Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
80/10.0YXLSB.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: LOCAÇÃO
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DANO
CLÁUSULA PENAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - A locação ‘clássica’ está construída no pressuposto de que o bem locado é susceptível de uma utilização prolongada e que essa utilização pode ser feita por períodos e pessoas sucessivas; terminado o período de cedência do uso da coisa ela continua a ser utilizável e o seu proprietário pode continuar a tirar aproveitamento económico dessa utilização.
II- Porém, nas hodiernas condições do mercado de equipamentos, existem certos bens que, embora duradouros, não só o seu tempo de utilização é curto como, independentemente dele, o seu valor económico se esgota com o início de utilização. Ou seja, o seu tempo de vida útil é curto, ficando obsoletos rapidamente, e não são susceptíveis de rentabilidade económica enquanto bens em segunda mão.
III- Relativamente a esses bens, a cedência temporária do uso normalmente não só coincide com o período de vida útil do bem como também é causa de imediata desvalorização da coisa. Uma vez cedido o uso da coisa ela passa a ser coisa usada insusceptível de outra utilização económica que não a consubstanciada naquela cedência; e esgotado o período da cedência a coisa está obsoleta.
IV - Neste tipo de bens não releva a perspectiva de utilização posterior do bem para além do período contratual, ao contrário do que ocorre com os contratos de financiamento de aquisições de bens de longa duração (leasing, ALD), os quais inserem cláusulas ou negócios dependentes que prevêem as condições de transferência da propriedade no final do contrato para o utilizador do bem.
V- Nos contratos referidos em III, visa-se tão só possibilitar a utilização de um bem pelo período da sua vida útil, sem necessidade do investimento inicial da sua aquisição, que é efectuado por outrem, substituído pelo pagamento fraccionado daquele encargo ao longo do período de utilização.
VI- Porque é esse o sentido económico dos contratos referidos em III, logo a partes espelham nele o programa contratual quando estipulam que o bem é adquirido pelo locador no interesse do locatário, após indicação deste do bem e do fornecedor, e que o locatário se obriga a pagar (no prazo de 4 anos, tido como o de vida útil do bem e correspondente ao de vigência do contrato) os custos incorridos pelo locador com a aquisição do bem e a execução do contrato e os lucros esperados.
VII- No caso de extinção antecipada do contrato, como seja a resolução por incumprimento do locatário, o prejuízo do locador consiste no que gastou na aquisição do bem ainda não amortizado e nos lucros cessantes; o que corresponde, aliás, às prestações vincendas do contrato resolvido.
VIII- E assim sendo a cláusula penal estabelecida e que estabelece deverem ser pagos todos os alugueres até ao fim do contrato não é superior aos danos causados, antes lhe correspondendo, porque desproporcionada aos danos a ressarcir (mesmo no entendimento lato adoptado na sentença recorrida).
IX – Em face do referido em VIII, a cláusula penal em causa não é nula.
AS
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A ( ….,SA) intentou acção declarativa sob a forma de processo sumário contra B ( ….DECORAÇÃO, UNIPESSOAL Ldª ) pedindo se julgue válida a resolução do contrato de locação de equipamento telefónico que celebrou com a Ré e se condene a mesma a pagar-lhe € 1.008 de alugueres vencidos e não pagos, € 83,50 de despesas administrativas, € 5.044 de alugueres antecipadamente vencidos com a resolução, juros vencidos e vincendos e, ainda, a restituir os bens locados e a pagar indemnização pela mora nessa entrega e pela deterioração dos mesmos.
Regularmente citada a Ré não contestou.
A final veio a ser proferida sentença em que, depois de qualificar o contrato como de ALD e de o mesmo conter cláusulas contratuais gerais, discorrer sobre a oficiosidade e os critérios do conhecimento da validade de tais cláusulas e considerar nulas as cláusulas 17/1 e 17/4 do contrato, julgou válida a resolução do contrato e condenou a Ré a pagar á Autora € 673,93 de rendas vencidas e não pagas, € 85,50 de despesas administrativas, juros vencidos e vincendos sobre tais quantias, a restituir os bens locados e a pagar indemnização pela eventual deterioração dos mesmos, absolvendo do demais pedido.
Inconformado, apelou a A. concluindo, em síntese e tanto quanto se depreende do arrazoado das suas prolixas alegações e conclusões, pela nulidade da sentença e por erro de julgamento.
Não houve contra alegação.
II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, desde logo importa anotar que, não tendo sido impugnada a parte da sentença que julgou procedente parte do pedido, essa transitou em julgado.
Subsiste apenas em discussão a parte da sentença que absolveu do pedido.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
- da nulidade da sentença;
- da validade das cláusulas 17/ 1 e 4.
III – Fundamentos de Facto
A factualidade relevante é, conforme reconhecido na sentença recorrida, constituída pelos factos alegados na petição inicial, para a qual se remete.
IV – Da Nulidade
Aponta as recorrentes duas causas de nulidade da sentença: ter conhecido oficiosamente da nulidade das apontadas cláusulas e não ter conhecido do pedido indemnizatório pela não entrega dos bens locados.
A apreciação do carácter abusivo das cláusulas contratuais gerais é de natureza oficiosa, conforme tem sido recorrente afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (Cf. acórdãos C-240/98, de 27JUN200; C-473/00, de 21NOV2002;C-243/08, de 4JUN2009; C-40/08, de 6OUT2009; e C- 137/08, de 9NOV2010), pelo que não ocorre aí qualquer nulidade.
E também se não verifica a invocada omissão de pronúncia quanto ao pedido indemnizatório pela não entrega dos bens locados porquanto é manifesto ter-se o tribunal pronunciado sobre o mesmo ao decretar a absolvição da Ré; coisa diferente é saber se o fez com acerto.
V – Fundamentos de Direito
Vem indisputado nos autos que as cláusulas constantes das condições gerais do contrato em causa nos autos se encontram sujeitas ao regime das cláusulas contratuais gerais do DL 446/85, 25OUT.
Dispõe esse diploma serem proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, as cláusulas que consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir (artº 19º, al. c)).
E invocando essa disposição a sentença recorrida declarou a nulidade das seguintes cláusulas:
17.
1. Tendo em atenção que o Locador adquiriu o bem locado para benefício do Locatário, caso o Locador exerça o seu direito de cessação sem aviso prévio ou caso o Locatário cesse o contrato de acordo com a secção 13, o Locador poderá exigir o pagamento de todos os alugueres até ao fim do contrato (…).
(…)
4. Caso o Locatário não tenha devolvido o bem locado violando as suas obrigações de acordo com o nº 2, apesar da solicitação do Locador, deverá pagar a partir da data do termo total da locação e adicionalmente à taxa normal de locação, 1/30 do valor de qualquer aluguer mensal da locação acordada para a duração do contrato por cada dia adicional de retenção.
(…)
Para tal considerar a sentença recorrida partiu do entendimento que para que a desproporção entre a cláusula penal e o dano se verifique não é necessário uma desproporção sensível e flagrante bastando que a pena predisposta seja superior aos normalmente prováveis danos causados; constatando, de seguida, que essa superioridade se verificava em ambos os casos. No primeiro porquanto o recebimento da totalidade das prestações vincendas em acréscimo às prestações vencidas e restituição dos bens seria arrecadar benefício desproporcionado ao seu prejuízo; no segundo porquanto o dano sofrido com o retardamento da entrega seria menor, dada a natureza perecível ou de grande desvalorização dos bens, do que o montante correspondente ao dobro da renda fixada no contrato (que pressupõe a amortização do bem).
Na apreciação da questão haverá, antes de mais, de atentar no quadro negocial padronizado resultante dos objectivos visados pelas partes com o programa contratual estabelecido (cf. artº 19º e 16º do DL 446/85), “em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objecto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato” (cf. artº 4º, nº 1, da Directiva 13/93).
A locação ‘clássica’ está construída no pressuposto de que o bem locado é susceptível de uma utilização prolongada e que essa utilização pode ser feita por períodos e pessoas sucessivas; terminado o período de cedência do uso da coisa ela continua a ser utilizável e o seu proprietário pode continuar a tirar aproveitamento económico dessa utilização.
Ocorre, porém, que nas hodiernas condições do mercado de equipamentos, existem certos bens que, embora duradouros, não só o seu tempo de utilização é curto como, independentemente dele, o seu valor económico se esgota com o início de utilização. Ou seja, o seu tempo de vida útil é curto, ficando obsoletos rapidamente, e não são susceptíveis de rentabilidade económica enquanto bens em segunda mão.
Relativamente a esses bens, a cedência temporária do uso normalmente não só coincide com o período de vida útil do bem como também é causa de imediata desvalorização da coisa. Uma vez cedido o uso da coisa ela passa a ser coisa usada insusceptível de outra utilização económica que não a consubstanciada naquela cedência; e esgotado o período da cedência a coisa está obsoleta.
Neste tipo de bens não releva a perspectiva de utilização posterior do bem para além do período contratual, ao contrário do que ocorre com os contratos de financiamento de aquisições de bens de longa duração (leasing, ALD), os quais inserem cláusulas ou negócios dependentes que prevêem as condições de transferência da propriedade no final do contrato para o utilizador do bem.
O que se visa com o contrato em causa nos autos é possibilitar a utilização de um bem pelo período da sua vida útil, sem necessidade do investimento inicial da sua aquisição, que é efectuado por outrem, substituído pelo pagamento fraccionado daquele encargo ao longo do período de utilização.
Porque é esse o sentido económico do contrato logo a partes espelham esse programa contratual na cláusula primeira das condições gerais quando estipulam que o bem é adquirido pelo locador no interesse do locatário, após indicação deste do bem e do fornecedor, e que o locatário se obriga a pagar (no prazo de 4 anos, tido como o de vida útil do bem e correspondente ao de vigência do contrato) os custos incorridos pelo locador com a aquisição do bem e a execução do contrato e os lucros esperados.
No caso de extinção antecipada do contrato, como seja a resolução por incumprimento do locatário, o prejuízo do locador consiste no que gastou na aquisição do bem ainda não amortizado e nos lucros cessantes; o que corresponde, aliás, às prestações vincendas do contrato resolvido.
E assim sendo a cláusula penal estabelecida na cláusula 17/1 acima referida que estabelece deverem ser pagos todos os alugueres até ao fim do contrato não é superior aos danos causados, antes lhe correspondendo, não sendo desproporcionada aos danos a ressarcir (mesmo no entendimento lato adoptado na sentença recorrida).
Conclui-se, pois, pela procedência da apelação nesta parte.
Embora o que seja devido se limite ao montante da prestação propriamente dita uma vez que tratando-se agora de indemnização é insusceptível de tributação em IVA por não estarmos perante uma transmissão de bens (cf. artigos 1º e 3º do CIVA).
Na esteira do que vem dito o atraso na restituição do bem locado não causa prejuízo económico de relevo uma vez que o bem é insusceptível de reutilização; o prejuízo daí decorrente será apenas o da ausência de apreensão do bem e de um eventual aproveitamento como ‘bem em fim de vida’ o qual, como é evidente, será muito inferior ao valor correspondente ao dobro do aluguer convencionado (o qual se encontra calculado em termos de amortização total do bem, encargos de execução do contrato e lucro esperado), pelo que, aí sim, se encontra uma desproporção entre tal prejuízo e o estabelecido na cláusula 17/4, sendo de confirmar o decidido na 1ª instância.

VI – Decisão
Termos em que se decide:
- declarar não padecer a sentença recorrida, na parte ainda não transitada, de nulidade;
- na parcial procedência da apelação, alterar a parte ainda não transitada da sentença recorrida e, em consequência, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia (entretanto corrigida) de € 4.483,52, acrescida de juros de mora à taxa legal para transacções comerciais acrescida de 8%, desde 29OUT2009 até integral pagamento, mantendo a absolvição do demais pedido.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção de 5% para a Autora e 95% para a Ré.

Lisboa, 15 de Maio de 2012

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga