Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
0069435
Nº Convencional: JTRL00027613
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: PARTICIPAÇÃO EM RIXA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
USO
LEGÍTIMA DEFESA
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONEXA COM A CRIMINAL
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: RL200007040069435
Data do Acordão: 07/04/2000
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL. DIR CRIM - CRIM C/ PESSOAS. DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CP95 ART31 ART32 ART33 ART131 ART132 ART275. CCIV66 ART337 N2 ART570.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1994/09/28 IN CJ94 TOMO3 PAG207. AC STJ DE 1993/06/09 IN BMJ N428 PAG285. AC STJ DE 1991/02/27 IN BMJ N464 PAG233.
Sumário: I - O homicídio cometido no desenrolar de uma rixa consome o crime de "participação em rixa", - e, se o homicídio é qualificado por ter sido levado a efeito com disparos de arma proibida (pistola semi-automática com calibre de 9 mm, marca "Makarov"), revelando o arguido por isso mesmo, especial censurabilidade e perversidade, perde autonomia o crime de detenção e uso de arma proibida, que é consumido pelo crime de homicídio qualificado.
De contrário, estar-se-ia a valorar por duas vezes o mesmo facto.
II - Porém, já reassume autonomia o crime de uso e detenção de arma proibida (calibre 9 mm) quando é utilizada pelo arguido em legitima defesa, ainda que desse modo cause lesões corporais no agressor.
Não sendo, ilícita nem punível a ofensa corporal provocada pelo defendente, já o mesmo não sucede com o uso de tal arma - crime de perigo comum.
III - Resultando para o ofendido/agressor lesões corporais que demandaram 8 dias de doença com incapacidade para o trabalho e tendo o arguido/defendente sofrido também lesões com iguais consequências, produzidas pelo ofendido e outros participantes na contenda, não se justifica nestas circunstâncias, qualquer indemnização àquele ofendido.
IV - Na "participação em rixa" em que cada um dos participantes é, simultaneamente, agressor e agredido, dificilmente se poderá pensar em legitima defesa enquanto o participante (defendente?) não abandonar manifestamente a rixa."
Decisão Texto Integral: Recurso 6943/99
Colectivo 366/97.8 GCTVD do extinto Tribunal de Círculo de Torres Vedras Arguido/recorrente: (A)
1 - HISTÓRIA DO PROCESSO
17 Dez 93 - Condenação do arguido (A), em pena de multa (que veio a ser-Ihe perdoada nos termos da Lei nº 15/94), por crimes, ocorridos em 25 FEV 93, de ofensas corporais voluntárias, detenção de arma proibida e introdução em lugar vedado ao público (comum colectivo 463/93 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe): 80 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de ofensas corporais voluntárias, em 120 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de detenção de arma proibida (pistola) e em 45 dias de multa à taxa diária de 300$00 pelo cometimento do crime de introdução em lugar vedado ao público.
27 Jul 97 - Crimes sub judice
30 Jul 97 - Detenção do arguido (A) à ordem destes autos.
22 Set 98 - Decisão instrutória:
Assim e pelo exposto, para serem julgados em processo comum e perante Tribunal colectivo, pronuncio:
1. (A), também conhecido por "(A1)", casado, electricista, nascido a 29-07-1970, actualmente em prisão preventiva à ordem destes autos (...), porquanto:
1º) - Entre a 1 e as 2 horas da madrugada do dia 27 de Julho de 1997, entrou na Discoteca «FARAÓ», sita no Casal do Seixo, freguesia de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, um grupo de cerca de 25 rapazes e raparigas, oriundos na sua maioria do Casal de São Brás, na Amadora, que ali se deslocaram com a finalidade de comemorarem os aniversários de dois deles. Desse grupo. faziam parte os arguidos (B), (C), (D), (E), (F), (G), (H), (I) e (J), bem como os malogrados (K) (id. a fls. 3) e (L) (id. a fls. 3 vº), e ainda os seus amigos (M) (id. a fls. 120), (N) (id. a fls. 91), (O) (id. a fls. 95) (P) (id. a fls. 104), (Q) (id. a fls. 113), (R) (id. a fls. 309), (S) (id. a fls. 125), (T) (id. a fls. 128), (U) (id. a fls. 133), (V) (id. a fls. 279), (X) (id. a fls. 305) e duas outras jovens, referenciadas por (W) e (Y) (cuja exacta identidade não foi possível apurar). A Discoteca "Faraó", de grandes dimensões, é composta por um átrio de acesso [foto 4, a fls. 49] e por dois pisos, interligados por uma dupla escada interior [foto 5, a fls. 49]. No piso interior, funciona a "pista de dança" [foto 6, a fls. 50], enquanto que o piso superior serve de local de convívio. Nos topos de ambos os pisos, funcionam "bares" servidos por balcões amplos e corridos. Dentro da Discoteca o aludido grupo concentrou-se maioritariamente junto do Bar do 1º Piso [fotos 8 e 9, a fls. 51] e zonas contíguas, designadamente, num varandim formando uma pequena esplanada exterior [fotos 11 a 13; a fls. 52-53], e num corredor amplo, com sofás e pequenas mesas, onde ficaram a conversar, dançar e a beber.
2º) - Cerca das 2 horas da madrugada, o arguido (A) e sua esposa (Z) (id. a fls. 160) dirigiram-se àquela mesma Discoteca, deslocando-se para o efeito, no motociclo Kawasaki ZXR 750, com a matricula LX-78-56, pertença de (A2) (id. a fls. 223) e que este Ihes tinha emprestado. (A) ficou então e durante algum tempo no átrio da Discoteca [foto 4, a fls. 49] a conversar com o seu amigo e ora arguido (B1), que ali desempenhava funções de «segurança». Nessa ocasião, entregou-lhe os capacetes de motociclista, que ele e a esposa usavam, a fim de que o (B1) os desse aguardar, gratuitamente, à empregada do bengaleiro, como efectivamente sucedeu. Momentos volvidos, numa esplanada do rés-do-chão, (A) encontrou-se casualmente com o seu amigo e ora arguido (C1), que, por sua vez, estava acompanhado pela esposa, (D1) (id. a fls. 304). Aos dois casais juntou-se também o co-arguido (E1), conhecido do (C1).
3º) - O arguido (A) era então portador de uma pistola semi-automática de calibre 9 mm/Makarov, da marca "Makarov", de origem Russa, com cano de 93 mm, com o número de série (HN8169) atenuado por desbaste, fabricada em 1956, munida de um carregador de origem, com capacidade para 8 munições, mas contendo uma mistura de, pelo menos, 7 (sete) munições encamisadas dos calibres 9 mm/Makarov (9 x 18 mm) e 9 mm/Parabellum (9 x19 mm), com a particularidade de que estas últimas, devido ao seu maior comprimento, apresentavam a ponta (ogiva) do projéctil cortado, expondo o chumbo interior, por forma a reduzir o seu tamanho e poderem funcionar naquela arma [fotos 2 e 3, a fls. 169]. O arguido trazia essa arma à cintura, metida no cós das calças, pelo seu lado esquerdo, oculta sob a camisola que envergava. Trazia também, num bolso, um segundo carregador para aquela arma, com um número indeterminado de munições. O arguido (A) tinha essa arma, carregadores e munições há mais de dois anos, sem qualquer documentação, licença ou registo, tendo ficado em poder dela em circunstâncias que não foi possível apurar. E, muito embora soubesse que se tratava de uma arma de calibre militar, de posse e uso vedados aos particulares, tinha-a diária e constantemente consigo, ciente de que tal lhe era proibido.
4º) - Cerca das 4 horas, este grupo formado pelos arguidos (A), (C1), respectivas esposas, e (E1), dirigiu-se também ao 1º Andar da Discoteca, onde o primeiro, acompanhado da mulher; ficou a beber uma cerveja, encostado ao canto lateral esquerdo do balcão do Bar [foto 10, a fIs. 52], enquanto os restantes três permaneciam algo afastados deles, junto à porta de acesso ao citado varandim e esplanada. Foi então que alguns elementos do grupo inicialmente referido, entre os quais e com maior destaque os arguidos (D) e (G), foram tomando crescentes atitudes provocatórias dirigidas a (A) e esposa. Designadamente, começaram a dar pequenos encontrões e pisadelas a (Z), quando passavam por ela a dançar ou quando iam ao Bar buscar bebidas, tal como a ela se dirigiam para a cumprimentar, estendendo-lhe a mão e dirigindo-Ihe a palavra, sem a conhecerem de lado algum, como (D) fez. Para além disso, fitavam (A) tal como, sempre a olhar para ele, trincavam os copos de plástico que tinham nas mãos. Por seu lado, (A) devolvia aqueles olhares, sem dizer palavra, numa reacção que, associada à sua grande envergadura física e aparente calma, serviu para estimular as referidas atitudes provocatórias. Gerou-se assim um clima de grande tensão e animosidade entre (A) e os elementos mais próximos daquele grupo, que começaram a trocar palavras entre si, no sentido de ir haver «granel» (i. é., pancadaria). Aliás, (D) comentava, repetidamente e de viva voz, «vamos dar cabo desta merda toda», incitando os seus companheiros.
5º) - Na sequência desse clima de tensão, (A) e (D) enfrentaram-se um ao outro, em atitude de confronto imediato, tendo ali acorrido um outro elemento do grupo, (L), que se colocou entre os dois, a separá-Ios. Não obstante, (A) afastou (L) e desferiu dois fortes socos consecutivos na cara de (D), querendo e conseguindo magoá-Io, ao ponto de o prostrar ao chão, meio atordoado.
6º) - Perante esta reacção, um número indeterminado de mais de oito rapazes do grupo antagonista, entre os quais os arguidos (G), (F), (H) e o indicado (L), avançaram sobre (A), com o qual se envolveram, conjuntamente, em luta corporal, socando-o e pontapeando-o, ao que (A) respondeu, também, com socos repetidos, com os quais atingiu os seus vários oponentes. Vendo (A) em dificuldades, (C1) e (E1) acorreram a ajudá-Io e envolveram-se, também eles, na contenda. À medida que se iam apercebendo da luta, vários outros elementos do "grupo da Amadora", entre os quais, pelo menos, os arguidos (B), (E), (C), (I), (J) e (D), entretanto recuperado, e o assinalado (K), juntaram-se à contenda, batendo em (A), em (C1) e em (E1), a soco e a pontapé. Gerou-se então uma situação de grande confusão, uma vez que os intervenientes na contenda, formando dois grupos diferenciados, nela intervinham individualmente, trocando reciprocamente socos e pontapés, com um ou mais elementos do grupo oposto, por forma sucessiva ou, até, simultânea, sem que fosse possível destrinçar a exacta conduta de cada um. Porém e dado o maior número e a força daí decorrente do 'grupo da Amadora", gerou-se uma movimentação da luta que possibilitou a separação entre (A), por um lado, e (C1) e (E1), por outro. O primeiro continuou encostado ao balcão do Bar [foto 10], tentando proteger a esposa dos adversários, com o seu próprio corpo, pondo-a atrás de si. (C1), por seu lado, foi arrastado para dentro da esplanada, enquanto (E1) tombou e ficou prostrado no chão, em função dos golpes e das pancadas recebidas. Na esplanada, (C1) continuou a lutar com (K), (L) e os arguidos (B), (E), (C), (I) e (J), sendo que todos trocaram socos e pontapés. A dado momento, (C1) logrou empunhar uma cadeira de plástico, com a qual desferiu uma forte pancada no rosto de (I). Depois, vencido pelo maior número dos seus adversários, agarrou numa mesa de plástico e, com ela voltada e levantada, tentou proteger o corpo e a cabeça dos pontapés e socos que lhe eram desferidos. Ao mesmo tempo, no canto do bar, (A) continuou a lutar com vários outros oponentes, entre os quais (G), (F), (D), entretanto recuperado e (H). A dado momento e valendo-se da distracção de (A), que procurava defender-se e responder aos inúmeros socos e pontapés que lhe eram dirigidos, (F) agarrou num cinzeiro de louça, de grandes dimensões e peso considerável e, com ele na mão, abeirou-se do (A) e desferiu-Ihe uma forte pancada na cabeça, partindo o cinzeiro e provocando-Ihe um corte na região atingida. (A) acusou essa pancada, vacilando, mas logo recuperou, continuando sempre a lutar. Acto contínuo, (F) veio ao balcão do bar, agarrou duas garrafas de água das «Pedras-Salgadas», ainda rolhadas e cheias de liquido, voltando depois a abeirar-se de (A), desferindo-Ihe uma nova e fortíssima pancada na cabeça com uma dessas garrafas, que se partiu. E só não lhe bateu novamente com a segunda garrafa que trazia consigo por, entretanto, ter sido empurrado por (Z) e agarrado por um empregado do bar (fotos 1, 2 e 3, a fls. 220 e 221). Devido a essa última pancada, o arguido (A) perdeu os sentidos, por um breve momento, e dobrou-se, sobre si, encostado à parede existente entre o balcão do Bar e uma porta de saída de emergência, ali ficando agachado.
7º) - Nessa posição, o arguido procurou então sacar a pistola que trazia consigo, deixando-a cair ao chão. Mas logo a apanhou e, depois de puxar a respectiva culatra atrás, introduzindo-Ihe uma bala na câmara e pondo-a em posição de fogo, empunhou-a com a mão direita e apontou-a à barriga do adversário mais próximo, o arguido (G), que, a cerca de metro e meio/dois metros de si, avançava para o agredir com um pontapé. Avistando a pistola a ser apontada na sua direcção, (G) deu um pulo para trás, sendo então e nesse momento que o arguido (A) premiu, intencionalmente, o gatilho da pistola, efectuando um disparo que atingiu (G) na coxa direita. Ao proceder desse modo, o arguido (A) pretendia livrar-se de novas agressões, sendo certo que apontou a sua arma à zona abdominal do ofendido (G) por saber ser essa a zona corporal mais fácil de atingir numa pessoa em movimento rápido, Sabia, porém, que tal zona alberga órgãos vitais e que, por isso, pela curta distância a que estava e pelo calibre e características da sua arma, poderia causar a morte do seu oponente. Não obstante, disparou sobre ele, deliberada e conscientemente. Disparo esse que só não importou consequências mais graves, ou até mesmo a morte por razões alheias à vontade do arguido (A), mormente pelo salto que o ofendido deu, visto que assim impulsionou o corpo sobre a linha do disparo.
8º) - Seguiu-se uma reacção de surpresa e de receio entre os demais adversários que se lhe opunham. Aproveitando esse momento, (A) agarrou no braço da mulher e puxou-a na direcção da aludida porta de serviço [foto 15, a fls. 55], para assim e por ali fugirem, enquanto (F) atirou a segunda garrafa de água na sua direcção, garrafa essa que, sem lhe acertar, se partiu na parede.
9º) - No momento em que começava a descer as escadas de serviço, com acesso à cozinha, o arguido (A) apercebeu-se dos chamamentos da mulher de (C1), que lhe dizia repetidamente «olha o (C1)! olha o (C1)». Por isso, voltou atrás, deixando (Z) nas escadas; e, em corrida, entrou na esplanada do 1º andar, tomando ali uma posição central. Viu então que (C1) estava tombado e dobrado no chão, com as mãos na cabeça, para assim se proteger de uma roda de adversários, entre os quais (L), (J), (B) e (K), que o pontapeavam repetidamente, a arguido (A) voltou a empunhar a sua pistola, adoptando então uma posição de atirador experiente pernas-flectidas, corpo direito, braços estendidos para a frente ao nível do peito, segurando a arma com as duas mãos justapostas - sendo que assim:
10º) - Apontou e disparou intencionalmente um tiro sobre o corpo de (L), que se encontrava mais à sua esquerda, a menos de 2 metros, atingindo-o no braço direito e varando esse membro com o projéctil, que entrou pelo tronco [fotos 27 a 30, a fls. 66-68], perfurando-Ihe o pulmão direito e o fígado;
11º) - Depois, rodando um pouco sobre si e para a direita, (A) apontou a arma a (J), que estava de costas meias voltadas para si, a menos de 2 metros, e disparou um novo tiro sobre ele, atingindo-o na região dorsal, ao nível da omoplata esquerda.
12º) - Continuando a rodar para a direita, (A) visou então (B), que estava a menos de 3 metros, e sobre ele disparou um tiro que o atingiu de raspão na barriga, perfurando-a e atravessando-a até embater numa parede.
13º) - Finalmente, visando o corpo de (K), que estava mais à sua direita, a menos de 1 metro, (A) efectuou novo disparo, atingindo-o no flanco esquerdo ao nível do abdómen [fotos 24 e 25, a fls. 64].
14º) - Ao proceder desse modo, visando e disparando deliberadamente sobre o corpo e o tronco dos indicados oponentes, onde sabia encontrarem-se órgãos vitais, o arguido (A) pretendia tirar-Ihes a vida, como efectivamente sucedeu quanto a (L) e a (K); e só não ocorreu quanto a (B) e a (J) por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque não os logrou atingir em zonas fatais, como queria, quer ainda por estes terem sido prontamente socorridos e tratados.
15º) - Acto seguido e depois de se certificar que (C1) estava em condições de caminhar pelo seu próprio pé, o arguido (A) voltou a sair pela indicada porta de serviço, percorreu as escadas [fotos 16 e 17, a fls. 56 e 57], onde se juntou à esposa, seguindo depois os dois, por uma porta de emergência, para o parque de estacionamento, onde tomaram a moto LX-78-56, fugindo do local, deixando, contudo, os respectivos capacetes no bengaleiro da entrada [foto 31, a fls. 69]. Nesse percurso, o arguido (A), que sangrava da cabeça, cruzou-se com vários elementos da GNR, que subiam as aludidas escadas, pois haviam sido alertados para o sucedido. Um deles, segurou-o pelo braço, mas o arguido disse-Ihe para subir depressa, que «anda lá em cima um gajo aos tiros». Por seu lado, o arguido (C1), acompanhado da esposa, logrou sair da Discoteca pela porta principal, mas, chegado ao parque de estacionamento e vendo que ali estavam já várias pessoas à procura de (A), optou por ali deixar o carro de um amigo [foto 32, a fls. 70]; um Fiat Tipo, de matricula 35-00-FH, no qual se transportava, seguindo os dois a pé e, depois, de camioneta. Também o arguido (E1) deixou a sua moto; de matrícula 25-29-FJ no parque de estacionamento da discoteca [foto 33, a fls. 70].
17º) - Todos os supra indicados arguidos agiram com o propósito deliberado de molestar fisicamente os seus oponentes, sabendo e querendo tomar parte naquele confronto generalizado entre os dois referidos grupos. Não se coibiram, porém, de levar os seus intentos ao ponto de se valerem de objectos, instrumentos e armas, susceptíveis de provocarem lesões particularmente graves, ou mesmo a morte, designadamente, cinzeiros e garrafas, como fez o arguido (F), uma cadeira, como fez o arguido (C1), ou uma pistola de calibre militar, como fez o arguido (A).
Intervieram, assim, numa luta, em crescendo de violência, que originou os assinalados óbitos e as descritas consequências pessoais. O arguido (A) sabia que utilizava uma arma cuja posse e utilização estava proibida por lei e quis dispará-Ia no propósito de tirar a vida a (K) e a (L), como aconteceu, e a (G), a (B) e a (J), o que só não sucedeu por motivos alheios à vontade daquele.
18º) - O arguido (A) veio a ser detido pela PJ, no dia 30-07-97, em casa de uma sua cunhada, na Picheleira, sendo que então atirou pela janela fora um saco de plástico, logo recuperado e apreendido, contendo a arma supra mencionada e dois carregadores, com quatro munições, cada um, sendo cinco delas do calibre 9 mm/Makarov e as restantes três do calibre 9 mm/Parabellum, estas também com a ponta cortada. No interior da discoteca foram encontradas cinco cápsulas deflagradas, sendo três do calibre 9 mm/Makarov e duas do calibre 9 mm/Parabellum. Foi também encontrado um projéctil do calibre 9 mm/Parabellum, alojado na parede da esplanada, sendo esse projéctil que feriu (B). Aos ofendidos (G), (J) e ao malogrado (L) foram extraídos, a cada um, um projéctil do calibre 9 mm/Makarov, enquanto que ao malogrado (K) foi extraído um projéctil do calibre 9 mm/Parabellum. Os exames realizados no Laboratório de Policia Cientifica da PJ permitiram concluir que todas as cápsulas e projécteis referidos tinham sido disparados pela arma apreendida ao arguido (A).
21º) - Todos os arguidos agiram por forma deliberada, livre e consciente, sabendo que as suas escritas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
18 JAN 99 - Condenação do arguido (A), por factos ocorridos em 16 DEZ 94 (ofensas corporais contra funcionário p. p. no artigo 385.1 (ofensa a funcionário/agente da PSP), com referência ao artigo 142º nº 1 do C. Penal de 1982), em 180 dias de multa (comum nº 3284/94 da 2ª Secção do 6º Juízo Criminal de Lisboa, fls. 1958).
12 MAR 99 - Acórdão condenatório:
O Digno Magistrado do MP deduziu acusação nestes autos contra os arguidos:
1. (A), casado, electricista, nascido a 29-07-1970, actualmente em prisão preventiva à ordem destes autos
2. (C1),
3. (E1),
4. (B1),
5. (D),
6. (B),
7. (F),
a. (E),
9. (G),
10. (C),
11. (H),
12. (I),
13. (J).
1. O arguido (A), em autoria material e em concurso efectivo:
a) Um crime de posse e detenção de arma proibida, p. e p. no art. 275º, nº 1 e nº 2, do Código Penal, com referência aos arts. 1º (a contrário), 2º, nº 1 e 3º, nº 1, al. a), do D.L nº 207-A/75, de 17 de Abril, e hoje com referência ao art. 1º (a contrário) do D.L nº 22/97, de 27 de Julho;
b) Um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa do ofendido (D), p. e p. no art. 143º, nº 1, do Código Penal;
c) Um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, referente ao malogrado (K), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), do Código Penal;
d) Um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, referente ao malogrado (L), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), do Código Penal;
e) Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, referente ao ofendido (G), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), 22º, nº 1 e nº 2, al. b), 23º e 73º, todos do Código Penal;
f) Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, referente ao ofendido (B), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), 22º, nº 1 e nº 2, al. b), 23º e 73º, todos do Código Penal;
g) Um crime de homicídio qualificado na forma tentada, referente ao ofendido (J), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), 22º, nº 1 e nº 2, al. b), 23º e 73º, todos do Código Penal.
2. O arguido (C1), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
3. O arguido (E1), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
4. O arguido (D), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
5. O arguido (B), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal. -
6. O arguido (F), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
7. O arguido (E), em autoria material; um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
8. O arguido (G), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
9. O arguido (C), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
10. O arguido (H), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
11. O arguido (I), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
12. O arguido (J), em autoria material, um crime de participação em rixa, p. e p. no art. 151º, nº 1, do Código Penal.
13. O arguido (B1), em autoria material e em concurso efectivo:
a) Um crime de falsidade de testemunho, p. e p. no art. 360º, nº 1, do Código Penal;
b) Um crime de favorecimento pessoal, p. e p. no art. 367º, nº 1, do Código Penal.
Foram formulados pedidos de indemnização civil contra o arguido (A) e a sociedade proprietária da DISCOTECA FARAÓ, PNAF - Actividades Imobiliárias e Turísticas, Lda,
Pelos pais de (L) - (F1) e esposa (fls. 88);
Pelos pais de (K) e (B) - (G1) e esposa (fls. 902);
Pelo arguido (G) (fls. 922);
Pelo arguido (J) (fls. 938); e
Pelo arguido (B) (fls. 951).
(...)
OS FACTOS:
Entre a 1 e as 2 horas da madrugada do dia 27 de Julho de 1997, entrou na Discoteca «FARAÓ», sita no Casal do Seixo; freguesia de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, um grupo de cerca de 25 rapazes e raparigas, oriundos na sua maioria do Casal de São Brás, na Amadora, que ali se deslocaram com a finalidade de comemorarem os aniversários de dois deles. Desse grupo faziam parte os arguidos (B), (C), (D), (E), (F), (G), (H), (I) e (J), bem como os malogrados (K) (id. a fls. 3) e (L) (id. a fls. 3 vº), e ainda os seus amigos (M) (id. a fls. 120), (N) (id. a fls. 91), (O) (id. a fls. 95), (P) (id. a fls. 104), (Q) (id. a fls. 113), (R) (id. a fls. 309), (S) (id. a fls. 125), (T) (id. a fls. 128), (U) (id. a fls. 133), (V) (id. a fls. 279), (X) (id. a fls. 305) e duas outras jovens, referenciadas por (W) e (Y) (cuja exacta identidade não foi possível apurar). A discoteca "Faraó", de grandes dimensões, é composta por um átrio de acesso [foto 4, a fls. 49] e por dois pisos, interligados por uma dupla escada interior [foto 5, a fls. 49]. No piso inferior, funciona a "pista de dança" [foto 6, a fls. 50), enquanto que o piso superior serve de local de convívio. Nos topos de ambos os pisos funcionam "bares" servidos por balcões amplos e corridos. Dentro da discoteca, o aludido grupo concentrou-se maioritariamente junto do Bar do 1º Piso [fotos 8 e 9, a fls. 51] e zonas contíguas, designadamente, num varandim formando uma pequena esplanada exterior [fotos 11 a 13, a fls. 52-53], e num corredor amplo, com sofás e pequenas mesas, onde ficaram a conversar, dançar e a beber. Cerca das 2 horas da madrugada, o arguido (A) e a esposa, (Z) (id. a fls. 160), dirigiram-se àquela mesma Discoteca, deslocando-se, para o efeito; no motociclo "Kawasaki ZXR 750; com a matrícula LX-78-56, pertença de (A2) (id. a fls. 223) e que este Ihes tinha emprestado. (A) ficou então e durante algum tempo no átrio da discoteca [foto 4, a fls. 49] a conversar com o seu amigo e ora arguido (B1), que ali desempenhava funções de «segurança». Nessa ocasião, entregou-lhe os capacetes de motociclista, que ele e a mulher usavam a fim de que o (B1) os desse a guardar, gratuitamente, à empregada do bengaleiro, como efectivamente sucedeu. Momentos volvidos, o arguido (A) encontrou-se casualmente com o seu amigo e ora arguido (C1), que, por sua vez, estava acompanhado pela esposa, (D1) (id. a fls. 304). Aos dois casais juntou-se também o co-arguido (E1), conhecido do (C1). O arguido (A) era então portador de uma pistola semi-automática de calibre 9 mm/Makarov, da marca "Makarov"; de origem Russa, com cano de 93 mm, número de série atenuado por desbaste (posteriormente apurado como sendo HN8169), fabricada em 1956, munida de um carregador de origem, com capacidade para 8 munições, mas contendo uma mistura de, pelo menos, 7 (sete) munições encamisadas de calibre 9 mm/Makarov (9 x 18 mm) e 9 mm/Parabellum (9 x 19 mm), com a particularidade de estas últimas, devido ao seu maior comprimento, apresentarem a ponta (ogiva) do projéctil cortada, expondo o chumbo interior, por forma a reduzir o seu tamanho e poderem funcionar naquela arma [fotos 2 e 3, a fls. 169]. O arguido trazia essa arma à cintura, metida no cós das calças, pelo seu lado esquerdo, oculta sob a camisola que envergava. Trazia também, num bolso das calças um segundo carregador para aquela arma, com um número indeterminado de munições. O arguido (A) tinha essa arma, carregadores e munições há mais de dois anos, sem qualquer documentação, licença ou registo (...). E, muito embora soubesse que se tratava de uma arma de calibre militar, de posse e uso vedados aos particulares, tinha-a diária e constantemente consigo, ciente de que tal lhe era proibido. Pouco antes das 4 horas, o arguido (A) e esposa, o arguido (C1) e a esposa e o arguido (E1) dirigiram-se separadamente ao 1º andar da Discoteca, onde o primeiro, acompanhado da mulher, ficou a beber uma cerveja, encostado ao canto lateral esquerdo do balcão do Bar [foto 10, a fls. 52], enquanto os restantes três permaneciam algo afastados deles, junto à porta de acesso da esplanada. No 1º andar da Discoteca, que se encontrava totalmente cheio de clientes, alguns elementos do grupo inicialmente referido, entre os quais os arguidos (D), (G), (B), (J) e (E), dançavam animadamente, chegando a empurrar-se entre eles e a empurrar outras pessoas que não dançavam nem faziam parte do grupo, tendo o arguido (D) pisado por mais do que uma vez a mulher do arguido (A). Criou-se assim um clima de tensão e animosidade entre o arguido (A) e os elementos mais próximos daquele grupo. Na sequência desse clima de tensão, o arguido (A) e o arguido (D) olharam-se fixamente, em atitude de confronto iminente, tendo o arguido (D) perguntado ao arguido (A) se o conhecia de algum lado. A situação de confronto iminente entre os arguidos (A) e (D) foi presenciada por (L), que se dirigiu para junto dos arguidos (A) e (D), colocando-se entre eles e tentando afastá-Ios um do outro. Quando (L) assim procedia, o arguido (A) desferiu dois socos consecutivos na cara de (D), querendo e conseguindo magoá-Io. Perante esta reacção, um número indeterminado de rapazes do grupo antagonista, entre os quais os arguidos (G), (F) e (H), avançaram sobre o arguido (A), com o qual se envolveram, conjuntamente, em luta corporal, desferindo-lhe socos e pontapés, ao que o (A) respondeu, também, com socos repetidos, com os quais atingiu os seus vários oponentes. Vendo o arguido (A) em dificuldades, os arguidos (C1) e (E1) acorreram a ajudá-Io, envolvendo-se também aquele na contenda. Á medida que se iam apercebendo da luta, vários outros elementos do "grupo da Amadora", entre os quais pelo menos, os arguidos (B), (J) e (K) juntaram-se à contenda, tendo-se o arguido (B) envolvido directamente com o arguido (C1), a soco e pontapé, recuando este até à zona da Esplanada, onde ao arguido (B) se vieram a juntar em luta, com o arguido (C1), o arguido (J) e ainda os malogrados (K) e (L). Gerou-se então uma situação de grande confusão, durante a qual, trocando reciprocamente socos e pontapés, se formaram dois grupos de contendores: um, no interior da discoteca, entre o arguido (A) e alguns elementos do "grupo da Amadora" e outro, na esplanada, entre o arguido (C1) e outros elementos do mesmo grupo. Na esplanada, o arguido (C1) lutava com (K), (L) e com os arguidos (B) e (J), sendo que todos trocaram socos e pontapés. A dado momento, o (C1) agarrou numa mesa de plástico que empunhava contra os seus agressores. Ao mesmo tempo, no canto do Bar, o arguido (A) lutava com vários outros oponentes, entre os quais só foi possível referenciar os arguidos (G), (F) e (H), trocando reciprocamente socos e pontapés. A dado momento, o arguido (F) agarrou no cinzeiro de louça descrito e fotografado a fls. 220 dos autos e, com ele na mão, abeirou-se do arguido (A), desferindo-Ihe uma forte pancada na cabeça, partindo o cinzeiro e provocando-Ihe um corte na região atingida. Na sequência da pancada com o cinzeiro, o arguido (A) vacilou flectiu os joelhos, apoiando-se com a mão esquerda no chão junto à parede existente entre o balcão do Bar e a porta de saída de emergência e, nessa posição empunhou com a mão direita a pistola que trazia consigo (semi-automática de calibre 9mm/Makarov, da marca "Makarov", de origem russa, com cano de 93 mm) e, com ela, desferiu um tiro na direcção do arguido (G), que, na contenda, lhe dera dois socos e dois pontapés e que, no momento do disparo, se encontrava a uma distância de cerca de dois metros. Ao ver a arma apontada para si, o arguido (G) deu um salto para trás, tendo sido atingido na coxa direita. Ao disparar a arma na direcção do arguido (G), o arguido (A) quis atingí-Io de modo a molestá-lo fisicamente, pretendendo também pela mesma forma assustar os que o agrediam na contenda em que estavam todos envolvidos e assim evitar eventuais novas agressões. Entretanto o arguido (F) debruçara-se sobre o balcão do Bar, agarrando duas garrafas de água «Pedras Salgadas», ainda rolhadas e cheias de liquido, visando utilizá-las na contenda contra o arguido (A). Ocorrendo o disparo sobre o arguido (G) no momento em que retirava as garrafas, o arguido (F) projectou ainda uma dessas garrafas na direcção do arguido (A), que saía da sala nesse momento, tendo a garrafa embatido na parede sem lhe acertar. Seguiu-se uma reacção de surpresa e de receio entre os que na contenda se opunham ao arguido (A), o qual aproveitou esse momento para, com a esposa, sair pela porta de serviço [foto 15, a fls. 55]. Após ter passado a ombreira da porta que dá acesso às escadas de serviço, o arguido (A) viu a esposa do arguido (C1) pedir para socorrer o marido, que continuava envolvido na contenda com os arguidos (J) e (B) e com os malogrados (K) e (L). O arguido (A) voltou atrás, passou a porta que dá acesso à Esplanada e, a uma distância não superior a 1 metro da referida porta, empunhou de novo a pistola que trazia consigo. Na esplanada encontrava-se o arguido (C1) em luta com os arguidos (J) e (B) e com os malogrados (K) e (L), que o envolviam em semicírculo. O arguido (A) apontou e disparou intencionalmente um tiro sobre o corpo do (L), que se encontrava mais à sua esquerda, a menos de 2 metros, varando-Ihe o braço direito e [fotos 27 a 30, a fls. 66-68] perfurando-lhe o pulmão direito e o fígado. Depois, rodando um pouco sobre si e para a direita, apontou a arma ao arguido (J), que estava de costas para si, a cerca de 2 metros, e disparou um novo tiro sobre ele, atingindo-o na região dorsal, ao nível da omoplata esquerda. Continuando a rodar para a direita, visou então o arguido (B), que estava a cerca de 3 metros, e sobre ele disparou um tiro, que o atingiu de raspão na barriga, perfurando-a e atravessando-a, até embater numa parede. Finalmente, visando o corpo do (K), que estava mais à sua direita, a cerca de 1 metro, efectuou novo disparo, atingindo-o no flanco esquerdo ao nível do abdómen [fotos 24 e 25, a fls. 64]. Ao proceder desse modo, visando e disparando deliberadamente sobre o corpo e o tronco dos indicados oponentes, onde sabia encontrarem-se órgãos vitais, o arguido (A) pretendia tirar-Ihes a vida, como efectivamente sucedeu quanto ao (L) e ao (K) e só não ocorreu quanto aos arguidos (B) e (J) quer por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque não os logrou atingir em zonas fatais como queria, quer ainda por estes terem sido prontamente socorridos e tratados. De seguida, o arguido (A) voltou a sair pela indicada porta de serviço, percorreu as escadas [fotos 16 e 17, a fls. 56 e 57], onde se juntou à esposa, seguindo depois os dois, por uma porta de emergência, para o parque de estacionamento, onde tomaram a moto LX-78-56, fugindo do local e deixando os respectivos capacetes no bengaleiro da entrada [foto 31, a fls. 69]. Por seu lado, o arguido (C1), acompanhado da esposa, logrou sair da discoteca pela porta principal, mas, chegado ao parque de estacionamento e vendo que ali estavam já várias pessoas à procura do (A), optou por ali deixar o carro de um amigo [foto 32, a fls. 70], um Fiat Tipo, de matrícula 35-00-FH, no qual se haviam transportado. Entretanto, dois elementos da GNR, que se encontravam nas instalações da discoteca, num "reservado" existente no rés-do-chão, alertados pela confusão que se gerou, subiram as referidas escadas de serviço, chegando à esplanada num momento em que já aí não se encontravam os arguidos (A) e (C1). Como consequência directa e necessária dos referidos disparos e agressões, resultaram:
a) Para (K), as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 461 a 465, designadamente, hemorragia interna consecutiva a graves lesões traumáticas abdominais - sendo, ao nível externo, orifício do flanco-esquerdo, grosseiramente oval, com eixo maior oblíquo para a direita e para baixo, 1,2 x 1 cm, com orla de contusão excêntrica e resultado positivo ao reagente de pólvora, e, ao nível interno, ferida transfixiva dos tecidos moles abdominais e peritoneu, hemoperitoneu, múltiplas feridas transfixivas do intestino delgado, bem como feridas transfixivas do mesentério, do baço, do músculo ilíaco direito, com hemorragias sub-endocárdicas - produzidas por um projéctil de arma de fogo de 9 mm de calibre, recuperado no interior do corpo. A direcção do trajecto seguido pelo projéctil foi da esquerda para a direita, de cima para baixo e ligeiramente de frente para trás. Essas lesões traumáticas foram causa necessária da sua morte, revelando a autópsia sinais de disparo a "curta distância" (i. é. entre 1 cm e 75 cm).
b) Para (L), as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 467 a 472, designadamente, hemorragia interna consecutiva a graves lesões traumáticas toráxicas e abdominais produzidas por projéctil de arma de fogo, que foram causa necessária da morte. Ao nível externo, apresentava um orifício circular na face externa do braço direito, com diâmetro médio de 7 mm e orla de contusão com 2 mm - orifício de entrada no braço - e orifício circular na face interna do braço direito, 15,5 cm abaixo da axila, com diâmetro médio de 7 mm, sem orla de contusão - orifício de saída no braço - orifício circular na face anterior do hemotórax direito, terço interior, com o diâmetro médio de cerca de 7 mm e uma orla de contusão medindo 5 mm - orifício de entrada no tórax. Ao nível interno, hemotórax à direita, hemoperitoneu, ferida transfixiva no espaço intercostal direito, hemorragias sub-endocárdicas, feridas transfixivas do lobo inferior do pulmão direito, junto ao bordo inferior, do hemidiafragma direito, do fígado e do intestino delgado. Estas lesões traumáticas foram produzidas por projéctil de arma de fogo (bala) de calibre 9 mm, encamisado, recuperado no local renal esquerdo, que, no braço, importou trajecto da direita para a esquerda, de baixo para cima e ligeiramente de trás para a frente, e que, no tronco, teve trajecto de frente para trás, da direita para a esquerda e de cima para baixo. O disparo foi efectuado a "longa distância" (i. é, superior a 75 cm).
c) Para (J), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 355; designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente do tórax e membro superior direito produzido por projéctil de arma de fogo, com: a) ferida perfuro-contundente ovalada, de 1 cm x 0,7 cm, na região mediana do terço médio da omoplata esquerda (orifício de entrada do projéctil); b) ferida perfuro-contundente de contorno circular, com 1 cm de diâmetro, na região peitoral esquerda, distando 5,5 cm para dentro e 10,5 cm para cima do mamilo esquerdo (orifício de saída do projéctil); c) ferida incisa-operatória, com 4 cm de comprimento, no terço distal e face anterior do antebraço direito para excisão da bala alojada; d) ferida incisa-operatória de drenagem pleural, com 2 cm de comprimento na face lateral esquerda do tórax; e) ao nível interno ferida transfíxiva do lobo superior do pulmão esquerdo com a formação de hemopneumotorax. Essas lesões traduzem a entrada do projéctil pela face posterior do tórax, com subsequente perfuração e contusão intra-pulmonar esquerda, ao nível do lobo superior, saindo depois pela face anterior lateral do tórax e acabando por penetrar e se alojar no antebraço direito, com o correspondente traumatismo. Conforme o auto de exame de sanidade de fls. 439, as referidas lesões demandaram 60 dias de doença, sendo os primeiros 45 com incapacidade para o trabalho e deixaram, como sequelas, as cicatrizes não deformantes correspondentes. Resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido e, atenta a natureza do instrumento utilizado na produção das lesões (arma de fogo) e a região do corpo atingida (tórax), as lesões produzidas eram idóneas a provocar a morte.
d) Para (B), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 356, designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente do abdómen produzido por projéctil de arma de fogo, com duas feridas perfuro-contundentes de contorno elíptico, de eixo maior oblíquo de cima para baixo e da esquerda para a direita, sendo uma, com 2 cm x 0,8 cm, no hipocôndrio esquerdo, a cerca de 8 cm para cima e para a esquerda da cicatriz umbilical, e outra com 1,5 cm x 0,4 cm, a 5 cm para cima e para a direita da cicatriz umbilical. Tais lesões demandaram-Ihe oito dias de doença com igual tempo de impossibilidade para o trabalho (auto de exame de sanidade de fls. 370).
e) Para (G), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 278, designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente produzido por projéctil de arma de fogo; ao nível da face anterior do terço superior da coxa direita, deixando cicatriz da correspondente ferida perfuro-contundente (orifício de entrada do projéctil), com 1,3 cm de diâmetro, bem como cicatriz de ferida incisa-operatória, com 2,5 cm, na região inguinal direita, lesões essas que lhe demandaram 8 (oito) dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
f) Para (I), as lesões descritas no auto de exame médico de fIs. 277, designadamente: traumatismo da face por objecto de natureza contundente (cadeira), com ferida contusa, suturada, com 1,5 cm de comprimento, na metade esquerda do lábio superior, lesões estas que lhe determinaram 8 (oito) dias de doença com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
g) Para (D), traumatismo da face, sem sequelas, nem lesões observadas aquando do exame médico de fls. 212.
h) Para (C), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 213, designadamente traumatismo da face com equimose no dorso do nariz e escoriações confluentes ao nível do terço externo da metade direita do lábio superior, que lhe demandaram 5 dias de doença, sendo os 3 primeiros com incapacidade para o trabalho.
i) Para (E), as lesões descritas no auto de exame directo de fls. 440, designadamente traumatismo da boca, de natureza contundente, com ferida contusa da mucosa gengiva do lábio inferior, com cerca de 0,5 cm de comprimento, que lhe demandaram 6 dias de doença com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
k) Para (A), as lesões descritas no auto de exame directo de fls. 232, designadamente uma ferida corto-contundente, com 1,8 cm de comprimento, na região parietal posterior esquerda, bem como outra ferida corto-contundente, com 3 cm de comprimento, na 1ª prega interdigital da mão esquerda, e escoriações na face dorsal e bordo interno do dedo polegar esquerdo, lesões essas derivadas de traumatismo corto-contundente que demandaram oito dias de doença com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
Os arguidos (A), (C1), (B), (F), (G), (H) e (J) agiram com o propósito deliberado de molestar fisicamente os seus oponentes, sabendo e querendo tomar parte naquele confronto generalizado entre os dois referidos grupos, conscientes da perigosidade da contenda em que intervinham e que da mesma poderiam surgir graves consequências para eles e para terceiros, nomeadamente lesões particularmente graves e até a morte, intervindo numa luta, em crescendo de violência, que originou os assinalados óbitos e as descritas consequências pessoais. O arguido (A) sabia que utilizava uma arma cuja posse e utilização estava proibida por lei e quis dispará-Ia com o propósito de molestar fisicamente o arguido (G) e de tirar a vida ao (K) e ao (L), como aconteceu, e aos arguidos (B) e ao (J), o que só não sucedeu por motivos alheios à vontade daquele. O arguido (A) veio a ser detido, no dia 30-07-97, em casa de uma sua cunhada, na Picheleira, sendo que então atirou fora, pela janela, um saco de plástico, logo recuperado e apreendido, contendo a arma supra mencionada e dois carregadores, com quatro munições, cada um, sendo cinco delas do calibre 9 mm/Makarov, e as restantes do calibre 9 mm/Parabellum, estas também com a ponta cortada. No interior da Discoteca foram encontradas cinco cápsulas deflagradas, sendo três do calibre 9 mm/Makarov e duas do calibre 9 mm/Parabellum. Foi também encontrado um projéctil do calibre 9 mm/Parabellum, alojado na parede da esplanada, sendo esse projéctil que feriu o (B). Aos ofendidos (G), (J) e ao malogrado (L) foram extraídos, a cada um, um projéctil do calibre 9 mm/Makarov, enquanto que ao malogrado (K) foi extraído um projéctil do calibre 9 mm/Parabellum. Todas as cápsulas e projécteis referidos tinham sido disparados pela arma apreendida ao arguido (A). Por factos ocorridos em 25-2-93, o arguido (A) tinha já sido julgado no Processo Comum Colectivo nº 463/93, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, onde, por acórdão transitado, datado de 17-12-93, foi condenado em 80 dias à multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de ofensas corporais voluntárias, em 120 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de detenção de arma proibida (pistola) e em 45 dias de multa à taxa diária de 300$00 pelo cometimento do crime de introdução em lugar vedado ao público. Porém, não chegou a cumprir tais penas por cessação da sua execução e perdão, nos termos da Lei nº 15/94 (certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 406). No dia 28 de Julho de 1997, pelas 11 horas, no Posto da GNR de Torres Vedras, nesta cidade, e no âmbito das investigações acometidas à Policia Judiciária, foi o ora arguido (B1) inquirido, como testemunha, sobre o sucedido na madrugada da véspera na Discoteca "Faraó", onde desempenhava funções de segurança.
O arguido disse então e, como tal ficou registado no auto de inquirição de fls. 135 e vº, que assinou, para constar, «não saber, nem suspeitar, quem foram os autores ou autor dos disparos» ocorridos no interior da Discoteca. E, questionado sobre os capacetes entretanto encontrados no bengaleiro daquele estabelecimento, disse apenas ser normal que amigos seus lhe dessem objectos a guardar, nada mais acrescentando sobre o assunto. Tal não correspondia, porém, à verdade, pois o arguido tinha perfeita consciência de ter recebido aqueles dois capacetes das mãos do seu amigo (A), a quem, já antes, tinha dado abrigo e pernoita em sua própria casa. Aquando dos factos, o arguido (B1) apercebera-se de que esse seu amigo estivera envolvido no ocorrido, tanto mais que não levantara os capacetes que lhe entregou. Contudo, ocultou propositada e deliberadamente essas informações à Polícia; deturpando o seu depoimento, por omissão de circunstâncias relevantes, sabendo e querendo falseá-lo, desse modo. O que fez também com o intuito de proteger o seu amigo e de assim dificultar o seguimento das investigações em curso, designadamente quanto ao apuramento da identidade do (A), como parcialmente sucedeu, uma vez que só mais tarde e por outras referências, foi possível obter elementos que conduziram à identificação e detenção do arguido (A). Todos os arguidos (A), (C1), (B), (F), (G), (H), (J) e (B1) agiram por forma deliberada, livre e consciente, sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
MAIS SE PROVOU QUE:
A discoteca estava totalmente cheia de clientes no momento em que ocorreram os factos. A discoteca é propriedade da sociedade PNAF - Actividades Imobiliárias e Turísticas, Lda. A Discoteca tem normalmente entre 8 e 10 funcionários que aí exercem funções de "segurança", circulando por todo o espaço das instalações daquele estabelecimento. Está distribuído a tais funcionários um equipamento (vestuário) específico, para assim se distinguirem dos clientes, sendo certo que pelo menos alguns não o usam. No local e momento em que ocorreram os factos, não se encontrava qualquer dos funcionários que exercem funções de "segurança". Entre a sociedade PNAF Actividades Imobiliárias e Turísticas, Lda e a GLOBAL - Companhia de Seguros, SA foi celebrado o contrato de seguro titulado pelos seguintes elementos documentados nos autos: - Apólice nº 96024689 (Condições Particulares) cuja cópia se mostra junta a fls. 1041; - Apólice (Condição Especial) cuja cópia se mostra junta a fls. 1458;
- Apólice (Condições Gerais) cuja cópia se mostra junta a fls. 1450.
(L) tinha 19 anos de idade, era uma pessoa saudável e vivia com os pais, com quem tinha uma boa relação. Os pais de (L) - (F1) e esposa, demandantes civis e assistentes - sofreram um profundo desgosto com a morte do seu filho, que os deixou em estado de grande consternação.
(K) tinha 17 anos de idade, era uma pessoa saudável e vivia com os pais, com quem tinha uma boa relação. Os pais de (K) - (G1) e esposa, demandantes civis e assistentes - sofreram um profundo desgosto com a morte do seu filho, que os deixou em estado de grande consternação.
(G) (arguido, assistente e demandante civil) sofreu as lesões descritas supra, que lhe provocaram fortes dores e que lhe determinaram 8 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
(B) (arguido, assistente e demandante civil) sofreu as lesões descritas supra, que lhe provocaram fortes dores e que lhe determinaram 8 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
(J) (arguido, assistente e demandante civil) sofreu as lesões descritas supra, que lhe provocaram fortes dores e que lhe determinaram 60 dias de doença, sendo os primeiros 45 com incapacidade para o trabalho. Devido ás lesões sofridas, o arguido/assistente, para além do sofrimento físico, ficou psicologicamente afectado, com depressão e insónia, tendo estado internado nos Hospitais de S. José e Santa Maria durante cerca de 2 meses.
No que concerne à situação económica, social e familiar dos arguidos provou-se que:
O arguido (A) é casado, tem um filho de 14 anos de idade, tem o 9º ano de escolaridade e declarou exercer a profissão de electricista por conta própria; auferindo Esc. 70.000$00 a Esc. 90.000$00 por mês (...).
FACTOS NÃO PROVADOS:
Que os arguidos (D) e (G) trincassem copos em frente do arguido (A), e que dissessem entre eles "vai haver granel" e que "vamos partir esta merda toda". Que os arguidos (E1), (D), (C), (E) e (I) tivessem tomado parte activa na contenda (apesar de se ter provado o forte contributo para o inicio da mesma por parte do arguido (D)). Que o arguido (C1) tivesse empunhado, além de uma mesa, uma cadeira de plástico. Que o arguido (F), para além do cinzeiro, tivesse chegado a atingir o arguido (A) com uma garrafa de "água das pedras". Que o arguido (A) tenha chegado a perder os sentidos. Que o arguido (A), com o primeiro disparo, tivesse pretendido causar a morte do arguido (G). Que o arguido (C1) estivesse tombado na esplanada e dobrado no chão com as mãos na cabeça (desde logo porque não foram examinadas quaisquer lesões e cicatrizes relativamente a este arguido). Que os arguidos/assistentes (G) e (B) tivessem deixado de auferir qualquer rendimento devido, às lesões sofridas. Que (L) e (K) tivessem tido consciência da sua morte iminente devido ás lesões sofridas (pois que a sua morte foi imediata).
FUNDAMENTAÇÃO:
(...)
BREVE SÍNTESE E ANÁLISE CRITICA DOS MEIOS DE PROVA PRODUZIDOS EM AUDIÊNCIA (...)
ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:
Vem imputada ao arguido (A) a prática de: a) dois crimes de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p, nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), do Código Penal e b) três crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), 22º, nº 1 e nº 2, al. b), 23º e 73º, todos do Código Penal. À data da prática dos factos, dispunha o artigo 132º do Código Penal: 1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos. 2- É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente (...): f) Utilizar veneno, qualquer outro meio insidioso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum (...)". O normativo em apreço foi entretanto alterado pela Lei nº 65/98 de 2 de Setembro, que transferiu para as alíneas g) e h) as circunstâncias agravativas anteriormente previstas na alínea f), com a seguinte redacção: g) Praticar o facto juntamente com pelo menos mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum; h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso". Do confronto destas normas penais se conclui que o legislador manteve a circunstância agravativa do meio utilizado na conduta típica, traduzido na prática de um crime de perigo comum. Tendo-se provado que o arguido (A) utilizou uma pistola com as características já referidas (semi-automática de calibre 9 mm/Makarov, da marca "Makarov', de origem Russa, com cano de 93 mm, número de série atenuado por desbaste (posteriormente apurado como sendo HN8169), fabricada em 1956, munida de um carregador de origem, com capacidade para 8 munições, mas contendo uma mistura de, pelo menos, 7 (sete) munições encamisadas dos calibres 9 mm/Makarov (9 x 18 mm) e 9 mm/Parabellum (9 x 19 mm), com a particularidade de que estas últimas, devido ao seu maior comprimento, apresentavam a ponta (ogiva) do projéctil cortado, expondo o chumbo interior), dúvidas não restam de que a utilização de tal meio integra o conceito normativo de "prática de crime de perigo comum", já que tal definição lhe é expressamente atribuída pela lei penal - art. 275º (detenção de arma proibida - vide epigrafe do Capitulo III, arts. 272º e seguintes), art. 7º, § único, al. a), do DL 37 313 de 21.02; que a qualifica como arma militar, art. 1º, 2º, 3º al. a) do DL 27-A/75 de 17.04 e art. 1º do DL 22/97 de 27.07. Ou seja, a utilização de uma arma com aquelas características (e com a perigosidade inerente), é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, de acordo com as normas legais citadas, pelo que a conduta do arguido (A) se subsume, à partida, no tipo legal de homicídio - qualificado pela circunstância referida - previsto nos artigos 131º e 132º do Código Penal. Nesse sentido, citam-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: 28.09.94 CJ 1994.3.207, 09.06.93 BMJ 428-285 e 27.02.91 BMJ 404-233. Reconhece-se que tais circunstâncias não actuam automaticamente, funcionando como meros "índices" de censurabilidade. Há que salientar no entanto que, conforme ficou provado, o arguido entrou com aquela arma carregada num espaço frequentado naquele dia por muitas centenas de pessoas, acabando por se envolver numa contenda que potenciou e, infelizmente, concretizou a manifesta perigosidade da arma que trazia, revelando a sua conduta um óbvio "dolo de perigo', o que a torna particularmente censurável. No que concerne ao disparo efectuado pelo arguido (A) sobre o arguido (G), apenas se provou a intenção, concretizada, de o molestar fisicamente, pelo que tal conduta integra o tipo legal de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º do Código Penal, qualificada pela utilização de um meio traduzido na prática de um crime de perigo comum, nos termos dos nº 1 e 2 do artigo 146º do Código Penal. Concluímos, em face do exposto, que a conduta do arguido (A) se subsume nos tipos legais referidos, traduzindo-se na prática de 4 crimes de homicídio qualificado - 2 na forma consumada e 2 na forma tentada - e de um crime de ofensa à integridade física qualificada.
A PERDA DE AUTONOMIA DO CRIME DE POSSE E DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA.
Tendo-se considerado a utilização da arma proibida como preenchendo a circunstância agravante da alínea f) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, há que equacionar a existência ou não de autonomia típica desta conduta. Tem constituído entendimento dominante do Supremo Tribunal de Justiça a perda de autonomia do crime de posse e detenção de arma proibida nas situações em que essa conduta foi já valorada penalmente na integração da alínea f) do artigo 132º do Código Penal. Ou seja, não é permitida a dupla valoração do mesmo facto já que um dos crimes (o homicídio qualificado) envolve a prática de um outro que passou a integrar a circunstância qualificativa (uso e porte de arma proibida), pelo que o primeiro-"consome" o "segundo". Citam-se, a título de exemplo, alguns arestos do STJ: 28.09.94, CJ 1994.3.207; 09.06.93 BMJ 428-285; 27.02.91, BMJ 404-233. O arguido (A) responde assim pela prática de 4 crimes de homicídio qualificado, sendo dois na forma consumada e três na forma tentada, e um crime de ofensa à integridade física qualificada, consumindo tais incriminações o crime de uso e porte de arma proibida, que, assim, perde autonomia penal.
A QUESTÃO DA LEGITIMA DEFESA:
O arguido (A), na sua contestação, não invocou qualquer causa de exclusão da ilicitude da conduta que lhe é imputada, nomeadamente a legítima defesa. Importa no entanto abordar a questão, considerando os factos provados em audiência de julgamento. Dispõe o artigo 32º do Código Penal que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Constituem assim requisitos desta causa de exclusão da ilicitude: a) a agressão; a actualidade ou a eminência da agressão; a ilicitude da agressão; a vontade de defesa «animus defendendi» (embora seja controvertido na doutrina este requisito); a necessidade do meio utilizado pelo defendente, aferida objectivamente; a impossibilidade de recurso à autoridade pública (pressuposto que decorre directamente do princípio constitucional consagrado no artigo 21º da CRP). No caso em apreço, a questão coloca-se desde logo relativamente ao elemento subjectivo «anímus defendendi». Tem entendido a doutrina que "a provocação inicial exclui a justificação da acção defensiva posterior" (por todos, JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Vol. I, pág. 481). Nestes casos, entende-se que não, se verifica a necessidade de defesa: "Não haveria necessidade de o agente se defender na medida em que ele próprio, em momento anterior, poderia ter evitado a agressão", reconduzindo-se o «animus defendendi» ao requisito da necessidade (perspectivado subjectivamente). Nesse sentido, escreveu CAVALEIRO FERREIRA: "Meio necessário para repelir a agressão indica a relacionação do meio com o seu fim - repelir a agressão. Mas o fim poderá ser considerado como o «fim subjectivo» do defendente (a intenção de defender-se) ou o fim objectivo da acção de defesa" (Lições de Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Editorial Verbo, 1992, pág.190). Tenhamos presente que, no caso em apreço, o envolvimento físico dos arguidos, a «passagem a vias de facto», ocorreu com uma conduta inicial do arguido (A), ao desferir dois socos no arguido (D), quando (L) os acabava de separar. Ou seja, ao desferir a primeira agressão, o arguido (A) fez eclodir a situação (rixa), assim perdendo a legitimidade de defesa. Refira-se que, apesar de no despacho de pronúncia se concluir que os crimes de homicídio praticados pelo arguido (A) "consomem" o crime de participação em rixa (entendimento que também perfilhamos), a verdade é que a sua conduta também integra o tipo legal de participação em rixa, objectiva e subjectivamente. Quanto ás causas de justificação, refere AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO (Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo 1, pág. 324), que a única causa de justificação que é pensável em relação à participação em rixa é a legítima defesa, própria ou alheia, com a seguinte limitação: "Em relação à legítima defesa própria, uma vez que cada um dos participantes é, simultaneamente, agressor e agredido, nunca poderá um participante na rixa exercer qualquer direito de legitima defesa enquanto não abandonar, manifestamente, a rixa". Paralelamente à agressão pré-ordenada - intencionalmente dirigida a criar uma situação de legítima defesa, que manifestamente exclui a legitimidade da defesa (EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, vol. II, pág. 41), configuram-se situações em que o defendente foi o primeiro agressor, dando origem à agressão reciproca, da qual vai ter necessidade de se defender. Escreveu CAVALEIRO FERREIRA (ob. cit., pág. 189): "Tendo dado o defensor motivo bastante para agressão, a sua defesa não será legitima. (...) A defesa, essa, é considerada como causa de justificação do crime em que consiste; mas dando motivo suficiente à agressão, o provocador que dela se defenda foi concausa da agressão, na medida em que determinou, por essa forma, o agressor à perpetração da agressão. Não se defende, então, de uma, agressão exclusivamente alheia, mas de uma agressão a que deu causa, porque determinou o agressor a cometê-Ia". No caso em apreço, o arguido (A), com a primeira agressão, que fez transbordar o clima de elevada tensão que se verificava no local, gerou uma dinâmica de violência que culminou com a utilização de uma arma proibida que trazia consigo, praticando quatro homicídios (dois consumados e dois tentados), revelando-se inquestionavelmente ilegítima a sua conduta, não sendo sequer configurável no excesso de legítima defesa. Tem sido esse o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça em situações similares, como se ilustra com o sumário dos seguintes acórdãos: 12.06.97, CJ 1997,2, 238
e 09.07.92, BMJ 419-589.
O CRIME DE OFENSAS CORPORAIS IMPUTADO AO ARGUIDO (A):
Sobre esta incriminação não se suscitam quaisquer dúvidas, na medida em que ficou provado que o arguido (A) desferiu dois socos na cara do arguido (D), tendo sido esta a agressão que fez eclodir toda a situação de violência que se seguiu. A conduta do arguido integra assim a previsão legal do nº 1 do artigo 143º do Código Penal.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ARGUIDO (A):
Dispõe o artigo 483º do Código Civil que, aquele que com dolo ou mera culpa, violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Decorre da norma lega citada, que são os seguintes os pressupostos da responsabilidade civil subjectiva: - O facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (a título de culpa), o dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano (PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CC Anotado, 3ª ed. vol. 1, pág. 444). A conduta do arguido (A), para além de passível de responsabilidade criminal, integra os pressupostos da responsabilidade civil, pelo que, de acordo com a norma legal citada, sobre o arguido impende a obrigação de indemnizar.
A MEDIDA DA INDEMNIZAÇÃO:
Nos termos do artigo 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, a qual, de acordo com o disposto no artigo 566º é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível. Decorre do disposto no artigo 496º do Código Civil que são indemnizáveis os danos não patrimoniais, que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, devendo o montante da indemnização ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que se justifiquem em cada caso. Conforme se refere no acórdão ao STJ de 28 Out 92 (CJ XVIII-IV-31), «Os danos morais ou prejuízos de natureza não patrimonial, correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por "pretium doloris", ou ressarcimento tendencial da angústia, da dor física, da doença ou do abalo psíquico-emocional resultante de uma situação de luto». No caso sub judice, não se provaram danos materiais, havendo que definir os parâmetros de quantificação da indemnização por danos morais; a) fixação equitativa, tendo em conta o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que se justifiquem no caso concreto (art. 496º do CC); b) a culpa concorrente do lesado, da qual pode resultar a redução ou mesmo a exclusão da indemnização (art. 570º do CC). Aplicando estes parâmetros ao caso concreto, concluímos pela verificação dos seguintes, particularmente relevantes: I) O lesante - arguido (A) tem uma situação económica precária; II) Os lesados intervieram todos na rixa, no âmbito da qual ocorreram os danos, participando também de forma decisiva para essa ocorrência. Os quantitativos indemnizatórios que adiante se concretizarão serão assim definidos em função dos parâmetros e critérios-referidos, particularmente da situação económica precária do lesante e da concorrência das condutas das vítimas para a produção do resultado trágico que constitui os danos. DEFINlÇÂO DAS MEDIDAS CONCRETAS DAS PENAS:
Nos termos do artigo 70º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis em alternativa pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve o tribunal dar preferência à medida não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Dispõe o nº 1 do artigo 71º do Código Penal, que a determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção especial. Decorre do disposto no nº 2 da referida norma, que na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime; deponham a favor ou contra o agente.
CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES A CONSIDERAR (ARGUIDO (A)):
Por factos ocorridos em 25 Fev 93; o arguido (A) tinha já sido julgado no comum colectivo 463/93 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, onde, por acórdão transitado, datado de 17-12-93, foi condenado em 80 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de ofensas corporais voluntárias, em 120 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de detenção de arma proibida (pistola) e em 45 dias de multa à taxa diária de 300$00 pelo cometimento do crime de introdução em lugar vedado ao público, não chegando a cumprir tais penas por cessação da sua execução e perdão, nos termos da Lei nº 15/94; por factos ocorridos em 16 Dez 94, foi julgado no comum nº 3284/94 da 2ª Secção do 6º Juízo Criminal de Lisboa, onde, por acórdão transitado em julgado em 18.01.99, foi condenado em 180 dias de multa pela prática de um crime p. e p. no artigo 385.1 (ofensa a funcionário/agente da PSP), com referência ao artigo 142º nº 1 do C. Penal de 1982. O tribunal não poderá deixar de considerar como relevantes as exigências de prevenção geral e especial a que se refere o artigo 71º do Código Penal nestes tempos conturbados em que ocorrem com alguma frequência explosões de agressividade em locais de diversão maioritariamente frequentados por jovens, com consequências dramáticas. No que respeita aos arguidos que apenas intervieram na rixa, há que considerar que, embora não Ihes sejam imputáveis as mortes (nomeadamente dos seus amigos), numa perspectiva estritamente jurídico-penal, as suas condutas contribuíram objectivamente para o violento e dramático desfecho. Neste tipo de conflito em que a dinâmica do grupo e a necessidade de cada um dos seus elementos se afirma, se sobrepõem à ponderação individual do risco e das consequências, tendem-se a criar situações de elevada tensão que potenciam resultados como o que veio a ocorrer no caso sub-judice.
DECISÃO PENAL:
Acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo em: I) absolver os arguidos (E1), (D), (E), (C), e (I) do acusado crime de participação em rixa, Il) absolver o arguido (B1) do crime de falsidade de testemunho; III) absolver o arguido (A) do crime de posse e detenção de arma proibida (considerando o facto de este crime não se punido autonomamente dado que os factos que o integram constituem circunstância qualificativa dos crimes de homicídio e ofensas corporais); IV) condenar o arguido (A), como autor material e concurso efectivo, pela prática dos seguintes crimes: a) pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa do ofendido (D), p. e p. no art. 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de prisão; b) pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa do ofendido (G), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 143º nº 1 e 146º nº 1 e 2, com referência à alínea g) do artigo 132º nº 2, todos do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão; c) pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, referente ao malogrado (K), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea g), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão; d) pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, referente ao malogrado (L), p. e p. nas disposições combinadas dos arts, 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea g), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão; e) pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, referente ao ofendido (B), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea g), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), 22º, nº 1 e nº 2, aI. b), 23º e 73º, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; f) pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, referente ao ofendido (J), p. e p. nas disposições combinadas dos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea f), com referência ao art. 275º (detenção de arma proibida), 22º, nº 1 e nº 2, al. b), 23º e 73º, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão. Efectuando o cúmulo jurídico nos termos do artigo 77º do Código Penal, acordam os juízes que compõem este Tribunal Colectivo em condenar o arguido (A) numa única pena de 23 (vinte e três) anos de prisão.
DECISÃO CIVIL:
Condena-se o arguido (A) no pagamento das seguintes indemnizações: a) 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos) por danos morais, ao demandante (G); b) esc. 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos), por danos morais, ao demandante (B); c) 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), por danos morais, ao demandante (J); d) 6.000;000$00 (seis milhões de escudos), pela perda do direito à vida de (L), aos seus pais (F1) e esposa (H1), bem como Esc. 6.000.000$00 (seis milhões de escudos) por danos morais 3.000.000$00 a cada um); e) 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), pela perda do direito à vida de (K), aos seus pais (G1) e esposa (I1), bem como 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), por danos morais (3.000.000$00 a cada um). Vai assim o arguido (A) condenado no pagamento da quantia total de Esc.: 27.750.000$00 (vinte e sete milhões setecentos e cinquenta mil escudos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação.
17 Mar 99 - Colocação do arguido (A), até 17 Set 99 (e só durante 6 meses por efeito de um ano de perdão da Lei 29/99), à ordem do processo comum colectivo 9993/95.7JDLSB-3 da 4ª Vara Criminal de Lisboa.
29 Mar 99 - Recurso do arguido (A), em que pediu alegações por escrito e assistência judiciária:
1º - O recurso ora interposto fundamenta-se no art. 410º, nºs 2, als. a), b) e c) e 3º do CPP.
2º - Existe ainda inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanado (nº 3 do art. 410º do CPP),
3º - A pgs. 27 e segs. do acórdão recorrido encontramos a «breve síntese e análise critica dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento». Ora os únicos comentários críticos feitos sob essa rubrica encontram-se a pgs. 29, 31 e 32 e, curiosamente, são todos em ordem a pôr em causa a prova produzida pela acusação. Esses comentários não preenchem, claramente, os requisitos legais acima mencionados, nem sequer podem entrar dentro do conceito «ainda que concisa» que não exclui o requisito anterior «tanto quanto possível completa». Mais patente é a violação da disposição citada em relação aos chamados «factos não provados», pois aí nenhum exame critico é feito em relação a essa prova nem nenhum fundamento apresentado. Pois o que aconteceu no acórdão recorrido foi exactamente o que na jurisprudência do STJ se diz que não se deve fazer.
8º - O acórdão recorrido não se pronunciou, aliás na decorrência da falta do cumprimento da alínea a) citada, sobre questões que podia e deveria ter-se pronunciado, como sejam: a dinâmica dos factos, a diferente conduta do arguido durante essa dinâmica e as causas de exclusão da ilicitude, ou da culpa, que, nitidamente, estão envolvidas nos factos que levaram à decisão recorrida.
10º - A prova efectuada em audiência revela-se insuficiente para a decisão alcançada, revela contradição entre a fundamentação e a decisão e revela erro notório na apreciação da prova.
15º - Quanto à violação de outras normas legais, o acórdão recorrido não considerou, como lhe impunha a lei, a CULPA do agente.
16º - A questão da possível exclusão da ilicitude ou da culpa foi insuficientemente fundamentada e provada. Quanto à qualificação do homicídio, concluiu o tribunal a quo que a conduta do arguido se subsume nos tipos legais referidos, traduzindo-se na prática de quatro crimes de homicídio qualificado - dois na forma consumada e dois na forma tentada - e de um crime de ofensa à integridade física qualificada. E quanto à exclusão da legítima defesa entendeu o Tribunal que "a provocação inicial excluiu a justificação da acção defensiva posterior". Ou seja: ao desferir a primeira agressão, o arguido (A) fez eclodir a situação (rixa), assim perdendo a legitimidade da defesa.
26º - Se bem se reparar, quase todos os factos dados como provados em audiência de julgamento consistem numa reprodução fiel do despacho de pronúncia, ou seja, a versão dos factos apresentada pelo próprio (A). No entanto - provavelmente porque a prova prestada pelo «grupo da Amadora» para pouco ou nada serviu, o acórdão em crise tentou fundamentar a sua tese em algumas contradições de (A), descritas a fls. 29: I) Perante o Juiz de Instrução, terá dito "O primeiro rapaz dirigiu-se de novo ao arguido, na sequência de tal, receando ser agredido, o arguido deu dois socos na cara ao referido rapaz" e, em audiência, afirmou que «neste momento interveio (L), que colocou a mão no peito do arguido, afastando-o e recomendando-Ihe calma, tendo o arguido (D) tentado dar uma cabeçada no (A), que se desviou e lhe deu um soco»; II) A segunda contradição é, na opinião do tribunal, o modo de aquisição da arma utilizada na noite dos acontecimentos (...); III) No terceiro facto, a contradição é tão pouco evidente que não merece mais análise; IV) Já quanto à quarta contradição, ela merece maior atenção pois foi através dela que o tribunal recorrido tirou a convicção de que, quanto aos tiros disparados na esplanada, (A) tinha a intenção de provocar o resultado «morte».
35º - Quanto a (C1), as suas declarações em nada contradizem as do (A), reforçando ainda a ideia de que corria sérios riscos - até de vida. (D) (do «grupo da Amadora» e unanimemente considerado o principal responsável pelos acontecimentos daquela noite fatidica), prestou um depoimento evasivo. (B) afirmou que (C1) defendia-se muito bem, evitando ser atingido tendo o arguido, durante a luta, pensado: «Estou lixado!"». (F), (J) e (V) eram das tropas especiais e ele e o irmão (K) (que veio a falecer atingido por um disparo do (A)) haviam praticado artes marciais. (F) - do «grupo» - diz que «viu o (A) a discutir com o (D), tendo sido separados pelo (L), após o que o (A) deu um soco no (D), tendo o arguido pegado num cinzeiro com o qual desferiu uma pancada na cabeça do (A)». (G) - do «grupo» - afirmou que «na semana anterior o seu grupo estivera na mesma discoteca e, segundo pensa, o (B) terá sido advertido». (H) - do «grupo» - afirma ter visto (A) dar um murro a (D) «O outro agrediu o (L), estávamos em grupo, começámos a agredir-nos». (J1) trabalhava no bar e «afirmou que viu um grupo à sua frente, a dirigir-se para o seu lado direito, onde se encontrava o arguido (A), viu confusão, e o arguido (A) a disparar...» e que «a sua colega (L1), cerca de uma hora antes da ocorrência dos factos, perante a agitação do grupo que ali se encontrava; lhe disse que podia haver chatices». (M1) trabalhava no Faraó, encontrando-se no bar junto do qual tiveram lugar os factos e - afirmou que «viu uma grande confusão, várias pessoas aos murros, tendo visto o arguido (A) ser empurrado contra a parede» e que «viu o (A) a puxar da arma num momento em que estava agachado». (L1) trabalhava no Faraó e afirmou que «o grupo da Amadora era fora do comum (...) e os elementos do grupo mostravam grande animação e empurravam-se a eles próprios sendo certo que não recebeu qualquer queixa dos clientes». Disse ainda a testemunha que viu «um monte de pessoas aos murros e aos pontapés» e que «quando ouviu o primeiro tiro viu o (A) agachado, mas não viu a arma» e que «viu dois elementos do grupo - que identificou como sendo os arguidos (G) e (J) - embrulhados a dar murros e pontapés ao (A). (Q) - do «grupo» - declarou única e textualmente que viu «o (A) e os meus amigos a agredirem-se mutuamente». (T) - do «grupo» - «viu o (F) dar com um cinzeiro na cabeça do (A) e viu o (A) dar um tiro no (G)». (P) - do «grupo» -«viu o (G) dar um pontapé no (A), que se dobrou, levantou a t-shirt e disparou». «Viu o (F) dar com um cinzeiro na cabeça do (A)».
61º - Quanto à valoração da prova, nota-se que o tribunal a quo se decidiu por valorar as provas, utilizando critérios incompreensíveis. O próprio acórdão recorrido, numa análise crítica dos meios de prova, considerou que «os arguidos e as testemunhas - particularmente no que concerne ao Grupo da Amadora (que melhor poderia identificar os rixantes e as condutas de cada um prestam depoimentos, em alguns casos evasivos e repletos de ambiguidade». Na pg. 9 do acórdão disse-se que «o arguido (A) tinha essa arma, carregadores e munições há mais de dois anos» e que «tinha-a diária e constantemente consigo» apesar de (A) ter claramente afirmado que somente usava a arma quando saía com a sua mulher, preocupado com a segurança desta. Na pag. 10, referiu-se «uma situação de confronto iminente» ao mesmo tempo que se deu como provado que «no primeiro andar da discoteca, que se encontrava cheio de clientes, alguns dos elementos do grupo inicialmente referido (o da Amadora), entre os quais os arguidos (D), (G), (B), (J) e (E), dançavam animadamente, chegando a empurrar-se entre eles e a empurrar outras pessoas que não dançavam nem faziam parte do Grupo, tendo o arguido (D) pisado por mais de uma vez a (Z) - esposa do arguido (A)». Na pág. 11, deu-se como provado que «um número indeterminado de rapazes do grupo antagonista, entre os quais os arguidos (G), (F) e (H), avançaram sobre o arguido (A), com o qual se envolveram conjuntamente em luta corporal, desferindo-Ihe socos e pontapés, ao que o (A) respondia, também, com socos repetidos com os quais atingia os seus vários oponentes», ao mesmo tempo que se deu como provado que « à medida que se iam apercebendo da luta, vários outros elementos do grupo da Amadora, entre os quais e pelo menos os arguidos (B) e (J) e o assinalado (K), juntaram-se à contenda». Na pág. 12 (4º parágrafo), deu-se como provado que «a dado momento, o arguido (F) agarrou no cinzeiro de louça descrito e fotografado a fls. 220 dos autos e, com ele na mão, abeirou-se do arguido (A) desferindo-lhe uma forte pancada na cabeça, partindo o cinzeiro e provocando-Ihe um corte na região atingida» e que «ao disparar a arma na direcção do arguido (G), o arguido (A) quis atingi-Io de modo a molestá-lo fisicamente, pretendendo também, pela mesma forma, assustar os que o agrediam na contenda em que estavam todos envolvidos e assim evitar novas agressões». Na pag.13 deu-se como provado que «se seguiu uma reacção de surpresa e de receio entre os que na contenda se opunham ao arguido (A), o qual aproveitou esse momento para, com a sua esposa (Z), sair pela porta de serviço», o que mostra que (A) quis abandonar a contenda e chegou mesmo a fazê-Io. O modo de valoração da prova violou as regras da lógica, da experiência comum e das obrigações legais de valoração da prova.
82º - Na qualificação do homicídio, o acórdão recorrido assentou no «porte de arma» por parte do arguido. Haveria, porém, que se apurar se, na situação concreta, implicava especial censurabilidade ou perversidade. Apesar de o acórdão recorrido entender que sim, essa conclusão está em franca contradição com outros factos provados que, antes, constituem factor de privilegiação ou, ao menos, factor decisivo de diminuição da culpa (artigo 72º, nº 2, al. a), do CP). É que o arguido (A) só utilizou a arma depois de várias agressões contra si e quando já receava pela sua vida.
87º - Quanto ao início da contenda, o tribunal a quo valorou negativamente a contradição a ele atribuída no que respeita ao primeiro agressor físico, tendo optado por considerar (A) como o seu agente acabando por dar mais crédito à versão, apesar de ambigua e contraditória no seu todo, do «GRUPO DA AMADORA».
91º - O motivo da pesada pena atribuída a (A) terá sido a intenção revelada por ele ao ter supostamente (aqui o tribunal recorreu a presunções de culpa e a conjecturas imaginárias e sem qualquer tipo de suporte probatório) disparado para a parte do corpo das vítimas onde se encontravam órgãos vitais. Ora, fora da audiência de julgamento, o arguido só prestou declarações perante um magistrado judicial aquando do 1º interrogatório de arguido preso, segundo cujo auto, «fez sucessivamente mais três disparos da esquerda para a direita (...), apontando para o baixo abdómen bem sabendo que essa zona do corpo é bem mais perigosa do que os membros inferiores» (expressões que não são do arguido mas de pessoas que regularmente trabalham com o processo penal). Aliás, como distinguir naquela «confusão» toda, se o arguido atirou para a parte de cima das pernas ou para o baixo ventre? Como é que se sabe se o arguido não apontou, no primeiro tiro na esplanada para o membro superior que veio a ser realmente atingido, só depois tendo entrando pelo tronco da vítima (L)?
105º - Quanto á correcta subsunção jurídica a fazer do confronto entre (A) e (D), não se lhe pode negar autonomia fáctica, e com ela, jurídica. (A), tendo-se envolvido em discussão com (D) e apesar da intervenção do falecido (L), agrediu-o, tendo o segundo caído ao chão, não havendo mais nenhuma intervenção deste na «rixa». Na sequência, um elevado, mas indeterminado, número de amigos do (D) - grupo da Amadora - lançou-se a (A), que se passou a defender. Assim sendo, o que passou aí, para efeitos jurídico-penais, foi, simplesmente, uma ofensa à integridade física simples.
109º - No disparo sobre (G) basta atentar em que, depois de (D) ter sofrido a agressão, foram os membros do «Grupo da Amadora» que deram inicio àquilo que se deve considerar como o segundo momento relevante para efeitos jurídico-penais. Não existiu circunstância (nem legitima defesa nem estado de necessidade) que justificasse ao grupo da Amadora atacar o arguido (A), que chegou a ser agredido por, entre outros, cinco indivíduos. Está preenchida a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 32º do CP, não havendo qualquer averiguação a fazer de um eventual excesso de legitima defesa.
112º - Quanto aos disparos efectuados na esplanada, é de considerar, em primeiro lugar, que (A) teve intenção e abandonou o palco dos acontecimentos ao sair pela porta de emergência; e, em segundo lugar, que o arguido só aí voltou porque recebeu um pedido de ajuda da esposa do arguido (C1), ou seja, para defender terceiro. E, ao chegar à esplanada, só iniciou a segunda sequência de disparos porque o arguido (C1) ainda estava a ser agredido pelo grupo da Amadora. Ademais, e apesar de três elementos do grupo da Amadora terem avançado para ele, os disparos foram dirigidos aos elementos que continuaram (mesmo após o primeiro e segundo disparos) a agredir (C1). Estão também verificados os requisitos de legitima defesa, agora alheia, se bem que, pelo desvalor do resultado alcançado e a ausência de prova concludente quanto aos veros locais para onde o arguido apontou, se admita, por cautela de patrocínio, equacionar o excesso de legitima defesa.
122º - Mesmo que se considere o arguido (A) como o agente que iniciou a contenda, o que é facto é que o seu opositor inicial nunca mais interveio na dita rixa. No caso dos autos ainda que se considere (A) como primeiro agressor, nunca mais ele teve necessidade de se defender de (D), mas antes de mais de meia dúzia de amigos deste que, sem qualquer justificação, o começaram a agredir.
124º - O pedido cível deve ser reduzido em proporção à eventual diminuição da sua responsabilidade penal.
16 Abr. 99 - Apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de preparos (taxa de justiça) e do pagamento de custas, aos assistentes (F1) e esposa.
26 Abr 99 - Contra-alegações do MP:
1 - O recurso - que visa exclusivamente o reexame da matéria de direito - deverá ser rejeitado, conforme se dispõe no art. 412º, nº 2 e 420º, nº 1, CPP, na medida em que, nas conclusões da respectiva motivação, não se indicam quais as normas jurídicas violadas pelo tribunal "a quo", qual o sentido em que, na sua perspectiva, o tribunal interpretou cada norma ou com que as aplicou, e, qual o sentido com que as mesmas deveriam ter sido interpretadas ou aplicadas; e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, qual a norma jurídica que no entendimento do recorrente deveria ter sido aplicada.
2 - "Verificar-se-à erro notório na apreciação da prova quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação de um homem de formação média que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum". Ora, no acórdão recorrido, não se constata tal erro, não tendo, assim, sido violado o disposto no art. 410º, nº 2, al. c) CPP.
3 - Não contém o mesmo qualquer nulidade («relativamente aos factos não provados, nenhum exame crítico é feito em relação a essa prova, nem nenhum fundamento apresentado»), não tendo, nomeadamente, violado o disposto nos arts. 374º, nº 2 e 410º, nº 3, CPP, dado que a "fundamentação da globalidade da matéria de facto não provada é desnecessária quando se contrapõe à matéria de facto dada como provada e esta está devidamente fundamentada". De resto, no acórdão recorrido indicam-se, ao longo de 18 páginas, quais os factos dados como provados, enquanto que na p. 25 se indicam quais os que não se provaram, após o que se indicaram os meios de prova em que o tribunal alicerçou a sua convicção, fazendo-se depois uma longa e exaustiva síntese dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento, com a transcrição das passagens fulcrais das declarações e depoimentos prestados, e, finalmente, fez-se, a fls. 41-2, a análise critica dos meios de prova.
4 - A prova produzida foi apreciada pelo Colectivo, segundo o principio da livre apreciação da prova, ou seja, "segundo as regras da experiência e livre convicção" dos magistrados que o integram, pelo que não violou o disposto no art. 127º, CPP.
5 - O tribunal "a quo" fez uma cuidada analise das diversas questões jurídicas que se levantaram, atento a matéria factica provada, tendo feito um correcto enquadramento juridico-penal da mesma, aplicando penas justas e equitativas que entendemos deverão ser mantidas.
6 - O recurso deverá improceder totalmente.
O3 Mai 99 - Contra alegações dos assistentes (F1), (H1), (G1) e (I1) («Nestes termos, deverão V.Ex.as não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido (A), mantendo em toda a sua extensão o acórdão recorrido»).
O arguido recorrente não observou nas suas conclusões o disposto no art. 412º, nº 2 do C.P.P..
Na verdade, se verificarmos o articulado das conclusões compreendemos que o arguido, embora indique normas que considera violadas, não expressa em momento algum nem o sentido interpretativo adoptado pelo tribunal a quo, nem, consequentemente, refere, por contraposição, aquele sentido que deveria ter sido acolhido pelo tribunal a quo.
Nestes termos, deve ser o recurso interposto pelo arguido (A) rejeitado liminarmente como determina o art. 412º, nº 2 do CPP.
O arguido vem arguir a nulidade do acórdão sob o fundamento do art. 379º, nº 1, alínea a) e c) do C.P.P. A fundamentação da arguição da nulidade do acórdão reside, por um lado, na interpretação parcial do discurso do acórdão recorrido, circunscrevendo a análise do acórdão a partes dispersas e não validando o todo do discurso que, da respectiva leitura, permite, desde a pág. 27 até à 41 do acórdão, descrever o processo lógico de assunção dos essenciais meios de prova que serviram para a formação da convicção do tribunal.
Por outro lado, o arguido confunde a exposição, "tanto quanto possível completa", dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão com a indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
A mera leitura do acórdão permite a representação mental de todo o processo de convicção que assistiu o tribunal na determinação da decisão, sendo que é possível ao leitor assumir e compreender lógica e racionalmente o processo de formação de convicção.
Da leitura da motivação de recurso, não é fornecido um único elemento que permita afirmar, por um lado, que a fundamentação de facto, a descrição dos factos dados como provados ou a análise jurídica dos mesmos estejam em oposição com a decisão de condenação, e, por outro, que tenha sido uma prova apreciada erroneamente, por referência às normas da experiência comum ou mesmo por referência aos próprios critérios definidos no acórdão para a assunção dos factos.
Se atendermos aos supostos casos de erro notório na apreciação da prova, não se compreende como nessas duas situações existe algum erro de apreciação. Quanto a estes dois casos, não podem deixar os assistentes de afirmar o seguinte: o arguido recorrente, na impossibilidade de demonstração de erro, pretende que o tribunal de recurso valore prova sobre a qual não tem qualquer poder cognitivo, formulando juízos de credibilidade sobre declarações de testemunhas e arguidos que o tribunal ad quem não tem a possibilidade de conhecer em concreto.
O arguido recorrente utiliza uma técnica de discurso que somente deve ser usada quando não é possível apresentar deficiências no objecto visado, a qual tem por função a dispersão e a minimização dos factos essenciais e absolutamente relevantes para a compreensão do iter criminis.
As referidas funções da técnica utilizada - dispersão e minimização - têm, na finalidade do discurso do recorrente, por objectivo fazer preponderar a irreal tese de existência de legítima defesa, a qual não tem qualquer sustentação na matéria de facto dada como provada.
A descrição do momento do disparo contra o arguido (G) é irrelevante para determinar qualquer elemento da alegada legitima defesa, dado que claramente se considera, na matéria de facto dada como provada, que a intenção do arguido recorrente foi a de atingir (G) "de modo a molestá-lo fisicamente" e não a de se defender.
Devem os assistentes recordar que foi o arguido condenado a uma pena de 12 meses de prisão pela ofensa à integridade física qualificada contra o arguido (G).
Quanto às razões aduzidas em C.2 e em C.3 da motivação do recurso apresentado pelo arguido (A), devem afirmar os assistentes que não compreendem a insistência do arguido recorrente em formular juízos de credibilidade sobre declarações prestadas em sede de audiência, como se pretendesse exigir do tribunal ad quem o conhecimento de matérias a que nos termos da lei processual não tem decididamente acesso cognitivo.
As considerações feitas sobre a "arbitrariedade" do acórdão são absolutamente absurdas dado que se realmente o recorrente pretendesse a reavaliação da matéria de facto dada como provada, por ter sido gravada a prova, não hesitaria em ter escolhido como via de recurso aquela que conduz ao Tribunal da Relação. Contudo, o recorrente preferiu recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, pretendeu exclusivamente a reapreciação da matéria de direito assim como a verificação dos vícios descritos no art 410º, nº 2, do CPP.
Quando o recorrente, no ponto V, pretende reavaliar a matéria de direito é através da referida técnica discursiva da dispersão e da minimização que alcança outra conclusão jurídica, a qual é inadmissível se tivermos em conta os seguintes factos dados como provados: a) quanto ao nº 2 do ponto V, foi considerado provado que "Ao disparar a arma na direcção do arguido (G), o arguido (A) quis atingi-Io de modo a molestá-lo fisicamente"; b) quanto ao nº 3 do ponto V, foi considerado provado que "ao proceder desse modo, visando e disparando deliberadamente sobre o corpo e o tronco dos indicados oponentes, onde sabia encontrarem-se órgãos vitais, o arguido (A) pretendia tirar-Ihes a vida, como efectivamente sucedeu, quanto ao (L) e ao (K), e só não ocorreu quanto aos arguidos (B) e (J), por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque não logrou atingir em zonas fatais, como queria, quer ainda por estes terem sido prontamente socorridos e tratados". Basta ter por referência estes factos dados como provados para se entender o despropósito e a impertinência das considerações do recorrente.
Não logra o arguido recorrente demonstrar qualquer vicio do acórdão que se subsuma ao nº 2 do art. 410º do CPP nem outra assunção jurídica dos factos. A motivação do recurso está elaborada de modo a fazer esquecer que o arguido recorrente foi condenado por quatro crimes de homicídio qualificado, um crime de ofensa qualificada à integridade física e um crime de ofensa à integridade física simples.
Não existem quaisquer razões nem para uma diferente subsunção jurídica dos factos nem, independentemente desta, para a redução da pena efectiva de prisão.
17 Set 99 - Recolocação do arguido (A)- depois de cumpridos 6 meses de prisão no processo comum colectivo 9993/95.7 JDLSB-3 da 4ª Vara Criminal de Lisboa - à ordem destes autos.
05 Nov 99 - Parecer do MP junto da Relação:
O recorrente (A) manifesta a sua discordância com a matéria de facto provada mas não cumpriu o ónus de proceder às especificações exigidas pelas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 412º do CPP nem obedeceu ao comando, do nº 4 do citado art. 412º, de que as tais especificações se fizessem por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. Ora, esse incumprimento conduz à rejeição do recurso em matéria de facto, quer em razão da sua manifesta inviabilidade quer por expressa cominação do art. 690-A. 1 e 2 do C PC, supletivamente aplicável.
A invocação pelo recorrente dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP só poderia ser feita - em recurso circunscrito à matéria de direito - em face do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Acontece que o recorrente reporta a existência dos referidos vícios à sua própria versão dos factos, o que torna o recurso manifestamente improcedente, levando à sua rejeição (art. 420º do CPP). Relativamente ao subsistente recurso sobre matéria de direito, deve rejeitar-se desde logo por inobservância do disposto no art. 412º, 2 do CPP e, ainda, por manifesta improcedência, consequenciada pela rejeição do recurso em matéria de facto, uma vez que cai pela base o quadro fáctico e que o recorrente alicerçava a sua teses sobre o enquadramento jurídico da sua conduta.
Pelo exposto, sou do parecer de que se deverá julgar, em conferência, a rejeição do recurso em matéria de facto do arguido (A) e, subsequentemente, remeter-se o processo ao STJ, o competente para reexame da matéria de direito, nesta incluída a questão prévia da eventual rejeição dos recurso de ambos os recorrentes, suscitada nas respostas às motivações e no parecer do MP junto do STJ.
19 Nov 99 - Resposta do arguido (A) ao parecer do MP:
Nunca o recorrente discordou em parte alguma da matéria de facto (até pelo facto de a versão dos factos que vingou ser aquela que foi fornecida pelo arguido). O que se disse é que os factos provados não podem levar às conclusões de direito que conduziram à condenação.
As especificações, em falta segundo o parecer, não faltam porque desta petição de recurso não deviam constar. Nunca na petição de recurso se fala nos requisitos do artigo 412.3 porque nunca se discordou da produzida.
Este recurso foi interposto ao abrigo do artigo 410.2 do CPP. Se as alíneas dessa disposição correspondem a matéria de facto ou de direito, não o afirmamos peremptoriamente. Mas que um recurso com essa motivação é possível para o tribunal que esteja restrito a conhecer questões de direito é a própria norma que assim o refere expressamente.
Pretender, como pretende o MP, que um recurso pensado, construído e apresentado para preencher as exigências do art 410.2 se transforme numa peça estruturada para responder aos requisitos inerentes a um recurso restrito a matéria de facto é, no mínimo, não respeitar o direito à justiça.
17 Dez 99 - Declarado «sem efeito» o recurso do arguido (C1).
27 Jan OO - Exame preliminar do relator.
14 Fev OO - Alegações escritas do recorrente («Nestes termos e nos melhores de direito, deve o Acórdão recorrido ser reformulado nos termos indicados - pena de prisão não superior a quatro anos de prisão (ou seis se se entender que existiu excesso de legitima defesa) e indemnização não superior a 5.000.000$00»):
1 - Os homicídios imputados ao ora recorrente nunca poderiam ter sido objecto de qualificação, dado que não se apurou nem se provou, in casu, se o porte de arma proibida funcionou, no caso concreto, como factor de especial de perversidade ou censurabilidade, como impõe o Acórdão do STJ, de 07 de Maio de 1986, in BMJ, nº 357, pg. 211.
2 - É patente, no caso dos autos, que a utilização do meio, em si, sendo claramente muito perigoso, não revelou especial perversidade ou censurabilidade. Só depois de um sem número de acontecimentos e do envolvimento com os membros do Grupo da Amadora e por eles ter sido agredido numa larga desproporção numérica e com risco para a própria vida é que o recorrente se serviu da arma.
3 - É inadmissível a tese do Acórdão recorrido para excluir a legitima defesa do recorrente. O arguido (A) não foi, como acima se prova, o «provocador inicial», nem se defendeu daquele que primeiro agrediu. O (D), que ele agrediu, nunca mais aparece na contenda.
4 - Por outro lado, depois de estar consumada (e não durante) a agressão ao (D),é que inúmeros (pelo menos 5) amigos deste avançaram para o ora recorrente, iniciando um segundo momento jurídico-penal e colocando o ora recorrente em situação de legitimamente se defender.
5 - O ora recorrente, assente o que foi assente na conclusão anterior, disparou sobre o (G) em legitima defesa, como acima de verifica, requisito a requisito (artigo 32º do CP).
6 - O mesmo acontece com os disparos efectuados na esplanada, terceiro momento juridico-penal. Só que, desta feita, trata-se de legitima defesa alheia (artigo 32º do CP).
7 - Apesar do desvalor e do dramatismo do resultado atingido, verificam-se os requisitos da legitima defesa, como acima se comprovou. Mesmo o requisito da necessidade do meio empregado está verificado.
8 - Mesmo que assim não se entenda, havendo excesso de meios empregues, existe excesso de legítima defesa (artigo 33º do CP).
9 - Esse excesso de defesa, como se prova também acima, foi ditada por uma profunda e compreensível perturbação, e, eventualmente um erro, não sobre os pressupostos de facto da legitima defesa, mas sobre a gravidade da situação a defender.
10 - Se assim se entender, os homicídios, assim com as ofensas à integridade física, serão punidas a titulo de negligência (art. 16º do CP).
11- Assim sendo, e aceite a legitima defesa, não deve o recorrente ser punido com pena superior a 4 anos de prisão.
12- Se se entender a existência de excesso de legitima defesa a pena, pelas circunstâncias referidas, não deverá ultrapassar os 6 anos de prisão efectiva.
13 - Só muito a contragosto é que ainda se hipotiza a prática de homicídio privilegiado, assim como ofensas à integridade física privilegiadas.
14 - Em virtude da reequação da ilicitude e da culpa do recorrente deve a indemnização arbitrada ser drasticamente reduzida.
15 - Para além disso, e sobretudo da forte culpa dos lesados, nunca deve a indemnização ultrapassar os 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos).
28 Fev 00 - Alegações escritas dos assistentes:
O meio usado pelo recorrente consistiu na utilização de uma arma que, pelas suas características e pela sua perigosidade, é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade. «O arguido entrou com a arma carregada num espaço frequentado por muitas centenas de pessoas, acabando por se envolver numa contenda que potenciou e concretizou a manifesta perigosidade da arma, revelando a sua conduta um óbvio dolo de perigo, o que a torna particularmente censurável».
Foi o recorrente o provocador das agressões e não agiu com «animus defendendi». A provocação inicial exclui a justificação da acção defensiva posterior. Não se verifica a necessidade de defesa quando o suposto defensor podia ter, em momento anterior, evitado a agressão: «Em relação à legítima defesa própria, uma vez que cada um dos participantes é simultaneamente agressor e agredido nunca poderá um participante em rixa exercer qualquer direito de legítima defesa enquanto não abandonar, manifestamente, a rixa» (TAIPA DE CARVALHO). A vontade que imbuiu o recorrente foi a de tirar a vida de outrem e não a de defender um terceiro.
A afirmação de que os meios utilizados na defesa podem ser considerados excessivos exigiria que se considerasse que o recorrente agiu absolutamente condicionado pela vontade de defender.
O recorrente não apresentou fundamento ou argumento que determine quer a redefinição jurídica da matéria de facto quer a atenuação especial da pena ou a redução dos quantitativos indemnizatórios.
28 Fev OO - Alegações escritas do MP:
O arguido restringiu o objecto do recurso à matéria de direito, aos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP e à arguição da nulidade do nº 3 do mesmo artigo.
Mas, não estando o acórdão recorrido inquinado por nenhum dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP, não é licito à Relação exercer censura sobre a convicção do colectivo.
O método de qualificação do homicídio simples é o da combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos chamados exemplos/padrão. «É de imputar à especial censurabilidade as condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas» (FIGUEIREDO DIAS). Relevante é o método que reside no princípio da ponderação global do facto e do autor (TERESA SERRA), funcionando, em caso de dúvida, «a valoração feita pelo legislador», na medida em que «só circunstâncias extraordinárias ou um conjunto raro de circunstâncias especiais pode anular o efeito do indício».
A ligação entre a utilização de um meio que se traduza na prática de um perigo comum e o tipo de culpa agravado «deve fazer-se através da falta de escrúpulo em principio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum» (FIGUEIREDO DIAS). E, no caso, é evidente a falta de escrúpulos do recorrente ao utilizar, na circunstância, a arma de calibre militar cujos porte e uso sabia estarem-Ihe vedados e de cuja potencialidade letal tinha consciência.
O facto de o arguido (C1) continuar a participar na rixa (crime por que foi condenado) retira à conduta do co-arguido (A) a configuração de situação de legitima defesa. E será igualmente de excluir um eventual direito de necessidade defensiva alheia porque os factos revelaram não um comportamento defensivo mas de desforço e retaliação.
Mas, mesmo que configurada uma situação de legítima defesa alheia (sendo discutível se a integra o chamado animus defendendi), haveria que apreciar, com vista a um eventual excesso de legitima defesa, a «necessidade do meio empregado». Certa jurisprudência entende que «a legítima defesa pressupõe sempre que os meios sejam necessários, ainda que excessivos». A doutrina, porém, contraria a concepção segundo a qual o excesso do meio afastaria a necessidade do meio: «A necessidade da acção de defesa pressupõe que o defendente utilize um meio adequado (eficaz) e que, havendo vários meios adequados à sua disposição, ele utilize o menos gravoso para o agressor; há, portanto uma correspondência negativa (se é necessário não pode ser excessivo; se é excessivo, não pode ser necessário) entre a necessidade e o excesso de legitima defesa. A postura legislativa vai claramente no sentido de que o verdadeiro excesso de legitima defesa é o excesso intensivo: excesso de legítima defesa é a acção que, pressuposta uma situação de legitima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão. Pressupostos da acção de legitima defesa são a representação pelo defendente da situação de legitima defesa e a necessidade do meio da acção de defesa, sendo requisitos desta a necessidade a adequação para suster a agressão e menor danosidade possível para o agressor do meio utilizado na defesa. O juízo sobre a necessidade do meio é um juízo ex ante e tem de atender às circunstâncias concretas da acção de agressão e da acção de defesâ» (TAlPA DE CARVALHO).
De qualquer modo, se verificados os pressupostos da legitima defesa alheia (hipótese que se refuta), o arguido teria agido com excesso de legitima defesa.
Como decorrência do principio da proibição da dupla valoração, «só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à prevista no art. 74.1». «O funcionamento sucessivo das atenuantes concorrentes só estará justificado quando cada uma possua um autónomo fundamento material, mas já o não estará se a razão da atenuação for a mesma» (FIGUEIREDO DIAS). Sucede que o fundamento material da atenuação especial da pena em caso de excesso de legítima defesa é o de uma acentuada diminuição da culpa do agente e, em alguma medida, do grau de ilicitude do facto, que são, precisamente os fundamentos materiais que subjazem à atenuação preconizada pelas alíneas a) e b) do nº 2 do art. 72º do CP/95.
Parece existir antinomia entre um especial juízo de censura (que agravasse o ilícito e a moldura penal) e um quadro tão acentuadamente atenuativo que justificasse uma atenuação especial da pena.
Hipotizando a atenuação especial das penas decorrentes de uma situação de excesso de legítima defesa, a pena concreta não poderá ser inferior a 8 anos quanto a cada um dos dois crimes de homicídio consumado e a 2,5 anos quanto a cada um dos dois crimes de homicídio tentado, o que conduziria à fixação da pena única em 16 anos de prisão.
1 Mar OO a 3 Jul OO - Incidente de renúncia dos advogados dos assistentes (G1) e mulher e do condenado (F) às respectivas procurações.
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO (Generalidades)
Se, conforme a resposta do arguido/recorrente (A), em 19 Nov 99, ao parecer do MP, «nunca o recorrente discordou em parte alguma da matéria de facto (até pelo facto de a versão dos factos que vingou ser aquela que foi fornecida pelo arguido)», tendo-se ele limitado, nesse domínio, a sustentar «que os factos provados não podem levar às conclusões de direito que conduziram à condenação» (ibidem), dir-se-á então que o recurso - cuja apreciação competiria, pois, ao STJ se este a seu tempo se não tivesse declarado «incompetente» - é, afinal circunscrito à matéria de direito.
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO (I)
«Pouco antes das 4 horas, o arguido (A) e esposa, o arguido (C1) e a esposa e o arguido (E1) dirigiram-se separadamente ao 1º andar da Discoteca, onde o primeiro, acompanhado da mulher, ficou a beber uma cerveja, encostado ao canto lateral esquerdo do balcão do Bar [foto 10, a fIs. 52], enquanto os restantes três permaneciam algo afastados deles, junto à porta de acesso da esplanada. No 1° andar da Discoteca, que se encontrava totalmente cheio de clientes, alguns elementos do grupo inicialmente referido, entre os quais os arguidos (D), (G), (B), (J) e (E), dançavam animadamente, chegando a empurrar-se entre eles e a empurrar outras pessoas que não dançavam nem faziam parte do grupo, tendo o arguido (D) pisado por mais do que uma vez a mulher do arguido (A). Criou-se assim um clima de tensão e animosidade entre o arguido (A) e os elementos mais próximos daquele grupo. Na sequência desse clima de tensão, o arguido (A) e o arguido (D) olharam-se fixamente, em atitude de confronto iminente, tendo o arguido (D) perguntado ao arguido (A) se o conhecia de algum lado. A situação de confronto iminente entre os arguidos (A) e (D) foi presenciada por (L), que se dirigiu para junto dos arguidos (A) e (D), colocando-se entre eles e tentando afastá-Ios um do outro. Quando (L) assim procedia, o arguido (A) desferiu dois socos consecutivos na cara de (D), querendo e conseguindo magoá-Io.
(...)
Sobre esta incriminação não se suscitam quaisquer dúvidas, na medida em que ficou provado que o arguido (A) desferiu dois socos na cara do arguido (D), tendo sido esta a agressão que fez eclodir toda a situação de violência que se seguiu. A conduta do arguido integra assim a previsão legal do nº 1 do artigo 143º do Código Penal.
(...)
Acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo em (IV) condenar o arguido (A), pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa do ofendido (D), p. e p. no art. 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de prisão»
3.1. O arguido/recorrente não reagiu a esta condenação parcelar e, porque com ela se conformou, não haverá que a «reexaminar».
3.2. E se a ela se faz aqui referência isso se deve apenas à necessidade de, para compreensão das questões suscitadas no recurso (e da subjacente matéria de facto), se ter em conta este primeiro momento da sucessão de acontecimentos que consubstanciaram os demais ilícitos atribuídos ao recorrente.
4. APRECIAÇÃO DO RECURSO (II)
«Perante esta reacção, um número indeterminado de rapazes do grupo antagonista, entre os quais os arguidos (G), (F) e (H), avançaram sobre o arguido (A), com o qual se envolveram, conjuntamente, em luta corporal, desferindo-Ihe socos e pontapés, ao que o (A) respondeu, também, com socos repetidos, com os quais atingiu os seus vários oponentes. Vendo o arguido (A) em dificuldades, os arguidos (C1) e (E1) acorreram a ajudá-Io, envoIvendo-se também aquele na contenda. A medida que se iam apercebendo da luta, vários outros elementos do "grupo da Amadora", entre os quais, pelo menos, os arguidos (B), (J) e (K) juntaram-se à contenda, tendo-se o arguido (B) envolvido directamente com o arguido (C1), a soco e pontapé, recuando este até à zona da Esplanada, onde ao arguido (B) se vieram a juntar em luta, com o arguido (C1), o arguido (J) e ainda os malogrados (K) e (L). Gerou-se então uma situação de grande confusão, durante a qual, trocando reciprocamente socos e pontapés, se formaram dois grupos de contendores: um, no interior da discoteca, entre o arguido (A) e alguns elementos do "grupo da Amadora" e outro, na esplanada, entre o arguido (C1) e outros elementos do mesmo grupo. Na esplanada, o arguido (C1) lutava com (K), (L) e com os arguidos (B) e (J), sendo que todos trocaram socos e pontapés. A dado momento, o (C1) agarrou numa mesa de plástico que empunhava contra os seus agressores. Ao mesmo tempo, no canto do Bar, o arguido (A) lutava com vários outros oponentes, entre os quais só foi possível referenciar os arguidos (G), (F) e (H), trocando reciprocamente socos e pontapés. A dado momento, o arguido (F) agarrou no cinzeiro de louça descrito e fotografado a fls. 220 dos autos e, com ele na mão, abeirou-se do arguido (A), desferindo-lhe uma forte pancada na cabeça, partindo o cinzeiro e provocando-lhe um corte na região atingida. Na sequência da pancada com o cinzeiro, o arguido (A) vacilou, flectiu os joelhos, apoiando-se com a mão esquerda no chão junto à parede existente entre o balcão do Bar e a porta de saída de emergência e, nessa posição, empunhou com a mão direita a pistola que trazia consigo (semi-automática de calibre 9 mm/Makarov, de marca Makarov, de origem russa, com cano de 93 mm) e, com ela, desferiu um tiro na direcção do arguido (G), que, na contenda, lhe dera dois socos e dois pontapés e que, no momento do disparo, se encontrava a uma distância de cerca de dois metros. Ao ver a arma apontada para si, o arguido (G) deu um salto para trás, tendo sido atingido na coxa direita. Ao disparar a arma na direcção do arguido (G), o arguido (A) quis atingi-Io de modo a molestá-lo fisicamente, pretendendo também pela mesma forma assustar os que o agrediam na contenda em que estavam todos envolvidos e assim evitar eventuais novas agressões. Entretanto o arguido (F) debruçara-se sobre o balcão do Bar, agarrando duas garrafas de água «Pedras Salgadas», ainda rolhadas e cheias de liquido, visando utiliza-las na contenda contra o arguido (A). Ocorrendo o disparo sobre o arguido (G) no momento em que retirava as garrafas, o arguido (F) projectou ainda uma dessas garrafas na direcção do arguido (A), que saía da sala nesse momento, tendo a garrafa embatido na parede sem lhe acertar. Seguiu-se uma reacção de surpresa e de receio entre os que na contenda se opunham ao arguido (A), o qual aproveitou esse momento para, com a esposa, sair pela porta de serviço (foto 15, a fls. 55).
(...)
Como consequência directa e necessária dos referidos disparos e agressões, resultaram (e) Para (G), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 278, designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente produzido por projéctil de arma de fogo, ao nível da face anterior do terço superior da coxa direita, deixando cicatriz da correspondente ferida perfuro-contundente (orifício de entrada do projéctil), com 1,3 cm de diâmetro, bem como cicatriz de ferida incisa operatória, com 2,5 cm, na região inguinal direita, lesões essas que lhe demandaram 8 (oito) dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
(...)
No que concerne ao disparo efectuado pelo arguido (A) sobre o arguido (G), apenas se provou a intenção, concretizada, de o molestar fisicamente, pelo que tal conduta integra o tipo legal de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º do Código Penal, qualificada pela utilização de um meio traduzido na prática de um crime de perigo comum, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 146º do Código Penal.
(...)
Acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo em (IV) condenar o arguido (A), (b) pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa do ofendido (G), p. e p, nas disposições combinadas dos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência à alínea g) do artigo 132º nº 2, todos do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão.
(...)
Condena-se o arguido (A) no pagamento das seguintes indemnizações: a) 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos) por danos morais, ao demandante (G)»
4.1. Este segundo momento do conflito que opôs o «grupo da Amadora» ao ora arguido/recorrente conexiona-se, é certo, com o anterior (aquele em que este, provocado por (D) - que lhe pisara a mulher «por mais do que uma vez», que o olhara em jeito de desafio e que, no mesmo tom, lhe perguntara se o «conhecia de algum lado» -, lhe desferira «dois socos consecutivos na cara»), mas - tal como a provocação de (D) antecipara mas não legitimara a «reacção» do ora recorrente - também a repulsão a esta por parte do tal «número indeterminado de rapazes do grupo antagonista» não haveria de colocar o ex-agressor - cuja agressão, já consumada, não constituía «motivo bastante» ou «determinante» nem de uma «agressão reciproca» de desforço por parte do provocador/agredido nem de uma qualquer «represália» de terceiros - numa situação de sujeição perante os ataques, já não defensivos mas manifestamente punitivos, do provocador/agredido e dos seus numerosos «aliados»;
4.2. Se «um número indeterminado de rapazes avançou sobre o arguido, desferindo-Ihe socos e pontapés», nada impedia este - perante tal «agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente» - de a «repelir» (art. 32º do CP). E foi, aliás, em «resposta» aos «socos e pontapés» sofridos, que o ora recorrente «também atingiu os seus vários oponentes com socos repetidos».
4.3. A desproporção de forças entre o «grupo da Amadora» e o arguido/recorrente era, porém, enorme e, a dada altura, este passou, apesar da sua pujança física, a ver-se «em dificuldades», que, apesar da intervenção em seu socorro de (C1) e (E1), logo neutralizados pela «junção à contenda de vários outros elementos do grupo da Amadora», não chegaram, todavia, a ser ultrapassadas. Pelo contrário, pois que a chegada desses «vários outros elementos ao grupo da Amadora», gerando uma «situação de grande confusão», propiciou que um deles ((F)), agarrando num cinzeiro de louça «de grandes dimensões e peso considerável», se tenha abeirado do ora recorrente e, com ele, nele haja «desferido uma forte pancada na cabeça, partindo o cinzeiro e provocando-lhe um corte na região atingida» («uma ferida corto-contundente, com 1,8 cm de comprimento, na região parietal posterior esquerda»). Foi então que o ora recorrente «vacilou», «flectiu» e, para não cair se «apoiou com a mão esquerda à parede existente entre o balcão do bar e a porta de emergência». Apesar disso, o «grupo» atacante não suspendeu o ataque, pois que (F), «debruçando-se sobre o balcão do bar, agarrou duas garrafas de "água das Pedras", ainda rolhadas e cheias, visando utilizá-las contra o arguido (A)». E não é liquido - pois que o tribunal recorrido não incluiu esse «enunciado de facto», constante da pronúncia, no rol dos «não provados» - que (G) (que, aliás, já «lhe dera dois socos e dois pontapés») não tivesse «avançado (sobre ele) para o agredir com um (terceiro) pontapé). Ora, foi nesse preciso contexto que o ora recorrente «empunhou com a mão direita» (enquanto, com a mão esquerda, se apoiava à parede para não cair) «a pistola que trazia consigo e com ela desferiu um tiro na direcção de (G)», atingindo-o na «coxa direita» («traumatismo de natureza perfuro-contundente produzido por projéctil de arma de fogo, ao nível da face anterior do terço superior da coxa direita, deixando cicatriz da correspondente ferida perfuro-contundente - orifício de entrada do projéctil - com 1,3 cm de diâmetro»).
4.4. O que se perguntará, pois, é se esta «reacção» do ora recorrente à agressão - gravosa, desproporcionada e crescente - de que estava a ser alvo, poderia ou não configurar uma «acção de legitima defesa». É que uma «acção de legítima defesa» implica, além de uma «representação pelo defendente de uma situação de legitima defesa» (ou seja, de uma «agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente»), um «facto praticado para a repelir» (o que importará, de algum modo, um qualquer «animus deffendendi», ainda que porventura acompanhado de um maior ou menor propósito punitivo) e a utilização de um «meio necessário para a repelir» (um meio que, adequado/eficaz/suficiente para o efeito, seja, de entre os disponíveis, o menos danoso para o agressor):
A necessidade da acção de defesa pressupõe que o defendente utilize um meio adequado (eficaz) e que, havendo vários meios adequados à sua disposição, ele utilize o menos gravoso para o agressor; há, portanto, uma correspondência negativa (se é necessário não pode ser excessivo; se é excessivo, não pode ser necessário) entre a necessidade e o excesso de legitima defesa. A postura legislativa vai claramente no sentido de que o verdadeiro excesso de legitima defesa é o excesso intensivo: excesso de legitima defesa é a acção que, pressuposta uma situação de legitima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão. Pressupostos da acção de legitima defesa são a representação pelo defendente da situação de legitima defesa e a necessidade do meio da acção de defesa, sendo requisitos desta a necessidade a adequação para suster a agressão e menor danosidade possível para o agressor do meio utilizado na defesa. O juízo sobre a necessidade do meio é um juízo ex ante e tem de atender às circunstâncias concretas da acção de agressão e da acção de defesa».
-4.5. Ora, não se pode negar que, no caso, o ora recorrente estava em situação de clara desvantagem física - a ser (brutalmente) agredido na sua integridade física. E se já tinha sido agredido (e «ilicitamente», pois que a agressão do «grupo da Amadora» ao ora recorrente - embora precedida de uma agressão deste a um dos membros daquele, que aliás a provocara - não visava repetir uma agressão actual mas vingar uma agressão já consumada) com múltiplos socos e pontapés e, sobretudo, com um cinzeiro empunhado na cabeça que lhe abrira uma ferida corto-contundente, no couro cabeludo, com 1,8 cm de comprimento, a verdade é que um dos membros do grupo - facto provado - se preparava para despedir contra ele duas garrafas de vidro ainda fechadas e cheias e que um outro - enunciado de facto constante da pronúncia e não incluído no rol dos não provados - se prepararia, apanhando-o agachado, para lhe dar mais um pontapé. A «situação» em que o ora se encontrava recorrente (não só «representadamente» como efectivamente) era, pois, de «legitima defesa».
4.6. Por outro lado, o ora recorrente, ao utilizar contra os agressores a arma de que era portador (e de que note-se só lançou mão quando esgotados os seus próprios meios designadamente a sua pujança física, que usou, bravamente, até à exaustão, ou melhor, até à sua completa neutralização com a «forte pancada na cabeça» que, «provocando-lhe um corte na região atingida», o fez «vacilar», «flectir», aproximar-se - ainda mais - da porta de
saída e segurar-se, para não cair, à parede), fê-Io, sem dúvida (se bem que, também, para «molestar fisicamente» o mais próximo - o tal que, segundo a pronúncia, se prepararia, vendo-o agachado, para lhe dar mais um pontapé) para «assustar os que o agrediam» e «evitar (...) novas agressões». Aliás, tanto assim era que o ora recorrente aproveitou a «reacção de surpresa e de receio» que se seguiu ao disparo (único, apesar de, na câmara da arma, haver mais quatro ou cinco projécteis) «para, com a esposa, sair pela porta de serviço»..
4.7. Restará, pois, apurar - para responder a essa outra e decisiva questão adversativa: legitima defesa ou excesso de legitima defesa - se o «meio» utilizado, de cuja «eficácia» se não duvida, era «necessário» ou, pelo contrário, «excessivo» (pois que «entre a necessidade e o excesso há uma recíproca implicação negativa»: «Se é necessário não pode ser excessivo; se é excessivo, não pode ser necessário» - TAIPA DE CARVALHO, A Legitima Defesa, Coimbra Editora, 1995). Só que «O juízo sobre a necessidade do meio é um juízo ex ante e tem de atender ás circunstâncias concretas da acção de agressão e da acção de defesa» (ibidem). Ora, tendo o defendente esgotado - até à exaustão - os seus próprios meios físicos, tendo os agressores neutralizado quem pretendera socorrê-lo e encontrando-se o agredido numa situação de franca desvantagem (aturdido, quase a desmaiar, a sangrar da cabeça e prestes a ser alvo do arremesso de duas garrafas de vidro ainda rolhadas e cheias e, mesmo, a ser pontapeado quiçá na cara), não se vê - num juízo que, ex ante, atenda às circunstâncias da agressão e da acção de defesa - lhe restasse outra alternativa que não a de lançar mão da arma que (ainda que ilicitamente) trazia consigo. E, na situação de extrema desvantagem e de grande aturdimento em que o agredido se encontrava, seria demasiadamente exigente reputar-se como «excessivo» o único disparo (de entre os cinco ou seis possíveis) que o defendente dirigiu à perna do agressor que - ao que se crê - procurava aproveitar-se da sua prostração para de novo o pontapear.
4.8. O ora recorrente terá, pois, agido na circunstância (o que, na dúvida, sempre teria - por exigência do «favor rei» de presumir-se) em «legítima defesa» (art. 32º do CP). E, como é sabido, «não é ilícito» - nem «punível» (art. 31.1) - «O facto praticado em legitima defesa» (art. 31.2.a).
4.9. Porém, a não puníbilidade desta acção de defesa deixará a descoberto o porte/uso por parte do arguido - cuja punibilidade, a se, voltará, por isso, a emergir - de uma «arma proibida» (art.s 275.1 e 2 do CP e 3.1.a do dec. lei 207.A/75 de 17 Abr: «Quem comprar, adquirir a qualquer título, transportar, detiver, usar ou trouxer consigo (...) arma proibida (...) é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias». «É proibida (...) a detenção, uso e porte de (...) pistolas de calibre superior a 6,35 mm»). Uma vez que o tribunal a quo só não condenou o arguido; pelo crime de porte de arma proibida, porque o considerou instrumental de um crime - agravado, exactamente, pela utilização de um meio traduzido na prática de crime de perigo comum (art.s 146.2 e 136.2.g do CP) -, haverá agora - justamente porque negada a ilicitude/punibilidade da parcela nuclear (ofensas corporais) desse crime complexo (ofensas corporais + arma proibida) - que ter em conta a ressurreição da parcela não beneficiária (o porte de arma proibida) dessa causa de exclusão da ilicitude que é a «legitima defesa».
4.10. Correspondendo ao crime de «porte de arma proibida» a pena de «dois anos de prisão» ou «multa até 240 dias», haveria desde logo que dar preferência - uma vez que, no contexto (concurso de crimes puníveis, exclusivamente, com pena privativa da liberdade), a multa não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - à pena alternativa de prisão (art. 70.º do C P).
4.11. E descendo, enfim, à determinação da medida da pena, o grau de ilicitude do facto (a arma transportada - e usada - consistia numa pistola semi-automática de calibre 9 mm, com cano de 93 mm, uma arma de guerra especialmente mortífera), o seu modo de execução (um só disparo), a gravidade das suas consequências (as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 278, designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente produzido por projéctil de arma de fogo, ao nível da face anterior do terço superior da coxa direita, deixando cicatriz da correspondente ferida perfuro-contundente - orifício de entrada do projéctil - com 1,3 cm de diâmetro, bem como cicatriz de ferida incisa/operatória, com 2,5 cm, na região inguinal direita, lesões essas que Ihe demandaram oito dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho), a conduta anterior ao facto (por factos ocorridos em 25-2-93, o arguido fora julgado logo em 17-12 e condenado em 80 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de ofensas corporais voluntárias, em 120 dias de multa à taxa diária de 300$00 pela prática do crime de detenção de arma proibida - pistola - e em 45 dias de multa à taxa diária de 300$00 pelo cometimento do crime de introdução em lugar vedado ao público) e a sua conduta posterior (traduzida, logo a seguir, na prática, com essa mesma arma, de quatro crimes de homicídio, dois deles consumados) apontam, em função o vincado grau de culpa do agente e das especiais exigências de prevenção, para uma pena não inferior a um ano de prisão.
4.12. E, quanto à indemnização correspondente à agressão defensiva do ora recorrente - já que «justificado o acto destinado afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa do agente e não possível de fazer pelos meios normais» (art. 337.1 do CC) -, só seria, ainda assim, de arbitrar se «o prejuízo causado pelo acto» fosse «manifestamente superior» ao que poderia «resultar da agressão» (idem). Todavia, «o prejuízo causado pelo acto» ao agressor (danos físicos e morais decorrentes de um «traumatismo de natureza perfuro-contundente produzido por projéctil de arma de fogo, ao nível da face anterior do terço superior da coxa direita, deixando cicatriz da correspondente ferida perfuro-contundente - orifício de entrada do projéctil - com 1,3 cm de diâmetro, bem como cicatriz de ferida incisa/operatória, com 2,5 cm, na região inguinal direita, lesões essas que demandaram oito dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho») não se afigura «manifestamente superior» ao prejuízo já causado pelos agressores ao agredido (dano físico e moral emergente de «uma forte pancada na cabeça, com um cinzeiro de louça de grandes dimensões e peso considerável, causais de uma ferida corto-contundente, com 1,8 cm de comprimento, na região parietal posterior esquerda, bem como outra ferida corto-contundente, com 3 cm de comprimento, na 1ª prega interdigital da mão esquerda, e escoriações na face dorsal e bordo interno do dedo polegar esquerdo, lesões essas derivadas de traumatismo corto-contundente, demandaram oito dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho») e ao que ainda poderia resultar - não fora o sucesso da acção de legitima defesa - da continuação da agressão por um magote de jovens enraivecidos, um deles armado de garrafas de vidro, contra um adversário que, prestes a desfalecer ante uma investida, na cabeça, com um pesado cinzeiro de louça, já exaurira os meios de defesa de que, à mão desarmada, dispunha.
5. APRECIAÇÃO DO RECURSO (III)
«Gerou-se então uma situação de grande confusão, durante a qual (...) se formaram dois grupos de contendores: um, no interior da discoteca, entre o arguido (A) e alguns elementos do "grupo da Amadora" e outro, na esplanada, entre o arguido (C1) e outros elementos do mesmo grupo, Na esplanada, o arguido (C1) lutava com (K), (L) e com os arguidos (B) e (J), sendo que todos trocaram socos e pontapés. A dado momento, o (C1) agarrou numa mesa de plástico que empunhava contra os seus agressores (...).
Após ter passado a ombreira da porta que dá acesso às escadas de serviço, o arguido (A) viu a esposa do arguido (C1) pedir para socorrer o marido, que continuava envolvido na contenda com os arguidos (J) e (B) e com os malogrados (K) e (L). O arguido (A) voltou atrás, passou a porta que dá acesso à Esplanada e, a uma distância não superior a 1 metro da referida porta, empunhou de novo a pistola que trazia consigo. Na esplanada encontrava-se o arguido (C1) em luta com os arguidos (J) e (B) e com os malogrados (K) e (L), que o envolviam em semicírculo. O arguido (A) apontou e disparou intencionalmente um tiro sobre o corpo do (L), que se encontrava mais à sua esquerda, a menos de 2 metros, varando-Ihe o braço direito e (fotos 27 a 30; a fls. 66-68) perfurando-Ihe o pulmão direito e o fígado. Depois, rodando um pouco sobre si e para a direita, o apontou a arma ao arguido (J), que estava de costas para si, a cerca de 2 metros, e disparou um novo tiro sobre ele, atingindo-o na região dorsal, ao nível da omoplata esquerda. Continuando a rodar para a direita, visou então o arguido (B), que estava a cerca de 3 metros, e sobre ele disparou um tiro, que o atingiu de raspão na barriga, perfurando-a e atravessando-a, até embater numa parede. Finalmente, visando o corpo do (K), que estava mais à sua direita, a cerca de 1 metro, efectuou novo disparo, atingindo-o no flanco esquerdo ao nível do abdómen (fotos 24 e 25, a fls, 64). Ao proceder desse modo, visando e disparando deliberadamente sobre o corpo e o tronco dos indicados oponentes, onde sabia encontrarem-se órgãos vitais, o arguido (A) pretendia tirar-Ihes a vida, como efectivamente sucedeu quanto ao (L) e ao (K) e só não ocorreu quanto aos arguidos (B) e (J) quer por motivos alheios á sua vontade, designadamente porque não os logrou atingir em zonas fatais como queria, quer ainda por estes terem sido prontamente socorridos e tratados. De seguida, o arguido (A) voltou a sair pela indicada porta de serviço, percorreu as escadas (fotos 16 e 17, a fls. 56 e 57), onde se juntou à esposa, seguindo depois os dois, por uma porta de emergência, para o parque de estacionamento, onde tomaram a moto LX-78-56, fugindo do local e, deixando os respectivos capacetes no bengaleiro da entrada (foto 31, a fls. 69). Por seu lado, o arguido (C1), acompanhado da esposa, logrou sair da Discoteca pela porta principal, mas, chegado ao parque de estacionamento e vendo que ali estavam já várias pessoas à procura do (A), optou por ali deixar o carro de um amigo [foto 32, a fls. 70], um Fiat Tipo, de matricula 35-00-FH, no qual se haviam transportado. (...)
Como consequência directa e necessária dos referidos disparos e agressões, resultaram:
{1) Para (K), as Iesões descritas no relatório de autópsia de fls. 461 a 465, designadamente, hemorragia interna consecutiva a graves lesões traumáticas abdominais - sendo, ao nível externo, orifício do flanco esquerdo, grosseiramente oval, com eixo maior oblíquo para a direita e para baixo, 1,2 x 1 cm, com orla de contusão excêntrica e resultado positivo ao reagente de pólvora, e, ao nível interno, ferida transfixiva dos tecidos moles abdominais e peritoneu, hemoperitoneu, múltiplas feridas transfixivas do intestino delgado, bem como feridas transfixivas do mesentério, do baço, do músculo ilíaco direito, com hemorragias sub-endocárdicas - produzidas por um projéctil de arma de fogo de 9 mm de calibre, recuperado no interior do corpo. A direcção do trajecto seguido pelo projéctil foi da esquerda para a direita, de cima para baixo e ligeiramente de frente para trás. Essas lesões traumáticas foram causa necessária da sua morte, revelando a autópsia sinais de disparo a "curta distância" (i. é. entre 1 cm e 75 cm).
b) Para (L), as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 467 a 472, designadamente, hemorragia interna consecutiva a graves lesões traumáticas toráxicas e abdominais produzidas por projéctil de arma de fogo, que foram causa necessária da morte. Ao nível externo, apresentava um orifício circular na face externa do braço direito, com diâmetro médio de 7 mm e orla de contusão com 2 mm - orifício de entrada no braço -e orifício circular na face interna do braço direito, 15,5 cm abaixo da axila, com diâmetro médio de 7 mm, sem orla de contusão - orifício de saída no braço - orifício circular na face anterior do hemitórax direito, terço inferior, com o diâmetro médio de cerca de 7 mm e uma orla de contusão medindo 5 mm - orifício de entrada no tórax. Ao nível interno, hemotórax à direita, hemoperitoneu, ferida transfixiva no espaço intercostal direito, hemorragias sub-endocárdicas, feridas transfixivas do lobo inferior do pulmão direito, junto ao bordo inferior, do hemidiafragma direito, do fígado e do intestino delgado. Estas lesões traumáticas foram produzidas por projéctil de arma de fogo (bala) de calibre 9 mm, encamisado, recuperado no local renal esquerdo, que, no braço, importou trajecto da direita para a esquerda, de baixo para cima e ligeiramente de trás para a frente, e que, no tronco, teve trajecto de frente para trás, da direita para a esquerda e de cima para baixo. O disparo foi efectuado a "longa distância" (i. é., superior a 75 cm).
c) Para (J), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 355, designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente do tórax e membro superior direito produzido por projéctil de arma de fogo, com: a) ferida perfuro-contundente ovalada, de 1 cm x 0, 7 cm, na região mediana do terço médio da omoplata esquerda (orifício de entrada do projéctil): b) fenda perfuro-contundente de contorno circular, com 1 cm de diâmetro, na região peitoral esquerda, distando 5,5 cm para dentro e 10,5 cm para cima do mamilo esquerdo (orifício de saída do projéctil): c) ferida incisa-operatória, com 4 cm de comprimento, no terço distal e face anterior do antebraço direito para excisão da bala alojada; d) ferida incisa-operatória de drenagem pleural, com 2 cm de comprimento na face lateral esquerda do tórax; e) ao nível interno, ferida transfíxiva do lobo superior do pulmão esquerdo com a formação de hemopneumotorax. Essas lesões traduzem a entrada do projéctil pela face posterior do tórax, com subsequente perfuração e contusão intra-pulmonar esquerda, ao nível do lobo superior, saindo depois pela face anterior lateral do tórax e acabando por penetrar e se alojar no antebraço direito, com o correspondente traumatismo. Conforme o auto de exame de sanidade de fls. 439, as referidas lesões demandaram 60 dias de doença, sendo os primeiros 45 com incapacidade para o trabalho e deixaram, como sequelas, as cicatrizes não deformantes correspondentes. Resultou em concreto, perigo para a vida do ofendido e, atenta a natureza do instrumento utilizado na produção das lesões (arma de fogo) e a região do corpo atingida (tórax), as lesões produzidas eram idóneas a provocar a morte.
d) Para (B), as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 356, designadamente, traumatismo de natureza perfuro-contundente do abdómen produzido por projéctil de arma de fogo, com duas feridas perfuro-contundentes de contorno elíptico, de eixo maior oblíquo de cima para baixo e da esquerda para a direita, sendo uma, com 2 cm x 0,8 cm, no hipocôndrio esquerdo, a cerca de 8 cm para cima e para a esquerda da cicatriz umbilical, e outra, com 1 ,5 cm x 0, 4 cm, a 5 cm para cima e para a direita da cicatriz umbilical. Tais lesões demandaram-Ihe oito dias de doença com igual tempo de impossibilidade para o trabalho (auto de exame de sanidade de fls. 370).
5.1. O ora recorrente, quando se libertou - com o tiro que despediu contra o seu agressor mais próximo - do «sufoco» por que passara e quando fugia, do local, pela porta de saída de emergência, deparou-se com a mulher do seu amigo (C1) (o tal que, infrutiferamente, tentara, momentos antes, equilibrar o ataque desigual do «grupo da Amadora»), que, aflita, lhe pediu que socorresse o marido, então em apuros, na esplanada, ante o ataque de quatro elementos dessa numerosa e aguerrida turba. O recorrente - assim solicitado - suspendeu a sua fuga e, «voltando atrás e passando a porta que dá acesso à esplanada», encontrou o seu amigo, com uma mesa de plástico empunhada, a opor-se à investida de quatro elementos do tal «grupo da Amadora» ((J), (B), (K) e (L)), «que o envolviam em semicírculo». E foi então que «empunhou de novo a pistola que trazia consigo» e, com ela, «apontou e disparou intencionalmente um tiro sobre o corpo do (L), que se encontrava mais à sua esquerda, a menos de 2 metros, varando-Ihe o braço direito e perfurando-Ihe o pulmão direito e o fígado». «Depois, rodando um pouco sobre si e para a direita, apontou a arma ao arguido (J), que estava de costas para si, a cerca de 2 metros, e disparou um novo tiro sobre ele, atingindo-o na região dorsal, ao nível da omoplata esquerda». «Continuando a rodar para a direita, visou então o arguido (B), que estava a cerca de 3 metros, e sobre ele disparou um tiro, que o atingiu de raspão na barriga, perfurando-a e atravessando-a, até embater numa parede». «Finalmente, visando o corpo do (K), que estava mais à sua direita, a cerca de 1 metro, efectuou novo disparo, atingindo-o no flanco esquerdo ao nível do abdómen».
5.2. Não se duvida - até porque resulta da prova feita em julgamento - de que o ora recorrente, ao assim agir contra quem agredira e pretenda continuar a agredir o seu amigo (e foi essa a representação que, ante o pedido de socorro da mulher deste, teve dos acontecimentos, ao vê-Io rodeado de adversários e a esgrimir contra eles, qual escudo, uma mesa de plástico) - «pretendia tirar-Ihes a vida» («como efectivamente sucedeu quanto ao (L) e ao (K) e só não ocorreu quanto aos arguidos (B) e (J) quer por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque não os logrou atingir em zonas fatais como queria, quer ainda por estes terem sido prontamente socorridos e tratados»). Mas, se imediatamente era essa sua «intenção», já o seu objectivo mediato era - obviamente - o de, respondendo ao pedido de socorro da aflita mulher do seu amigo, pôr termo à agressão de que este, patentemente, estava a ser vítima. Moveu-o, é certo, o ódio, a indignação e o espírito de vingança, mas, no seu acto, não deixava de estar presente - pois que, mediatamente, era esse o seu desígnio - «a vontade de defesa» do seu companheiro, que, acossado pelos quatro rapazões que o envolviam em semicírculo, não mais fizera para se ver envolvido neste confronto desigual que, ao ver o amigo num confronto igualmente desproporcionado, tentar dar-Ihe - o que, aliás, nem sequer lograra - o apoio de que ele, manifestamente, carecia.
5.3. A situação em que (C1) se encontrava - a de uma agressão actual e ilícita à sua integridade física - justificava pois, para a repelir, a intervenção de um «terceiro» em seu socorro. A sua situação era, portanto, de «legítima defesa» . Mas, para que a correspondente «acção de defesa» constituísse «legítima defesa», importaria, desde logo, que o «facto praticado» visasse - ainda que apenas mediatamente - «repelir» aquela «agressão actual e ilícita» e, ainda, que «o facto praticado» se antolhasse, na circunstância, como «meio necessário». No entanto, a agressão dirigida pelo ora recorrente, a tiro de arma de guerra, contra os agressores - ainda que mediatamente defensiva - excedeu (tal a sua enormidade tanto subjectiva, pois que homicida, como objectiva, já que eliminou dois dos visados e feriu gravemente os demais) os limites - num juízo que, ex ante, atentasse nas circunstâncias - da «necessidade». (C1) - embora vítima actual e injusta de um ataque desigual de (L), (K), (B) e (J) - já conseguira, nessa altura, apoderar-se de uma mesa de plástico e interpô-Ia, em jeito de escudo, entre ele e os atacantes. É certo que a desproporção numérica entre os quatro homens que o rodeavam, ameaçadoramente, em semicírculo, denunciava a fragilidade e a precariedade de tal «escudo» provisório. Mas se, em defesa o atacado, se justificava a neutralização dos atacantes, já a sua eliminação seria de considerar um «meio», de todo em todo, «desnecessário». É verdade que o ora recorrente, muito debilitado pela agressão de que acabara de ser vítima, não estava em condições de apoiar, à mão desarmada, o amigo. O recurso à pistola que trazia consigo - à falta de outro disponível e suficientemente eficaz - não deixaria, pois, de se justificar. Mas quem, dispondo de uma pistola, pretenda demover um agressor, nem sempre precisará - e, no caso, decerto que o defendente dele não careceria - de o eliminar. Bastará para o neutralizar, as mais das vezes a simples exibição da arma. Outras vezes, um tiro alto, para os lados ou para o solo será suficiente. Em casos muito contados, terá porventura que se lançar mão de disparos - dirigidos ao braço armado ou às pernas do agressor - de imobilização. E só em casos extremos é que poderá constituir «meio necessário» o tiro que vise - como os que o ora recorrente despediu contra os agressores do seu amigo - o seu abate ou eliminação.
5.4. Se a necessidade da acção de defesa - ante, como aqui, uma situação (real ou representada) de «legítima defesa» - pressupõe, no defendente, a utilização de um meio adequado/eficaz e, se disponíveis vários meios eficazes, a utilização do menos gravoso para o agressor, haverá, em suma, que negar à acção do ora recorrente - pois que, dispondo de vários, optou pelo mais gravoso - o beneficio da «legítima defesa».
5.5. O seu acto foi, pois ilícito e punível, mas, porque a situação (por ele vista e representada) era de «Iegitíma de defesa», o excesso havido - no emprego, ainda que (também) em legítima defesa, dos meios disponíveis - poderá reflectir-se, atenuativamente, na respectiva pena (art. 33.1 do CP).
5.6. Mas, em abstracto, que pena essa? A do tipo genérico do homicídio (art. 131º do CP) ou, antes, a do respectivo tipo qualificado (do art. 132.º)? Se a morte (produzida ou tentada) o foi «em circunstâncias que revelam especial censurabilidade», o crime será de «homicídio qualificado» e a pena - antes de especialmente atenuada pela circunstancia do «excesso de legítima defesa» - a do art. 132.1 (em conjugação, no caso de tentativa, com as normas dos art.s 23.2 e 74.1 a e b). No caso, se a situação de Iegitima defesa de terceiro, que a seus olhos se perfilhava, justificava a intervenção do arguido/recorrente em defesa do amigo em apuros (e, nessa medida, o excesso dos meios empregados, diminuindo a culpa, suscita a atenuação da pena), já a circunstância de o arguido se fazer acompanhar, para se defender ou defender as pessoas ou bens à sua guarda (na sua condição profissional de vigilante/segurança, na altura objectivamente em repouso mas subjectivamente em estado de vigília), de uma arma ofensiva de extrema periculosidade e letalidade e, por isso, de porte e uso vedados aos cidadãos em geral, haveria de conferir - à sua utilização - um importante apport de culpa original, traduzido quer na «imprudência do seu porte desnecessário» (que, para ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, na sua Criminogénese e Criminodinâmica dos Delitos com Armas de Fogo, cit., p. 23, «constitui, de facto, a maior culpa do criminoso»), quer no afrontamento da lei, que o proibia, quer ainda na sujeição da arma proibida aos «desvarios dos próprios impulsos».
Numa humanidade que se conformasse estritamente como voto da natureza, o punho, que é no homem o que o corno é no touro e o que no cão é o dente, bastaria para todas as nossas necessidades de protecção de justiça e de vingança. Sob pena de crime irremissível contra as leis essenciais da espécie, uma raça mais sensata proibiria qualquer outro modo de combate. Ao cabo de algumas gerações, ter-se-ia conseguido difundir assim e pôr em vigor uma espécie de respeito pânico da vida humana. E imagine-se a selecção rápida e acorde com as vontades da natureza, que resultaria da prática intensiva do pugilato, em que se concentrariam todas as esperanças da glória militar. Raramente, um punho de homem matará, sem primeiro reduzir o antagonista à inércia passageira. Nas sociedades civilizadas a repressão do uso da arma seria assim também mais justa, porque a imprudência do seu porte desnecessário constitui, de facto, a maior culpa do criminoso. Trazer arma consigo é que é a grande coragem, afrontando a lei e arriscando-se aos desvarios dos próprios impulsos. O crime...é quase nada. O crime é as mais das vezes gesto mecânico e inconsciente da paixão, do amor próprio, da embriaguez ou... do medo. O porte de arma é que foi a condição e verdadeiramente o factor principal do evento.
5.7. Não haverá, por isso, qualquer contradição em, por um lado, perspectivar na óptica do agravamento - que é, a do art. 132.2 g do CP - a culpa original (estática) de quem, sendo portador de arma proibida, afronta a lei e se arrisca, trazendo-a consigo, «aos devaneios dos seus próprios impulsos» (matando ou ferindo gravemente o adversário quando bastasse, para o neutralizar, assustá-Io ou feri-Io ligeiramente) e, ao mesmo tempo, atenuar a culpa dinâmica (de acção) quando, no propósito legítimo ou mesmo louvável de se defender de uma agressão injusta ou defender um terceiro injustamente agredido, o detentor de arma proibida dela faça um uso excessivo (sendo que o excesso no emprego defensivo de uma arma ofensiva - proibida justamente porque comporta a vida ou saúde do visado um perigo maior que o das típicas armas de defesa - decorre, quase por inerência, do seu próprio uso contra um semelhante).
5.8. O porte de arma proibida é, só por si, susceptível de documentar, quando usada, as tais «qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente» que justificam, ex lege, a susceptibilidade de um correspondente «juízo especial de culpa» (FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra Editora, 1999, p. 29). Daí que, no caso, o objectivo mediato de defesa de terceiro não compense, «atenuando-o especialmente», o «conteúdo da ilicitude ou da culpa do facto» (no caso, agravados, na génese, pela própria detenção de um arma proibida e, na dinâmica, pelo respectivo propósito imediatamente homicida). 0 propósito, estimável, de defender a vítima (prestando-lhe um acto de justiça) não «revoga o efeito de indicio de culpa especialmente censurável» (TERESA SERRA; Homicídio Qualificado, Almedina, 1990, ps. 66 e ss.) da desnecessária (e injusta) eliminação da vítima através da utilização de meios tão particularmente perigosos como os que, por isso mesmo, se traduzem na prática de um crime, a se, de perigo comum. Aliás, se dúvidas se pusessem a esse respeito, sempre deveria o juiz «basear-se na valoração feita pelo legislador e aceitar a solução indicada pelo efeito de indício dos exemplos padrão» (ibidem).
6. O EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA E A ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
«Se houver excesso nos meios empregados em legitima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada» (art. 33.1 do CP). No caso, e relativamente aos quatro crimes de homicídio agravado atribuíveis ao arguido recorrente, a situação de legitima de defesa em que, perante os agressores, se encontrava o terceiro que o recorrente procurou socorrer, justificará que o «excesso nos meios empregados», apesar de demasiado vincado (o que, naturalmente, se repercutirá, negativamente, no grau de atenuação), atenue especialmente - ainda que, na sua concretização, com parcimónia - a correspondente pena abstracta (especialmente agravada, à partida, em razão da mediação de um crime de perigo comum). Em suma: o porte de arma proibida agravará a pena do homicídio mas o seu uso concreto - apesar de excessivo (pois que, se parcimonioso, haveria de justificar, no âmbito da legítima defesa, a própria acção) - atenuá-Ia-á. Nos seguintes termos (que, ao cabo, se traduzirão na atenuação em 1/4 das penas parcelares aplicadas em 1ª instância):
- 1º homicídio consumado - Pena abstracta (não especialmente atenuada) 12 a 25 anos - Pena aplicada em 1ª instância 14 anos - Pena abstracta (especialmente atenuada) 2,4 a 16,66 anos - Pena definitiva 10,5 anos de prisão.
- 2º homicídio consumado - Pena abstracta (não especialmente atenuada) 12 a 25 anos - Pena aplicada em 1ª instância 14 anos - Pena abstracta (especialmente atenuada) 2,4 a 16,66 anos - Pena definitiva 10,5 anos de prisão.
- 1º homicídio tentado - Pena abstracta (não especialmente atenuada) 2,4 a 16,66 anos - Pena aplicada em 1ª instância 4 anos - Pena abstracta (especialmente atenuada) 1 mês a 11,11 anos - Pena definitiva 3 anos de prisão.
- 2º homicídio tentado - Pena abstracta 2,4 a 16,66 anos - Pena aplicada em 1ª instância 4 anos - Pena abstracta (especialmente atenuada 1 mês a 11,11 anos - Pena definitiva 3 anos de prisão.
7. INDEMNIZAÇÕES
Condena-se o arguido (A) no pagamento das seguintes indemnizações: a) 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos) por danos morais, ao demandante (G); b) esc. 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos), por danos morais, ao demandante (B); c) 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), por danos morais, ao demandante (J) ;d) 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), pela perda do direito à vida de (L), aos seus pais (F1) e esposa (H1), bem como Esc. 6.000.000$00 (seis milhões de escudos) por danos morais (3.000.000$00 a cada um); e) 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), pela perda do direito à vida de (K), aos seus pais (G1) e esposa (I1), bem como 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), por danos morais (3.000.000$00 a cada um).
Revogada (supra, 4.12) - mercê da «legitima defesa»- a indemnização arbitrada a favor do demandante (G), haveria agora que fazer repercutir nas demais indemnizações, se fosse atendível, o «excesso de legítima defesa» . Não valerá, porém, a justificação atribuída pelo art. 337.2 do CC ao «excesso de legitima defesa devido a perturbação ou medo não culposo do agente», pois que o «excesso» do ora recorrente (não asténico mas, pelo contrário, esténico) se deveu não a medo ou perturbação não culposos, mas a censuráveis estado de ódio e espírito de retorsão e vingança. A situação de legítima defesa - enquanto situação criada pelas próprias vítimas do excesso de legitima defesa e, por isso enquanto «facto culposo do lesado» - é que justificará, na medida em que concorreu para a produção dos danos, a redução da indemnização (art. 570.1 do CC). Mas essa redução já a operou, aliás criteriosamente, a 1ª instância:
Os lesados intervieram todos na rixa, no âmbito da qual ocorreram os danos, participando também de forma decisiva para essa ocorrência. Os quantitativos indemnizatórios que adiante se concretizarão serão assim definidos em função dos parâmetros e critérios referidos, particularmente da situação económica precária do lesante e da concorrência das condutas das vítimas para a produção do resultado trágico que constitui os danos.
8. PENA ÚNICA E PERDÃO/99
8.1. Para concluir, importará agora reformular - em função, por um lado, das penas parcelares acabadas de aplicar ou ajustar e, por outro, das que o arguido/recorrente sofreu em 17 Dez 98 (por crimes, de ofensas corporais voluntárias, praticados em 13 Ago 95 na discoteca BENZINA, em Lisboa) - no comum colectivo 9993/95.7JDLSB-3 da 4ª Vara Criminal de Lisboa - a pena única do respectivo concurso de crimes:
CRIMES:
- Ofensas corporais voluntárias - Data do crime 13 Ago 95 - Data da condenação 17 Dez 98 - Pena parcelar 1 ano de prisão.
- Ofensas corporais voluntárias - Data do crime 13 Ago 95 - Data da condenação 17 Dez 98 - Pena parcelar 10 meses de prisão.
- Ofensas corporais voluntárias - Data do crime 30 Jul 97 - Data da condenação 12 Mar 99 - Pena parcelar 60 dias de prisão.
- Porte e uso de arma proibida - Data do crime 30 Jul 97 - Data da condenação 04 Jul 00 - Pena parcelar 1 ano de prisão.
- Homicídio agravado consumado - Data do crime 30 Jul 97 - Data da condenação 04 Jul 00 - Pena parcelar 10,5 anos de prisão.
- Homicídio agravado consumado - Data do crime 30 Jul 97 - Data da condenação 04 Jul 00 - Pena parcelar 10,5 anos de prisão.
- Homicídio agravado frustrado - Data do crime 30 Jul 97 - Data da condenação 04 Jul 00 - Pena parcelar 3 anos de prisão.
- Homicídio agravado frustrado - Data do crime 30 Jul 97 - Data da condenação 04 Jul 00 - Pena parcelar 3 anos de prisão.
8.2. Considerando-se, em conjunto (art. 77.1 do CP), os factos cometidos num e noutro processo (cfr. certidão de fls.) e a personalidade do agente (que os seus múltiplos crimes de agressão e porte e uso de arma proibida bem reflectem), afigura-se ajustada a pena única (obtida a partir da adição à pena parcelar mais elevada de um terço do somatório das demais) de 17 (dezassete anos) de prisão.
8.3. O arguido, cujas penas por homicídio não beneficiarão do perdão/99 (art. 2.2. a da Lei 29/99 de 12 Mai), já beneficiará dele, porém, relativamente às demais. Unificando-as provisoriamente para se lhe subtrair o respectivo perdão (art.s 1.4 e 2.3), obter-se-á a pena única intercalar de 1 ano e 8 meses de prisão. Beneficiando esta pena unitária intercalar do perdão de um ano de perdão (art. 1.1) - «sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes a 13 Mai 99» (art. 4º) -, será exactamente esse o perdão a abater depois à pena unitária. O condenado cumprirá enfim a diferença, ou seja, 16 anos de prisão.
9. DECISÃO
9.1. Tudo visto, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, reunido em conferência, delibera, na parcial procedência do recurso, de 12 Mar 99, do cidadão (A):
a) confirmar a sua condenação, por ofensa simples à integridade física (vítima: (D)), na pena, aliás não impugnada, de sessenta dias de prisão;
b) revogar a sua condenação por ofensa qualificada à integridade física (vítima: (G));
c) revogar a indemnização arbitrada ao demandante (G);
d) condena-lo, como autor do crime de detenção e uso de arma proibida (art.s 275.1 e 2 do CP e 3.1.a do dec. lei 207.A/75 de 17 Abr) por que vinha pronunciado, na pena de um ano de prisão;
e) reduzir a dez anos e meio de prisão a pena correspondente a cada um dos seus dois crimes de homicídio qualificado consumado;
f) reduzir a três anos de prisão a pena correspondente a cada um dos seus dois crimes de homicídio qualificado tentado;
g) unificar, na pena conjunta de dezassete anos de prisão, todas estas penas parcelares e ainda as que advieram ao arguido da sua condenação, em 17 Dez 98, no comum colectivo 9993/95.7 JDLSB-3 da 4ª Vara Criminal de Lisboa;
h) declarar-lhe perdoado - «sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes a 13 Mai 99» - um ano de prisão (Lei 29/99);
i) confirmar as indemnizações arbitradas aos demandantes (B) e (J) e aos assistentes (F1) e mulher e aos ex-assistentes (G1) mulher;
j) condenar, nas custas criminais do recurso, o recorrente (5 UCs de taxa de justiça e 1 ,5 UCs de taxa de justiça), os assistentes recorridos (F) e mulher (2,5 UCs de taxa de justiça e 1 UC de taxa de justiça) e aos ex-assistentes recorridos (G1) e mulher (2,5 UCs de taxa de justiça e 1 UC de taxa de justiça);
k) condenar, nas custas civis do recurso (com taxa de justiça reduzida a 1/4 da fixada na tabela), o demandante recorrido (G) (na proporção entre 25/1575) e o demandado recorrente (na proporção de 1550/1575), na base de um valor tributário de 15.750 contos.
9.2. Na execução da pena a cumprir (16 anos de prisão), levar-se-á em linha de conta, desde 30 Jul 97, toda a prisão preventiva.
9.3. Após trânsito, comunicar-se-á a pena única ao comum colectivo 9993/95.7 JDLSB-3 da 4ª Vara Criminal de Lisboa.
Relação de Lisboa, 04 Jul 00
Os juízes desembargadores,
Carmona da Mota - relator
Gaspar de Almeida
Franco de Sá