Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
418/18.2PKLRS-A.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - A perda de objetos, não é uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem um efeito da condenação, porque não depende da existência de condenação, nem uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente.
- A perda de objetos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção pelo que temos entendido que, tendo a sentença omitido qualquer referência ao destino dos bens apreendidos, essa questão possa ser decidida por despacho posterior
- Se a sentença final proferida sobre o objeto do processo, confirmada por douto acórdão deste Tribunal da Relação, não emitiu pronúncia expressa sobre o destino do veículo automóvel em causa, não se formou caso julgado sobre essa questão pois, para a existência de caso julgado é indispensável a existência de uma decisão, de um julgamento, com a respetiva fundamentação.
- Os perigos referidos no art.º 109º CP  são os relativos ao objeto e não à pessoa do agente do crime.
- Se, no caso, está em causa um vulgar veículo automóvel, sem que se tenha provado ter sido introduzida nele qualquer alteração posterior à sua aprovação para circulação, por isso não estando demonstrado que o mesmo crie os perigos ou o risco previstos naquele art.109º CP, não se verificam os requisitos legais exigidos para a declaração de perdimento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Abreviado nº418/18.2PKLRS, da Comarca de Lisboa Norte (Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - Juiz 2), em que é arguido AP , foi proferida sentença em 16-05-2019, decidindo:
“…
Pelo exposto, julgo a acusação parcialmente procedente e, consequentemente:
- Absolvo o arguido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez na forma agravada, p. e p. pelo artigo 294, n.º 1 do CP.
- Condeno o arguido, AP , como autor material, pela prática em 11/11/2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensos na sua execução pelo período de 3 (três) anos, suspensão esta que se sujeita às seguintes regras de conduta – artigos 50º e 52º do CP:
1) Continuar a efectuar tratamento médico para a sua dependência alcoólica, durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, disso fazendo prova nos autos – artigo 52º nº 3 do CP;
2) Efectuar o programa "STOP" ministrado pela DGRSP nos termos definidos por estes serviços, durante o prazo da suspensão da execução da pena de prisão, disso fazendo prova nos autos - artigo 52º n.º 1, alínea b) do CP;
3) Não conduzir qualquer veículo a motor durante o prazo da suspensão da execução da pena de prisão - artigo 52º, nº 1 alínea c) do CP;
4) Não ter em seu poder qualquer veículo a motor, durante o prazo da suspensão da execução da pena de prisão – artigo 52º, n.º 2, alínea f) do CP;
5) Não exercer a profissão de taxista nem efectuar serviços como taxista – artigo 52º, n.º2 alínea a) do CP;
- Condeno, ainda, o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de todas as categorias, pelo período de 3 (três) anos, prazo coincidente com o período da suspensão da execução da pena de prisão.
- …
Nos termos do artigo 178º do CPP e dado que o veículo automóvel de matrícula 94-CB-43 serviu para a prática do crime pelo qual o arguido vai condenado, determino a sua apreensão, desde já determinando que se solicite à PSP a respectiva apreensão com expressa menção de que o veículo deve ser levado para instalações próprias não podendo o arguido nem ninguém da sua confiança ser constituído como fiel depositário do mesmo.
De forma a se poder perceber se o veículo ora apreendido poderá ser perdido a favor do Estado nos termos do art. 109º do CP ou se, pelo contrário, deverá ter lugar a aplicação do mecanismo previsto no art. 110º do mesmo diploma, diligencie a secção pela realização das habituais pesquisas com vista a apurar se o veículo é propriedade do arguido ou se tem reserva de propriedade a favor de terceiro.
….”.
O arguido interpôs recurso desta sentença, não provido por douto acórdão deste Tribunal da Relação de 19nov.19.
Por despacho de 2 de novembro de 2020, a Mma Juiz decidiu:
“…
Fls. 223:
Porque a perda da viatura em causa já decorria do texto da própria sentença, em segmento que não foi sequer colocado em causa no recurso da decisão condenatória interposto pelo arguido, declaro a mesma perdida a favor do estado, ao abrigo do disposto no art.109, n.º 1 do CPP.
…”.
2. Deste despacho de 2 de novembro de 2020 recorre o arguido, motivando o recurso com as seguintes conclusões:
a) Atento o exposto e, sempre com o devido e máximo respeito, somos do parecer que o douto despacho violou o princípio da extinção do poder jurisdicional, conforme disposto nos Artigos 613.° e 619.° do CPC, aplicados por força do art.° 4.° do CPP;
b) Deste modo, verifica-se no douto despacho recorrido, salvo todo o devido respeito, não permitia condenar o Arguido, ora Recorrente, uma vez que, conforme explanado não podem ser declarados bens perdidos a favor do Estado em despacho proferido após a sentença;
c) Assim, deverá ser revogada a presente decisão e, em consequência, ser ordenada a restituição da viatura ao Recorrente;
d) Atento tudo o exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso, como se afigura de inteira justiça.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser dado pleno provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine a restituição da viatura ao Recorrente
3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, tendo respondido o Ministério Público, concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta, aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância e pronunciou-se pelo não provimento do recurso, a que respondeu o arguido reafirmando o alegado no recurso.
5. Realizou-se a conferência.
6. O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se existe fundamento para declarar perdida a viatura apreendida nos autos.
*    
IIº 1. Alega o recorrente que o despacho recorrido, declarando a viatura identificada nos autos perdida a favor do Estado, foi proferido depois da sentença quando já se tinha esgotado o poder jurisdicional do tribunal, em violação do disposto nos arts.613 e 619 do CPC, aplicados por força do art.4, do CPP.
Em relação aos requisitos da sentença, o art.374, nº3, al.c, CPP, prevê que termina com o dispositivo que contém, além do mais, a indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime.
A falta dessa indicação, porém, não é cominada pela lei como nulidade (art.379, nº1, al.a, CPP), constituindo mera irregularidade que, por não afetar a decisão do objeto do processo, não determina a invalidade da sentença.
Por outro lado, como refere o Ac. desta Secção de 01-02-2011, Relator Des. Margarida Blasco (acessível em www.dgsi.pt) "A perda de objetos, não é uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem um efeito da condenação, porque não depende da existência de condenação, nem uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente; IIº A perda de objetos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção ...".
Assim, temos entendido que, tendo a sentença omitido qualquer referência ao destino dos bens apreendidos, essa questão possa ser decidida por despacho posterior[1].
No caso, na sentença condenatória, a Mma Juiz abordou a questão do perdimento do veículo conduzido pelo arguido, mas é seguro que não foi proferida decisão sobre essa questão.
Como estatui o art. 621, do CPC “Alcance do caso julgado”,A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga…”.
No caso, a sentença final proferida sobre o objeto do processo, confirmada por douto acórdão deste Tribunal da Relação, não emitiu pronúncia expressa sobre o destino do veículo automóvel em causa, razão por que não se formou caso julgado sobre essa questão pois, para a existência de caso julgado, como ensina o Prof. Antunes Varela[2], é indispensável a existência de uma decisão, de um julgamento, com a respetiva fundamentação.
Refere o despacho recorrido (de 2 de novembro de 2020) que “a perda da viatura em causa já decorria do texto da própria sentença…”. Contudo, a sentença é clara no sentido de não ter sido proferida decisão sobre o perdimento do veículo e de ter sido relegada tal decisão para momento posterior, como decorre da parte decisória onde se diz “… De forma a se poder perceber se o veículo ora apreendido poderá ser perdido a favor do Estado nos termos do art. 109° do CP ou se, pelo contrário, deverá ter lugar a aplicação do mecanismo previsto no art.110° do mesmo diploma, diligencie a secção pela realização das habituais pesquisas…”.
A sentença limitou-se a determinar a apreensão do veículo automóvel de matrícula 94-CB-43, o que não se confunde com declaração de perdimento, razão por que não era legítimo à Mma Juiz concluir no despacho de 2nov.20 que “a perda da viatura em causa já decorria do texto da própria sentença…”.
Ao declarar o perdimento, o despacho recorrido invocou o art.109, do CP (por lapso manifesto refere CPP), que estabelece “São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico... quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
Estes perigos e risco terão de decorrer dos factos provados na sentença.
No caso, apenas está provado que o arguido utilizou o veículo em causa no cometimento do crime de condução de veículo em estado de embriaguez por que foi condenado (art.292, n°1, CP), nada dizendo o despacho recorrido sobre os perigos mencionados naquele preceito legal.
Na resposta apresentada em 1ª instância, o Ministério Público faz referência ao “… risco para terceiros da permanência da viatura em causa na esfera de atuação e mesmo na esfera patrimonial do arguido, sendo esse o perigo, motivado pelas especiais características do arguido – alcoólico e taxista, com inúmeras condenações pelo crime de condução em estado de embriaguez e ao qual já haviam sido aplicadas todas as penas substitutivas …”.
Contudo, os perigos exigidos pelo citado art.109, são relativos ao objeto e não à pessoa do agente do crime.
No caso, está em causa um vulgar veículo automóvel, sem que se tenha provado ter sido introduzida nele qualquer alteração posterior à sua aprovação para circulação, por isso não estando demonstrado que o mesmo crie os perigos ou o risco previstos naquele art.109, razão por que não se verificam os requisitos legais exigidos para a declaração de perdimento[3].
Assim, embora por fundamentos diversos dos invocados pelo recorrente, impõe-se a revogação do despacho recorrido.
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IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, dando provimento ao recurso do arguido, AP , revogam o despacho de 2 de novembro de 2020 e determinam a restituição do veículo apreendido ao seu proprietário, após prova por este do cumprimento das obrigações fiscais decorrentes da respetiva propriedade.
Sem tributação.

Lisboa, 11 de maio de 2021
Vieira Lamim
Artur Vargues
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[1] Neste sentido decidiu esta Secção no Pº 1034/10.2PBSXL.L1, por acórdão de 24Set.2013 com o mesmo Relator do presente recurso e decidiram os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 06-04-2011, Relator Des.  Ricardo Costa e Silva "... O trânsito em julgado de sentença que não se pronunciou sobre o destino dos bens apreendidos no processo não é obstáculo a que se profira despacho posterior decidindo sobre essa matéria" e de 11-01-2012, Relator Alves Duarte " ... III - A decisão de declarar perdido a favor do Estado o objeto apreendido ou de ordenar a sua restituição a quem de direito não faz parte do objeto do processo, razão pela qual pode ser proferida mesmo depois do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão onde deveria ter sido tomada".
Em sentido contrário, acessíveis em www.dgsi.pt:
-Ac. da 9ª Secção deste Tribunal de 02-07-2020 (Pº 4/17.4VLSB-B.L1-9, Relator ABRUNHOSA DE CARVALHO) “I – A decisão sobre a perda de bens é uma decisão de mérito e, portanto, se a sentença não se pronuncia sobre a questão, esta falta não pode ser suprida com recurso ao mecanismo do art.º 380 do CPP; II - A falta de decisão quanto aos bens apreendidos é resolvida pela própria lei, que prevê expressamente que, nesses casos, “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, ... .” (art.º 186º/2 do CPP)”.
-Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-2020 (Pº 29/18.2GCCNT-A.C1, Relator ANA CAROLINA CARDOSO “Transitada em julgado a sentença, e sendo a mesma omissa quanto ao destino dos bens apreendidos, deve ser dado cumprimento ao art. 186.º, n.º 2, do CPP, desde que a detenção dos bens por particulares seja lícita, não podendo o tribunal determinar em despacho posteriormente proferido o perdimento de tais objetos”.
[2] Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 123, pág.27.
[3] Neste sentido, entre outros acessíveis em www.dgsi.pt:
Ac. T. R. Coimbra de 22-10-2014 (Pº 31/12.8GAACN.C1, Relator Alice Santos):
“… I - O legislador exige para a declaração de perda dois pressupostos cumulativos:
- um pressuposto formal de que os objetos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática do facto ilícito, (instrumentos); ou que tenham sido produzidos pelo facto ilícito, (produtos),
- e um pressuposto material relacionado com a perigosidade dos próprios objetos que pela sua natureza intrínseca devem mostrar-se vocacionados para a atividade criminosa.
II - A perda só dever ser decretada para evitar a perigosidade resultante da utilização do objeto e a mesma também deverá ser proporcional à gravidade do facto ilícito cometido. …”.
Ac. T. R. Évora de 07-04-2015 (Pº 8/14.9GDPTG.E1, Relator António Latas):
“… I - A perda dos instrumentos e produtos do crime prevista no artigo 109º do Código Penal de 1982 tem caráter preventivo, pois o que está em causa é a prevenção dos riscos decorrentes da disponibilidade de objetos que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, são perigosos, e não a aplicação de sanção em resposta à prática de crime.
II - O artigo 109º do Código Penal exige a perigosidade do objeto cumulativamente com a sua utilização (no que aqui importa) na prática do crime, quer aquela perigosidade se traduza na colocação em risco da segurança das pessoas, da moral ou da ordem públicas, ou em sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos, e quer aquela mesma perigosidade derive da própria natureza do objeto, quer das circunstâncias do caso.”.