Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
118/16.8T8MFR.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
DIREITO DE PROPRIEDADE
DEVERES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O art. 1346º do C. Civil não se aplica às emissões de corpos sólidos que não sejam de tamanho ínfimo e a líquidos, mas a essas emissões poderão sempre os proprietários opor-se.
2. O estabelecido nesse normativo constitui o afloramento de um princípio geral que envolve as relações de vizinhança, devendo entender-se que, como sustentam Pires de Lima e Antunes Varela, além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção), o proprietário tem a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo).
Decisão Texto Parcial:Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. A., melhor identificada nos autos, veio intentar e fazer seguir contra B., acção declarativa com processo comum, pedindo seja a ré condenada a:
a) Efectuar todas as obras necessárias a reparar todos os danos provocados no prédio da autora, designadamente, substituição de todo o madeiramento apodrecido e instalação eléctrica degradada, pintura interior;
b) Retirar todos os canteiros construídos junto das paredes norte e nascente do do prédio da autora e após reparar as referidas paredes;
c) Permitir pelo menos uma vez por ano o acesso ao Páteo do seu prédio para a autora efectuar a manutenção exterior das paredes norte e nascente do seu prédio;
d) pagar à autora, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000,00, acrescida dos juros à taxa legal desde a citação.
Alegou, em síntese, que após a construção de um canteiro para flores, sem qualquer isolamento, junto à parede de sua (da A.) casa, passou a haver retenção e infiltração de águas nas paredes de habitação da impetrante, o que determinou o apodrecimento dos barrotes de madeira e restante madeiramento que sustenta o telhado e bem assim danificação da instalação eléctrica; que, apesar de não lhe poder aceder senão através da propriedade da R, esta nega-lhe o acesso às paredes norte e nascente do prédio daquela a fim de proceder à sua impermeabilização; que a autora sofre de problemas articulares e respiratórios na sequência do estado da sua habitação causado pelas humidades em apreço, que determinou que deixasse de habitar o quarto, passando a dormir na sala; e que se sente humilhada com toda a situação.
A ré contestou, tendo impugnado diversa factualidade alegada pela A. na p.i.
Alegou ainda que o canteiro existe há mais de 40 anos, em tempo anterior à compra do prédio pela autora; que o canteiro está encostado a uma parede construída pela ré junto à parede norte da casa da autora e que o canteiro não provoca as infiltrações no prédio da autora.
Após adequação formal do processado de acordo com a proposta realizada a fls. 43 e seguintes, foi dispensada a audiência prévia.
Seguidamente foi proferido o despacho saneador e foram enunciados os temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu:
Pelo exposto, procede parcialmente a presente acção, razão pela qual vai a R. condenada:
a) a efectuar todas as obras necessárias a reparar os danos provocados no prédio da A., designadamente a substituição do madeiramento apodrecido, instalação eléctrica e pintura interior da divisão do prédio da A. afectada e melhor identificada na decisão de facto;
b) a reparar a parede exterior do prédio da A. melhor identificada no julgamento de facto de modo a eliminar as emissões de humidades;
c) permitir o acesso da A. às paredes Norte e Nascente sempre que se revele necessário proceder à sua manutenção e conservação;
d) a pagar à A. a quantia de € 5.000,00 por danos não patrimoniais.
Vai a R. absolvida do demais peticionado.
Custas na proporção do decaimento, considerando-se este na ordem de 70% para a R. e de 30% para a A., considerando o valor global atribuído à presente - cfr. artigos 527.°, n." 1 e 2, do Cód. Proe. Civil”.
Inconformada, veio a ré interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação de conclusões (…) Termos nos quais, Ilustres Desembargadores, deverá alterar-se o decidido pelo douto Tribunal a quo, lavrando-se Acórdão determinando a exclusão dos pontos 8, 9, 10, 11, 12 e 15 da lista da factualidade apurada e, em consequência, absolver-se a Ré, aqui Apelante, do pedido.
A autora apresentou contra-alegações, concluindo (…)
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
1. Encontra-se descrito sob o n.º 3642 da Conservatória do Registo Predial de Mafra, freguesia de Mafra, o prédio urbano, constituído por casa para habitação, sito na Travessa…, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1…;
2. Pela Ap. 7 de 1996/10/17, encontra-se inscrita na descrição referida em 1., a aquisição da propriedade a favor da aqui A., por compra à aqui R.;
3. Encontra-se descrito sob o n.º 3… da Conservatória do Registo Predial de Mafra, freguesia de Mafra, o prédio urbano, constituído por casa de habitação e pátio, sito na Rua …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1…;
4. Pela Ap. 7 de 1995/12/15, encontra-se inscrita na descrição referida em 3., a aquisição da propriedade a favor da aqui R., por sucessão;
5. Os prédios referidos em 1. e 3. confinam um com o outro a Norte;
6. A casa erguida no prédio referido em 1. é uma construção antiga e barrotes de madeira;
7. No prédio identificado em 3. existe um canteiro que se encontra perto da parede do edificação existente no prédio descrito em 1. e que se prolonga por toda essa parede;
8. Há cerca de 8 anos, a R. construiu junto à parede Norte da casa da A. um muro até mais de metade dessa parede onde veio a encostar terra do canteiro mencionado em 7.;
9. O muro acima referido criou um parapeito onde bate água e escorre até ao referido canteiro provocando infiltrações no sopé do canteiro e ainda entre o fim do referido muro e a parede da casa da A.;
10. As infiltrações referidas em 9. provocaram as situações no quarto de dormir da A., melhor identificadas a fls. 11 verso a fls. 12 verso – facto alterado infra;
11. Infiltrações que atingem também a instalação eléctrica desse quarto, que se encontra encharcada de água, provocando risco de incêndio – facto alterado infra;
12. Razão pela qual a A. não pode ali ligar qualquer aparelho eléctrico – facto alterado infra;
13. As situações descritas de 10. e 12. determinaram que a A. deixasse de dormir no quarto em causa;
14. E bem assim que a A. tenha de ter um aparelho desumificador constantemente ligado;
15. A situação acima descrita ocorre desde 2011;
16. A A. sofre de problemas respiratórios e articulares que se agravaram pela situação atrás descrita;
17. A A. sente-se humilhada e impotente por residir numa casa que apresenta as condições atrás descritas;
18. A A. não tem outra forma de aceder às paredes norte e nascente de sua casa sem ser pelo prédio melhor descrito em C. dado que estas ficam dentro do pátio desse prédio;
19. A R. não permite à A. o acesso em causa;
20. A A. nasceu a 01.10.1938.
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Factos considerados não provados em 1ª instância:
a) O prédio descrito em 3. encontra-se num plano superior por referência ao prédio identificado em 1.;
b) No pátio existente no prédio descrito em 3., a R. construiu um canteiro para flores encostado às paredes da casa existente no prédio identificado em 1.;
c) Tal canteiro foi construído para servir de contenção de terra, sem isolamento, material ou técnica de impermeabilização;
d) O canteiro faz retenção da água que depois infiltra nas paredes de casa da A.
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III. As questões a decidir resumem-se, essencialmente, a saber:
- se é caso de alterar a matéria de facto;
- se, nomeadamente em função dessa alteração, é caso de revogar a sentença recorrida.
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IV. Da questão de mérito:
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
(…) Concorda-se com a valoração da prova efectuada em 1ª instância quanto ao facto descrito sob o ponto 9 e altera-se a redacção do facto n.º 10, considerando-se apenas provado que as infiltrações referidas no ponto 9. provocaram manchas de humidade e bolor negro nas paredes e tecto do quarto de dormir da autora.
  
Quanto aos factos n.ºs 11º e 12º (…) Conjugando estes elementos de prova, considera-se apenas provado que:
11. Infiltrações que atingem também a instalação eléctrica desse quarto, provocando risco de incêndio em caso de ligação de algum aparelho eléctrico a tomada existente no mesmo onde a humidade é mais acentuada.
12. Razão pela qual a A. não pode ligar nessa tomada qualquer aparelho eléctrico.

Da questão de direito:
Na sentença recorrida decidiu-se que:
“Da emissão ilícita de humidades provenientes do prédio da R. e do bem fundado do pedido deduzido na alínea b) de fls. 7 e 7verso:
A A. assenta a tutela jurisdicional solicitada nas restrições ao direito de propriedade resultantes da situação de vizinhança em que se encontra o prédio da sua propriedade e o imóvel que se inscreve na esfera jurídica da R., arguindo factualidade de cuja demonstração resultaria que o aproveitamento que esta realiza do referido prédio, a saber a construção que nele executou, repercute-se negativamente no da sua titularidade porquanto determina que as águas pluviais se infiltrem nas paredes da sua propriedade de modo a causar-lhe uma danificação tão grave que inclusivamente já determinou que deixasse de poder utilizar um dos cómodos daquela; ou seja, manifesta-se aquele aproveitamento predial numa ingerência no imóvel da demandante.
