Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
31947/15.9T8LSB.L1-4
Relator: FILOMENA MANSO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE
ILEGITIMIDADE PASSIVA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
PESSOA DISTINTA DO EMPREGADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I. O trabalhador que veja ameaçado ou violado algum dos direitos reconhecidos nos arts. 14º a 22º do CT/09 pode lançar mão do processo especial de Tutela da personalidade do trabalhador, previsto e regulado nos arts. 186º-D a 186º-F do CPT.
II. Só se configura uma situação de litisconsórcio necessário passivo, nos termos do art. 186º-D, no caso do autor da ameaça ou ofensa ser pessoa distinta do empregador (vg. o superior hierárquico ou colega de trabalho), devendo então a acção ser obrigatoriamente proposta não só contra esse autor, mas também contra a entidade empregadora, sob pena da falta de qualquer deles determinar a sua ilegitimidade (art. 33º, nº1 do CPC).
III. No caso do autor da ameaça ou ofensa ser a própria entidade empregadora, a acção não tem que ser interposta contra mais alguém para além desta.

(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO

AA intentou contra BB, SA a presente acção com forma de processo especial de tutela da personalidade do trabalhador pedindo que a Ré seja condenada a:
1) Atribuir ao Autor todas as funções profissionais correspondentes à categoria de Empregado de Mesa de 1ª, conforme disposto no IRCT e consta dos artigos 10º e 49º;
2) Ou, no caso de manter o actual sistema de divisão dos Empregados de Mesa em “áreas” e “runners”, a atribuir ao Autor a posição de “área”;
3) Abster-se de praticar para com o Autor actos discriminatórios, hostis, humilhantes, vexatórios, ou persistir directa ou indirectamente nos praticados, e dar-lhe o mesmo tratamento que confere aos demais Empregados de Mesa nas mesmas circunstâncias e que exercem as funções dessa categoria;
4) Pagar ao Autor a importância de €60.000,00 (sessenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia a que acrescem os juros de mora à taxa legal a partir da citação até efectivo pagamento.
Para tanto alega, em síntese, que foi admitido ao serviço da Ré em 17.6.1982, tendo a categoria de Empregado de Mesa de 1ª desde, pelo menos, Outubro de 2007, sendo o local de trabalho a CC, em Lisboa.
À data de 24.3.2009, o Autor era Delegado Sindical do Sindicato dos Trabalhadores da indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Sul.
Nessa data a Ré suspendeu preventivamente o Autor do desempenho das suas funções e instaurou-lhe um processo disciplinar e em 13 de Julho de 2009 despediu-o com invocação de justa causa.
O Autor impugnou esse despedimento em Tribunal, no que constituiu o Proc. (…), tendo por sentença do 1º Juízo, 1ª Secção, do Tribunal do Trabalho de Lisboa, confirmada por Acórdão da Relação de Lisboa, sido julgada procedente a acção, declarado ilícito o despedimento e condenada a Ré a reintegrar o Autor.
Paralelamente a Ré fez queixa-crime contra o Autor, imputando-lhe a prática de dois crimes de abuso de confiança, acusando-o de se ter apropriado de quantias entregues por clientes para pagamento de produtos consumidos no Restaurante.
Por acórdão da Relação de Lisboa, proferido sobre recurso do despacho de pronúncia, foi decidido não pronunciar o Autor, por falta de indícios suficientes da prática dos crimes imputados pela Ré.
O Autor foi reintegrado na empresa Ré em 3.4.2014.
Entre 3 e 13 de Abril de 2014 o Autor desempenhou as suas funções de Empregado de Mesa de 1ª, mas com recurso à Caixa de Colegas.
Com a argumentação de que o Autor não constava do Registo de Pessoal, e consequentemente não tinha Caixa própria no sistema de Registos e Contabilização em vigor para os Empregados de Mesa, a Ré ordenou ao Autor que os seus serviços fossem processados e registados no registo próprio de um dos seus Colegas de serviço no mesmo turno.
Esta atitude da Ré foi a forma ínvia e ilícita que esta encontrou para impedir o Autor de “lidar com dinheiro”.
Quando a Ré voltou a colocar o Autor no Registo de Pessoal, alterou o seu Número de Empregado, que deixou de ser o (…) e passou a ser o (…).Com essa alteração, colocou o Autor num número “para baixo” do inicialmente atribuído, como se tivesse menos antiguidade e menor “posição” na empresa que muitos trabalhadores da empresa que foram admitidos muito posteriormente.
A Ré não voltou a inserir o Autor no sistema de Registos e Contabilização dos Empregados de Mesa, o que o impediu de ter um Registo próprio, em computador, como os Empregados de Mesa têm, onde registam todo o trabalho feito e todas as receitas recebidas dos clientes.
Com esse procedimento a Ré conseguiu, sub-repticiamente e de forma ardilosa, tirar ao Autor o núcleo essencial das funções do Empregado de Mesa de 1ª, que são a responsabilidade pelo turno de mesas, o “servir” e o contacto com os clientes, bem como a facturação do serviço feito.
E conseguiu também impedi-lo de “lidar com dinheiro” e passar a tratá-lo como se ele tivesse realmente furtado receitas da empresa e cometido os crimes de abuso de confiança, acusações que não provou em Tribunal.
Em 14.4.2014 A Ré implementou na CC um sistema de trabalho em que divide os empregados em duas “classes” – os “áreas” e os “runners”, que desempenham funções completamente diferentes:
- os “áreas” atendem os clientes;
- os “runners” são meros carregadores de comida e/ou bebidas da cozinha para as mesas e/ou dos aparadores para a copa.
A partir daquela data o Autor passou a desempenhar apenas as funções de “runner”, o que implicou também que passasse a usar uma indumentária diferente daquela que lhe estava atribuída até essa data, ou seja, passou a usar a farda de “runner”.
A Ré implementou este sistema com o único objectivo de ele lhe “permitir”, sob a capa de medida de gestão, fazer um ataque cerrado aos direitos do Autor e apenas como meio e instrumento para discriminar, atacar e prejudicar o Autor, sendo que é o segundo empregado mais antigo. Ao atribuir-lhe as funções de “runner” a Ré obriga-o diariamente a permanente vai-vem no Restaurante e a grande desgaste físico, bem sabendo que aquele tem graves problemas de saúde e que existem empregados mais novos que poderiam exercer tais funções.
Com o aludido comportamento a Ré está a destruir a imagem do Autor, com todas as consequências negativas na sua carreira e na sua vida pessoal e profissional, na sua credibilidade enquanto homem e enquanto trabalhador, o que lhe tem causado profundo mal estar e uma permanente situação de angustia e de infelicidade.
Citada a Ré, veio a mesma contestar, invocando a preterição de litisconsórcio necessário, uma vez que a acção devia ter sido intentada também contra o autor da ofensa aos direitos de personalidade violados, tendo em conta o estatuído no art. 186-D do CPT.
No despacho saneador a Srª Juiz conheceu da invocada excepção nos seguintes termos:
ILEGITIMIDADE PASSIVA
(…)
Consagra-se in casu, como bem atenta a Ré, uma situação de litisconsórcio necessário passivo.
Compulsada a petição inicial verifica-se, porém, que o Autor imputa factos à Ré sem que identifique quem foi o seu interlocutor, ou seja, a pessoa que, em seu nome e representação, atuou nos termos descritos.
Tal circunstância obsta a que o Tribunal possa, de imediato, suprir a ausência da parte na ação, mandando-a intervir, não tendo que haver lugar in casu, posta inclusivamente a natureza urgente dos autos, ao convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (cfr. artigo 27º, alínea a), do Código de Processo do Trabalho).
Donde, porque o Autor não instaurou a ação contra a pessoa concreta que, em nome e representação da Ré, atuou da forma descrita na petição inicial, forçoso se torna concluir pela ilegitimidade da Ré, o que constitui exceção dilatória nominada insanável, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição do Réu da instância declarativa (cfr. artigos 33º, n.º 1, 278º, n.º 1, alínea d), 576º, n.º 2, 577º, alínea e), 578º, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho). *
Tendo a ela dado causa e nela ficado vencido, o Autor é o único responsável pelo pagamento das custas processuais (cfr. artigo 527º, ns.º 1 e 2, do Código de Processo Civil). *
Pelo exposto, o Tribunal decide:
1.. Absolver «BB, SA..» da instância declarativa.
2.. Condenar «AA» a pagar as custas da ação.
3.. Fixar à ação o valor de € 60.000,00.
Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso (…)
Termos em que, e com o mais de douto suprimento, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, anulada a douta sentença recorrida e determinado o prosseguimento do Processo.
Contra-alegou (…) ugnou pela improcedência do recurso
Admitido o recurso e subidos os autos a esta Relação, sendo simples a questão a resolver e atenta ainda a natureza da acção, que reveste carácter urgente, com a concordância dos Ex.mos Adjuntos, dispensaram-se os vistos (art. 657, nº4 do CPC).
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas respectivas conclusões, a única questão a decidir é a de saber se, no caso vertente, se verifica a ilegitimidade passiva da Ré por preterição de litisconsórcio necessário.

II – FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos e incidência processuais que relevam para a decisão são os que constam do precedente relatório e que aqui se dão por reproduzidos.

III – APRECIAÇÃO
Está em causa no recurso saber se na presente acção devia também ser demandado, para além da Ré, o autor das invocadas lesões aos direitos de personalidade do trabalhador, aqui Autor.
Os artigos 186-D a 186-F regulam o novo processo especial de tutela da personalidade do trabalhador e que foi introduzido no Código de Processo de Trabalho pelo art. 2º do DL 295/2009, de 13.10.
De acordo com a “Exposição de Motivos” que antecedem a proposta de Lei nº 284/X, este novo processo especial, com natureza urgente, “destina-se a tutelar os direitos de personalidade, inspirado no processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial previsto no Código de Processo Civil, em razão da semelhança dos valores em presença”, ou seja, do então processo de jurisdição voluntária previsto e regulado nos arts. 1474 e 1475 do CPC/61 e que corresponde actualmente a um processo especial previsto nos arts. 878 a 880 do NCPC.
O processo especial de “Tutela da personalidade do trabalhador” resulta da necessidade de conferir ao trabalhador meios processuais de exercitar os direitos de personalidade que foram consagrados, pela 1ª vez, no CT/03 nos arts 15 a 21 e que hoje têm assento nos arts. 14 a 22 do CT/09.
Ta corresponde, aliás, a uma exigência constitucional ex vi do disposto no nº5 do art. 20 da CRP, ao prescrever que “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Posto isto, dispõe o art. 186-D do CPT que “O pedido de providências destinadas a evitar a consumação de qualquer violação dos direitos de personalidade do trabalhador ou atenuar os efeitos da ofensa já praticada é formulado contra o autor da ameaça ou ofensa e, igualmente, contra o empregador.”
Assim, o trabalhador que veja ameaçado ou violado alguns dos direitos reconhecidos nos arts 14 a 22 do CT pode lançar mão deste processo especial para pôr termo a essa ameaça ou violação.
E, caso o autor da ameaça ou ofensa seja pessoa distinta do empregador (v.g.,o superior hierárquico ou colega de trabalho que praticou a ofensa ou dirigiu a ameaça), deverá, obrigatoriamente, propor a acção não só contra esse autor, mas também contra a entidade empregadora, existindo então uma situação de litisconsórcio necessário passivo em que a lei exige a intervenção de ambos na lide, sob pena da falta de qualquer deles determinar a sua ilegitimidade (art. 33, nº1 do CPC).
A ratio da necessária interposição da acção contra o empregador radica no facto de que, ocorrendo a ameaça ou ofensa no quadro da relação laboral, é sempre o empregador (mediata ou imediatamente) por ela responsável, já que sobre ele recai a obrigação de proporcionar ao trabalhador boas condições de trabalho, do ponto de vista físico e moral, de zelar pelo bom ambiente de trabalho, de garantir a “harmonia e paz laboral” e o respeito entre todos os trabalhadores, como decorre, nomeadamente, dos arts 126, nº2 e 127, nºs1, a), c) e h) e nº2 do CT. Acresce que é a entidade patronal que detém o poder de autoridade que lhe permite conformar o comportamento do infractor e disciplinar que lhe possibilita reagir, sancionando-o.
Não se verifica a mesma ratio, que fundamente e legitime a interposição da acção contra outrem, quando a ameaça ou ofensa é imputada ao próprio empregador, podendo mesmo ocorrer situações em que há coincidência entre o autor da ameaça (pessoa singular) e o empregador.
Em nosso entender do aludido preceito decorre que:
- quando o autor da ameaça ou ofensa é alguém que não a entidade empregadora, a acção tem que ser interposta também contra esta;
- quando o autor da ameaça ou ofensa é a própria entidade empregadora, a acção não tem que ser interposta contra mais alguém para além daquela.
Revertendo ao caso concreto, verifica-se que o Autor imputa todas as invocadas ofensas aos seus direitos de personalidade à própria Ré, pelo que a acção devia ser apenas intentada, como o foi, contra esta.
Acresce que a Ré é uma pessoa colectiva, pelo que a manifestação da sua vontade terá de ser necessariamente expressa pelos seus legais representantes e materializada nos comportamentos por estes assumidos. No entanto, precisamente porque actuam não por si, mas em representação da sociedade, todos aqueles comportamentos são imputáveis à pessoa colectiva em nome de quem são praticados, pelo que será esta a única responsável pelos mesmos do ponto de vista laboral.
A legitimidade passiva afere-se pelo interesse em contradizer, olhando os termos em que o autor configura o direito invocado. Imputando o Autor exclusivamente à Ré a autoria da violação dos seus direitos de personalidade, tem esta interesse em contradizer, pelo que deve ser considerada parte legítima (art. 30 do CPC).
Procede, pois, o recurso.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida e, em sua substituição, declara-se a Ré parte legítima, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pela Ré/Recorrida

Lisboa, 29 de Junho de 2016
Filomena Manso
Duro Mateus Cardoso
Leopoldo Soares