Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1795/07.6GISNT.L1-9
Relator: FÁTIMA MATA-MOUROS
Descritores: INFANTICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – O crime de infanticídio, p. e p. no artº 136.º do Código Penal pressupõe que a morte do filho advenha de perturbação da mãe provocada pelo parto.
II - Não obstante a Arguida ter matado a filha logo após o parto, decorrendo da factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto decidido que assim procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua conduta ao tipo criminal de infanticídio.
III - Fundando-se as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas no artº 132º do Código Penal na especial culpa do agente, não são as mesmas taxativas ou de funcionamento automático, antes constituem exemplos-padrão, exigindo-se sempre que elas exprimam, no caso concreto, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, manifestada na prática do facto em determinadas circunstâncias.
IV - Mesmo nos casos em que se referem a um maior desvalor da conduta (por exemplo, no caso de homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância que, por si, determina a qualificação do crime, mas a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.
V - A ocorrência dos exemplos-padrão não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos.
VI - Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples
VII - O facto ter sido praticado contra vítima especialmente indefesa e o facto de ter causado a morte (com asfixia da recém-nascida, nomeadamente através da introdução de um saco de plástico na cabeça e atado na zona do seu pescoço), constituem circunstâncias que merecem a qualificação de graves.
VIII - A estes elementos de facto relevados no acórdão recorrido como factores de revelação de especial censurabilidade, acresce a qualidade de ascendente da arguida em relação à vítima, integradora do exemplo-padrão previsto logo na alínea a) do n.º 2 do artº 132.º
IX – Porém, a especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto. Só deste modo a culpa poderá ser tida por especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera censurabilidade.
X - A arguida agiu debaixo de enorme sofrimento físico e psíquico, sofrendo dores agonizantes e dando à luz uma criança no termo do período de gestação, sem contar com o mais leve apoio médico ou mesmo humano. Se não foi por isso que se viu determinada à prática dos factos, não é menos certo, porém, que o estado de perturbação que necessariamente a envolveu, pesou, inevitavelmente, no grau de culpa concreta com que actuou. Não pode, por isso ser ignorado por um Direito Penal em que aquela constitui figura central.
XI - Neste contexto, falar de especial censurabilidade seria ignorar que o crime de homicídio qualificado pela especial censurabilidade não pode ser cometido numa situação de imputabilidade diminuída. Ainda que essa inimputabilidade seja meramente relativa e circunstancial, e não inibidora da sua capacidade de avaliação da ilicitude do facto e se determinar de acordo com a mesma, como no caso em análise. A decisão recorrida deve, portanto, ser corrigida quanto à qualificação jurídica do crime praticado pela recorrente, que é o de homicídio simples, p. e p. no artº 131.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

I. - No processo comum NUIPC 1795/07.6GISNT, na sequência da sua submissão a julgamento, por sentença proferida em 23 de Junho de 2009, no Juízo de Grande Instância Criminal Lisboa-Noroeste, foi a arguida condenada
a) como autora material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº 1 do Código Penal, na pena de 12 anos e 3 meses de prisão;

b) como autora material de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;

c) em cúmulo jurídico destas penas, foi a arguida condenada na pena única de 12 anos e 6 meses de prisão (artigo 77º, nºs 1 e 2 do Código Penal);

II – Inconformada com a mencionada decisão, a arguida interpôs o presente recurso, onde pugna pela anulação do julgamento e sua consequente repetição ou, a revogação da condenação e substituição por outra que, pelo crime p. p. no art. 136.º do CP a condene em pena não superior a cinco anos de prisão suspensa, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

1ª A recorrente impugna o douto aresto recorrido, tanto nas suas conclusões de facto, como de Direito, nos termos do artº 410 nº 1, do CPP.
2ª No que se refere à matéria de facto:
Em geral, a recorrente discorda que hajam sido dados como provados os factos que passa a enunciar, mencionando as provas que, em seu entender, justificam decisão distinta [artigo 412º, n.º 3 do CPP], mas que no essencial se resumem à circunstância de a arguida (i) não aceitar que tenha decidido desde logo livrar-se do nascituro, matando-o após o parto, facto descrito no artigo 3º do elenco dos factos provados (ii) que haja sido ela a dar um nó no saco de plástico e colocando-a dentro de mais sacos de plástico, factos referidos no artº 16 (iii) que haja escondido a recém-nascida num armário, com o intuito de a fazer desaparecer, factos referidos no artº 17º do elenco de factos provados (iv) que tivesse conhecimento que a recém-nascida estivesse viva após o parto.
3ª A recorrente consigna que a única pessoa que depôs em audiência ter visualizado a cena pós-parto de que resultaram os efeitos de que curam os autos foram: a própria arguida [que em discurso confuso acaba por admitir, por não se recordar, vários factos como possíveis], a testemunha B… [que apenas visualizou a arguida com grandes hemorragias tendo-a conduzido ao Hospital]; não havendo testemunhas presenciais, a condenação baseou-se unicamente nas declarações da arguida e da testemunha atrás referida.
4ª Ocorreu erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, n.º 2, alínea c) do CPP], quando se valorou como depoimento, relevante o de B… quando há todo um conjunto de factores que evidenciam a sua não credibilidade e as contradições manifestas do seu testemunho em relação ao envolvimento da arguida recorrente: (i) comportamento no caso é de desconhecimento da situação (ii) depoimento foi de tal forma confuso que o Mmo Juiz, não obstante a testemunha já haver sido inquirida, ordenou que a mesma aguardasse fora da sala de audiência, sem abandonar as instalações do Tribunal (iii) A Inspectora C… refere, em contradição flagrante com o depoimento de B…, afirmando que na primeira vez que se deslocaram à casa do Sr. B… estavam acompanhados por este, que lhes disse que o quarto onde posteriormente veio a ser encontrado a recém-nascida, não era muito utilizado, sendo um quarto só de arrumos (2009051917245972864001495764_04:35); a propósito da fundamentação do artigo 22, refere que o companheiro da arguida, b… ainda a transportou para a cama, comunicando-lhe que ia chamar o 112, no entanto, os Inspectores da PJ não referem a existência de manchas de sangue na cama [apenas visualizando-se a fls 64 uma toalha] mas apenas no chão.
5ª. Ocorreu erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, n.º 2, alínea c) do CPP], quando se desvalorizou como único depoimento presencial relevante no que se refere à morte intencional da recém-nascida: as declarações da arguida foram tidas como credíveis em relação a muitos dos factos essenciais dos autos, pelo que se afigura carecer de fundamentação especificada a razão pela qual se cinde a credibilidade da arguida que vale para provar uns factos e já não vale para provar outros.
6º A arguida não aceita que tenham sido dados como provados alguns factos, indicando os meios de prova que justificam decisão diversa, ocorrendo, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artº 410º nº 2, a)]: Facto 3 [Meio de prova: (i) 20090602100619728641495764_04:33]; Facto 5 [Meio de prova: 20090602100619728641495764_06:21 a 08:12; acresce o depoimento da Sra. Inspectora C… ao afirmar que, posteriormente ao sucedido, veio a ter conhecimento que a arguida tinha casa própria (2009051917245972864001495764_ 06:47); Facto 15 [a arguida ao prestar declarações, afirmou (i) que a recém-nascida não tinha chorado após o parto (15:18) (ii) não teve qualquer reacção (iii) estava roxa, vermelha. Meio de prova: o já referido e ainda o facto de a arguida afirmar que tentou soprar para a cara da recém-nascida, cortando-lhe de seguida o cordão umbilical, e a mesma continuava sem reacção (15:58 e 16:36). Facto reafirmado pela arguida ao referir não saber qual a medida do cordão umbilical quando o cortou, na esperança que a recém-nascida tivesse alguma reacção, o que não aconteceu (56:07); Facto 16 e 17: meio de prova: 20090602100619728641495764_17:12: referindo que foi buscar os sacos de plástico mas não se lembra de ter dado os nós à volta do pescoço. Refere o facto de estar em pânico, sentir-se muito débil, mas não se recordando de dar nós (17:30); Facto 28: Não se aceita, que tenha sido considerado provado que a recém-nascida, nasceu com vida, tendo tido respiração extra-uterina, pois a autópsia foi efectuada 48 horas após o óbito (fls 35 a 38 dos autos), e baseada no de Docimásia hidroestática positiva e óptica, devendo o primeiro dos métodos ser efectuado 24 horas após a morte, facto que não ocorreu; Facto 30: não se aceita que fosse a ora recorrente quem tivesse atado um saco à volta do pescoço da recém-nascida, pois que nenhuma prova foi feita em audiência relativamente a esta factualidade. Facto 32: não se aceita que a intenção da arguida fosse desfazer-se posteriormente do cadáver, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado: Meio de prova: 20090602100619728641495764_ 18:28]
7ª. No que se refere à matéria de Direito:
O aresto recorrido enferma de erro de Direito, por violação na aplicação do nº 2 do artº 374º do CPP, devido a inadequado acatamento do dever de formulação do exame crítico das provas, já que, a propósito da especial censurabilidade ou perversidade da conduta da recorrente – elemento essencial para a caracterização do tipo incriminador – não especifica quais os meios de prova que permitiram, em concreto, determinar tal dedução para enquadramento no tipo ilícito.
8ª A recorrente discorda quanto á qualificação do crime:
O aresto recorrido enferma de erro de Direito, quando considera estarem reunidos factos integrantes dos tipos incriminadores previstos nos artigos 131º e 132º nº 1 do Código Penal, que assim violou, pois que não está provado a especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Para a verificação da especial censurabilidade da culpa do agente na prática do crime de homicídio, há necessidade de avaliar a sua conduta global; ora, a recorrente não previu, não estava obrigada a prever, nem jamais quis, nem quereria a morte da recém-nascida.
Jamais cometeria o crime de infanticídio, se pudesse prever um resultado de tal forma gravoso.
Cremos estar perante o tipo previsto no artº 136º do Código Penal, pois que (i) tentando em estado de pânico agravado tentou socorrer a recém-nascida (ii) como a recém-nascida não reagiu, a recorrente supôs que a mesma estivesse sem vida.
9ª Quanto á espécie e medida da pena, a recorrente discorda e reitera o seguinte:
Somos levados a concluir, com o devido respeito, pelo crime de infanticídio, sendo a pena aplicada sempre suspensa na sua execução.
De acordo com o disposto no artº 50º do Código Penal, estão reunidos os pressupostos de tal medida alternativa à prisão, e nada obsta à sua aplicação, ainda que impondo o tempo máximo de suspensão legalmente previsto [ (i)Do ponto de vista da integração social da arguida, que a arguida não tem filhos; completou o curso de Linguística na Universidade Nova de Lisboa, dá explicações de Português e Inglês sendo ainda operadora em call center (ii)Do ponto de vista do seu comportamento pretérito, que, não tem registo de antecedentes criminais].

III - Respondeu o MP, salientando a sua discordância com a recorrente e pugnando pela manutenção da condenação, entendendo que:
- A argumentação do recurso em sede de impugnação de facto se limita a pôr em causa a livre convicção do julgador quanto a tal matéria, e concluindo que a fundamentação judicial para considerar os factos como provados é clara, inequívoca e exaustiva, espelha a decisão recorrida, e ao invés do ora alegado, a real aplicação do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal, ou seja, o julgamento segundo as regras da experiência e a livre convicção.
- Se extrai claramente, da matéria de facto dada como provada na sentença ora recorrida, que não se verifica o vício de erro notório que a recorrente aponta à decisão proferida sobre matéria de facto.
- Também quanto a existência de contradição insanável da fundamentação, não assiste razão à arguida.
- Face aos factos dados como provados bem andou o Tribunal a quo ao qualificar o crime de homicídio praticado pela arguida.
- Face à moldura penal do crime, nunca a pena poderia ser suspensa, porquanto legalmente inadmissível, considerando a pena aplicada correctamente doseada em função da culpa demonstrada pela arguida e demais elementos atendidos.

IV – O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação nada acrescentou à resposta apresentada pelo MP na 1ª instância, com a qual concordou.

V – Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Mediante o presente recurso o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior as seguintes questões:
I) impugnação da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida;
e consequentes
II) alteração da qualificação jurídica do crime praticado de homicídio para infanticídio.
III) Por último, sustenta ainda a recorrente, a diminuição da pena e sua suspensão.

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto.

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. A Arguida e B…, mantiveram um relacionamento amoroso iniciado no ano de 2001, tendo vivido um com o outro em condições análogas às dos cônjuges entre o ano de 2006 e o ano de 2007, na habitação sita em Av…, Rinchoa.
2. Por cerca do mês de Maio de 2007 a Arguida suspeitou que estava grávida, o que confirmou nesse mês, através do resultado positivo de teste de gravidez.
3. Pensou em não contar a ninguém esse seu estado, passando a ocultá-lo, bem assim decidiu livrar-se do nascituro, matando-o após o parto.
4. Em consonância com tal resolução, nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou obstetra, durante toda a gravidez.
5. Nem nunca comprou quaisquer artigos próprios para o seu estado de gravidez, para si ou para o nascituro.
6. Tendo-se esforçado durante os meses de gravidez para que a mesma não fosse visível ou perceptível a terceiros, nomeadamente ao seu companheiro, à sua mãe e demais familiares.
7. O que efectivamente conseguiu, inventando que estava com um problema de saúde de cariz ginecológico (tumor) e que carecia de ser submetida a tratamentos de quimioterapia, para o debelar.
8. Também convenceu o seu companheiro e familiares que esse problema de saúde tinha como consequência fazer inchar a zona abdominal e baixo-ventre, de modo a que não estranhassem o aumento do seu volume corporal.
9. Logrou, desse modo, dissimular a gravidez, durante todo o respectivo tempo.
10. No dia 15 de Novembro de 2007, a Arguida começou a sentir dores de barriga, pelo que, a fim de obter algum alívio, foi deitar-se, após tomar paracetamol.
11. Por cerca da meia-noite as dores intensificaram-se e a Arguida entrou em trabalho de parto.
12. Uma vez que estava deitada no quarto de dormir com o seu companheiro e não o querendo acordar e alertar, a mesma dirigiu-se para a casa de banho.
13. Fechou a respectiva porta e, constatando que estava a perder sangue e líquido amniótico, agachou-se dentro da zona do duche. 14. Cerca das 03H30 de 16 de Novembro de 2007 a Arguida pariu, tendo nascido uma criança de sexo feminino, com o peso de cerca de 3,650 kg e com o comprimento de 54 cm.
15. Imediatamente após o nascimento, a Arguida dirigiu-se à cozinha e, com o auxílio de uma tesoura, cortou o cordão umbilical que a unia à recém-nascida.
16. De seguida foi à dispensa buscar sacos de plástico, enfiou um saco de plástico na cabeça da recém-nascida, dando um nó no mesmo, na zona do pescoço desta, e colocou-a dentro de mais sacos de plástico.
17. Após escondeu-a num armário existente no outro quarto de dormir da casa que habitava, com o intuito de, posteriormente, a fazer desaparecer.
18. Terminada a tarefa de esconder a recém-nascida, a Arguida deslocou-se para o quarto onde o seu companheiro permanecia a dormir.
19. Contudo, porquanto a mesma começou com fortes hemorragias, teve de acordar o companheiro, que a ajudou a dirigir-se à casa de banho.
20. Já na casa de banho, sentou-se na sanita e permaneceu aí o tempo suficiente para que a placenta fosse expelida, o que veio a ocorrer.
21. Posteriormente a Arguida começou com hemorragias mais fortes, tendo desmaiado.
22. O seu companheiro transportou-a de volta para a cama e comunicou-lhe que ia chamar o «112», para a transportarem para o Hospital.
23. A Arguida ainda lhe disse para não chamar, contudo voltou a desmaiar e o seu companheiro solicitou o auxílio do INEM, que aí ocorreu e procedeu ao transporte dela para as urgências do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora.
24. Aí chegada, os médicos que a assistiram detectaram que a Arguida acabara de ter um parto e perguntaram-lhe pela criança. 25. A Arguida respondeu que tinha deitado a criança num caixote de lixo existente na Rua da sua residência.
26. Após ter regressado do Hospital, no dia 16 de Novembro, o companheiro da Arguida encontrou o cadáver da recém-nascida, dentro dos sacos de plástico, no armário mencionado em 17., subsequentemente ao que telefonou para a Polícia, tendo comparecido agentes no local, que, designadamente, providenciaram pela remoção do cadáver para o Instituto de Medicina Legal, onde foi autopsiado.
27. A criança que a Arguida deu à luz encontrava-se em termo de gestação, com ausência de malformações internas ou externas.
28. Nasceu com vida, tendo tido respiração extra-uterina.
29. A sua morte ficou a dever-se a asfixia por sufocação, por oclusão dos orifícios respiratórios, em consequência da acção da Arguida mencionada em 16.
30. Através de tal acção, designadamente ao enfiar um saco de plástico na cabeça da recém-nascida e atar o mesmo à volta do pescoço desta, a Arguida, sabendo que ela nascera com vida, igualmente sabia que desse modo lhe provocaria a morte, o que quis que sucedesse.
31. Nessa conduta agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a mesma era proibida e criminalmente punível.
32. Ao esconder o cadáver da recém-nascida, embrulhado em sacos de plástico, dentro de um armário, com vista a, posteriormente, desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado, a Arguida agiu igualmente de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que não estava autorizada a tal procedimento e que essa conduta era proibida e criminalmente punível.
(da determinação da sanção)
33. Desde há cerca de um ano a Arguida e B… voltaram a viver um com outro, ainda que de forma concomitante, em virtude de este passar alguns períodos na cidade na cidade do Porto.
34. A Arguida não tem filhos.
35. Completou o curso de linguística na Universidade Nova de Lisboa.
36. Dá explicações, de Português e de Inglês, em centro de explicações privado, bem como exerce a profissão de operadora de call center.
37. Em Dezembro de 2007 iniciou consultas de neuropsicologia e de psiquiatria, que mantém.
38. Não tem registo de antecedentes criminais.

Da relevante para a discussão da causa, não resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. Que a Arguida tivesse conhecimento que a sua gravidez tivesse sido consequência de relação sexual esporádica, com outra pessoa que não o seu companheiro B….
2. Que o facto de a recém-nascida não ser filha de B… tivesse tido alguma influência na acção da Arguida que se teve por provada.
3. Que o cadáver da recém-nascida tivesse sido encontrado dentro do armário por elementos da Polícia Judiciária.

Foi a seguinte a motivação da decisão de facto expendida no acórdão recorrido:

Relativamente à gravidez da Arguida, ocultação desse estado, bem assim ao sucedido na noite do parto, assentou o Tribunal fundamentalmente nas declarações da própria Arguida e no depoimento do seu companheiro B…, complementado pelos depoimentos dos bombeiros que acorreram ao local e do Inspector da Polícia Judiciária D…, que também aí se deslocou, bem assim pela documentação que infra se referirá.
A Arguida essencialmente assumiu os factos a ela respeitantes tal como se tiveram por provados, com excepção da intenção de matar a criança após o parto, dizendo a este respeito que, quando confirmou o seu estado de gravidez, pôs de parte fazer um aborto, tendo considerado a opção da adopção.
Disse também que após o parto a sua filha não chorou, não reagiu, que não se apercebeu se estava viva ou morta. Que ficou em pânico, que recorda-se de ter ido à dispensa buscar sacos de plástico, que não se lembre de dar nós, que admite que tenha colocado a recém-nascida dentro deles, bem assim que a tivesse colocado dentro de um armário, num quarto de dormir.
Igualmente não assumiu a sua intenção de, após o parto, desfazer-se do cadáver da recém-nascida, referindo a esse respeito que não tinha nada previsto, que não ia conseguir esconder «uma coisa dessas».
B… (que desde há cerca de um ano voltou a viver com a Arguida) relatou o sucedido na noite em questão, de que se apercebeu apenas quando a sua companheira o acordou (justificou o facto de não ter acordado por si próprio com a argumentação de que dormia sob efeito de calmantes e anti-depressivos, que tomara antes de se deitar, medicação que a Arguida também confirmou, dizendo ainda que o seu companheiro sofre de depressão crónica e que seria improvável que pudesse ter acordado com qualquer barulho, porque fechara a porta do respectivo quarto de dormir, bem como fechara aporta da casa de banho em que teve a criança), queixando-se de dores de barriga e que tinha hemorragias. Relatou as vicissitudes posteriores, até ao transporte da Arguida para o Hospital, bem assim o facto de, após ter regressado do Hospital, ter encontrado o cadáver da recém-nascida, num armário, dentro de sacos de plástico, que retirou daquele local, tendo disso informado a G.N.R.
Mais disse que ignorava, e que não suspeitava, que a sua companheira estivesse grávida, bem como ignorava que ela tivesse tido uma criança, que ela nunca lhe disse isso, pensando que o seu estado e as hemorragias de que sofria se devessem ao tumor que ela lhe disse que tinha.
Os bombeiros que se deslocaram ao local e que transportaram a Arguida ao Hospital, E… e F…, disseram que o episódio em questão foi-lhes comunicado pela triagem do CODU-INEM, para efectuarem o transporte de uma mulher com um mioma e hemorragia, conforme fizeram.
D…, Inspector da Polícia Judiciária, disse que, pelas 16/17H00 de 16 de Novembro, deslocou-se a casa da Arguida, na sequência de comunicação da G.N.R. de Rio de Mouro para a Polícia Judiciária de que, conforme informação do Hospital Amadora-Sintra, aquela teria tido um parto ou um aborto em casa e que deitara o feto ou o recém-nascido para um caixote do lixo. Demonstrou conhecimento do estado em que se encontrava a casa, designadamente da existência de extensas manchas de sangue pelo chão. Disse que procurou o alegado feto nos caixotes do lixo, não o tendo encontrado e que, mais tarde, por cerca das 20/21H00 desse mesmo dia recebeu um telefonema da G.N.R. de Rio de Mouro, informando que o companheiro da Arguida encontrara o cadáver do recém-nascido. Que voltou à casa por cerca das 22H00, tendo diligenciado pela remoção do cadáver para o Instituto de Medicina Legal.
Descreveu o seu estado, designadamente que se encontrava dentro de sacos de plástico e que tinha um saco de plástico a apertar-lhe a cabeça pescoço. Mais referiu que o cadáver encontrava-se defecado, o que o fez supor da existência de vida extra-uterina.
De fls. 61 a 71 encontra-se a reportagem fotográfica que foi efectuada pela equipa da Polícia Judiciária à casa em questão, salientando-se a este respeito as fotografias de fls. 69, 70 e 71, relativamente aos sacos de plástico em que se encontrava o cadáver, sendo perfeitamente visível que um dos sacos envolve a sua cabeça e encontra-se atado à volta do pescoço.
A testemunha C…, igualmente Inspectora da Polícia Judiciária, acompanhou D… aquando da primeira deslocação à casa da Arguida e do seu companheiro.
Ambos disseram também que não viram na casa qualquer vestuário de criança ou indícios de que os habitantes esperassem o nascimento de qualquer criança, o que aliás se mostra consentâneo com as declarações da Arguida, bem assim com o depoimento de B…, que ignorava que a sua companheira se encontrasse grávida.
Quanto ao internamento da Arguida no Hospital Fernando Fonseca ou Amadora-Sintra, a chefe de equipa do respectivo serviço de urgência, G…, médica ginecologista/obstetra, e a directora do departamento da mulher desse hospital, H…, disseram que a mesma entrou, em estado de choque, em perigo de vida, que disse que tinha uma patologia ginecológica, mas que se concluiu que ela tinha uma laceração de grau 2 no períneo, que habitualmente só num parto pode ocorrer, pelo que, confrontada com isso, disse que tinha tido um aborto e que tinha depositado o feto num contentor de lixo, o que determinou que se accionassem os mecanismos, designadamente policiais, respectivos.
Relativamente às características da recém-nascida, bem assim às causas da sua morte, assentou o Tribunal no teor do respectivo relatório de autópsia, de fls. 34 a 38 e no depoimento da médica ginecologista/obstetra G…, que revelou conhecimento da normalidade das características que ali são descritas concernentes ao seu desenvolvimento físico e da sua compatibilidade com parto de termo.
Deste contexto e das regras da experiência comum concluiu o Tribunal pela prova da vontade ou intenção da Arguida de matar o nascituro e desfazer-se dele, sendo certo também que do exame pericial psicológico a que foi submetida (cfr. fls. 249 a 273), concluindo por um funcionamento intelectual global de nível superior, com processamento cognitivo íntegro, sem indicadores de deterioração mental, não se encontra qualquer característica própria da Arguida que obstasse a que assim não procedesse, se não o tivesse querido fazer.
Com efeito, desde que soube que estava grávida a Arguida escondeu a gravidez, com sucesso (além do seu próprio companheiro, até da sua mãe, I…, com quem contactava pessoalmente cerca de uma vez por semana e por telefone praticamente todos os dias, que inclusive disse que chegou a suspeitar que ela estivesse grávida, devido a estar «muito gorda», mas que perguntou-lhe uma ou duas vezes e que ela sempre lhe disse que não), não consultou qualquer médico ginecologista ou obstetra, nunca adquiriu roupa ou outros utensílios para a criança. Em suma, comportou-se perante os que a rodeavam como se não estivesse grávida.
Consentâneo com esse comportamento acabou por ser aquele que teve, de parir sozinha, e esconder o corpo da recém-nascida, não obstante isso ter sucedido dentro da casa em que habitava com o companheiro, só vindo a descobrir-se o sucedido em virtude das complicações pós-parto, que determinaram o seu internamento hospitalar, aliás com risco da própria vida, conforme referiu a médica que a assistiu.
O comportamento da Arguida contraria claramente a sua versão de que pretenderia dar para adopção o filho que viesse a ter (que, aliás, mesmo abstraindo da demais factualidade, foi pouco convincente, pelo modo como falou a respeito dessa suposta intenção, que face ao contexto envolvente claramente se afigura como mera defesa e desculpa perante o Tribunal e perante si própria).
Com efeito, nada obstaria a que o fizesse. Certo é que não o podia fazer introduzindo a recém-nascida dentro de sacos de plástico, que, obviamente, morreria.
Que a quis matar é, assim, evidente, bem como mais evidencia essa intenção o facto de ter enfiado um saco de plástico na cabeça da recém-nascida e atado o mesmo à volta do seu pescoço, o que também contraria a sua (ténue, aliás) versão de que não se apercebeu se estava viva ou morta.
Será pertinente que se questione porque é que quis proceder desse modo e não abortou oportunamente?
A este respeito, não obstante a Arguida ter dito que pôs de parte abortar, admite-se que tal não corresponda inteiramente à verdade, mas que antes terá sucedido ela ter pretendido abortar, porém, sem sucesso, altura a partir da qual efectivamente pôs de parte abortar e determinou-se em eliminar o nascituro (com efeito a Arguida fez pelo menos uma deslocação a Espanha, aparentemente sozinha, supostamente para se tratar do inexistente «tumor», pelo que se afigura provável que o verdadeiro objectivo da viagem tivesse sido a interrupção da gravidez, que já não terá sido possível concretizar devido ao adiantado do seu estado).
O facto de ter colocado o cadáver da recém-nascida, envolto nos sacos de plástico, dentro de um armário, num quarto que se encontrava desocupado, mostrando-se condizente com o demais comportamento, não pode deixar de não ter outro significado que não seja o da intenção de ocultar o corpo até se lhe proporcionar a oportunidade de o fazer desaparecer (que se frustrou em virtude do internamento hospitalar a que se viu obrigada, sendo certo que, mesmo aí, quando foi confrontada com o parto, ainda tentou evitar que o cadáver fosse encontrado, dizendo que o tinha deitado para um caixote ou contentor de lixo).
Relativamente à matéria não provada, sem prejuízo de efectivamente não ser o companheiro da Arguida o pai da criança (cfr. doc. de fls. 240 a 243), nenhuma prova foi produzida no sentido de que a Arguida tivesse conhecimento desse facto, ou de que, mesmo que tal sucedesse, essa circunstância tivesse tido ou pudesse ter alguma influência no comportamento que adoptou.
A prova da factualidade relativa à situação pessoal da Arguida assentou essencialmente nas suas declarações e no depoimento da testemunha B…, bem assim teve-se em conta o teor do relatório pericial psicológico a que foi submetida e a declaração médica que apresentou em audiência, a fls. 397.
Relativamente aos antecedentes criminais assentou o Tribunal no C.R.C., de fls. 365.

3. Perante este quadro, vejamos se assiste razão à recorrente.

I) A arguida veio colocar em crise a decisão sobre a matéria de facto decidida na 1a Instância.

No caso sob apreciação este Tribunal pode conhecer de facto, em conformidade com o preceituado no art. 428°, do CPP, uma vez que houve documentação da prova produzida, oralmente, na audiência em 1a Instância.
Em conformidade com o disposto na al. b), do art. 431°, do CPP, e sem prejuízo do disposto no art. 410°, do mesmo Código, a decisão sobre a matéria de facto pode ser modificada, havendo documentação da prova, se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412° n° 3.
Recorde-se que, para esse efeito, mesmo que não seja requerida renovação da prova, como no caso sub judice, haverão de ser cumpridas as regras das alíneas a) e b) do art. 412°, n° 3 do Código de Processo Penal, de acordo com as quais quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve especificar quer «os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados» quer «as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida».
No caso sub judice, a recorrente concretizou, nas conclusões que extraiu da sua motivação, os factos que, no seu entender, não deveriam ter sido dados como provados, indicando os seguintes:
- que tenha decidido desde logo livrar-se do nascituro, matando-o após o parto;
- que tenha sido ela a dar o nó no saco de plástico e colocando a recém-nascida dentro de mais sacos de plástico;
- que a tenha escondido num armário no intuito de a fazer desaparecer;
- que tivesse conhecimento que a recém-nascida estivesse viva após o parto.
Estes factos constam dos n.ºs 3, 16 e 17 e 30 do elenco de factos provados registado no acórdão.
Para além da individualização dos concretos factos que considera mal julgados, na impugnação da matéria de facto, por via de recurso, a lei exige ainda que o recorrente explique as razões para cada uma das apontadas divergências, como decorre da al. b) do citado n.º 3 do art. 412.º do CPP.
Recordemos os argumentos invocados no recurso:
Invoca, em primeiro lugar, a recorrente que a única pessoa que presenciou a cena pós-parto foi a própria arguida e a testemunha B…, sendo que esta testemunha apenas testemunhou as hemorragias e a condução da arguida ao hospital.
Daí que entenda haver erro notório na apreciação da prova, nos termos previstos no art. 410.º/2c) do CPP, designadamente ao valorar-se como relevante o depoimento desta testemunha, quando a mesma evidenciou falta de credibilidade num depoimento confuso com contradições manifestas, ao mesmo tempo que se desvaloriza como único depoimento relevante no que se refere à morte intencional as declarações da arguida.
Mais invoca a recorrente carecer de fundamentação especificada a razão pela qual se cinde a credibilidade da arguida, cujas declarações valeram para provar uns factos mas já não valeram para outros.
Finalmente, invoca ainda insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, socorrendo-se:
- das declarações da arguida, em especial do facto de esta ter declarado que a recém-nascida não chorou após o parto, não teve reacção e estava roxa e vermelha, que foi buscar os sacos de plástico mas não se lembra de dar o nó, referindo estar em pânico e em estado débil.
- do facto de autópsia ter sido realizada somente 48 depois do óbito.
Vejamos:
Como é sabido, o recurso da matéria de facto não configura um novo julgamento. Tal como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, «o recurso de matéria de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» (cfr. Ac. STJ de 9/3/2006 in www. dgsi.pt).
A especificação das «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida» (art. 412.º/3b) só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico da prova que impõe a pretendida alteração. E, como sublinha Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCP, p. 1135, «o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação» sendo que «o grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado». Finalmente, importa ainda lembrar, no caso de as provas terem sido gravadas, como é o caso dos presentes autos, da motivação tem de constar a referência ao consignado em acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação – art. 412°, n° 4 do C.P.P.
Ora lida a motivação do recurso apresentado pela recorrente, verifica-se que a razão essencial da impugnação da matéria de facto que apresenta se prende com a inexistência de testemunhas presenciais dos factos integradores da conduta criminosa em referência, para além da própria arguida e seu companheiro, a testemunha B…, cujo depoimento, todavia, não deve merecer credibilidade, pelo que restaria ao tribunal acreditar inteiramente nas declarações prestadas pela arguida.
Em sustentação da falta de credibilidade da testemunha B…, a recorrente aponta, em especial:
- a impossibilidade de não ter tomado conhecimento da gravidez da sua companheira, quando o bebé viria a nascer com 3,650 Kg;
- o tribunal não permitiu que a testemunha se ausentasse do tribunal após a prestação do seu depoimento;
- a justificação dada pela testemunha para ter ido abrir o armário do quarto, baseada na necessidade de ir procurar roupas para a arguida, em contradição com o facto de não ter voltado ao hospital;
- a referência a ter transportado a arguida para a cama em contraste com a ausência de manchas de sangue na cama.
O merecimento de cada um dos argumentos em presença não pode ser analisado em abstracto, antes devendo ser analisado em concreto perante a motivação da convicção afirmada pelo tribunal a quo.
Ora, no que respeita ao contributo do depoimento da testemunha em referência para a formação da convicção do tribunal, o acórdão recorrido apenas evidencia sinais da sua relevância no que respeita à ignorância da gravidez da arguida (o que é corroborado pelas declarações desta e ausência de qualquer vestuário de criança na casa habitada por ambos) e ao sucedido na noite dos factos apenas a partir do momento em que foi acordado pela arguida, queixando-se de dores de barriga e de hemorragias, relatando o transporte daquela para o hospital (matéria também amplamente corroborada por outras provas reunidas nos autos) e a detecção do cadáver dentro de sacos de plástico em casa já no regresso do hospital com a informação à polícia (o que também se encontra em consonância com as informações que deram origem aos autos e registos fotográficos do cadáver) e, finalmente, no que respeita aos elementos pessoais da arguida.
Ou seja o tribunal a quo socorreu-se deste testemunho apenas em corroboração das próprias declarações da arguida e demais elementos de prova constantes dos autos. Dito de outro modo, e diferentemente do pretendido pela recorrente, nenhum facto relevante para a decisão da causa se mostra suportado apenas do depoimento desta testemunha. Mais, nenhum dos factos apurados ora impugnados no recurso foi apurado pelo tribunal a quo com base no depoimento desta testemunha.
Acresce que a clareza do raciocínio lógico seguido pelo julgador na formação da sua convicção, em nada sai abalada pelas discrepâncias pontuais apontadas aqui e ali pelo recorrente na análise que faz deste depoimento, ao longo da sua motivação de recurso. Certo é que nos aspectos em que o relato desta testemunha contribuiu para formar a convicção do tribunal, esta não se bastou apenas com base naquela prova, antes resultou em boa parte das próprias declarações prestadas pela arguida e da leitura que o tribunal fez das mesmas, quando conjugadas com toda a restante prova reunida.
Pretende, em segundo lugar, a recorrente que no acórdão recorrido não existe fundamentação especificada para a cisão da credibilidade da arguida, cujas declarações valeram para provar uns factos mas já não valeram para outros, o que mais uma vez qualifica de erro notório na apreciação da prova.
A este propósito cumpre recordar que das declarações da arguida o tribunal a quo só não deu credibilidade à sua negação da intenção e vontade de matar o nascituro bem como à concretização dessa vontade, colocando a recém-nascida dentro de sacos de plástico, escondendo-a de seguida num armário ou que tivesse tido a percepção de que a recém-nascida estivesse viva após o parto.
Todavia, e mais uma vez diferentemente do que a recorrente pretende, o tribunal explicou a razão para não acreditar nesta parte da versão da arguida, não omitindo a sua negação da intenção de matar do conteúdo das suas declarações, mas afirmando claramente que concluiu a referida intenção de todo o contexto apurado (gravidez escondida, inclusivamente da sua mãe, sem acompanhamento médico a que acrescem ainda sinais visíveis da ausência de preparação da chegada de um bebé a um lar sem qualquer roupa ou utensílios próprios para o acolher bem como as condições em que foi encontrado o cadáver da criança) e das regras da experiência comum, socorrendo-se ainda do teor do exame pericial psicológico a que a arguida foi submetida nos autos.
O acórdão sob apreciação permite, no geral, a reconstituião do procedimento lógico que presidiu à solução encontrada e que determinou que fossem dados uns factos como provados e outros como não provados. Com excepção, todavia, para um ponto.
Há, com efeito, um ponto dos factos apurados em primeira instância que não encontra nem na prova produzida nem nas regras da lógica e experiência comum base sólida de sustentação, além de que a exposição da convicção do tribunal ao longo da motivação aponta mesmo para a sua negação: trata-se da referência final constante do facto n.º 3, reportada à intenção de matar a criança após o parto firmada logo no momento em que a arguida soube que estava grávida. Na verdade, não faz muito sentido que ao tomar conhecimento da sua gravidez uma mulher decida aguardar pelo termo da mesma para matar a criança que está a gerar. Trata-se de uma decisão que foge a toda a lógica, pelo que se apresenta como inverosímil a uma compreensão normal das coisas. Que a arguida tenha desde o primeiro momento pensado em livrar-se do nascituro, está, com efeito, de acordo com o comportamento apurado à mesma durante a gravidez, designadamente ao ocultá-la de toda a gente, sem fazer qualquer consulta ou exame médico durante todo o tempo de gestação e sem, finalmente, adquirir qualquer peça de enxoval para o bebé, como bem se invocou na motivação do acórdão recorrido. Todavia, todo o referido quadro não permite afirmar que a ideia de se livrar do filho logo formada fosse ao ponto de decidir, a nove meses de distância, que iria matar o nascituro logo após o parto. Tudo indica, pelo contrário, que a arguida terá passado por várias fases ao longo da gravidez no que respeita à ideia do que pretendia fazer com a criança. O próprio tribunal a quo deixa dessa hesitação e alteração de planos clara convicção ao afirmar-se na motivação da decisão de facto, que «não obstante a Arguida ter dito que pôs de parte abortar, admite-se que tal não corresponda inteiramente à verdade, mas que antes terá sucedido ela ter pretendido abortar, porém, sem sucesso, altura a partir da qual efectivamente pôs de parte abortar e determinou-se em eliminar o nascituro (com efeito a Arguida fez pelo menos uma deslocação a Espanha, aparentemente sozinha, supostamente para se tratar do inexistente «tumor», pelo que se afigura provável que o verdadeiro objectivo da viagem tivesse sido a interrupção da gravidez, que já não terá sido possível concretizar devido ao adiantado do seu estado)».
Entende-se, assim, que, em correcção deste erro que se afigura como notório nos termos do art. 410.º/2c) do CPP, deve ser retirado dos factos provados a referência à formação da intenção de matar desde o primeiro momento (final do facto descrito em 3) o qual deverá, assim passar a integrar os factos não provados.
Finalmente, invoca ainda insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, socorrendo-se de duas ordens de argumentos:
- as declarações da arguida, em especial quando afirma que a recém-nascida não chorou após o parto, não teve reacção e estava roxa e vermelha e que foi buscar os sacos de plástico mas não se lembra de dar o nó, referindo estar em pânico e em estado débil.
- a autópsia ter sido realizada somente 48 depois do óbito.
A este respeito e antes do mais cumpre referir que a recorrente parece confundir insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada com insuficiência de prova. Na verdade, o fundamento a que se refere a al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito o que é realidade bem diferente da insuficiência de prova para a decisão de facto proferida. Enquanto a primeira integra, com efeito, um vício da sentença, a segunda não pode deixar de convocar o princípio base da apreciação da prova no nosso sistema processual penal: o princípio da livre apreciação. A prova é apreciada pelo julgador segundo as regras da experiência e da sua livre convicção (artº 127º do Código de Processo Penal) e é no julgamento da 1ª instância que, por força da oralidade e do contacto pessoal e directo com as provas, melhor se conjugam as condições para apreciar a fiabilidade dos depoimentos.
Assim sendo, não podemos concordar com a recorrente, nesta matéria, tendo em atenção o supra exposto e os invocados princípios da livre apreciação e da imediação.
Na verdade, e diferentemente do pretendido pela recorrente, o tribunal recorrido fez um criterioso apuramento da matéria de facto, segundo as regras da experiência, e no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP, inclusive os seus limites, nenhuma censura merecendo a matéria de facto apurada, afigurando-se, pelo contrário, que a convicção do tribunal a quo se apoia nos elementos probatórios resultantes do julgamento, evidenciando um raciocínio lógico na respectiva formação. Não será a circunstância de a arguida ter referido ou deixado de referir, por exemplo, que a criança chorou à nascença que determinará inevitavelmente o apuramento desse facto. Atente-se que existem outros elementos de prova com relevância para o apuramento destes dados, com especial relevo, naturalmente, para o próprio resultado da autópsia. Inquestionável é que o acórdão sob apreciação permite a completa reconstituião do procedimento lógico que presidiu à solução encontrada e que determinou que fossem dados uns factos como provados e outros como não provados.
Conclui-se, assim, que pretendendo embora discutir o acerto da factualidade dada como provada na sentença recorrida, a recorrente limitou-se, no geral, a discordar da valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, sem, todavia, apresentar argumentos válidos ou suficientes para infirmar a convicção afirmada pelo julgador.
No que respeita, ao tempo decorrido entre o óbito e a realização da autópsia, tratou-se de dado registado no respectivo relatório o que, todavia, não se afigurou, aos olhos dos técnicos, como elemento relevante para impedir a conclusão pericial de que «o recém-nascido do sexo feminino autopsiado teve respiração extra uterina. A morte do recém-nascido do sexo feminino autopsiado foi devida a asfixia por sufocação por obstrução dos orifícios respiratórios. As lesões traumáticas descritas (…) resultaram de acção de natureza contundente».
É certo que a médica obstetra que inquirida foi em julgamento, por ter assistido a arguida no hospital, não soube responder à dúvida suscitada pela ilustre defensora daquela concernente à fidedignidade das conclusões da autópsia perante o hiato de tempo decorrido entre o óbito e a realização da mesma. Mas não é menos certo também, que a médica em referência não é especialista em Medicina Legal, como logo reconheceu. Porém, os serviços que realizaram a autópsia são os especializados em patologia forense.
Ora, conforme dispõe o art. 163.º/1 do CPP, «o juízo técnico, científico (…) inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», acrescentando o n.º 2 que «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência». Não foi, obviamente, o caso. Nem o tribunal a quo divergiu das conclusões periciais, nem a mera dúvida apresentada pela ilustra advogada da arguida a uma testemunha (médica) e que esta não soube resolver, se apresenta como suficiente para o efeito.
Termos em que improcede a impugnação da matéria de facto suscitada no presente recurso, nos moldes em que o foi.
Todavia, existe um aspecto da matéria de facto em que a decisão recorrida se apresenta como insuficiente para a boa decisão da causa. Com efeito, em vão procuraremos ao longo de toda a decisão, quer no elenco dos factos provados quer no dos factos não provados a mais leve referência aos sentimentos manifestados pela arguida bem como ou à dor física, e psíquica vivida durante e após a prática dos factos. E, todavia, ouvidas as gravações da prova logo se verifica ter sido matéria amplamente abordada no julgamento, em especial pela própria arguida e testemunha B…, seu companheiro.
Que se trata de matéria com evidente relevo para a decisão a proferir, não devem restar dúvidas, desde logo perante os normativos legais que prevêem os critérios para a fixação da medida da pena.
Em face do exposto, manifesto é que o Tribunal a quo omitiu a pronúncia sobre factos indispensáveis à boa apreciação da mesma, o que, configura o vício de insuficiência da matéria de facto provada, porquanto nesta expressão devem ser incluídos os factos provados e os factos não provados (neste sentido v. Anotações 82 e 87 ao art. 410.º do CPP, inscritas por Paulo Pinto da Albuquerque no seu Comentário do CPP).
O acórdão recorrido enferma, assim, do vício a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, vício que se afigura ser do conhecimento oficioso.
O tribunal de recurso tem o poder de suprir as nulidades da sentença.
Devendo todos os factos integrantes da matéria de facto ser apurados em 1.ª instância, certo é que no caso o tribunal de recurso dispõe de todos os elementos necessários para suprir a omissão verificada na 1ª instância, relativamente a factos que, pese embora num outro segmento de argumentação (demonstração da ausência da vontade de matar ou do desconhecimento do nascimento com vida da criança), certo é que foram invocados na motivação de recurso à qual também o MP teve ocasião de responder, o que garante as condições do processo leal e justo (art. 431.º/a) e b) do CPP).
Impõe-se, em suma, um alargamento da matéria de facto apurada de forma a abranger as condições emocionais e físicas em que a arguida viveu os factos, bem como as suas consequências.
Assim, com base:
1) nas declarações prestadas pela própria arguida, num relato várias vezes interrompido pela comoção e a dor sofrida até hoje, numa lembrança que a assola todas as manhãs, logo ao acordar,
2) bem como no depoimento da testemunha B…, firme ao explicar que reatou a relação com a arguida, apesar dos factos, por se tratar de uma pessoa que «não tem mau instinto», se emociona quando vê uma criança e soube sempre estar presente para o ajudar nos seus problemas, apesar de a testemunha nem sempre ter conseguido ajudá-la nos dela,
3) mas sobretudo com base nas regras da lógica e da experiência comum, sabendo-se como pode ser dolorosa fisicamente a vivência de um parto, em especial de um bebé pesado e de dimensões grandes, vivido sem nenhuma ajuda, e que terá deixado a arguida em risco de vida, como testemunhado pela médica obstetra que a assistiu no hospital, julga-se demonstrado ainda, em sede de factos provados que:
- a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança;
- penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.

II) Perante os factos apurados, improcedendo a impugnação de facto apresentada pela recorrente, e mesmo considerando os dois factos aditados, manifesto é que deverá improceder também a pretensão de ver a sua condenação alterada para a prática do crime de infanticídio.
Na verdade, a questão do enquadramento jurídico-penal dos factos colocada ao recurso assentava no pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto já acima conhecida e considerada improcedente.
Como se refere no acórdão recorrido, «não obstante a Arguida ter matado a filha logo após o parto, decorrendo da factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto decidido que assim procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua conduta ao tipo criminal de infanticídio, que imporia que a morte em questão tivesse meramente advindo de perturbação provocada pelo parto, que afectasse o seu discernimento (cfr. artigo 136º do Código Penal), o que não se concluiu que tivesse sucedido (sem prejuízo da perturbação que o parto naturalmente provoca na parturiente), nem tão pouco se coadunaria com a formação prévia da vontade de assim proceder após o parto».
Assente que estamos perante um crime de homicídio, vejamos, então se deverá haver lugar à qualificação do crime pela especial censurabilidade.
A este respeito pode ler-se no acórdão recorrido: «A acusação funda as qualificativas do crime de homicídio que imputa à Arguida no facto de esta ter praticado o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade [alínea c)], ter agido por motivo torpe ou fútil [alínea e)] e ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas [alínea j)].
Com efeito, fundando-se as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas no artigo 132º do Código Penal na especial culpa do agente (no sentido de que o homicídio qualificado constitui um tipo de culpa, cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Ed. Almedina, 1990; Figueiredo Dias, Comentário Conimbrincense ao Código Penal, Ed. Coimbra Editora, Tomo I, pág. 29, ou Ac. do S.T.J. de 4-7-1996, in C.J.S.T.J., ano IV, T. II, pág. 222), não são as mesmas taxativas ou de funcionamento automático, antes constituem exemplos-padrão, exigindo-se sempre que elas exprimam, no caso concreto, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, manifestada na prática do facto em determinadas circunstâncias.
Deste entendimento decorre que não obsta à verificação dessa especial censurabilidade ou perversidade do agente na produção da morte de outrem o facto de não se ter por verificada qualquer das circunstâncias qualificativas enumeradas no artigo.
No caso em apreciação, não se tendo por provado o motivo torpe ou fútil da qualificativa em que assentava a acusação (de a Arguida assim ter procedido em virtude de a gravidez ter resultado de relação sexual esporádica), é, porém, manifesto que a Arguida praticou o facto contra pessoa absolutamente indefesa, bem como persistiu na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Além da verificação dessas qualificativas exemplificadas no tipo, entende-se que a produção da morte em tais circunstâncias consubstanciam conduta em concreto reveladora de especial censurabilidade e de especial perversidade, uma vez que as circunstâncias em que a morte foi previamente calculada (quando tinha alternativas, designadamente a via da adopção, atento a que não pretendia ficar com a criança para si, o que já por si também fere elementares sentimentos de normalidade social) e causada (com asfixia da recém-nascida, nomeadamente através da introdução de um saco de plástico na cabeça e atado na zona do seu pescoço) são de tal modo graves que reflectem atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores, bem como são demonstrativas de sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade (acerca das noções de especial censurabilidade e de especial perversidade, v. Teresa Serra, ob. cit., págs. 63 e 64).
Conclui-se assim que a Arguida cometeu um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº 1 do Código Penal».
Cumpre analisar:
Com efeito, tal como evidenciado no Ac. STJ de 18 de Fevereiro de 2009, disponível in www.dgsi.pt, «embora dividida, a doutrina vem entendendo que os exemplos-padrão definidos no art.º 132.º do Código Penal se prendem essencialmente com a questão da culpa, pois mesmo quando se referem a um maior desvalor da conduta (por exemplo, no caso de homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância que, por si, determina a qualificação do crime, mas a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa. (…)
Acerca dos conceitos de censurabilidade e perversidade, escreve Teresa Serra (Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63): Dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. (…). Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplo-padrão».
E prossegue o mesmo acórdão: «A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. Conforme se afirmou em acórdão deste Supremo Tribunal, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa (ac. de 07-07-2005, proc. 1670/05 – 5ª secção): é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da acção do agente ou um aspecto especialmente desvalioso da sua personalidade documentado no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude se concretize em qualquer dos exemplos-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. É que estes são elementos típicos, embora atinentes ao tipo de culpa e não ao tipo de ilícito e daí que, mesmo no caso de ocorrência de outra circunstância que não a exactamente prevista, esta tenha de assentar numa estrutura valorativa correspondente à do respectivo exemplo-padrão».
Tem pautado, com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento constante de que a qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência inevitável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. «Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples» (ac. de 21-05-1997 - proc. n.º 188/97). Não considera, portanto, o Supremo a qualificação do crime de homicídio como uma consequência automática do preenchimento de algum dos exemplos-padrão, entendendo que as circunstâncias ali enunciadas se reportam à culpa. Conforme se decidiu no ac. 14-07-2006 - proc. 1926/06, o que vem a conferir ao tipo qualificado características de tipo de culpa é o facto de ser sempre decisivo que da actuação do arguido, preenchendo uma qualquer circunstância coincidente com a do exemplo-padrão ou circunstância de estrutura análoga, resulte uma especial censurabilidade ou perversidade, pois se, não obstante ocorrer uma circunstância do tipo aludido, se não verificar aquela, a realização do tipo qualificado tem-se por excluída».
Recordado o sentido da jurisprudência superior afirmada em sede de preenchimento do tipo de homicídio qualificado previsto no art. 132.º do CP, caberá verificar se no caso em apreço se mostram reunidos os respectivos pressupostos.
Desde logo importa realçar que uma das circunstância em que o acórdão recorrido assentava a verificação de especial censurabilidade na conduta da arguida, designadamente a persistência do propósito de matar por mais de 24h, deixou de poder ser atendida, perante a alteração dos factos acolhida neste tribunal de recurso, como acima já se deixou consignado. Subsiste, porém, o facto ter sido praticado contra vítima especialmente indefesa e o facto de ter causado a morte (com asfixia da recém-nascida, nomeadamente através da introdução de um saco de plástico na cabeça e atado na zona do seu pescoço), que _ ninguém duvidará _ constituem circunstâncias que merecem a qualificação de graves.
A estes elementos de facto relevados no acórdão recorrido como factores de revelação de especial censurabilidade, acresce a qualidade de ascendente da arguida em relação à vítima, integradora do exemplo-padrão previsto logo na alínea a) do n.º 2 do art. 132.º
Porém, deverão, neste caso em concreto, aquelas circunstâncias de facto ser consideradas como reveladoras de especial censurabilidade?
Aqui chegados, caberá recorrer de novo ao Ac. STJ já acima citado para salientar que «a especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto, pelo que, só deste modo a culpa poderá ser tida por especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera censurabilidade. Neste sentido, decidiu o STJ no ac. de 18-10-2006 – proc. 2679/06».
Ora, neste caso, a arguida agiu debaixo de enorme sofrimento físico e psíquico, sofrendo dores agonizantes e dando à luz uma criança no termo do período de gestação, sem contar com o mais leve apoio médico ou mesmo humano. Não tendo sido determinante do homicídio, a perturbação da arguida não deixou, porém de estar presente ao longo de todo o tempo em que praticou os factos. Uma perturbação ditada por uma dor agonizante e uma situação de evidente e inevitável aflição para a qual não pode contar com ajuda de qualquer espécie. Se não foi por isso que se viu determinada à prática dos factos, não é menos certo, porém, que o estado de perturbação que necessariamente a envolveu, pesou, inevitavelmente, no grau de culpa concreta com que actuou. Não pode, por isso ser ignorado por um Direito Penal em que aquela constitui figura central.
Este estado psíquico e físico, não se tendo apresentado como determinante dos actos que então praticou, não deixaram de condicionar o seu raciocínio. Neste contexto, falar de especial censurabilidade seria ignorar a lucidez dos ensinamentos do STJ acima acabados de recordar: i.e., o de que o crime de homicídio qualificado pela especial censurabilidade não pode ser cometido numa situação de imputabilidade diminuída. Ainda que essa inimputabilidade seja meramente relativa e circunstancial, e não inibidora da sua capacidade de avaliação da ilicitude do facto e se determinar de acordo com a mesma, como no caso em presença.
A decisão recorrida deve, portanto, ser corrigida quanto à qualificação jurídica do crime praticado pela recorrente, que é o de homicídio simples, p. e p. no art.º 131.º do C. Penal.

III) Também a pretensão de diminuição da pena e suspensão da respectiva execução apresentada no recurso, sustentada na alteração da qualificação do crime para o crime de infanticídio, p.p. no art. 136.º do CP, não poderá deixar de improceder.
Todavia, importa, naturalmente, encontrar a pena adequada à nova moldura penal em presença para punir o crime de homicídio. Dispõe o art. 131.º do CP que quem matar pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.
Assim, nos termos do disposto no art. 73.º/1ª) e b) do CP, ponderando o dolo directo, elevado grau de ilicitude e as consequências irreparáveis causadas, sem ignorar a ausência de antecedentes criminais e a inserção social e profissional da arguida, bem como, finalmente, o sofrimento resultante para a arguida dos actos que ela mesma praticou, numa amargura causada pela morte da própria filha que provavelmente a acompanhará durante toda a vida numa penalização que se impõe a si mesma marcando as primeiras imagens que lhe vêm à memória todas as manhãs ao acordar, julga-se adequada uma pena situada ainda abaixo da média entre os limites máximo e mínimo, que se fixa nos nove anos de prisão, mas já algo distanciada do limite mínimo.
Reformulando o cúmulo de modo a englobar a pena de seis meses de prisão aplicada em primeira instância pelo crime de profanação de cadáver (e que não merece qualquer censura), julga-se adequada à punição dos dois crimes a pena única de nove anos e três meses de prisão, no respeito pelo disposto no art. 77.º do CP.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em:
I) Conceder parcial provimento ao recurso.
II) Corrigindo o erro notório verificado na apreciação de facto, eliminar do elenco dos factos provados a referência constante da parte final do facto n.º 3 (matando-o após parto), aditar aos factos não provados o seguinte: não provado que a arguida decidisse matar o nascituro após parto logo que soube que estava grávida.
III) Suprindo oficiosamente a nulidade do acórdão consistente na insuficiência da matéria de facto para a decisão, aditar os seguintes factos aos provados:
- a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança;
- penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.
IV) Em consequência, alterar a condenação da arguida nos seguintes moldes:
a) como autora material de um crime de homicídio simples, p. e p. pelos artigos 131º do Código Penal, vai a arguida condenada na pena de 9 anos de prisão;
b) Em cúmulo jurídico com a pena de seis meses aplicada pelo crime de profanação de cadáver, condenar a Arguida A… na pena única de 9 anos e três meses de prisão.
V) Fixar a tributação em 6 UCs (art. 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1 do Código de Processo Penal e art. 87.º n.º 1 al. b) e 3 do Código das Custas Judiciais), sem prejuízo da protecção judiciária concedida.

Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2 do CPP)

Lisboa, 11 de Março de 2010

Maria de Fátima Mata-Mouros
João Abrunhosa