Sendo certo que à R., proprietária do imóvel confinante com o da A. - portanto vizinho para os efeitos que ora relevam -, é permitida uma ampla utilização e fruição, dele retirando as utilidades que pode proporcionar, não menos certo é que se impõe harmonizar o exercício de diferentes direitos sobre imóveis geograficamente próximos, por forma a impedir que o exercício de um deles prejudique, para além de certa medida, o exercício dos demais.
Na prossecução deste objectivo, e numa clara especialização aos Direitos Reais do que dispõe genericamente o artigo 335.° do Cód. Civil, determina o artigo 1346.° do Cód. Civil que o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outras quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultarem da utilização normal do prédio de que emanam.
(…)
Da factualidade coligida probatoriamente nos autos, nomeadamente de que a R. ergueu um muro/parede junto à parede da casa da A., resulta inequívoco que aquela intervencionou a sua propriedade de modo a dela retirar as utilidades que lhe aprouve retirar; mas também resultou demonstrado que tal muro/parede causou acúmulo de humidades que acabaram por se expandir para a parede da propriedade da impetrante, provocando-lhe a danificação melhor descrita de 10. a 14. do julgamento de facto acima consignado.
Não restam assim quaisquer dúvidas a este Tribunal que, pela intervenção que realizou no seu prédio, a demandada criou as condições necessárias à projecção no da A. de realidades físicas, sob a forma energética, gasosa ou em pequenas partículas'", já que não se pode deixar de considerar a humidade como emissão nos termos e para os efeitos da previsão normativa meramente exemplificativa do artigo 1346.º do Cód. Civil, na medida em que é anormal do prédio dos impetrados, quer porque causadores de prejuízo substancial aos demandantes.
Não se podendo, como é medianamente claro, considerar que a construção de uma parede constitua uma utilização anormal do prédio dos autos, a verdade é que a acumulação de humidades nesta e sua propagação para o da A. é causadora de um estado de degradação de parte do imóvel desta, bem descrito pela factualidade que consta do julgamento de facto, e da qual resulta a impossibilidade da integral fruição do imóvel por banda da demandante.
É assim evidente que as emissões provenientes do prédio da R. importam um prejuízo substancial para o uso da casa da A. na medida em que esta não pode utilizar um dos seus cómodos nem nele sequer usufruir de electricidade, sendo que naos tempos actuais tal situação nem sequer é compatível com uma vivência digna.
Donde, na sua vertente de acção negatória, a presente não pode deixar de proceder.
Porém, considerando a concretização do pedido a esta referente, nomeadamente a referência à retirada do canteiro que não se demonstrou ser a construção da qual provêem as emissões em causa e bem assim o disposto no artigo 609.°, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, somente pode proceder parcialmente, determinando-se em conformidade que a R. proceda à reparação da parede Norte da A. que confina com a sua propriedade de modo a que sejam eliminadas as projecções em causa.
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ii. Da responsabilidade civil emergente de tais emissões:
Mas não se limita a A. a opor-se à emissão das humidades que demonstradamente provêem da parede erguida pela R. junto àquela que é da propriedade da impetrante. Na verdade, peticiona ainda a reparação dos danos resultantes de tais emissões, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Em face de tal, e antes do mais, impõe-se averiguar se efectivamente se apurou factualidade que possa sustentar o a este título peticionado; ou, por outras palavras, o êxito da tutela ora concretamente apreciada depende do apuramento da constituição dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual delitual, previstos no artigo 483.°, n.º 1 do Cód. Civil, na esfera jurídica da demandada.
(…)como é fácil de concluir que o bonus pater familia não se disporia a erguer um parede ou muro junto ou colado ao da propriedade de outrem sem se certificar que na construção se cumpriam as regras da arte referentes à sua impermeabilização de modo a evitar decorrências como a aqui emjulgamento.
Donde, não se pode deixar de concluir por ter a R. agido de forma censurável pelo ordenamento jurídico, ou seja, actuou a demandada culposamente, ainda que dos autos não se possa retirar senão que tal culpa assume a forma de mera culpa dado que nada indicia que soubesse da omissão de impermeabilização, pois também não resulta dos autos que tenha sido a própria a erguê-lo.
Concluindo-se, como se concluiu, por ter agido a R culposamente, então há que aquilatar se tal conduta ilícita e culposa foi geradora dos danos invocados. E mais uma vez, em face à evidência que resulta da factualidade provada e de que acima já se deixou basta nota, não resta senão declarar singelamente a verificação quer das consequências danosas, traduzidas nas lesões infligidas à integridade da habitação da A., quer do nexo causal entre tais lesões e o facto da agente, aqui R., acima qualificado de ilícito e culposo.
Donde, é a R. responsável pela produção do evento ilícito em julgamento e pelas consequências danosas dele advenientes, impondo-se-lhe assim removê-las, reconstituindo a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação'",
Neste conspecto, não pode deixar de proceder o pedido relativo à condenação da demandada na realização das obras necessárias à eliminação dos danos consequentes da infiltração das humidades em causa.
Solicita também a A. a condenação da R. no pagamento de uma quantia de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais consequentes da situação em julgamento.
Resulta do vertido de 10. a 17. da decisão de facto ter sido a impetrante privada do uso de um dos cómodos da sua habitação na sequência das emissões em julgamento, o que a deixa humilhada, e bem assim que a sua condição de saúde piorou na sequência da acumulação daquelas em conjugação com o seu prolongamento no tempo resultante da sua não reparação.
Afigura-se, assim, a este Tribunal que a conduta da R. causal da situação em julgamento é, por sua vez, fundamento das perturbações do estado de espírito e da precariedade da saúde da A., naturalmente resultante da frustração das legítimas expectativas de quem possui uma casa para nela habitar. Razões mais que suficientes para considerar existentes e compensáveis os danos não patrimoniais consequentes, atendendo à sua manifesta gravidade - cfr. artigo 496.°, n,º 1 do Cód. Civil.
Assim sendo, há então aquilatar da parcimónia da quantia peticionada a tal título- cfr. ainda n. ° 4 do preceito acima citado.
E nessa tarefa não se pode perder de vista o estado em que se encontra a habitação da A., as repercussões negativas na sua saúde e o tempo pelo qual perdura a situação; mas também há que ponderar que a conduta ilícita da R. foi empreendida com mera culpa já que nada nos autos, como acima já se referiu.
Tudo ponderado, afigura-se a este Tribunal ajustada à equidade a fixação de uma compensação na ordem dos 5.000,00 (cinco mil euros).
Procede, assim, parcialmente o pedido ora em apreciação.
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iii. Da passagem forçada pelo prédio da R. ao abrigo do artigo 1349.° do Cód. Civil:
Resta, finalmente, conhecer do pedido acima epigrafado.
Tendo em conta o demonstrado a 18. e 19. da decisão de facto, afigura-se evidente e portanto a dispensar grande elaboração jurídica, que está preenchida a previsão normativa do artigo 1349.°, n.º 1 do Cód. Civil, na medida em que não é possível à A. aceder às paredes em apreço sem passar pelo prédio da aqui demandada. Tem, assim, aquela o direito à passagem forçada que peticiona mas somente quando tal se revelar necessário, sendo que nada nos autos permite concluir, também não resultando das regras da experiência, que essa necessidade se faça sentir anualmente.
Assim, procede parcialmente o que a este título é solicitado, declarando-se o direito da Á. à passagem forçada pelo prédio da R. com o fito de intervencionar as paredes em causa sempre que tal se mostre necessário à sua reparação e/ou manutenção; e consequentemente, condenando a demandada a suportar tal passagem, tudo sem prejuízo do n." 3 do artigo 1349.° do Cód. Civil”.
A ré/apelante fundamenta a sua discordância quanto ao assim decidido na circunstância de, em seu entendimento, não ter sido feita qualquer prova que permita concluir, sem margem para dúvidas, que as infiltrações existentes no prédio da autora, sejam consequência de uma qualquer acção da ré, quer por via da construção canteiro, quer por via da construção da parede junto ao canteiro.
Deste modo, a apelante funda a sua discordância quanto ao decidido numa alteração da factualidade provada, a qual, com excepção de uma pequena alteração quanto aos factos nºs 10º, 11º e 12º, não obteve êxito.
Tendo-se por assente a factualidade considerada provada, verifica-se que a sentença fez, em face dela, no essencial, uma correcta aplicação do direito, pois que se apurou que as infiltrações que se verificam no prédio da autora provêm do prédio da ré/apelante.
A nossa divergência quanto ao decidido em 1ª instância situa-se apenas no que toca a alguma da fundamentação esgrimida e à condenação da ré a substituir o madeiramento apodrecido.
Com efeito:
Na presente acção movemo-nos num caso de conflito entre direitos reais, decorrente de um litígio conexo com relações de vizinhança, por danos sofridos pelo prédio da autora derivados de infiltrações de águas provenientes do prédio da ré e que derivaram também da realização de obras (construção de uma parede).
Estabelece o art. 1305º do CC que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
Como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela (C.Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 94 e 95), as restrições a que se refere a parte final do dispositivo em questão, podem ser de interesse público e de interesse privado, sendo estas últimas as que resultam das relações de vizinhança. “Têm elas em vista regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, em consequência da solidariedade dos seus direitos, ou seja, em virtude da impossibilidade de os direitos de propriedade serem exercidos plenamente sem afectação dos direitos dos vizinhos
 E dispõe o art. 1346º do CC que:
Emissão de fumo, produção de ruídos e factos semelhantes
O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Este último normativo, que constitui o afloramento de um princípio geral que envolve as relações de vizinhança, não se aplica às emissões de corpos sólidos que não sejam de tamanho ínfimo e a líquidos, mas a essas emissões poderão sempre os proprietários opor-se – vide Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., pag. 177.
Com efeito, deve “entender-se que, além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção), o proprietário tem a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo)” – vide os mesmos autores, pag. 95.
Na mesma linha de pensamento, OLIVEIRA ASCENSÃO (citado no Ac. STJ de 29-3-2012, relatado pelo Cons. Abrantes Geraldes, acessível em www.dgsi.pt), sustenta que os proprietários de prédios vizinhos ou confinantes têm o dever de “manutenção do equilíbrio imobiliário”. Assevera que “cada titular está vinculado, não só a abster-se da prática de actos que quebrem o equilíbrio imobiliário, como a reparar a falta de execução normal do seu direito, quando pela omissão desse exercício o equilíbrio imobiliário possa da mesma forma vir a ser quebrado” (ROA, ano 67º pág. 25).
Aplicando estas noções ao caso em apreciação, é fora de dúvida, em face da matéria de facto apurada, que incidia sobre a ré o dever de prevenção, relativamente às consequências (infiltrações e danos daí decorrentes para a autora) que a sua conduta (construção de uma parede, na qual encostou terra de um canteiro) provocou e continua a provocar na casa da autora.
Tendo a ré violado aquele dever geral de diligência, incorreu na prática de um ilícito culposo gerador de responsabilidade civil, nos termos do art. 483º do CC.
Tratando-se de uma obrigação propter rem assiste à autora o direito de exigir à ré a realização de obras de eliminação das infiltrações em causa e a reparar os danos provocados, derivando a mesma do próprio estatuto legal do direito de propriedade (cfr. artº 1305º do CC).
Como refere Manuel Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, pag. 275) “a violação, por qualquer proprietário, do direito de vizinhança, sempre que se traduza em inovações ou transformações materiais que contrariem as restrições que a lei impõe em benefício dos proprietários vizinhos, faz nascer, a cargo do autor da violação, uma obrigação propter rem (…)”.
Revogar-se-á, porém, a sentença recorrida na parte em que na mesma se condenou a ré a substituir o madeiramento apodrecido, pois que da matéria de facto provada não deriva que as infiltrações de água tenham provocado o apodrecimento dos barrotes de madeira e restante madeiramento que sustenta o telhado, como tinha sido alegado na p.i.
O que se provou foi apenas que as infiltrações ocorrem no sopé do canteiro e entre o fim da parede edificada pela ré e a parede da casa da autora.
Consequentemente, no que toca ao pedido de condenação da ré na substituição de todo o madeiramento apodrecido, esta não poderá deixar de ser absolvida.
No demais, acompanhamos as considerações vertidas na sentença, salientando-se, de resto, no que toca à indemnização por danos não patrimoniais, que na apelação não vem questionado o montante da mesma.

Procede, assim, em parte, a apelação.
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V. Decisão:
Pelo acima exposto, decide-se:
1. Julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que na mesma se condenou a ré a substituir o madeiramento apodrecido, absolvendo-se a ré desse pedido;
2. No demais, confirmar a sentença recorrida;
3. Custas da apelação pela apelante e apelada na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente;
4. Notifique.

Lisboa, 30 de Outubro de 2018

Manuel Ribeiro Marques - Relator

Pedro Brighton - 1º Adjunto

Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta
Decisão Texto Integral: