Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
458/18.1PKLRS.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
ASSINATURA
QUEIXA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O auto de notícia de um crime não tem a força probatória que o art.º 169.º do CPP confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo; é tão só um documento intra-processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador.
II - Se um cidadão vai a uma unidade policial declarar que pretende procedimento criminal contra outro cidadão e vem embora sem lhe exigirem que assine um documento a formalizar tal declaração, nem sequer é posteriormente chamado ao processo para apor a sua assinatura, tem que fundadamente confiar que a queixa está devidamente apresentada.
III - O Estado que, através da polícia, recebe uma queixa sem exigir a assinatura do queixoso, não pode, posteriormente, por via de um tribunal, dizer que sem assinatura está extinto o procedimento criminal.
IV - Tem que ser protegida a legítima confiança do lesado na actuação do Estado, pois só assim se lhe pode reconhecer um mínimo de certeza e de segurança no direito que exerceu e nas expectativas jurídicas que lhe foram criadas.
(Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Loures, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi proferido o seguinte despacho:
“ Fls. 82 e ss. – Compulsados os presentes autos, constata-se que o arguido R. , encontra-se indiciado da prática dos seguintes factos:
“No dia 5 de Dezembro de 2018, cerca das 19.40 horas, MA. encontrava-se nas instalações da empresa RLRL – …, sitas na Rua …, em Montemor da qual o arguido é gerente. Naquela ocasião MA. foi interpelado por MG , mulher do arguido e gerente da empresa, sobre um serviço efectuado pelo mesmo, o qual não terá sido devidamente. MA. por não concordar com a observação que lhe foi feita, por MG, desentendeu-se com a mesma envolvendo-se numa discussão verbal. O arguido, que se encontrava no escritório da empresa, ao se aperceber da discussão deslocou-se ao local onde se encontra MA. dizendo-lhe “Pensas que estás a falar com quem?” e, de imediato desferiu um murro na face de MA. . Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, MA. sofreu alteração do seu estado de sensibilidade normal (dor), fratura dos ossos próprios do nariz, com ligeiro afundamento à esquerda. tendo necessidade de assistência médica e submissão a intervenção cirúrgica, originando um período de doença de 21 dias com incapacidade para o trabalho. O arguido actuou com intenção de molestar o corpo do ofendido, resultado que alcançou, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
Factos, estes, que levaram o Ministério Público a acusar o arguido:
“(…)em autoria material, na forma consumada:
A. Um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143, n.º 1, do Código Penal.”
Atento o cotejo dos autos, desde já e de modo a obstar à deslocação desnecessária dos intervenientes processuais, há que analisar se aqueles poderão prosseguir, nomeadamente, se o Ministério Público tem legitimidade para a sua prossecução.
Dos autos resulta que o arguido foi acusado pelo alegado, perpetrar de um crime de ofensa à integridade física simples, ocorrido em 5 de Dezembro de 2018, relativamente ao, então ofendido, ora assistente, MA. .
Com efeito, no auto de notícia de fls. 6 e 7, o ofendido MA. , em lado algum, menciona que deseja procedimento criminal contra o, alegado agressor, R. .
Pelo contrário, “o lesado foi questionado se desejava tratamento médico-hospitalar, tendo informado que se deslocaria pelos seus próprios meus” (cfr. fls. 7), tendo, ainda, declarado “que não pretendo beneficiar do Estatuto da Vítima previsto na Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro” (cfr. fls. 3-verso).
Em aditamento vem o agente RC informar que lhe teria sido “comunicado pelo lesado a vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos factos narrados no referido auto de Denúncia” (cfr. fls. 2), sendo certo que não consta, dos presentes autos, qualquer auto de denúncia, mas apenas o supramencionado auto de notícia.
Sendo certo, também, que somente o referido agente assina o aditamento, não tendo ocorrido qualquer confirmação, por escrito, por parte de MA. , nos 6 meses posteriores aos factos.
Sobre esta temática veja-se o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16/10/2013 (processo n.º 150/10.5PBCBR.P1, consultável em www.dgsi.pt.pt):
“I - Não obstante o seu conteúdo contender com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, a queixa, em si mesma, é exterior ao facto punível, aos seus pressupostos materiais, sendo unanimemente entendida como pressuposto ou condição de procedibilidade.
II – Nos crimes de natureza semi-pública e/ou de natureza particular, o tempestivo exercício do direito de queixa pelo respectivo titular constitui uma verdadeira condição de legitimação do Ministério para promover o processo, instaurando o inquérito e assim iniciando a investigação relativa aos factos que lhe foram transmitidos, sem prejuízo dos casos excepcionais legalmente previstos.
III – No procedimento por crimes que têm essa natureza, o conteúdo da queixa define o objecto da investigação, que só poderá ser ampliado com novos factos, cujo procedimento criminal também dependa de queixa, se entre estes e os iniciais se verificar conexão ou identidade substantiva, o mesmo é dizer, desde que, neste caso, se mantenha no âmbito da situação denunciada e de protecção do mesmo bem jurídico.
IV - A queixa pode considerar-se uma forma de denúncia, da qual, no entanto, se distingue porque enquanto esta é uma mera declaração de ciência (simples transmissão do facto com eventual relevância criminal a quem tem legitimidade para promover o processo penal), a queixa exige, também, uma manifestação de vontade (por parte do respectivo titular, normalmente o ofendido) especificamente dirigida a que o agente seja perseguido criminalmente.
V – Essa manifestação de vontade tem que dar a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto, podendo considerar-se como tal o pedido de intervenção no processo como assistente por parte do titular do direito de queixa formulado em momento imediatamente subsequente à verificação do facto” (sublinhados nossos).
Assim, constata-se que o ofendido MA. não apresentou queixa (no sentido de “uma manifestação de vontade (por parte do respectivo titular, normalmente o ofendido) especificamente dirigida a que o agente seja perseguido criminalmente”) contra o arguido, dentro dos 6 meses legalmente previstos (cfr. art. 115º, n.º 1, “a contrario”, do C.P.), sendo que tal só viria a ocorrer em 28 de Junho de 2019, perto de 1 mês após o mencionado prazo de 6 meses (cfr. fls. 30).
Assim, atendendo à natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física simples (cfr. art. 143º, n.º 2, do C.P.), na comprovada ausência de queixa atempada pelo respectiva titular (cfr. arts. 113º, n.º 1, e 115º, n.º 1, ambos do C.P.), o Ministério Público carece de legitimidade para deduzir acusação pública (cfr. arts. 48º e 49º, ambos do C.P.P.).
Ou seja, atento o facto de o ofendido não ter manifestado, inequívoca e tempestivamente, a intenção de que fosse instaurado procedimento criminal contra o arguido R. , impõe-se, desde já e como questão prévia, determinar a extinção do procedimento criminal que sobre o arguido impendia, por falta de legitimidade do Ministério Público (cfr. art. 49º, “a contrario” do C.P.P.).
Sem custas.
Fica prejudicada, nesta sede, a apreciação do pedido de indemnização civil, deduzido em fls. 95 e ss. dos presentes autos.
Notifique os diversos intervenientes processuais.
Oportunamente arquivem-se os autos”.
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso deste despacho, concluindo do seguinte modo:
“ 1. O presente recurso vem interposto do despacho proferido no dia 03 de Fevereiro de 2020, que determinou “a extinção do procedimento criminal” que sobre o arguido R.  impendia, relativo a um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, “por falta de legitimidade do Ministério Público”, na “comprovada ausência de queixa atempada pelo respectivo titular” (cfr. art.49º, “a contrario” do C.P.P).
2. No dia 05 de Dezembro de 2018, data da ocorrência dos factos, foi elaborado auto de notícia, ao qual foi atribuído o registo n. 1778/18LRS, constante de fls. 6 e 7 (sendo noticiada factualidade susceptível de integrar o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal), onde figura como lesado/ofendido MA.  e suspeito R. .
3. No dia 12 de Dezembro de 2018, foi efectuado um aditamento ao aludido auto de notícia, constante de fls. 2, sob a epígrafe “Aditamento nº 1”, onde pode ler-se: “Em aditamento aos autos com os números em epígrafe informo que na presente data foi-me comunicado pelo lesado a vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados no referido auto de denúncia. «…» O Auto de Notícia tem o registo número 1779/2018 da Esquadra de Loures. Foi notificado para Exame Médico Directo. Foi notificado nos termos do Artº 75 e 247º do CPP bem como do estatuto de vítima.”. (sublinhado nosso)
4. Este aditamento policial encontra-se assinado pelo ali denominado “adiante” RC e, por o lesado/ofendido MA.  ter manifestado que “seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados ”, pela Entidade Policial foi atribuído um número único de identificação de processo-crime (NUIPC), ao aludido “Aditamento nº 1”, que originou a abertura destes autos. E, diga-se, atenta a natureza semi-pública do ilícito aqui em causa, só assim se entende do porquê de só neste Aditamento ter sido atribuído um NUIPC pela Entidade Policial, e não antes.
5. Conforme resulta do teor de fls. 3 a 5 dos autos, o ofendido MA.  foi notificado para submissão a exame médico directo, no dia 13/12/2018, nos termos dos Artigos 75º e 247º do Código de Processo Penal (CPP), e foi-lhe atribuído o estatuto de vítima, ao abrigo da Lei n. 130/2015, de 04.09, sendo que, em lado algum dos autos, concretamente do teor de fls. 3 verso, consta que o ofendido tenha, objectivamente, declarado “não pretendo beneficiar do Estatuto de Vítima previsto na Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro”, atenta a padronização das notificações.
6. Embora, compulsados os autos, se verifique que não consta qualquer auto de queixa, nem uma manifestação formal do desejo de proceder criminalmente (no prazo de 6 meses previsto no art. 115º do Código Penal), tal não significa que, no caso concreto, o ofendido não tenha de forma tempestiva e inequívoca manifestado a sua vontade do exercício do seu direito de queixa, perante a entidade policial, pois que o fez.
7. No caso concreto dos autos, na ocasião, a Polícia de Segurança Pública (PSP) optou por realizar um aditamento ao auto de notícia relativo aos factos de 05/12/2018, juntando-o aos autos, pelo que não poderá o ofendido ser prejudicado por no mesmíssimo dia em que foi lavrado o aludido “Aditamento nº 1”, ou seja, no dia 12/12/2018, ter, subsequentemente, assinado todas as notificações que lhe foram dadas pelo Órgão de Policial Criminal e não ter sido elucidado, pela PSP, quanto a todos os formalismos legais para o procedimento criminal.
8. Não podemos ignorar que foi o próprio ofendido MA.  quem tomou a iniciativa de se dirigir às autoridades policiais, que não advertiram devidamente o ofendido dos formalismos exigidos e não formalizaram devidamente o que lhes foi comunicado (pois deveriam ter pelo menos recolhido a assinatura do ofendido no aditamento, já que a hora e minutos que constam apostas no teor do “Aditamento nº 1” e notificações legais que se lhe seguem, assinadas pelo ofendido, fazem-nos acreditar que o ofendido se dirigiu à Esquadra da PSP e aí comunicou a sua “vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados”).
9. Neste aspecto, impõe-se evidenciar que acompanhamos a opinião da Doutrina e Jurisprudência que entende que a vontade de proceder criminalmente não tem de ser transposta em auto formal com a designação de “queixa” nem constar, na demonstração dessa vontade, a expressão sacramental de “apresenta queixa” ou “deseja procedimento criminal”.
10. No que se refere à forma da queixa o Código Penal é omisso, devendo entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto.
11. Com efeito, os artigos 113.º e 115º do Código Penal e 48º e 49º do Código de Processo Penal devem ser entendidos no sentido em que a exigência de queixa nos casos de crime semipúblico não se reconduz à mera exigência de expressão formal e sacralizada mas resultará de uma vontade evidente, que poderá ser expressa através do comportamento do ofendido que, após, a elaboração do auto de notícia, se dirige à esquadra, e aqui dá a conhecer a sua “vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados”.
12. De acordo com o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n. 4/2012, publicado in D.R. n. 98, Série I, de 2012/05/21, “o prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa, nos termos do artigo 115º, n.º 1, do Código Penal, termina às 24h do dia que corresponda, no 6º mês seguinte, ao dia em que o titular desse direito tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores; mas, se nesse último mês não existir dia correspondente, o prazo finda às 24h do último dia desse mês”.
13. Assim, o prazo para exercer o direito de queixa, in casu, extinguia-se em 05.06.2019.
14. Entendeu-se na decisão recorrida que “o ofendido MA. não apresentou queixa (no sentido de “uma manifestação de vontade (por parte do respectivo titular, normalmente o ofendido) especificamente dirigida a que o agente seja perseguido criminalmente”) contra o arguido, dentro dos 6 meses legalmente previstos (cfr. art. 115º, n.º 1, “a contrario”, do C.P.), sendo que tal só viria a ocorrer em 28 de Junho de 2019, perto de 1 mês após o mencionado prazo de 6 meses (cfr. fls. 30).”
15. Porém, dos autos colhem-se diversas manifestações inequívocas da vontade do ofendido nesse sentido, ou seja, existiu tempestivamente “manifestação de vontade especificamente dirigida a que o agente seja perseguido criminalmente”.
16. Nestes autos, o que despoletou o procedimento criminal foi o teor do “Aditamento nº 1”, elaborado pela entidade policial, em aditamento ao teor do Auto de Notícia com o registo número 1779/2018 elaborado pela Esquadra de Loures, no dia 12.12.2018, cerca das 10h15m, após iniciativa do ofendido.
17. Foram elaborados um auto de notícia e respectivo aditamento policial, pelo autuante e “aditante”, que o fizeram por imposição legal e no exercício das suas funções, descrevendo os factos que lhe foram descritos pelo ofendido, bem como o desejo manifestado de procedimento criminal contra o denunciado/suspeito, com a inserção da frase “foi-me comunicado pelo lesado a vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados no referido auto de denúncia”.
18. O auto de notícia e seu aditamento não estão assinados, nem tinham de estar assinados pelo ofendido, que apenas tem de assinar as declarações e as notificações de que é alvo, pois quem tinha o dever de assinar o auto e seus aditamentos, era a entidade autuante, e fê-lo.
19. Até prova em contrário, o que consta do auto de notícia e dos aditamentos policiais a este aditados faz fê em juízo, concluindo-se que do complemento dos dois documentos - auto de notícia e seu aditamento -, consta o relato dos factos ocorridos e consta também que o lesado/ofendido pretende desejar procedimento criminal, pelo que foi notificado do preceituado nos artigos 75.º e 247.º, ambos do Código de Processo Penal, em acto seguido à sua pretensão de procedimento criminal contra o denunciado/suspeito.
20. O que consta do teor do “Aditamento nº 1”, conjugado com o teor do auto de notícia lavrado consubstancia o pressuposto do artigo 49.º, n. 1º, do Código de Processo Penal, já que a manifestação de vontade é inequivocamente de querer procedimento criminal, naquele momento, ou seja, a 12.12.2018.
21. Tanto assim é, que foi dado cumprimento aos artigos 75.º e 247.º, ambos do Código de Processo Penal.
22. Acresce que, a fls. 10, foi junto o auto de exame directo respeitante ao ofendido MA.  e, a fls. 12 a 16, foi junta pelo ofendido documentação hospitalar referente ao tratamento médico que recebeu junto do Hospital Beatriz Ângelo, onde deu entrada no dia 05/12/2018, assim corroborando a informação que já havia dado a conhecer, por altura da elaboração do teor do “Aditamento nº 1”.
23. Na sequência da queixa, o ofendido compareceu a exame médico, cuja junção foi determinada pelo Ministério Público – cfr. fls. 8 -, e igualmente foi determinada a remessa dos autos ao OPC a fim de realizar as diligências de investigação.
24. Já no âmbito das referidas diligências, no dia 28 de Junho de 2019, a fls. 30 a 32 dos autos, MA. , na qualidade de ofendido, prestou as suas declarações nos autos, começando por declarar que “Confirma os factos constantes dos autos porquanto a matéria ali descrita corresponde à expressão da verdade declarando manter o desejo de procedimento criminal contra o denunciado.”, e, diga-se, só se pode “manter” o que já se iniciou.
25. A fls. 60 e 62, veio o ofendido MA. , nos termos do disposto no n. 2.º, do artigo 75º do Código de Processo Penal manifestar a sua intenção de deduzir pedido de indemnização civil e requerer a sua constituição como assistente nos autos, intervenção que veio a ser admitida por despacho judicial, proferido a fls. 77 dos autos, uma vez que se encontravam preenchidos todos os requisitos para os devidos efeitos legais, tendo o mesmo transitado em julgado.
26. Após ser notificado do encerramento da fase de inquérito, MA. , na qualidade de assistente, deduziu pedido de indemnização cível.
27. Assim, do teor do “Aditamento nº 1”, do auto de notícia, dos actos realizados pelo ofendido e das declarações que este prestou, podemos concluir pela existência de manifestação de vontade inequívoca por parte do mesmo para procedimento criminal.
28. A este propósito, num caso similar ao dos autos, cita-se o Acórdão proferido pela 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa – Proc. nº 371/15.4PKLRS do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Loures, Juízo Local Criminal, J4, de onde se retira: “Ora, sendo a queixa (ou a participação dos factos, entendida no sentido de se pretender a perseguição penal do seu autor) ela funciona nos crimes de natureza semipública (ou particular) como condição objectiva de procedibilidade e da perseguibilidade penal, podemos concluir que a “ofendida” manifestou de forma inequívoca, o desejo de responsabilização e perseguição criminal do arguido pelos factos praticados, através do auto de notícia, bem como das referidas declarações prestadas e constituição de assistente.” E, assim sendo, “o Ministério Público tinha legitimidade para promover o processo e deduzir acusação pela prática do crime de ofensa à integridade física simples p.p pelo art.º 143.º, n.º 1 do C.P.”, pelo que “a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que não considere extinto o procedimento criminal, designado data para audiência”, assim promovendo o prosseguimento dos autos.
29. Efectivamente, dos autos consta a manifestação de vontade do ofendido em proceder criminalmente contra o arguido, a qual foi atempadamente apresentada nos termos dos artigos 48º do Código Processo Penal e 115º do Código Penal.
30. A declaração verbal que o ofendido fez e deu a conhecer ao agente “adiante” RC , lavrada no teor do aludido “Aditamento nº 1”, consubstancia uma inequívoca manifestação da sua vontade do exercício do seu direito de queixa, reforçada com as notificações legais que lhe foram feitas, pela entidade policial, bem como pela sua presença no exame médico, para o qual havia sido notificado, após ter exercido tempestivamente o seu direito de queixa.
31. Tais actos são entendidos como conducentes à prática efectiva, e tempestiva, do exercício do direito de queixa.
32. Salvo o devido respeito quanto à opinião sufragada pelo Tribunal a quo, os actos praticados por MA. , e acima enumerados, demonstram sem qualquer dúvida, a apresentação tempestiva de queixa – em data muito anterior a 28 de Junho de 2019, data em que o ofendido foi inquirido, pela primeira vez, no inquérito – e a intenção inequívoca de que tenha lugar o competente procedimento criminal contra o arguido.
33. Pelo que, o Tribunal a quo, fez uma errada subsunção dos factos ao direito aplicável violando o disposto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal e os artigos 48.º e 49.º, ambos do Código de Processo Penal, já que a “queixa” necessária à acusação proferida nos autos foi tempestivamente deduzida.
34. Impondo-se em consequência, a revogação do despacho proferido, concluindo-se pela apresentação tempestiva e legalmente válida da queixa por parte do ofendido/assistente MA. , e pela validade de todos os actos dela dependentes, com as legais consequências, nomeadamente ordenando-se a prossecução dos presentes autos, com a designação de data e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento”.
O arguido apresentou resposta, oferecendo as seguintes conclusões:
“ 1.ª Perante os elementos contidos nos autos, e face à fundamentação da douta decisão recorrida, verifica-se que a mesma não merece qualquer reparo, a qual está em absoluta conformidade com a Ordem Jurídica.
2.ª O douto Tribunal “a quo” pronunciou-se devidamente sobre a questão suscitada pelo recorrente no presente recurso.
3.ª Deve ser mantido o douto Despacho recorrido, pois que não houve qualquer ofensa de qualquer preceito de direito substantivo.
4.ª O Tribunal “a quo” julgou de harmonia com a lei e com os elementos contidos nos autos”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
A questão em apreciação neste recurso é a de saber se o ofendido apresentou queixa criminal contra o arguido, ou seja, se dos autos consta a manifestação de vontade do ofendido em proceder criminalmente contra o arguido.
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III – Fundamentação
O tribunal a quo prolatou despacho a determinar a extinção do procedimento criminal contra o arguido R. , pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas – art.º 143.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
Não sendo o ofendido MA.  agente das forças de segurança, o crime em apreciação depende de queixa (semi-público).
Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele – art.º 49.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Penal.
Não havendo queixa no crime de ofensa à integridade física simples (não sendo o ofendido agentes das forças de segurança), o Ministério Público (enquanto órgão do Estado a quem compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade) carece de legitimidade para promover o processo penal – art.º 48.º, do CPP.
A noção de queixa tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto; a queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia; na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda uma manifestação de vontade  de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente” -  CPP Comentado, 2014, António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Pereira Madeira e Henriques da Graça, pg. 181, anotação ao art.º 49.º.
E, como bem refere o Ac. da Relação de Coimbra de 07.06.2017, processo n.º 145/14.0TAMGR.C1, a queixa não está sujeita a qualquer forma ou ‘dizeres’ especiais, e muito menos tem o queixoso que nela revelar conhecimentos jurídico-penais designadamente, através de uma correcta qualificação do facto por si denunciado; a lei apenas exige, para este efeito, que através de um acto formal consistente em dar conhecimento do facto ao Ministério Público, se revele a vontade inequívoca do queixoso em que o facto, o «pedaço de vida» denunciado seja objecto de procedimento.
Consta o seguinte do despacho recorrido:
Com efeito, no auto de notícia de fls. 6 e 7, o ofendido MA. , em lado algum, menciona que deseja procedimento criminal contra o, alegado agressor, R. .
(…)
Em aditamento vem o agente RC informar que lhe teria sido “comunicado pelo lesado a vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos factos narrados no referido auto de Denúncia” (cfr. fls. 2), sendo certo que não consta, dos presentes autos, qualquer auto de denúncia, mas apenas o supramencionado auto de notícia.
Sendo certo, também, que somente o referido agente assina o aditamento, não tendo ocorrido qualquer confirmação, por escrito, por parte de MA. , nos 6 meses posteriores aos factos”.
No aditamento de fls. 2, o agente da PSP Rui Filipe Figueiredo Cardoso, informa que “ na presente data foi-me comunicado pelo lesado a vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados no referido auto de Denúncia”. Este aditamento é 12.12.2018, 7 dias depois do auto de notícia relativo aos factos.
Ainda no referido aditamento, o agente policial diz ter notificado (o lesado) nos termos do Artº 75 e 247º do CPP bem como do estatuto de vítima. E junta cópias (embora sem assinaturas) de tais termos de notificação.
O auto de notícia de um crime não tem a força probatória que o art.º 169.º do CPP confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo. É tão só um documento intra-processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador.
In casu, o agente que o lavrou fez constar do auto de notícia (do qual o aditamento é parte integrante) que o lesado lhe comunicou a vontade que seja promovido o procedimento criminal contra o suspeito pelos fatos narrados no referido auto de Denúncia. Ora, se é verdade que relativamente aos factos que consubstanciam o crime é reduzido o valor probatório do auto de notícia, o mesmo não se poderá dizer desta declaração (feita constar pelo agente policial) que o ofendido lhe comunicou a vontade de ser promovido procedimento criminal. Não havendo nos autos qualquer elemento que fundadamente ponha em causa a veracidade esta declaração, temos que tê-la como verdadeira. Até porque é complementada pelas notificações ao ofendido para os efeitos dos artigos 75.º e 247.º e do conhecimento do estatuto de vítima.
Mas é certo que o ofendido não assina qualquer documento a manifestar a vontade de procedimento criminal contra o suspeito, isto é, a apresentar queixa. Não parece, contudo, que desta falta de assinatura se possa concluir como o tribunal a quo. 
Se considerarmos – como consideramos – que inexiste qualquer elemento que fundadamente ponha em causa que o ofendido manifestou junto do agente policial a vontade de procedimento criminal, temos que convocar o princípio da confiança para retirar qualquer efeito à falta da assinatura do ofendido.
O principio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas – Ac. STJ de 27.03.2007, processo n.º 07A760, dgsi.pt.
A exigência da protecção da confiança é também uma decorrência do principio da segurança jurídica, imanente ao principio do Estado de Direito. Contudo, a aplicação do principio da protecção da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se ter de estar em face de uma confiança "legitima" o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, não podendo invocar-se a violação do principio da confiança quando este radique num acto anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade perceptível por aquele que pretenda invocar em seu favor o referido principio – Ac. STA de 18.06.2003, processo n.º 01188/02, dgsi.pt.
Ora, se um cidadão vai a uma unidade policial declarar que pretende procedimento criminal contra outro cidadão e vem embora sem lhe exigirem que assine um documento a formalizar tal declaração, nem sequer é posteriormente chamado ao processo para apor a sua assinatura, tem que fundadamente confiar que a queixa está devidamente apresentada.
O Estado que, através da polícia, recebe uma queixa sem exigir a assinatura do queixoso, não pode, posteriormente, por via de um tribunal, dizer que sem assinatura está extinto o procedimento criminal.
Tem que ser protegida a legítima confiança do ofendido MA. na actuação do Estado, pois só assim se lhe pode reconhecer um mínimo de certeza e de segurança no direito que exerceu e nas expectativas jurídicas que lhe foram criadas.
Por conseguinte, aqui chegados, concluímos: (i) o ofendido foi à polícia apresentar queixa crime contra o suspeito, pois a comunicação que fez na unidade policial constitui uma autêntica manifestação de procedimento criminal; (ii) não lhe tendo sido exigida (na polícia, nem posteriormente no MP) a assinatura no documento que titula tal manifestação de vontade, é legítima a confiança do ofendido que a queixa está devidamente apresentada; (iii) não pode o tribunal a quo concluir que sem assinatura não há queixa e que, por isso, está extinto o procedimento criminal.
Assim, face ao exposto, tem que proceder o recurso. Por ter havido queixa, o Ministério Público tem legitimidade para promover o procedimento criminal a que se referem os autos.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, por via disso, revogam o despacho recorrido (que determinou a extinção do procedimento criminal por falta de legitimidade do MP).
Sem custas.

Lisboa, 10 de Novembro de 2020
Paulo Barreto
Alda Tomé Casimiro