Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5681/10.4TBSXL.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CASO JULGADO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A actuação dos réus/executados no âmbito de uma acção executiva, que tem por base uma sentença pendente de recurso, com efeito devolutivo, ao procederem ao pagamento judicial voluntário da quantia em que foram condenados, antes da prolação do acórdão que veio a revogar aquela sentença e determinou o prosseguimento dos autos, traduz, objectivamente, o reconhecimento (definitivo) da dívida exequenda.
2. O tribunal de 1ª instância ao apreciar, após a prolação daquele acórdão, a repercussão na lide daquele pagamento efectuado pelos réus aos autores, não desrespeitou o caso julgado formado pelo referido acórdão, pois que conheceu de uma questão que não foi objecto de recurso e também não foi oficiosamente apreciada pelo tribunal superior.
3. A ter existido da parte dos réus/executados uma situação de erro quanto à existência da dívida, poderão os mesmos instaurar acção de restituição do indevido (enriquecimento sem causa), demonstrando aí o seu erro e a inexistência de causa da obrigação.
4. Essa alegação não obsta, porém, a que se tivessem produzido os efeitos substantivos do facto: pagamento voluntário da quantia exequenda.
5. Esse pagamento voluntário da quantia exequenda e das custas da execução, produziu automaticamente a extinção da execução, como, de resto, se previa no art. 919º, n.º 1 do CPC antigo, arrastando, forçosamente, o termo da instância executiva antes da decisão do recurso da sentença dada à execução.
6. Em face do pagamento voluntário da quantia peticionada nos autos, a pretensão deduzida pelos autores mostra-se satisfeita, tendo, por isso, a lide ficado sem objecto, tornando inútil o prosseguimento do processo.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Os AA intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra os RR pedindo:
1. Se reconheça que os autores adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio sito na Rua (...), Concelho de Seixal, descrito na CRP da Amora sob o n.º (...), e ordenar-se a correspondente inscrição do referido direito de propriedade a favor dos autores no registo predial; ou, caso esse pedido improceda, condenarem-se os réus a restituírem aos autores a quantia de €170.194,63, com fundamento em enriquecimento sem causa;
2. Se condenem os réus a pagarem aos autores a quantia de € 28.884,57, com fundamento no disposto no art. 289º do CC (face à nulidade do empréstimo feito aos réus).

Os réus (com excepção do 2º) contestaram e deduziram reconvenção, a qual não foi admitida.

No dia 2/06/201foi realizada a audiência preliminar, tendo então sido proferido despacho saneador, no qual se conheceu do pedido referenciado sob o n.º 2, tendo-se declarado nulo o contrato de mútuo celebrado entre o autor e os réus e se condenaram estes a pagarem àquele, a título de restituição, a quantia de €28.884,57.
Relativamente ao pedido formulado pelos autores acima referenciado sob o n.º 1, foram organizados os factos assentes e a base instrutória.

Entretanto, os réus interpuseram recurso de apelação da sentença que conheceu de um dos pedidos, o qual foi admitido e subiu em separado a este Tribunal da Relação.
No dia 8/11/2011 os autores interpuseram execução contra os réus para pagamento da quantia acima referida, a qual foi apensada aos presentes autos.
Realizado o julgamento foi no dia 17 de Fevereiro de 2012 proferida sentença na qual se julgou a acção procedente e se declarou “adquirido por usucapião o direito de propriedade a favor de (...) e (...) desde 3 de Fevereiro de 2009 sobre o prédio urbano destinado à habitação sito na Rua (...) , omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amora sob o n.º (...)”.

Dessa sentença não foi interposto qualquer recurso, tendo transitado em julgado.

No âmbito da execução supra referida foi penhorado uma fracção autónoma (fls. 30) e parte do salário do executado (...) (fls. 128).
Posteriormente os executados pagaram a quantia exequenda e os acréscimos legais.
Por comunicação de 26/11/2012, a agente de execução informou então o tribunal de que se encontrava paga a quantia exequenda e respectivas custas e extinta a execução, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 919º do CPC.
Entretanto, por acórdão desta Relação de 13/12/2012 foi decidido:
“(…) conceder provimento parcial ao recurso na parte em que condenou os Réus a restituírem aos Autores a quantia de 28.884,57 euros, revogando nessa parte a decisão recorrida”.
E, de acordo com os fundamentos exarados nesse acórdão, a decisão baseou-se na circunstância de não estar assente por acordo, sendo controvertida, a matéria de facto em que se fundou a decisão recorrida, que conheceu imediatamente de um dos pedidos formulados na p.i.
No dia 25/02/2013 os autores formularam o requerimento de fls. 530 dos autos, no qual referem que, não obstante a decisão proferida por este Tribunal da Relação, os réus já pagaram voluntariamente aos autores a quantia em causa, pelo que deverá ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, com custas pelos réus.
Estes (com excepção do 2º réu) responderam, dizendo não compreender o teor do requerimento apresentado pelos autores, inexistindo fundamento legal para o requerido.
Concluem pelo seu indeferimento.
A fls. 539 foi proferido despacho (datado de 21/03/2003) com o seguinte teor:
“Constando dos autos de execução provisória que os Réus pagaram voluntariamente a quantia exequenda, notifique-os para se pronunciarem quanto à declaração efectuada pelo AE, no prazo de 10 dias, sob pena de nada dizendo ou confirmando tal pagamento se julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide”.
Notificados desse despacho, os réus silenciaram.
Após, o Sr. Juiz proferiu o seguinte despacho (datado de 12/06/2013):
Devidamente notificados nos termos e para os efeitos enunciados no despacho de 21/03/2013, nada vieram os Réus declarar.
Pelo exposto, tendo em conta o teor do despacho mencionado, ao abrigo do disposto no art. 287º., e) CPC, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Custas pelos réus.”
Inconformados os réus interpuseram recurso de apelação, cujas alegações terminaram com a formulação das seguintes conclusões:
1. É inválida a decisão da lª instância que mandou arquivar os autos, por alegada inexistência de qualquer elemento eficaz para a sua continuação;
2. Com efeito, ocorre por parte da Sra. Juíza" a quo " uma omissão de observância do n° 1 do artigo 156º do CPC aplicável e que manda dar cumprimento nos seus precisos termos às determinações dos tribunais superiores;
3. Na verdade e por Acórdão de 13Dez2012, esta Mª Relação considerou que houve impugnação do artigo 490º desse Código da reclamação da soma de 28.884,57 € pelos autores, pelo que a lª instância não poderia ter condenado logo os recorrentes de preceito, mas sim incluir o assunto na base instrutória, prosseguindo assim o processo os seus precisos trâmites;
4. Tendo assim sido revogada a sentença da lª instância nessa parte, impõe-se inevitavelmente a sua renovação nessa medida, com a produção de prova e demais consabidos trâmites até final;
5. Sucede entretanto que assim inadequada e intempestivamente os recorrentes já pagaram essa importância aos autores, pelo que se impõe ainda decidir se, enquanto decorre a apontada renovação da instância, haverá lugar desde já à sua restituição pelos autores aos recorrentes ou, por razões de pura economia processual, se mantém a situação actual até ao trânsito final da sentença que vier a incidir sobre a instância desse modo renovada, para nessa altura se saber qual a dimensão e qual o sentido com que a questão foi resolvida.
Termina pedindo que a decisão em referência seja revogada, por infracção do n° 1 do artigo 156º do CPC, e seja substituída por outra que determine a normal prossecução da tramitação do processo com renovação da instância na parte imposta pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 13Dez2012 e decida ainda se a quantia já paga pelos recorrentes lhes é devolvida desde já ou estes têm de aguardar o trânsito da resolução final que venha a ser tomada sobre a matéria. 
   
Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. P. Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se essencialmente em saber:
- se o tribunal a quo violou o decidido no acórdão desta Relação de 13/12/2012 que revogou a sentença proferida em 1ª instância (nesta os réus tinham sido condenados no pagamento ao autor da quantia de € 28.884,57) e ordenou o prosseguimento dos autos;
- se o pagamento da quantia exequenda realizado pelos réus/executados no âmbito da execução que tinha por base aquela sentença da 1ª instância, determina a extinção da instância declarativa atinente ao pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 28.884,57 por inutilidade superveniente da lide;
- se haverá lugar desde já à restituição pelos autores de tal quantia aos réus/apelantes ou se se mantém a situação actual até ao trânsito final da sentença que vier a incidir sobre aquele pedido.
***
          III. Da questão de direito:
Os factos a considerar são os constantes do relatório que antecede.
Destes decorre que no despacho saneador, proferido dia 2/06/2011, conheceu-se de um dos pedidos formulados na p.i., tendo-se declarado nulo o contrato de mútuo celebrado entre o autor e os réus e se condenaram estes a pagarem àquele, a título de restituição, a quantia de €28.884,57.
Os réus interpuseram então recurso de apelação dessa sentença, o qual foi recebido, tendo-lhe sido atribuído efeito devolutivo.
Na pendência do mesmo, os autores instauraram execução contra os réus para pagamento da quantia supra referida, o que fizeram ao abrigo do artigo 47º, n.º 1, do CPC, onde se estatui que a sentença, ainda que não transitada em julgado, constitui título executivo se o recurso contra ela interposto tiver efeito devolutivo.
E, no âmbito daquela execução, os executados realizaram o pagamento voluntário judicial da quantia exequenda e das custas, tendo, por comunicação de 26/11/2012, a agente de execução informado o tribunal de tal e de que se encontrava extinta a execução, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 919º do CPC.
Esse pagamento não foi, porém, dado a conhecer a este Tribunal da Relação antes da prolação do acórdão que conheceu do recurso interposto da sentença dada à execução, que subiu em separado.
E, por acórdão desta Relação de 13/12/2012, foi decidido “conceder provimento parcial ao recurso na parte em que condenou os Réus a restituírem aos Autores a quantia de 28.884,57 euros, revogando nessa parte a decisão recorrida”, com fundamento no facto de não se encontrar assente por acordo, sendo, por isso, controvertida, a matéria de facto em que se fundou a decisão recorrida.
O acórdão impunha, assim, o prosseguimento da presente acção, com a elaboração da base instrutória e a realização de julgamento, para conhecimento do pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de €28.884,57.
Porém, o tribunal a quo, com fundamento no pagamento voluntário ocorrido no âmbito da acção executiva, proferiu a decisão sob recurso, na qual declarou extinta a instância atinente ao pedido de condenação dos réus no pagamento da aludida quantia, por inutilidade superveniente da lide.
Os recorrentes insurgem-se contra tal, porque entendem que, tendo a Relação determinado o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido, haveria que dar cumprimento a esta determinação do tribunal superior.

A questão está pois em saber se o tribunal a quo desrespeitou o caso julgado formado pelo acórdão desta Relação ao apreciar a repercussão na lide do pagamento judicial efectuado pelos réus aos autores no âmbito da acção executiva.
Nesta sede, importa reiterar que este facto (pagamento) não era do conhecimento do Tribunal da Relação aquando da prolação daquele acórdão, que, por isso mesmo, não foi considerado na decisão.
Nessa medida, trata-se de um facto superveniente.
Assim, o tribunal a quo conheceu de uma questão que não foi objecto de recurso e também não foi oficiosamente apreciada pelo Tribunal da Relação.
Não estava, por isso, o tribunal de 1ª instância inibido de conhecer da repercussão na lide daquele facto novo ocorrido no âmbito da acção executiva.
Deste modo, a questão que nuclearmente se coloca não é tanto o cumprimento do acórdão da Relação, mas sim saber se o pagamento voluntário ocorrido na execução importa ou não a inutilidade da lide atinente ao pedido de condenação dos réus no pagamento aos autores da quantia de € 28.884,57.
 E foi precisamente com base naquele pagamento que o tribunal a quo declarou extinta a instância atinente ao pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 28.884,57, por inutilidade superveniente da lide.
Terá agido de forma juridicamente correcta?

Vejamos:

A execução foi instaurada tendo como título executivo uma sentença, pendente de recurso.
Ora, estabelecia o art. 47º, n.ºs 3, 4 e 5, do CPC (antigo) que:
“3 - Enquanto a sentença estiver pendente de recurso, não pode o exequente ou qualquer credor ser pago sem prestar caução.
4 - Quando se execute sentença da qual haja sido interposto recurso com efeito meramente devolutivo, sem que a parte vencida haja requerido a atribuição do efeito suspensivo, nos termos do n.º 4 do artigo 692.º, nem a parte vencedora haja requerido a prestação de caução, nos termos do n.º 2 do artigo 693.º, o executado pode obter a suspensão da execução, mediante prestação de caução, aplicando-se, devidamente adaptado, o n.º 3 do artigo 818.º.
5 - Tendo havido condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 661.º, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte que seja líquida e do disposto no n.º 6 do artigo 805.º”
Daqui decorre que, “o acertamento da pretensão substantiva contido na sentença não transitada está condicionado ao subsequente trânsito, pelo que a execução que a toma por base é provisória por natureza” –  cfr. Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 1, pag. 95.
E que, na pendência do recurso da sentença dada à execução, o meio que o executado tem à sua disposição para a poder suspender é prestando caução.
Não ocorrendo tal, a execução segue os seus termos normais, não podendo, porém, o exequente ser pago sem prestar caução.
Significa isto que, durante a pendência do recurso, a execução normalmente não se extingue.
Essa extinção só opera com a decisão revogatória da sentença, porque então o título deixa de ser exequível.
Acontece, porém, que no caso em apreciação os réus/executados, ao invés de aguardarem a decisão do recurso, assumiram voluntariamente pagamento da quantia exequenda e das custas.
Essa atitude traduz, objectivamente, o reconhecimento (definitivo) da dívida exequenda.
Trata-se de uma situação similar àquela que ocorre quando o pagamento voluntário é feito extrajudicialmente na pendência do litígio. 
É certo que nas conclusões de recurso os recorrentes apelidam agora de inadequado e intempestivo o pagamento a que procederam.
Essa alegação não obsta porém a que se tivessem produzido os efeitos substantivos do facto: pagamento voluntário da quantia (exequenda) peticionada nos presentes autos de acção declarativa.
A ter existido da parte dos executados/réus uma situação de erro quanto à existência da dívida – ainda que seja difícil de conceber numa situação como a retratada nos autos -, poderão, quanto muito, os mesmos instaurar acção de restituição do indevido (enriquecimento sem causa), demonstrando aí o seu erro e a inexistência de causa da obrigação – vide Lebre de Freitas, “A Acção Executiva Depois da reforma da reforma” – 5ª edição, pag. 357.
Assim, o pagamento voluntário da quantia exequenda e das custas da execução, produziu automaticamente a extinção da execução, como, de resto, se previa no art. 919º, n.º 1 do (antigo) CPC, arrastando, forçosamente, o termo da instância executiva antes da decisão do recurso da sentença dada à execução.
E, segundo pensamos, se esta Relação tivesse tido conhecimento prévio daquele pagamento voluntário não teria conhecido do recurso da sentença, atenta a perda do seu objecto.
Mostrando-se extinta a execução, por facto diverso da revogação da sentença dada à execução, sem impugnação dos ora apelantes, carece de sentido chamar à colação o estatuído no art. 47º, do CPC

Por outra via, e como é sabido, a lide pode tornar-se inútil mesmo antes de qualquer decisão sobre o mérito da causa porque a utilidade se afere pela pretensão do demandante – art. 287º, al. e) do CPC antigo e 277º, al. e) do NCPC.
A inutilidade superveniente supõe assim a ocorrência de uma circunstância que notoriamente retire às partes o interesse em agir, aferido em função da necessidade de tutela judicial e da adequação do meio em curso.
E parece claro que o exemplo mais flagrante de inutilidade superveniente ocorre quando o fim pretendido com a demanda é alcançado, na pendência da causa.
Ora, em face do pagamento voluntário da quantia peticionada nos autos, a pretensão deduzida pelos autores mostra-se satisfeita, tendo, por isso, a lide ficado sem objecto, tornando inútil o prosseguimento do processo.

Improcede, assim, a apelação.
 
***

          V – Decisão
1. Pelo acima exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida;
2. Custas pelos apelantes.
3. Notifique.


Lisboa, 17 de Março de 2015

(Manuel Ribeiro Marques - Relator)
(Pedro Brighton (1º Adjunto)
(Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta)