Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17552/20.1T8LSB.L1-4
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: DOENÇA PROFISSIONAL
CERTIFICAÇÃO
REPARAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: A falta de decisão do Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais sobre a certificação e reparação de doença profissional impossibilita o conhecimento do mérito do pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, formulado pelo trabalhador contra o empregador com fundamento em doença profissional resultante de violação de regras de saúde e segurança, por falta dum pressuposto processual inominado que constitui excepção dilatória que impõe a absolvição do empregador da instância, nos termos dos art.ºs 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º e 578.º do CPC.
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
AAA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BBB alegando, em síntese, que
No dia 16 de Junho de 2008, o Autor e a Ré celebraram um contrato de trabalho, sendo-lhe atribuída a categoria profissional de Oficial Carnes Principal. Por via da sua actividade profissional, o Autor contactava diariamente com carne de animais comercializada no estabelecimento da Ré e, em consequência disso, em 20 de Dezembro de 2016, adoeceu e entrou de baixa médica, tendo-lhe sido diagnosticada brucelose em 01 de Março de 2017. A Ré não assegurou as condições de higiene e segurança veterinária necessárias a que estava obrigada em matéria de carnes de animais que comercializava no seu estabelecimento. Entre 01 de Março de 2017 e 4 de Março de 2020, o Autor esteve de baixa por incapacidade para o trabalho, causada por doença profissional. O Autor deu conhecimento à Ré do seu estado clínico, a qual providenciou o requerimento de protecção na doença profissional e remeteu-o para o Centro Nacional de Doenças Profissionais em 1 de Março de 2017. A doença profissional foi reconhecida em 1 de Março de 2017. Em 12 de Fevereiro de 2020, o Autor foi reformado por invalidez relativa, com efeitos a partir de 26 de Novembro de 2019. Desde que contraiu a doença, em 20 de Dezembro de 2016, o Autor sofre dores de cabeça e no corpo frequentes, estado de fraqueza, incapacidade para se movimentar, dificuldade em dormir, estando em permanente mal estar que impede de se concentrar em qualquer assunto. Tem de ser acompanhado permanentemente por médico. O Autor, pelas razoes indicadas no artigo precedente, não consegue exercer actividade profissional, nem tem condições de saúde para ser admitido em qualquer empresa. A Ré comunicou ao Autor que considerava o contrato de trabalho caducado em 24 de Fevereiro de 2020. O Autor sofreu prejuízos patrimoniais no valor de total de 7.833.73€, correspondente à diferença entre o que recebeu da Segurança Social e devia ter recebido da Ré entre Março de 2017 e Novembro de 2019. A partir de Dezembro de 2019, começou a receber pensão mensal de reforma no valor de 532,04€, o que corresponde a uma diferença, para menos, relativamente à sua retribuição, de 506,39€, pelo que, a título de lucros cessantes, a Ré deverá indemnizar o Autor na quantia de 121.967,69€. Tendo em consideração a gravidade dos danos causados na sua saúde e o facto de serem definitivos, deverá ser atribuído ao Autor indemnização por danos não patrimoniais não inferior a 150.000,00€. O Autor não recebeu retribuições no valor total de 3.448,58 €, a título de férias e subsídios de férias e de Natal em 2019 e 2020.
Termina, pedindo a condenação da Ré a pagar ao Autor:
1. A quantia de 129.801,42€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais;
2. A quantia de 150.000,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais;
3. A quantia de 3.448,58€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento, a título de retribuições.
A Ré apresentou contestação, impugnando por falsas as afirmações de omissão de cuidados de segurança e higiene necessárias ao desempenho da função do Autor e que o mesmo tenha contraído brucelose na prestação de trabalho nas suas instalações. A Ré, na qualidade de empregadora, não foi notificada pelos serviços com competência na área de protecção contra os riscos profissionais, nos termos do disposto no art.º 143.º da Lei n.º 98/2009, de quaisquer resultados ou diagnósticos alcançados. Os talhos da Ré não apresentam as características de instalações de trabalho relativamente aos quais se verifica perigo de contaminação, porquanto não há animais vivos, não se realizam acções correspondentes às de matadouros e as carcaças dos animais são descarregadas já sem vísceras, existindo assim contacto meramente residual com vísceras. Na eventualidade de vir a ser reconhecido o padecimento de brucelose e que a sua aquisição ocorreu no decurso de prestação de trabalho para a Ré, reconhecendo-se assim a existência de doença profissional, a reparação não passa pela atribuição de indemnização nos termos peticionados, mas sim na fixação de uma pensão, bem como no reembolso de despesas que o Autor haja tido com deslocações a instituições de saúde, medicamentos, tratamentos médicos e outros. Impugna os danos patrimoniais e não patrimoniais. Em reconvenção, pede a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de 4.000,00€, relativa a empréstimo que o mesmo solicitou à Ré.
O Autor apresentou resposta à reconvenção em que reconheceu a respectiva factualidade.
Oportunamente, procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Por tudo o que ficou exposto, nos termos das disposições legais citadas:
I - Julgo a acção totalmente improcedente e absolvo a ré do pedido;
II – Julgo procedente a reconvenção e, em consequência, condeno o autor a pagar à ré a quantia de €4.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre a dita quantia, desde a data da notificação ao autor do articulado de contestação/reconvenção, até integral pagamento.
Custas pelo autor – art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC -, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.»
O Autor interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
(…)
A Ré apresentou resposta ao recurso do Autor, pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta Relação, observou-se o disposto no art.º 87.º, n.º 3 do CPT, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Afigurando-se a este Tribunal que ocorre excepção dilatória inominada que impõe a absolvição da Ré da instância, e por se tratar de questão ainda não discutida nos autos, deu-se cumprimento ao preceituado no art.º 3.º, n.º 3 do CPC, por despacho de 10/03/2023, tendo ambas as partes se pronunciado sobre a mesma.
Cumprido o previsto no art.º 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Atento o disposto, conjugadamente, nos art.ºs 608.º e 663.º, n.º 2 do CPC, importa conhecer das seguintes questões, a primeira por ser de conhecimento oficioso e as restantes por constituírem o objecto do recurso, tal como delimitado pelas respectivas conclusões:
- excepção dilatória inominada;
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- responsabilidade da Ré pelos danos sofridos pelo Autor por este ter contraído doença profissional ao serviço daquela.
Constata-se, pois, que a sentença transitou em julgado no que respeita à reconvenção.
3. Fundamentação
3.1. Os factos considerados provados na sentença são os seguintes:
A) – No dia 16 de Junho de 2008, o Autor e a Ré celebraram um contrato de trabalho.
B) – O Autor foi admitido ao serviço da Ré para, sob sua autoridade e direcção, exercer inicialmente funções no talho do estabelecimento “BBB.”, na …, sendo transferido no âmbito da sua actividade profissional por diversas vezes pelos estabelecimentos da Ré.
C) – Ao Autor foi atribuída a categoria profissional de Oficial Carnes Principal.
D) – Foi acordado que a remuneração mensal base do Autor seria de 919,63€, sujeita às retenções e deduções legais, tendo, também, o Autor direito a subsídio de alimentação de 5,40€ por cada dia de trabalho efectivamente prestado.
E) – Por via da sua actividade profissional, o Autor contactava diariamente com carne de animais comercializada no estabelecimento da Ré.
F) – Em 20 de Dezembro de 2016, o Autor adoeceu e entrou de baixa médica.
G) – Entre 01 de Março de 2017 e 4 de Março de 2020, o Autor esteve de baixa por incapacidade para o trabalho, causada por doença profissional.
H) – O Sr. Dr. MF, na qualidade de avençado da Ré, preencheu e assinou a participação cuja cópia consta de fls. 10 e v.º dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 01/03/2017, dirigida à Segurança Social, para efeitos de protecção na doença profissional.
I) – Entre 21 de Fevereiro de 2017 e 09 de Agosto de 2019, o Autor recebeu da Segurança Social os subsídios de doença profissional discriminados no extracto de remunerações cuja cópia consta de fls. 13 a 15 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e na declaração cuja cópia consta de fls. 16 e 17 dos autos, que aqui se dá, igualmente, por integralmente reproduzida.
J) – Em 12 de Fevereiro de 2020, o Autor foi reformado por invalidez relativa, com efeitos a partir de 26 de Novembro de 2019.
K) – Ao Autor foi fixada uma pensão de invalidez de 532,04€.
L) – Em 28/09/2018, o Autor queixava-se de incapacidade para realizar as suas actividades, com febre alta nocturna ocasionalmente, parestesias e alterações sensoriais dos membros inferiores, fadiga muscular, dores articulares frequentes e cansaço para pequenos esforços.
M) – O Autor foi acompanhado pelo Sr. Dr. AT, na qualidade de médico de família do Centro de Saúde da …, entre meados de 2019 a meados de 2020.
N) – O Autor nasceu em 09 de Março de 1967.
O) – Em 24 de Março de 2020, a Ré enviou ao autor a carta cuja cópia consta de fls. 12 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, com o seguinte teor:
“A BBB. teve conhecimento no dia 24 de Fevereiro de 2020, que a V. Exa. foi atribuído o acesso à Reforma por Invalidez com efeitos a 26 de Novembro de 2019.
Neste sentido, serve a presente para informar, nos termos e para os efeitos da alínea c) do artigo 343º do Código de Trabalho, que o contrato de trabalho de V. Exa. caduca a 24 de Fevereiro de 2020, tal como é do seu conhecimento”.
P) – A Ré não tem registo de qualquer trabalhador seu que haja contraído brucelose nos seus talhos.
Q) – Pelo Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital … não foi confirmada a suspeita inicial de brucelose relativamente ao Autor, conforme relatório médico de fls. 122 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
R) – A Ré, a pedido do Autor, transferiu para a conta deste a quantia de 4.000,00€, no dia 19/03/2020.
S) – A Ré enviou ao Autor a carta cuja cópia consta de fls. 42 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 10/04/2020, através da qual lhe solicitou o pagamento da quantia referida em R).
T) – O Autor recebeu a carta referida em S).
3.2. Os factos considerados não provados na sentença são os seguintes:
1) O alegado no artigo 6.º, parte final, da petição inicial: tendo-lhe sido diagnosticada doença de brucelose em 01 de Março de 2017;
2) O alegado no artigo 7.º da petição inicial: A doença referida no artigo precedente foi contraída pelo Autor na sequência do contacto e manipulação de carnes no estabelecimento BBB …, onde de momento se encontrava transferido no âmbito da sua actividade profissional;
3) O alegado no artigo 8.º da petição inicial: Fora da sua actividade profissional, o Autor não tinha contacto com carne de animais;
4) O alegado no artigo 12.º da petição inicial: A doença profissional foi reconhecida em 1 de Março de 2017;
5) O alegado no artigo 14.º da petição inicial: Entre 1 de Setembro de 2019 e 26 de Novembro de 2019, o Autor não recebeu qualquer quantia da Segurança Social ou da Ré;
6) O alegado no artigo 20.º da petição inicial: O Autor, pelas razões indicadas no artigo precedente, não consegue exercer actividade profissional, nem tem condições de saúde para ser admitido em qualquer empresa;
7) O alegado no artigo 26.º da petição inicial: O Autor sofreu prejuízos patrimoniais no valor total de 7.833,73€.
3.3. Antes de mais, cabe decidir sobre a questão a que alude o despacho de 10/03/2023, isto é, a de se verificar excepção dilatória inominada que impõe a absolvição da Ré da instância relativamente ao pedido que o Autor formulou contra ela.
Conforme decorre da petição inicial, o Autor peticiona a condenação da Ré no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por aquele em resultado de doença profissional – brucelose – contraída ao serviço da empregadora.
Ora, segundo o n.º 7 do art.º 283.º do Código do Trabalho, a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais é assumida pela segurança social, nos termos da lei.
Foi a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que veio proceder à regulamentação do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais (RRATDP), como previsto também no art.º 284.º do Código do Trabalho, estabelecendo o seu art.º 1.º, n.º 2 que, sem prejuízo do disposto no capítulo III, às doenças profissionais aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas relativas aos acidentes de trabalho constantes daquela lei e, subsidiariamente, o regime geral da segurança social.
Compulsado o mencionado capítulo III, resulta do art.º 93.º, n.º 1 que a protecção da eventualidade de doenças profissionais integra-se no âmbito material do regime geral de segurança social dos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho e dos trabalhadores independentes e dos que sendo apenas cobertos por algumas eventualidades efectuem descontos nas respectivas contribuições com vista a serem protegidos pelo regime das doenças profissionais.
De acordo com o art.º 96.º, a avaliação, graduação e reparação das doenças profissionais diagnosticadas é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais.
Nos termos do art.º 138.º, n.º 1, a certificação das incapacidades abrange o diagnóstico da doença, a sua caracterização como doença profissional e a graduação da incapacidade, bem como, se for o caso, a declaração da necessidade de assistência permanente de terceira pessoa para efeitos de prestação suplementar. Acrescenta o n.º 3 que a certificação e a revisão das incapacidades é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais, sem prejuízo do diagnóstico presuntivo pelos médicos dos serviços de saúde, para efeitos da atribuição da indemnização por incapacidade temporária.
O art.º 140.º sublinha que a aplicação do regime previsto naquele capítulo III compete aos serviços com competências na área da protecção contra os riscos profissionais, com a colaboração das demais instituições de segurança social, no âmbito das respectivas funções.
Acrescenta o art.º 141.º, n.º 1 que o serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais deve estabelecer normas de articulação adequadas com outros serviços, designadamente instituições de segurança social, serviços de saúde, emprego e formação profissional, relações laborais e tutela das várias áreas de actividade, tendo em vista assegurar a máxima eficiência e eficácia na prevenção e reparação das doenças profissionais.
Por seu turno, o art.º 142.º, n.º 1 estabelece que o médico participa ao serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais todos os casos clínicos em que seja de presumir a existência de doença profissional, acrescentando o n.º 2 que o diagnóstico presuntivo de doença profissional pelos serviços a que se refere o n.º 3 do art.º 138.º e o eventual reconhecimento de incapacidade temporária por doença profissional não dispensam os médicos dos respectivos serviços da participação obrigatória prevista naquele artigo. A participação deve ser remetida no prazo de oito dias a contar da data do diagnóstico ou de presunção da existência de doença profissional (n.º 3).
Os art.ºs 144.º a 153.º regulamentam a organização dos processos, designadamente no que concerne ao requerimento das prestações previstas no capítulo III perante o serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais.
Por outro lado, afigura-se-nos que, por força do art.º 1.º, n.º 2, nos termos do art.º 18.º, quando a doença profissional tiver sido provocada pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais. De acordo com o n.º 4, nesse caso, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por actuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguidamente enunciadas. O art.º 79.º, n.º 3, aplicável mutatis mutandis, acrescenta que, nessas situações, o serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.
No que à lei processual respeita, o art.º 155.º do Código de Processo do Trabalho dispõe que o disposto nos artigos 117.º e seguintes aplica-se, com as necessárias adaptações, aos casos de doença profissional em que o doente discorde da decisão do Instituto da Segurança Social, I. P., em matéria de doenças emergentes de riscos profissionais, para o que o tribunal requisita o processo organizado naquela instituição, que é apensado ao processo judicial e devolvido a final.
Ou seja, nos termos do citado art.º 117.º, a fase contenciosa tem por base: uma petição inicial, em que o doente ou respectivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos; ou um mero requerimento nos termos do n.º 2 do artigo 138.º, do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho, se apenas houver discordância quanto a tal questão, não havendo quaisquer outras a resolver.
Ora, nos presentes autos, o Autor veio instaurar acção com processo comum contra a sua empregadora, pedindo a condenação desta a indemnizá-lo por danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de doença profissional (brucelose), alegando factualidade e indicando e produzindo meios de prova com vista à demonstração da sua existência, o que, como se viu, viola frontalmente lei imperativa, de acordo com a qual a avaliação, graduação e reparação das doenças profissionais diagnosticadas é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais, assim como o é a certificação das incapacidades – abrangendo o diagnóstico da doença, a sua caracterização como doença profissional e a graduação da incapacidade, bem como, se for o caso, a declaração da necessidade de assistência permanente de terceira pessoa para efeitos de prestação suplementar –, sem prejuízo do diagnóstico presuntivo pelos médicos dos serviços de saúde, para efeitos da atribuição de indemnização por incapacidade temporária.
Isto é, o Autor só podia reclamar em tribunal quaisquer prestações decorrentes da doença profissional que invoca depois de o serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais decidir, a título definitivo, no procedimento administrativo prévio, nos sobreditos termos, sobre a certificação e reparação da mesma. E, para aquele efeito, devia propor a acção especial a que se reportam os art.ºs 117.º e ss. e 155.º do Código de Processo do Trabalho, ou apenas para reclamar do próprio serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais as prestações normais a cargo do mesmo, no caso de discordar da decisão por ele proferida, ou ainda para reclamar da empregadora prestações agravadas ou indemnização nos termos gerais, no caso de entender que ocorreu actuação culposa ou violação de regras de segurança e saúde por parte da mesma, respondendo o serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais apenas pelas prestações normais e sem prejuízo de direito de regresso contra a empregadora.
Trata-se dum regime jurídico imperativo que visa garantir o interesse (também) público de que ao trabalhador que padece de doença profissional é prestado tudo o que é devido pela segurança social, haja ou não actuação culposa ou violação de regras de saúde e segurança pelo empregador.
Ora, conforme se alcança do procedimento administrativo prévio organizado, nos sobreditos termos, pelo mencionado serviço (o Departamento de Protecção contra os Riscos Profissionais), o qual foi remetido e apensado aos presentes autos por ofício de 17/05/2021, não foi proferida decisão sobre a certificação e reparação de doença profissional do Autor que havia sido oportunamente participada, na medida em que o procedimento foi arquivado com fundamento em falta do Autor a convocatória para avaliação clínica, como mencionado naquele ofício. Obviamente, era nesse âmbito que o Autor deveria ter reagido, se fosse o caso, de modo a que o procedimento prosseguisse e fosse concluído, permitindo-lhe posteriormente propor em tribunal a acção especial por doença profissional nos termos acima indicados.
Na sequência do despacho de 10/03/2023, o Apelante veio pronunciar-se sobre a questão em apreço, refutando a informação do Departamento de Protecção contra os Riscos Profissionais, com o argumento de que esteve de baixa por doença profissional durante vários anos e lhe foi concedida reforma por invalidez relativa, alegadamente por se comprovar que o mesmo padece de doença – brucelose – que o incapacita de exercer a sua actividade profissional ou qualquer outra.
No entanto, não colhe o argumento do Recorrente.
É certo que decorre da factualidade não controvertida constante das alíneas G), H) e I) que foi enviada à Segurança Social participação de doença profissional de que o Autor poderia padecer, tendo este estado de baixa entre 1 de Março de 2017 e 4 de Março de 2020, recebendo da Segurança Social os subsídios de doença profissional discriminados nos documentos indicados.
Não obstante, como acima referido, os art.ºs 96.º e 138.º, n.º 3 do RRATDP são bem claros no sentido de que a certificação das incapacidades por doença profissional é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da protecção contra os riscos profissionais, sem prejuízo do diagnóstico presuntivo pelos médicos dos serviços de saúde, para efeitos da atribuição da indemnização por incapacidade temporária.
Ora, apesar do pagamento ao Autor de subsídios de doença profissional por incapacidade temporária, com base em diagnóstico presuntivo, o Departamento de Protecção contra os Riscos Profissionais não proferiu decisão de certificação de incapacidades nos termos dos citados preceitos legais, a qual, segundo o n.º 1 do art.º 138.º, abrangeria o diagnóstico da doença, a sua caracterização como doença profissional e a graduação da incapacidade, bem como, se fosse o caso, a declaração da necessidade de assistência permanente de terceira pessoa para efeitos de prestação suplementar.
O que sucede é que, como se provou sob o ponto J), em 12 de Fevereiro de 2020 o Autor foi reformado por invalidez relativa, com efeitos a partir de 26 de Novembro de 2019, o que apenas significa que o Autor padece de doenças ou limitações físicas ou mentais – não concretizadas na factualidade provada – que, independentemente da sua etiologia, o incapacitam a título permanente para o seu trabalho, conferindo-lhe o direito à pensão correspondente, nos termos gerais. 
A atribuição de pensão de reforma por invalidez relativa não se confunde com a atribuição de pensão por doença profissional, na medida em que esta pressupõe que a doença (no caso, a brucelose) foi contraída em resultado da exposição ao risco inerente ao exercício da profissão do trabalhador, o que não sucede na primeira hipótese.
Em face do exposto, afigura-se-nos que a falta de decisão do Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais sobre a certificação e reparação de doença profissional impossibilita o conhecimento do mérito do pedido formulado pelo Autor contra a Ré, por falta dum pressuposto processual inominado, constituindo excepção dilatória que impõe a absolvição da Ré da instância, nos termos dos art.ºs 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º e 578.º do CPC  – cfr. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 25/09/2008, proferido no processo n.º 305/05.4TTCTB.C1, e da Relação de Guimarães de 21/01/2021, proferido no processo n.º 1223/20.1T8VRL.G1 (com resultado idêntico, mas entendendo-se que ocorre incompetência material do tribunal, v. o Acórdão da Relação de Guimarães de 16/04/2015, proferido no processo n.º 4785/14.9T8VNF.G1)[1].
Fica, pois, prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas.
4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em absolver a Ré da instância e, em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelo Apelante.

Lisboa, 19 de Abril de 2023
Alda Martins
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
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[1] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Decisão Texto Integral: