Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3808/16.1T8OER.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRADIÇÃO ENTRE O PEDIDO E A CAUSA DE PEDIR
OPOSIÇÃO À PENHORA
EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: INDEFERIMENTO
Sumário: Sumário:
I. Não há contradição entre a causa de pedir e o pedido, mas sim inviabilidade da acção, se os factos alegados pelos autores não podem conduzir à procedência do pedido.

II. Há contradição (por força do art. 819 do CC) entre causa de pedir e pedido, se a causa do pedido de reconhecimento da propriedade de um bem é um acto de disposição de um bem penhorado e se pretende opor aquele reconhecimento a uma execução. Isto é, uma acção de reivindicação como meio de oposição à penhora, tem de dizer respeito a um direito oponível à execução.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

A e B, intentaram uma acção contra (1) C, (2) D, (3) E e (4) F, pedindo que os réus sejam “condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores e a restituírem-lhe a posse plena da mesma, reconhecendo este direito e absterem-se de qualquer acção conflituosa contra este direito […], sendo este direito oponível aos réus e erga omnes.”

Alegam para o efeito que:

“Por escritura de doação realizada a favor dos autores no dia 04/11/2015, foi doada a casa de habitação […] com a descrição 3189/20021001, conforme escritura que se junta, doação feita pela primeira ré, que herdou a sua casa de seu falecido marido, de quem era comproprietária.

Esta doação foi feita com renúncia a herança d[os…] filhos da doadora.

Acontece que por lapso da escritura de doação foi dito que entende-se que tal renúncia se constitui como um efectivo repúdio, e, como tal, prevalecerão as normas atinentes ao direito de representação, conforme despacho que se junta.

E por via disso foi recusado o registo a favor dos autores. Mas estes são os efectivos donos da propriedade nesta data.

Nenhuma dúvida existe da doação efectiva a favor dos autores, facto reconhecido e aceite por todos, pese embora o lapso da escritura dizendo o que não era interesse nem da doadora nem dos donatários, sendo que os demais e potenciais herdeiros, já haviam abdicado da herança e aceitaram expressamente esta doação.

Pelo que se pede se aprecie e decida em definitivo deste direito de propriedade dos autores, corrigindo-se deste modo o lapso da escritura, pois o que se pretendia era e apenas doar um bem que estava exclusivamente na esfera jurídica da 1.ª ré, reconhecendo-se o direito de propriedade dos autores e mandando-a entregar aos autores para que dela tomem efectiva posse.

Por outro lado, os demais réus intentaram execução contra o falecido marido da 1.ª ré, tendo esta sido habilitada como herdeira nos autos de execução que corre termos no tribunal da comarca de Oeiras, com recurso pendente no STJ.

Atendendo à penhora e venda já aprazada da casa pertença dos autores, estes que são totalmente estranhos a essa divida,

Existe o perigo imediato da venda a terceiro da casa dos autores, estes que se verão desprovidos do bem que só a eles pertence.

Na execução a 1.ª ré suscitou invalidades da mesma que o STJ irá ou não confirmar.

Daí que se imponha de imediato a citação dos demais réus para que contestem este direito dos autores, de modo a que ao disporem do bem em hasta publica, saibam que o mesmo pertence aos autores e não à 1.ª ré.

Impondo-se e por isso que este direito dos autores seja por eles [réus] reconhecido, pois que há muito sabem do registo predial a favor dos autores e do processo da recusa, e nunca se opuseram a tal doação, aceitando-a qua tale, pese embora o erro processual cometido no cartório notarial.

Sendo este registo público, há muito que os réus tem conhecimento da doação e nenhuma oposição foi deduzida à mesma, incluindo o processo de penhora e venda em curso, que importa suster de imediato.”

Junto com a petição, vinha uma “informação em vigor” [diferente de uma “informação total”] da Conservatória do Registo Predial do imóvel em causa, de onde constava o seguinte:

- uma inscrição de aquisição por apresentação 70 de 30/09/1970, por compra de MC casado com a 1ª ré no regime de comunhão geral a terceiros.

- uma inscrição de penhora por apresentação xxxx de 23/11/2012, data também da penhora, efectuada numa execução em que eram exequentes a 2ª ré e o 3º réu e executada a 1ª ré, então viúva, mencionando-se: processo executivo yyyy/06.6TBOER-B do juízo de execução do tribunal judicial de Oeiras. O sujeito passivo [a executada] encontra-se habilitada como herdeira do marido.

- Uma recusa do registo de aquisição apresentada com o n.º xxx de 11/12/2015;

- uma anotação yyy da interposição de recurso com a apresentação de 22/01/2016 relativo à apresentação zzz, com a menção de impugnação hierárquica.

- uma anotação da improcedência do recurso, com data de 28/04/2016, da anotação yyy.

- não existem registos pendentes.

Vinha também, junto com a petição, a escritura de doação, sendo 1ª outorgante a 1ª ré e 2ºs outorgantes os autores, constando que a primeira tinha dito “que, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 24/10/2011, a fls. […], é ela, face às renúncias abdicativas efectuadas pelos restantes herdeiros, [os acima referidos pais dos autores], a única herdeira da herança aberta por óbito do seu marido, falecido no dia 22/02/2009.” E “que doa, na proporção de metade para cada um, aos 2ºs outorgantes, seus netos, não presuntivos herdeiros, o seguinte [o imóvel em causa], com registo de aquisição a favor do falecido […], pela apresentação 70 […]. Sobre o prédio incide uma penhora registada pela apresentação xxxx […]. Pelos 2º outorgantes foi dito que aceitam a doação. […]”

Os documentos apresentados pelos autores deram origem a 5 “processos”, por erro de tramitação electrónica dos autores, que vieram depois requerer a apensação deles todos.

A petição e o requerimento de apensação foram alvo do seguinte despacho:

“É de considerar que:

O expediente apresentado encontra-se irregular, truncado, e fora de ordem de apresentação, impondo-se a sua apresentação regularizada.

Ainda, indefere-se a requerida apensação de processos, por ausência manifesta de fundamento legal, desde logo porque se depreende que não constituem verdadeiros processos, mas sim documentos, expediente, indevidamente enviado a distribuição e não acompanhando a petição destes autos.

Pelo exposto, e porque o expediente que antecede se encontra incompreensível, confuso, e sem a ordem legalmente imposta – formulário, petição inicial e documentos – sendo certo que nem a petição inicial, nem os documentos excedem a dimensão de 3 Mb, determina-se:

- O envio de novo formulário, articulado inicial e documentos anexos, no prazo de 5 dias, e sob pena de imediato indeferimento liminar.”

O que os autores fizeram.

A 30/09/2016 foi proferido o seguinte:

“Despacho Liminar:

Notifiquem-se os autores a fim de fundamentarem a pertinência da presente acção, em face da execução pendente, com penhora do imóvel identificado, execução na qual os autores poderiam e deveriam ter embargado de terceiro.

Ainda, para fundamentarem a acção com base em direito de reivindicação, dado que alegam vício de declaração em escritura pública de doação.

Por último, para a junção do documento omisso, referente à decisão de indeferimento do recurso hierárquico interposto contra a Conservatória do Registo Civil de Oeiras.

Prazo: 10 dias.”

A 13/10/2016, os autores vieram dizer o seguinte:

“À data da penhora ainda não havia doação; os autores não tinham legitimidade processual nem substantiva;

A venda foi feita e marcada e ordenada quando já se sabia que havia uma doação, com recurso na CRP, o que a senhora agente de execução ocultou aos autos de execução.

Nesta data os autores são donos e legítimos possuidores do prédio dos autos.

O erro técnico notarial impediu que a doação fosse registada já que tendo os herdeiros legítimos renunciado à herança nada impedia a doação.

O mandatário em nome dos clientes recorreu mas a CRP entende que o mandatário não tem poderes para recorrer de acto para o qual tem mandato.

Por sua vez o Sr. notário notificado para esse recurso esqueceu-se.”

Juntaram o despacho de indeferimento de 21/04/2016 do presidente do conselho directivo do Instituto dos registos e do notariado e o parecer jurídico dos respectivos serviços.

A 17/10/2016 foi proferido o seguinte despacho:

- Da ineptidão da petição inicial - contradição entre causa de pedir e pedir:

[o despacho recorrido faz a síntese da petição inicial, transcreve depois o art. 186 do CPC, que dispõe sobre a ineptidão da petição inicial e a seguir diz:]

Os pedidos deduzidos pelos autores, são, de facto, consistentes com a acção de reivindicação (art. 1311 do Código Civil). Porém, a nosso ver, a causa de pedir já não o é.

Com efeito, os autores sustentam a existência de lapso na redacção da escritura pública de doação, que os impediu de registarem a seu favor a propriedade do imóvel, requerendo que o tribunal supra esse lapso, reconhecendo-lhes o direito de propriedade.

Decorre ainda dos documentos juntos aos autos que o recurso hierárquico interposto contra a 1ª conservatória do registo predial de Oeiras foi indeferido, por falta de legitimidade e intempestividade, não tendo sido apreciado o seu mérito.

Ora, o que os autores pretendem com a presente acção é precisamente que seja apreciado o mérito da recusa do registo de propriedade do imóvel, por doação, a seu favor.

Contudo, esta causa de pedir não se compatibiliza com a acção de reivindicação.

Ademais, cumpre ainda aferir se sobre a decisão de rejeição do recurso hierárquico cabia impugnação, e a reposta é positiva, caso a decisão tivesse sido de improcedência, podendo ser deduzida neste caso acção de impugnação, no caso de o recurso hierárquico ter sido julgado improcedente, conforme previsto no art. 145 e segs do Código do Registo Predial.

Porém, no caso dos autos não foi proferida decisão de mérito mas sim formal sobre o recurso hierárquico interposto. Pode-se pois questionar se, ainda assim, aos autores estaria, ou não, vedado o recurso à impugnação judicial, mesmo em face da não admissão do recurso por razões formais.

De salientar que os autores poderiam ter lançado logo mão da acção de impugnação judicial e não o recurso hierárquico.

Não obstante estas considerações, é manifesto que a causa de pedir alegada pelos autores não é compatível com os pedidos, da acção de reivindicação, não tendo, ademais, sido alegado de que forma, e a que título, os réus detém a posse do imóvel.

A final, por contradição entre a causa de pedir e os pedidos, julga-se inepta a petição inicial, e anula-se todo o processado, absolvendo, em consequência, os réus da presente instância – arts 186, nºs 1 e 2-b, 278/1-b, 576/2, 577-b) e 578, todos do Código de Processo Civil.

Os autores vêm recorrer deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“Vieram os autores pedir reivindicação de propriedade e entrega do bem, argumentando que receberam o bem por doação de sua avó e que este bem foi entregue para venda a terceiro por divida doutrem. Eis pois em síntese o que se alegou como causa de pedir e o pedido formulado. Nada de diferente se alegou, quer como causa de pedir quer no pedido.

Definida a causa de pedir, foi deduzido o pedido como se reconhece na sentença recorrida. Nenhum outro pedido foi formu-lado, pelo que não pode o tribunal conhecer o que se não pediu.

A alegação feita da escritura foi só para justificar o facto de o registo não ter sido feito a seu favor e não como causa de pedir, pois que o registo não é facto constitutivo do direito, apenas o publica e publicita para conhecimento público. A causa de pedir assenta na titularidade do direito, isto é no direito de propriedade e posse emergente da doação, através de acto publico bastante: a escritura de doação de quem era dono.

E como esse direito e posse está ameaçado, pediu-se e pede-se ao tribunal que declare o direito e o reconheça erga omnes, ordenando a restituição da posse plena aos autores. Não existe pois ineptidão pois que declarado judicialmente o direito a favor dos autores resultante da sua aquisição por via de escritura de doação, resta ordenar como se pediu a sua entrega aos autores.

E esta acção sempre se teria de intentar ainda que o direito tivesse sido registado, pois que tal não impediu a venda judicial na execução, à data do registo e antes da recusa do registo. A extrapolação da sentença recorrida para além do essencial, confundindo alegação e explicação da situação actual com causa de pedir, é errada e contradiz o que ela mesmo deu como reproduzido, cometendo pois duas nulidades: não há contradição entre a causa de pedir e o pedido e existe contradição entre a fundamentação e a decisão, extrapolando a causa de pedir para causas diversas, o que não foi nem podia ser alegado, nem pedido.

É pois manifesto que a sentença esteve bem quando disse: “Pedem os autores que os réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores e a restituírem-lhe o direito de propriedade dos autores e a restituírem-lhe a posse plena da mesma…”, e é deste modo que se deve decidir como se pede.

Toda a nossa jurisprudência e doutrina dominante vai no sentido de que não há ineptidão se o réu compreendeu a causa de pedir e o pedido; o mesmo se diga se o julgador entendeu bem o que se alegou e pediu. E não pode o julgador conhecer mais do que o que foi pedido: apenas foi pedido que fosse declarado o direito e ordenada a entrega do bem aos autores seus legítimos possuidores e donos.

A matéria alegada e reconhecida qua tale na sentença podia/devia ter produzido despacho de citação e o normal andamento dos autos, como deve agora ser ordenado.

Encontra-se violada a lei e a jurisprudência dominante nesta matéria, devendo nos termos dos arts 561 a 564 e 615/1-c e d do CPC, ser ordenada a citação dos réus para contestarem querendo seguindo-se os demais termos até final.”

Admitido o recurso, o processo foi de imediato remetido a este tribunal da relação de Lisboa. O processo foi devolvido para que os réus fossem citados (arts. 641/7 e 629/3 do CPC). Feita a citação, o processo foi de novo reenviado para este TRL.

Não se sabe em que termos foi feita a citação dos réus, sendo que a 2ª ré e o 3º réu vieram contestar, retirando-se da contestação o seguinte com utilidade para o presente recurso:

Os autores, no intuito de provarem serem proprietários da coisa reivindicada, invocaram a sua aquisição derivada por doação mas sem registo a seu favor, por um lado, e sem alegar e demonstrar, por outro, qualquer ocupação do bem ou uso do mesmo pelos réus; o único fito da acção é paralisar uma execução em curso; a penhora foi efectuada e registada antes da doação (e esta faz referência àquela), pelo que aquela terá prevalência sobre esta e a acção não terá qualquer efeito útil.

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Questão a decidir: se a petição inicial não é inepta.

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Da inviabilidade da acção

Os autores dizem que são proprietários do imóvel por ele lhes ter sido doado pela “1ª ré, que herdou a sua casa de seu falecido marido, de quem era comproprietária. Esta doação foi feita com renúncia a herança d[os…] filhos da doadora. Acontece que por lapso da escritura de doação foi dito que entende-se que tal renúncia se constitui como um efectivo repúdio, e, como tal, prevalecerão as normas atinentes ao direito de representação, conforme despacho que se junta.”

Esta alegação tem várias incongruências, entre outras as seguintes: (i) a avó não era comproprietária (mas sim um membro de um casal que tinha um bem comum, por ter sido adquirido pelo marido já casado no regime de comunhão geral de bens: art. 1732 do CC); (ii) a doação não foi feita com renúncia, pois que, segundo a escritura de doação, a renúncia já tinha sido feita antes, na escritura de habilitação [aliás os renunciantes não outorgaram na escritura de doação…]; (iii) não fará sentido que a escritura de habilitação diga que a renúncia se constitui como um efectivo repúdio; quem o diz é o conservador que recusa o registo (como se pode ver na referência que é feita ao despacho do conservador no despacho que indeferiu o recurso dos autores da decisão daquele).

De qualquer modo, o que interessava é que os autores invocavam como fonte do seu direito uma escritura de doação que, segundo eles, estaria errada, ou seja, que segundo eles próprios, não dizia o que se tinha querido dizer.

O que é o mesmo que invocar um facto aquisitivo para logo a seguir o pôr em causa.

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Para suprir isso, os autores dizem então: “nenhuma dúvida existe da doação efectiva a favor dos autores, facto reconhecido e aceite por todos, pese embora o lapso da escritura dizendo o que não era interesse nem da doadora nem dos donatários, sendo que os demais e potenciais herdeiros, já haviam abdicado da herança e aceitaram expressamente esta doação. Pelo que se pede se aprecie e decida em definitivo deste direito de propriedade dos autores, corrigindo-se deste modo o lapso da escritura, pois o que se pretendia era e apenas doar um bem que estava exclusivamente na esfera jurídica da 1ª ré […]. Impondo-se e por isso que este direito dos autores seja por eles [réus] reconhecido, pois que há muito sabem do registo predial a favor dos autores e do processo da recusa, e nunca se opuseram a tal doação, aceitando-a qua tale, pese embora o erro processual cometido no cartório notarial. Sendo este registo público, há muito que os réus tem conhecimento da doação e nenhuma oposição foi deduzida à mesma […]”

Ou seja, os autores, como facto constitutivo do seu direito, invocam actos de terceiros: reconhecimento da doação pelos executados e pelos outros herdeiros ou potenciais herdeiros.

Ora, é evidente que isto não é um facto de onde possa derivar o direito de propriedade dos autores. A aquisição derivada tem de ser feita, no que interessa ao caso, por contrato com o proprietário anterior (arts. 1316 e 1317/1-a do CC) e existe ou não existe. Não pode ser suprida por aquilo que terceiros aceitam ou não.

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Deixando de lado a construção feita pelos autores e pegando nos factos que decorrem dos documentos, o que temos é uma escritura de doação na qual a doadora declara “que, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 24/10/2011, a fls. […], é ela, face às renúncias abdicativas efectuadas pelos restantes herdeiros [os acima referidos pais dos autores] a única herdeira da herança aberta por óbito do seu marido, falecido no dia 22/02/2009.” E “que doa, na proporção de metade para cada um, aos 2ºs outorgantes, seus netos, não presuntivos herdeiros, o seguinte [o imóvel em causa], com registo de aquisição a favor do falecido […], pela apresentação 70 […]. Sobre o prédio incide uma penhora registada pela apresentação xxxx […]. Pelos 2º outorgantes foi dito que aceitam a doação. […]”

Ou seja, a avó diz que é a única proprietária face à renúncia abdicativa dos outros herdeiros do marido (os seus filhos). Ora, a renúncia abdicativa, assim, sem mais nada, é um repúdio da herança (art. 2062 do CC). E um repúdio da herança dá origem ao direito de representação dos descendentes dos repudiantes (só poderia dar origem ao direito de acrescer caso os filhos não tivessem filhos: arts. 2039, 2042, 2043, 2137/2, 2138, 2143 e 2157, todos do CC – veja-se o parecer do registo e notariado citado no parecer técnico apresentado pelos autores depois de notificados para o efeito, ou seja R.P. 11/2013 SJC-CT e Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A renúncia abdicativa no direito civil. Algumas notas tendentes à definição do seu regime, Coimbra Editora, 1995, págs. 14, 17 a 19, 33/34, 36/37 e 101/102, a contrario). O que quer dizer, que, tendo os filhos renunciado à herança, os netos passaram também a ser herdeiros. E nem sequer se sabe se os únicos herdeiros, porque não é dito em lado algum que eles sejam os únicos filhos dos filhos renunciantes. Pelo que a avó não tinha legitimidade, sozinha, para doar um imóvel que pertencia ao património comum do casal, de onde viria a sair a herança do marido falecido. Pelo que uma doação feita apenas por ela, não é título legítimo de aquisição.

Ou seja, a escritura de doação, objectivamente apreciada, não é facto constitutivo do direito invocado. Pode ser que a interpretação feita pela doadora das expressões que constam da escritura da habilitação esteja errada, isto é, que elas permitissem outra conclusão quanto à renúncia abdicativa = repúdio, mas isso não interessa para aqui porque os autores não tentaram fazer essa outra interpretação, nem apresentaram para ser junta aos processos a escritura de habilitação.

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Isto posto, conclui-se que da forma como os autores apresentam os factos eles não podem conduzir à conclusão de que são proprietários.

Mas isso corresponde a uma inviabilidade da acção (“nenhuma norma constitutiva estatu[i] o efeito jurídico pretendido como consequência dos factos invocados como causa de pedir”) e não a contradição entre pedido e causa de pedir. Para que houvesse esta, a causa de pedir teria de apontar para um efeito oposto ao efeito pretendido pelos autores (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 352 a 361, especialmente págs. 356 e 357), o que, como se vê, não é caso.

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A alegada contradição entre pedido e causa de pedir

O despacho recorrido diz que existe contradição entre a acção de reivindicação e a causa de pedir, sendo que aquilo que aponta como contraditório com “a acção” é “a pretensão de aprecia[ção] [d]o mérito da recusa do registo de propriedade do imóvel, por doação, a seu [dos autores] favor.”

Mas nem “a acção de reivindicação” é um pedido, nem uma pretensão é uma causa de pedir.

Por outro lado, de facto o que os autores pretendem traduz-se, materialmente, em pôr em causa a decisão do conservador do recusar o registo da propriedade do imóvel a favor.

Com efeito, a acção de reivindicação, de bens que não estão em nome dos reivindicantes, está sujeita a registo. Tal como o está a decisão final proferida na acção (arts. 3/1-a-c e 2/1-a do Código do Registo Predial). O resultado necessário desta acção, em caso de procedência, seria pois uma decisão implícita de registo da propriedade do bem em nome dos autores, com base na escritura de doação invocada. Ora, esse resultado estaria em óbvia contradição com o indeferimento do registo da aquisição com base naquela escritura por despacho do conservador.

Mas isto, se viesse a acontecer, não corresponde a contradição entre pedido e causa de pedir.

Daria sim origem a duas decisões contraditórias, mas proferida por entidades diversas (conservador e tribunal) e com origem em pedidos formulados por pessoas diferentes (num caso o notário, noutro os autores). E a decisão do tribunal não se imporia, sem mais ao conservador, que poderia recusar o registo da acção, embora a recusa estivesse sujeita a impugnação (o que resulta implícito, mas claramente, do disposto no art. 146/2 do CRP: O juiz que tenha intervindo no processo donde conste o ato cujo registo está em causa fica impedido de julgar a impugnação judicial).

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A contradição entre pedido e causa de pedir

No entanto, o despacho recorrido tem razão em falar em contradição entre pedido e causa de pedir, embora com outro fundamento.

O pedido formulado corresponde grosso modo a uma acção de reivindicação, mas a parte final do pedido logo indicia que é algo mais, já que engloba a declaração de que se trata de um direito oponível erga omnes.

Ou seja, trata-se de uma acção de reivindicação intentada depois de feita a penhora do imóvel a que respeita e com base numa doação do bem penhorado feita pela executada depois da penhora (a penhora é de 2012 e a doação é de 2015) e pretende-se que o resultado seja oponível a todas as pessoas sem excepção, dizendo-se expressamente no meio da petição inicial que se pretende a suspensão da execução (suster o processo de penhora e venda em curso).

Ora, um acto de disposição de um bem penhorado – como uma doação – é inoponível à execução (art. 819 do CC).

Dito de outro modo, uma acção de reivindicação como meio de oposição à penhora, tem de dizer respeito a um direito oponível à execução (exactamente neste sentido, Rui Pinto, Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, 2013, pág. 815: “não há-de ser [o direito objecto desta acção de reivindicação] um direito inoponível à execução por força do art. 819 do CC.”)

Ou seja, os autores pretendem opor a uma execução um acto que a lei declara expressamente não poder ser oposto à execução.

A causa de pedir invocada (um acto de disposição de um bem penhorado, como consta expressamente da escritura de doação) está expressamente, por força da lei, em oposição com a pretensão deduzida em juízo (de fazer valer na execução aquele acto de disposição), já que a lei diz que ele não pode ser oposto em juízo.

Isto é, aqui, a causa de pedir (acto de disposição de um bem penhorado) aponta para um efeito oposto (não oponibilidade à execução) ao efeito pretendido pelos autores (oponibilidade à execução).

Assim, verifica-se realmente a contradição entre pedido e causa de pedir, embora por fundamento diferente do referido no despacho recorrido.

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Repare-se que é o facto de estarmos perante uma acção de reivindicação como meio de oposição à penhora (Lebre de Freitas, A acção executiva, 5ª ed, Coimbra Editora, 2009, pág. 271 = 6ª ed, 2014, pág. 311), que permite a especificidade de se demandar réus que, por regra, não detém nem possuem a coisa (o critério será antes, segundo alguns, o de demandar quem é exequente e executado, em litisconsórcio necessário natural - Miguel Teixeira de Sousa, A acção executiva singular, Lex, 1998, pág. 318, Rui Pinto, obra citada, pág. 816, para o que se poderia ainda invocar a regra do art. 348/1 do CPC por aplicação analógica; segundo outros, no entanto, a legitimidade passiva radica apenas naquele que nomeou o bem à penhora, veja-se Eurico Lopes-Cardoso, Manual da acção executiva, INCM, 1987, pág. 386 e Alberto dos Reis, Processo de execução, II, Coimbra Editora, págs. 454/455). Mas isto sempre no pressuposto de o acto de alienação ter ocorrido antes da penhora. Sendo posterior, a acção não pode ter lugar, como já referido.

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Entretanto, note-se que há lapso na decisão recorrida: como os réus ainda não tinham sido citados, o despacho recorrido não é um saneador-sentença que possa julgar inepta a petição inicial e anular todo o processado, absolvendo os réus da instância, sendo antes um despacho liminar de indeferimento da petição inicial (art. 590/1 do CPC), o que importa agora rectificar.

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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida embora por fundamento diferente e com a seguinte correcção: não se trata de absolver os réus da instância, mas sim de um indeferimento liminar da petição inicial, por ineptidão da mesma dada a contradição entre pedido e causa de pedir.

Custas pelos autores (sem prejuízo do apoio judiciário concedido apenas ao autor B).

Lisboa, 08/06/2017

Pedro Martins

Lúcia Sousa

Magda Geraldes