Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1213/14.3TFLSB.L1-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: EXECUÇÃO POR COIMA
INDEFERIMENTO LIMINAR
CUSTOS DE ACTIVIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Em processo de execução sumária por coima aplicada por autoridade administrativa, o requerimento executivo proposto pelo MºPº, não pode ser indeferido liminarmente com base em critérios de apreciação do Juiz sobre a oportunidade para a sua instauração, com base no valor, nomeadamente nos termos do artº 35, nº4 do Regulamento de Custas Processuais ou seja, por considerar que o Ministério Público deveria ter-se abstido de o instaurar nos termos do citado normativo.
II - Tal argumento não faz parte sequer do elenco de fundamentos de indeferimento liminar previstos na lei processual nomeadamente no artigo 762.º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – 5ª SECÇÃO (PENAL)

I-RELATÓRIO

1.1- O Ministério Público propôs na comarca de Lisboa- Instância Central, Sec.Peq. criminalidade-J3, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º2, do Regime Geral de Contra-Ordenações e Coimas, a execução comum por coima nº 1213/14.3TFLSB para pagamento de coima e custas no valor inicial de 142,50 euros, aplicadas por decisão administrativa definitiva.

No requerimento executivo apresentado a 12-06-2014 o MºPº indicou à penhora bens móveis que se encontrassem na residência da executada M…, Lda …Torres Vedras, e o veículo de matrícula xx-xx-xx.

No respectivo âmbito  e por despacho judicial de 4-7-2014, foi decidido perante tal requerimento:

 “Uma vez que inexistem quaisquer bens ou rendimentos do executado indicados pelo M.P. conhecidos susceptíveis de penhora e suficientes face ao valor da execução e atento o montante da dívida que é inferior aos custos da actividade e às despesas prováveis da execução, o M.P. deve abster-se de instaurar a execução, nos termos do artigo 35º, nº4 do Regulamento das Custas Processuais aplicável ex vi artigos 89º, nº2 do RGCO e 491º e 510º, ambos do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, indefiro o requerimento executivo. Sem custas por legalmente inadmissíveis. Proceda-se ao arquivamento dos autos. Notifique.”

1.2 – Desta decisão, inconformado, recorreu  o MºPº apresentando as seguintes conclusões da motivação:

3.1. O Ministério Público propôs, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º2, do Regime Geral de Contra-Ordenações e Coimas, acção executiva para pagamento de coima e custas aplicadas por decisão administrativa.

3.2. Contudo, o tribunal a quo indeferiu liminarmente tal requerimento executivo, por considerar que o Ministério Público deveria ter-se abstido de o instaurar nos termos do artigo 35.º, n.º4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Processuais.

3.3. Por um lado, o disposto no artigo 35.º, n.º4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais, não é, directa ou subsidiariamente, aplicável a coimas e, consequentemente, não é aplicável aos presentes autos.

3.4. Com efeito, conforme se refere na versão actualizada da Circular da P.G.R. n.º9/2006, datada de 28/12/2006, «(…) II. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 89º, nº 2 do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro e do art. 491º, nº 2 do Código de Processo Penal, a execução para pagamento coercivo de coima segue os termos da execução por custas, prevista nos arts. 35º e 36º do Regulamento das Custas Judiciais. Aquela remissão legal deve ser entendida no sentido de que à execução por coima se aplica o regime processual das execuções por custas (tal como se aplica, de resto, à execução das multas criminais ). Essa aplicação, deve, no entanto, ter sempre presente a diferente natureza das quantias a executar e as finalidades que lhe estão subjacentes. De facto, as coimas e as custas têm natureza diversa, o que determina a necessidade de ser ponderada e considerada essa diferente natureza na aplicação concreta daquele regime. A coima é uma sanção, resultante de uma condenação por contra-ordenação. Corresponde ao sancionamento de uma conduta qualificada pela lei como um facto típico, ilícito e censurável (artigo 1º, do Decreto-Lei 433/82, de 27/10 ).

A sua execução coerciva tem como finalidade o cumprimento de uma sanção com carácter punitivo, aplicada no âmbito de um ordenamento jurídico sancionatório. Contrariamente, as custas constituem encargos com a justiça, não têm natureza sancionatória, não se equiparando a sanções penais. Por isso mesmo, o disposto no art. 35º, nº 4, 2ª parte do Regulamento das Custas Judiciais não é aplicável às execuções (a instaurar ou instauradas ) para pagamento coercivo de dívida de coima. (…) IV - Tendo em conta o exposto, (…) ao abrigo do disposto no art. 12º, nº 2, al. b), do Estatuto do Ministério Público, determino que os Senhores Magistrados e Agentes do Ministério Público observem e sustentem o seguinte:

 1.1 - A remessa legal feita pelas disposições conjugadas do art. 89º, nº 2 do Decreto Lei 433/82, de 27 de Outubro e do art. 491º do Código de Processo Penal, para o regime processual da execução por custas, não poderá deixar de salvaguardar a natureza das dívidas a executar e as finalidades da execução.

1.2 - Considerando, pois, a natureza da coima, sanção de carácter punitivo, o disposto no art. 35º, nº 4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais não será aplicável quando esteja em causa a instauração de uma execução para pagamento de dívida de coima, nem no âmbito de execução já instaurada para o mesmo efeito. 1.3 - Recebido um processo de contra-ordenação, remetido por autoridade administrativa para efeitos do disposto no art. 89º do Decreto-Lei n.º433/82, de 27 de Outubro (ou tendo vista de processo de contra-ordenação pendente em Tribunal para os mesmos efeitos), os senhores Magistrados do Ministério Público, desde que reunidos os demais pressupostos legais, deverão instaurar execução, independentemente do valor da coima a executar. (…)»

3.5. Por outro lado, a decisão de o Ministério Público instaurar acção executiva não poderia, salvo melhor opinião, ter sido judicialmente sindicada. Com efeito, trata-se de competência exclusiva do Ministério Público, tendo o tribunal a quo violado a autonomia prevista no artigo 219.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, ao declarar que o mesmo deveria ter-se abstido de instaurar execução por coima e custas.

3.6. Acresce que no caso em análise não só inexiste qualquer causa de indeferimento liminar do requerimento executivo prevista no artigo 762.º do Código de Processo Civil, como tal não foi invocado no despacho em crise.

3.7. Por último, a conclusão formada pelo tribunal a quo de que inexistem quaisquer bens ou rendimentos do executado indicados pelo Ministério Público conhecidos susceptíveis de penhora e suficientes face ao valor da execução carece de fundamentação, isto é, não é acompanhada de qualquer facto que a suporte, tendo violado o disposto no artigo 154.º do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser declarado procedente e revogado o despacho em crise, o qual viola o disposto nos artigos supra indicados. »

1.3- Admitido o recurso e remetido a esta Relação, o MºPº emitiu parecer no sentido de ser cumprido o artº 652º do CPC.

1.4- Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora decidir.

II- CONHECENDO

2.1-O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo  do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP  [1].

Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2].

Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis  no âmbito dos poderes desta Relação.

2.2-Está em discussão para apreciação , em síntese,  o seguinte  conjunto de questões, aliás elencadas nas conclusões do recorrente:

A) A autonomia do MºPº prevista no artigo 219.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, foi violada por o tribunal declarar que o mesmo deveria ter-se abstido de instaurar execução por coima e custas nos termos do 35.º, n.º4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais?

B) Inexistia qualquer causa de indeferimento liminar do requerimento executivo prevista no artigo 762.º do Código de Processo Civil, pelo que a conclusão formada pelo tribunal a quo de que inexistem quaisquer bens ou rendimentos do executado indicados pelo Ministério Público conhecidos susceptíveis de penhora e suficientes face ao valor da execução carece de fundamentação, tendo violado assim o disposto no artigo 154.º do Código de Processo Civil?

C) O artº 35.º, n.º4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais (RCJ) não é directa nem indirectamente aplicável ao caso, visto estar em causa a execução por coima?

2.3-  A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

2.3.1- A sindicabilidade judicial da decisão do MºPº de instaurar execução com base no invocado artº 35º nº4, 2ª parte, do RCJ, a sua autonomia.

Dispõe o artº 35º nº4 do RCP (na sua versão aplicável à data, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008,)

(…)

4 - O Ministério Público apenas instaura a execução quando sejam conhecidos bens penhoráveis do devedor que se afigurem suficientes face ao valor da execução, abstendo-se de a instaurar quando a dívida seja de montante inferior aos custos da actividade e às despesas prováveis da execução.(…)” (itálicos nossos)

Por sua vez, o artigo 89.º do RGCC (da execução), prevê que:

“1 – O não pagamento em conformidade com o disposto no artigo anterior dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, segundo o artigo 61.º, salvo quando a decisão que dá lugar à execução tiver sido proferida pela Relação, caso em que a execução poderá também promover-se perante o tribunal da comarca do domicílio do executado.

2 - A execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa.(itálico nosso)

3 - Quando a execução tiver por base uma decisão da autoridade administrativa, esta remeterá os autos ao representante do Ministério Público competente para promover a execução.

4 - O disposto neste artigo aplica-se, com as necessárias adaptações, às sanções acessórias, salvo quanto aos termos da execução, aos quais é aplicável o disposto sobre a execução de penas acessórias em processo criminal. “

Do mesmo passo, o artigo 491.º do CPP estipula em caso de não pagamento da multa, que:

“1 - Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução patrimonial.

2 - Tendo o condenado bens suficientes e desembaraçados de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue os termos da execução por custas.

3 - A decisão sobre a suspensão da execução da prisão subsidiária é precedida de parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente.”

Finalmente o artigo 510.º do CPP, em sede de lei aplicável, dispõe que:

“Em tudo o que não esteja especialmente previsto neste Código, a execução de bens rege-se pelo disposto no Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais.”

Portanto, à execução por coima e custas do processo administrativo e contraordenacional aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa , a qual segue os termos da execução por custas e, em tudo o que não esteja especialmente previsto no CPP, a execução de bens rege-se pelo disposto no Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais.

             

Desde logo, a decisão de instaurar a execução cabe ao MPº e não ao juiz, não podendo este, prima facie e liminarmente, impor-lhe que devesse ter-se abstido.

Ao juiz de execução cabe aferir da legitimidade do MºP mas já lhe compete aferir do não uso de um critério discricionário de abstenção, ao qual, aliás, o MPº, segundo a Circular interna citada pelo recorrente, está vinculado.

Não vemos de todo afastada a possibilidade de o MºPº poder abster-se com base na aplicação daquele nº4 do artº 35º do RCP, se assim o entender, concorde-se ou não com o recurso subsidiário a essa norma.

 Mas, a partir do momento em que o MºPº decide instaurar a execução, o controle da possível abstenção não é da competência jurisdicional, sob pena de invasão da esfera de acção do MºPº e aplicação de norma não prevista nem sequer em vigor.

Aliás, a abstenção do MºPº deve apoiar-se, no espírito daquele dispositivo do RCP, na regra de bom senso económico de não se gastar mais do que aquilo que se conseguiria ressarcir, isto é, havendo bens insuficientes ou nem sequer os havendo, não se prosseguir uma acção inútil, ineficaz e financeiramente deficitária.

Ora, não só o MºPº nomeou bens à penhora como até se ignora ainda se eles serão ou não suficientes para o pagamento da dívida exequenda. Neste conspecto, o despacho recorrido vai para além da esfera de competência da aferição da iniciativa executiva por parte do MºPº, violando a autonomia garantida pelo seu estatuto constitucional (artigo 219.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa) como ainda por cima não se baseia em fundamentos demonstráveis de não exequibilidade de bens violando a própria teleologia e substracto da norma contida no artº 35º nº4 do RCP, mesmo que se entendesse, de barato, que esta será aplicável às execuções por coima.

2.3.2- Das causas de indeferimento liminar  do requerimento executivo e da alegada inexistência de bens como fundamento da decisão recorrida.

Tendo-se dito já no ponto anterior acerca da falta de fundamento do indeferimento com base na não indicação de bens, resta dizer que nenhum fundamento invocável para o indeferimento liminar com base no elenco previsto no artº 726º do CPC foi aflorado sendo evidente por demais que está completamente fora do alcance deste dispositivo a razão do indeferimento concreto.

Por isso, o despacho deve ser revogado e dado provimento integral ao recurso.

III- DECISÃO

3.1.- Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se o despacho recorrido.

Lisboa, 13  de   Janeiro   de  2015

                                                                              Os Juízes Desembargadores

(texto elaborado em  suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

(Agostinho Torres)

(João Carrola)

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[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95

[2]  vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e  o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de  Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335; e ainda  jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.