nos o Acórdão também desta Relação de Lisboa de 15/04/2010 ( in CJ , 2010 2º - 113 ), onde se decidiu que: “ O conteúdo do contrato prometido deve ficar logo precisado, nos termos gerais, no contrato – promessa, de maneira que não se tornem necessárias subsequentes negociações, sob pena de não se poder considerar concluído o contrato – promessa “, precisando ainda este aresto que “ É nulo, por indeterminabilidade do objecto, o contrato–promessa de compra e venda de “ todo o património existente em certa moradia “ em termos de não permitir saber qual o objecto do contrato prometido,  pois o património é um conceito jurídico, não uma coisa. “  
                  
Pois bem, aqui chegados voltemos aos factos.

Apelante e Apelado outorgaram na data de 11/06/1986 um acordo escrito que denominaram de “ Contrato Promessa de Partilhas “ cuja cópia consta de fls. 35 a 37 dos autos.

Conforme decorre expressamente da cláusula 2ª desse documento o dito acordo foi celebrado tendo em atenção o divórcio por mutuo consentimento, que ambos instauraram e que veio a ser decretado por sentença transitada em julgado em 19/02/1987, bem como a consequente partilha de bens ficando o mesmo “ condicionado à efectivação desse mesmo divórcio “.

Como tal e face ao já acima expendido no inicio deste segmento do acórdão atinente à “Fundamentação de Direito “, designadamente a citada jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a que acresce não resultarem elementos do teor do dito contrato-promessa de partilhas, nem dos factos assentes na sentença recorrida, que permitam concluir pelo desrespeito da “ regra da metade “, questão, que, aliás, não é objecto de litígio aberto entre as Partes nestes autos, deve aceitar-se que o contrato-promessa em referência é, sobre esse prisma, válido.

Note-se que não foi, sequer, invocado por qualquer das Partes o vicio de nulidade por desrespeito das normas imperativas constantes dos artigos 1714º , nº 1 e 1730º, nº 1, ambos do C.C., sendo certo que o acervo de bens que aquelas rotulam de comuns na cláusula 3ª do contrato-promessa em apreço não permite afirmar assertivamente que o acordo gizado por ambas atribuiu de forma manifestamente desproporcionada bens a uma relativamente à outra, visto que não foram atribuídos valores aos ditos bens objecto da promessa.  

Centremos, então, a nossa atenção na aludida cláusula 3ª do contrato-promessa de partilhas, que traduz o objecto mediato do mesmo.

Refere-se que os bens comuns do casal integram o “ recheio da casa de morada de família sita em Cascais “, um “ automóvel marca Nissan Mycra , propriedade da sociedade Finantécnica “ e “ participações sociais em diversas sociedades ligadas à actividade do segundo contraente. “

Na decisão recorrida entendeu-se que esta descrição do objecto mediato do contrato-promessa é “ lacónica “, imprecisa, inadequada, não concretizando de forma individualizada esse objecto, traduzindo-se mesmo em conteúdo indeterminado e indeterminável.

Vejamos, pois.

Quanto ao “ recheio da casa de morada de família “, pese embora se trate de uma fórmula que desde há muito é adoptada na elaboração de relações de bens comuns do casal, quer no âmbito de acções de divórcio, quer em sede de inventários instaurados em consequência de divórcio, a mesma é notoriamente vaga, imprecisa, susceptível de equívocos desde logo porque abrangendo em regra uma diversidade de bens móveis, muitos deles facilmente transportáveis pelas suas reduzidas dimensões e peso , o seu elenco, não raras vezes, altera-se entre o período que medeia a outorga do contrato-promessa de partilha e o momento da realização desta. Como tal , fazer uso da expressão “ recheio “ ( sem sequer lhe atribuir um valor global como sucede no caso ), peca por notória indefinição dos bens que se pretenda contemplar , não se distinguindo da expressão “ património “ aludida no acórdão proferido neste mesmo Tribunal da Relação em 15/04/2010, que acima trouxemos à colação.

Acresce que a redacção da cláusula 10ª do contrato-promessa em causa ainda concorre para adensar mais a indefinição do recheio comum da casa de morada de família e deixa claro que no âmbito dos bens existentes na dita casa sempre seriam necessárias ulteriores negociações.

Com efeito resulta da dita cláusula 10ª que “As partes outorgantes acordarão entre si sem prejuízo do que se encontra disposto no presente contrato-promessa as partilhas dos bens estritamente pessoais existentes até agora na casa morada de família. “ 
  
No que tange ao “ automóvel Nissan Mycra, propriedade da sociedade Finantécnica“, também deparamos com uma descrição inadequada, por imprecisa, faltando a essencial referência à matrícula da viatura.

Por outro lado, se é perfeitamente razoável admitir que não existissem outras viaturas da marca e modelo em causa para considerar nos bens comuns do casal, fica por entender como se relaciona um bem móvel (sujeito a registo), que é propriedade de um terceiro, no caso uma sociedade.

Relativamente às “ participações sociais em diversas sociedades ligadas à actividade do segundo contraente “, no caso o Apelado, deparamos, mais uma vez, com patente indefinição, não só quanto ao tipo de “ participações sociais “ (quotas, acções, obrigações, outras ?) em causa, bem como quanto ao valor a considerar para as mesmas.

Por outro lado, se é verdade que do alegado pela Apelante em sede de petição inicial e que resultou assente no ponto 10. da “ Fundamentação de Facto “ do despacho saneador-sentença recorrido, se pode inferir que existiam participações financeiras no “ Grupo Entreposto “ e nas empresas participadas que o integravam de que o Apelado era accionista e administrador, (admitindo-se ainda que se traduzissem essencialmente em acções atento o teor do doc. 11 junto com a petição inicial, constante de fls. 111 a 126, não impugnado e da menção “posições accionistas “ constante da clausula 6ª do contrato – promessa), não é menos verdade que as ditas “ participações sociais “ não respeitassem a outras sociedades, desde logo porque no facto assente surge clara a menção a “ nomeadamente “.

Como assim , não pode deixar de se reconhecer também a existência de falta de concretização no que tange às “ diversas sociedades ligadas à actividade “ do Apelado.

Relembre-se, porém, que não é suficiente para relevar ao nível do vicio da nulidade que o objecto mediato , ou conteúdo , do contrato-promessa de partilha seja apenas indeterminado. Ele tem, ainda, que ser indeterminável.

Sucede, porém, que, como bem se refere na decisão recorrida, da análise do contrato-promessa de partilhas em causa não resulta qualquer indicação quanto a mecanismos que de forma indirecta permitam a necessária especificação dos elementos não clarificados, integrantes do conteúdo do contrato-promessa de partilhas, acima apontados, quer através de conexão com meios futuros, quer pela própria atribuição às partes da faculdade de determinar posteriormente o que clausularam em termos indefinidos.  
                   
Conforme ensina o Prof. Carlos Ferreira de Almeida (Contratos V 2017, Almedina, pag. 181), “ O objecto é indeterminável se o contrato se referir a acções de uma sociedade não identificável.
Dito isto, somos em crer que o contrato-promessa de partilhas em causa nestes autos tem de facto um conteúdo (ou objecto), indeterminado e indeterminável, o que acarreta a inexequibilidade do mesmo , enfermando deste modo de invalidade, ou seja “ não produção de efeitos resultante de uma falta quanto aos elementos intrínsecos do negócio “ ( “ Das Invalidades Atípicas- Esboço de uma Teoria Geral “, Ana Paula Ribeiro, Usus Editora, pág. 18 ) .
A dita invalidade encontra-se prevista no artigo 280º, nº 1, do C.C., que estatui que: “ É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável. “

Considerando o teor da cláusula 4ª do contrato-promessa de partilhas em apreço e na medida em que a sua interpretação deve ser realizada em estreita conjugação com a cláusula 3ª, para onde aquela, aliás, remete expressamente temos de convir que a indeterminabilidade que afecta esta última designadamente no que tange à devida concretização do “ recheio da casa de morada de família “ e “ participações sociais em diversas sociedades “ comunica-se afinal e na plenitude àquela outra.

Tal como se comunica à clausula 6ª, conforme o expõe correctamente a sentença recorrida.

Ora traduzindo-se a nulidade em não produção de efeitos e padecendo o contrato-promessa de partilhas dos autos dessa enfermidade desde logo se conclui que Apelante e Apelado não estavam vinculados à celebração do contrato prometido, que, aliás e de acordo com a cláusula 7ª do contrato-promessa mais não seria que este último convertido automaticamente em definitivo logo que operasse o trânsito em julgado da sentença homologatória do divórcio decretado entre Apelante e Apelado, o que ocorreu em 19/02/1987, pelo que juridicamente não existiu uma situação de incumprimento contratual por parte do Apelado para com a Apelante passível de fundamentar a pretensão de resolução contratual formulada pela mesma.   

Decorre, por seu turno, do artigo 286º do C.C., que a nulidade prevista no supra mencionado artigo 280º do mesmo diploma legal é de conhecimento oficioso e a sua declaração produz “ efeitos retroactivos devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente ” ( cfr. artigo 289º , nº 1 , do C.C. ).

De acordo com a orientação estabelecida pelo Assento nº 4/95 do STJ de 28/03/1995, (pub no D.R. I – A , de 17/05/1995), “ Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção estiverem fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do art. 289º do C.C. “
 
Do acervo de factos provados na decisão recorrida afigura-se que releva quanto a esta especificidade da restituição a materialidade constante dos pontos 13. a 19., podendo do seu teor concluir-se, desde logo, pelo dever de restituição por parte da Apelante das quantias elencadas no ponto 13., sem embargo dos factos enunciados nos pontos 14. a 19. permitirem também , a nosso ver, sustentar a presunção judicial de rendimento ( frutos civis ) adquirido pelo Apelado em função das participações sociais, ou posições accionistas, atribuídas, que assim, teria igualmente de restituir.

De todo o modo, sendo desconhecido o montante passível de restituição por parte do Apelado e inviável qualquer operação com vista a liquidá-lo em face da parca factualidade provada na sentença recorrida, é de aceitar a solução por que enveredou o Mmº Juiz a quo nesta última e que entronca no entendimento sufragado no citado Assento 4/95, nomeadamente na ressalva ali feita a “ se na acção estiverem fixados os necessários factos materiais. “

Por último de salientar que o regime da cláusula 7ª, (a que já se aludiu), do contrato-promessa de partilhas, que aponta para a conversão automática do contrato–promessa em contrato definitivo por força do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio entre Apelante e Apelado, ou seja para a existência de uma partilha definitiva de bens entre aqueles nos termos previstos nas cláusulas 3ª, 4ª e 6ª a partir de 19/02/1987, sempre determinaria a invalidade do contrato definitivo pela mesma ordem de razões assinalada supra quanto ao contrato-promessa, ou seja indeterminação e indeterminabilidade do seu conteúdo, donde se conclui que a dita partilha também estaria eivada do vicio da nulidade.

Destarte, não merece censura o despacho saneador-sentença recorrido.              
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V–Decisão:
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Apelante A e consequentemente:
1- Confirmar a decisão recorrida;
2- Fixar as custas a cargo da Apelante.
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Notifique e registe.
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LISBOA, 06 de Dezembro de 2018    



(José António Moita)
(A. Ferreira de Almeida)
(Maria Alexandrina Branquinho)