Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1055/20.7YLPRT.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: LEI - 13-B/2021
DE 5 DE ABRIL (COVID 19)
CESSAÇÃO DA SUSPENSÃO DOS PRAZOS PROCESSUAIS E PROCEDIMENTAIS
ACTOS DE EXECUÇÃO DA ENTREGA DO LOCAL ARRENDADO DESPEJO
FRAGILIDADE POR FALTA DE HABITAÇÃO PRÓPRIA OU POR OUTRA RAZÃO SOCIAL IMPERIOSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 4.1.– A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril , alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, vem determinar a Cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19 ;

4.2.–Por outra banda, e ao revogar os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção “actual”, vem-lhe também aditar o Artigo 6.º-E, e cujo nº7 determina a suspensão - no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo - dos actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada;

4.3.–A suspensão indicada em 4.2. ,porém, não opera ope legis, mas apenas nos casos em que, e na sequência de pertinente alegação dos arrendatários, seja produzida prova que confirme que os actos de execução da entrega do local arrendado sejam susceptíveis de colocar os arrendatários/despejados em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa .


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

                                    
1.–Relatório.

                        
A apresentou no Balcão Nacional do Arrendamento requerimento relacionado com PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO [ cfr artº 15º,nº2, alínea e) e 15º-B, ambos do NRAU - Lei n.º 6/2006, de 27/2 – e destinado a efectivar a cessação do arrendamento] contra B e C,  e com fundamento em:
a)-Resolução do contrato – referente a locado sito em Lisboa, e constituindo o mesmo a casa de morada de família dos arrendatários - pelo senhorio , nos termos do nº 3 do Artº 1083 do Código Civil.
Concomitantemente [cfr. artº 15º,nº5, do NRAU], deduz PEDIDO DE PAGAMENTO DE RENDAS EM ATRASO, no montante total de € 8.044,52, sendo € 7.830,00 referente a rendas vencidas e não paga, € 214,52  referente a juros de mora vencidos € 214,52 e, ainda as rendas vincendas até efectiva entrega do local objecto do contrato de arrendamento.
1.1.-Para tanto , alegou a autora/requerente,  em síntese, que :
- É proprietária do prédio urbano sito na Travessa S... T.... N.º ..  a ...., em L..., inscrito sob o artigo ... na matriz predial urbana da freguesia da M..., concelho de L..., conforme caderneta predial que se junta como Anexo I
- Por contrato com início em 01.12.2019, deu de arrendamento aos Executados o RC, do referido imóvel, com destino a habitação, pela renda mensal de € 870,00, mostrando-se liquidado o Imposto de Selo ;
- Sucede que, os arrendatários, ora Executados, não cumpriram o estabelecido na cláusula II, n.º 1 do referido contrato [ “A renda mensal é de oitocentos e setenta euros (870,00€),vence no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito e será paga por transferência bancária (…)”], porquanto não efectuaram o pagamento da renda no mês de Janeiro de 2020, nem as que se venceram posteriormente até à presente data, no valor de € 870,00/cada;
- Face a tal incumprimento no pagamento das rendas devidas, a Exequente, tendo em consideração que as partes acordaram convencionar o domicílio do inquilino no local arrendado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 9.º, n.º 7, al. c) do NRAU (Clausula VII do contrato de arrendamento), remeteu as respectivas cartas de interpelação para cada um dos Executados em 15.05.2020 ;
- Ora, uma vez que, de harmonia com o disposto no n.º 3 do art. 1083.º do Código Civil, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora no pagamento da renda, encargos ou despesas superior a três meses e, as referidas cartas foram recebidas por terceiros , então  nos termos do artigo 10.º do NRAU, decorrido o prazo de 30 dias, a Exequente remeteu, em 17.06.2020, nova carta aos Executados, as quais foram ambas devolvidas ;
- Impondo-se assim considerar-se aquelas – cartas -  como recebidas passados 10 dias, dispunham os Executados para regularizar a situação até ao dia 28.07.2020, o que não aconteceu, razão porque deve assim o contrato de arrendamento considera-se resolvido;
- Neste momento encontra-se assim em dívida o pagamento das rendas contabilizadas desde Janeiro de 2020 até à presente data, no montante total de € 7.830,00 , ao qual acrescem os juros de mora vencidos no valor de € 214,52 , bem como as rendas vincendas até efectiva entrega do local objecto do contrato de arrendamento, bem como os juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, o que tudo os Exequentes exigem por meio da presente execução.
1.2.-Notificados os requeridos B e C, nos termos e para efeitos do nº1, do Artigo 15.º-D, vieram ambos deduzir OPOSIÇÃO à pretensão, confirmando/confessando no essencial os fundamentos de facto subjacentes á resolução do arrendamento pelo senhorio, mas , porque não têm qualquer local onde possam morar com a sua filha menor, requerer que lhe seja concedido um prazo não inferior a 90 dias para poder proceder ao pagamento dos montantes em dívida para manter o locado como sua habitação ou caso tal não seja possível, vem solicita o adiamento do despejo pelo prazo de 5 meses tendo em conta a sua situação económica e o facto de ter uma filha menor de 6 anos.
1.3.–Respondendo – em 5/4/2021 - a A à oposição dos RR [ porque para tal notificados pelo tribunal a fazê-lo, sendo que, no âmbito da resposta, impetram : a)- que seja a Oposição considerada como não deduzida, por não liquidada a caução devida ; b)- que seja a Oposição apresentada pelos Réus julgada improcedente, por não provada, e, em decorrência da resolução do contrato de arrendamento, sejam os RR condenados a entregar imediatamente à Autora a fracção em causa totalmente livre e devoluta de pessoas e bens] e, conclusos os autos a 12/4/2021, foi então proferido o seguinte DESPACHO ;
Suspendo a instância, nos termos do disposto no artigo 6º-E, alínea c) da Lei 1- A 2020, de 19 de Março, aditado pela Lei 13-B 2021 de 5 de Abril.
DS “.

1.4.-Notificada do DESPACHO identificada em 1.3, logo em 29/4/2021 veio A do mesmo interpor a competente APELAÇÃO, apresentando na respectivas alegações as seguintes conclusões:

a.-A suspensão dos autos não opera ope legis, não é automática, mas decretada pelo tribunal, caso a caso, se verificados os pressupostos constantes da lei;
b.-Os autos aguardam que o Mmo. Juiz a quo aja em conformidade com o disposto no artigo 15.º- I ou no artigo 15.º-H, n.º 3 do NRAU;
c.-Não existe ainda sequer decisão final a proferir ou previsibilidade sequer de agendamento de ato de execução da entrega do local arrendado que possa colocar os Requeridos em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d.-Os Requeridos limitaram-se a alegar que passam dificuldades, mas não juntaram aos autos qualquer comprovativo de tal, limitando-se a remeter para a produção de prova testemunhal;
e.-O objectivo do disposto no artigo 6.º E, n.º 7, alínea c) da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, é a protecção dos arrendatários, que, face à situação de pandemia, que não apenas coloca em risco a saúde pública, como resultou, em muitos casos, numa quebra inesperada de rendimentos, e sendo surpreendidos por decisão judicial que decrete o despejo, fiquem numa situação de fragilidade;
f.-Os requeridos não podem ignorar da obrigação de pagar rendas, o que não fazem desde Janeiro de 2020, e há cerca de um ano que os mesmos sabem da obrigação de proceder à entrega do locado, em decorrência dessa falta de pagamento;
g.-A interpretação da norma constante do artigo 6.º E, n.º 7, alínea c) da Lei 1-A/2020,de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, segundo a qual deverá ser declarada a suspensão do procedimento de despejo, ainda que o arrendatário não apresente quaisquer provas de que teve uma quebra de rendimentos e/ou poderá ficar em situação de fragilidade decorrente do despejo, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por outro que não admita a suspensão automática da instância, e permita o andamento dos presentes autos, com o que se fará JUSTIÇA!

1.5.–Os RR, relativamente à apelação identificada em 1.4., não apresentaram contra-alegações.
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Thema decidenduum
2.–Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de  Processo Civil,  aprovado  pela Lei  nº 41/2013, de 26 de Junho ), e  sem  prejuízo  das  questões  de  que o tribunal ad quem  possa ou deva conhecer  oficiosamente, as questões a apreciar e a decidir  são as seguintes  :
A)–Aferir se o DESPACHO recorrido, porque “ilegal”, deve ser  revogado, sendo substituído por outro que não admita a suspensão automática da instância, e determine o prosseguimento dos presentes autos.
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2.–Motivação de Facto.
A factualidade a atender em sede de julgamento do mérito da  apelação pela executada interposta é a que se mostra indicada no Relatório do presente Acórdão, e para o qual se remete.
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3.–Motivação de Direito
3.1.–Se a decisão identificada em 1.3. se impõe ser revogada.
Emerge a instância recursória de Procedimento especial de despejo desencadeado junto do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), nos termos dos artºs 15º e 15-B, ambos da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro [NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (NRAU)].
Notificados os RR, para, em 15 dias, desocuparem o locado e, sendo caso disso, pagarem ao requerente a quantia pedida, acrescida da taxa por ele liquidada, deduzirem oposição à pretensão e ou requererem o diferimento da desocupação do locado, nos termos do disposto nos artigos 15.º-N e 15.º-O [nos termos do artº 15º-D, do NRAU], veio in casu – porque apresentada oposição - , o BNA a apresentar os autos à distribuição.
Devendo seguir-se a prolação de decisão a que alude o artº 15º-H, nº 3   [Julgando logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou não decidindo logo do mérito da causa,  a ordenando a notificação das partes da data da audiência de julgamento], enveredou todavia o Exmº Juiz a quo pela prolação – em 12/4/2021 - do despacho recorrido,  de Suspensão da instância”, para tanto amparando-se no disposto no artigo 6º-E, alínea c) da Lei 1- A 2020, de 19 de Março, aditado pela Lei 13-B 2021 de 5 de Abril.
A presente apelação visa, portanto, tão-somente, aferir da legalidade do aludido despacho de Suspensão da instância.
Quid Juris?
A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril (1), como é consabido, vem determinar a Cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, tendo entrado em vigor no dia 6 de Abril de 2021 ( Artigo 7.º), sendo que, ao mesmo tempo em que revoga os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção “actual”, vem designadamente e também aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º-E, com a seguinte redacção:

Artigo 6.º-E

Regime processual excepcional e transitório
1- No decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excepcional e transitório previsto no presente artigo.
2- As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
(...)
7- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo:
a)- O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março;
b)- Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c)- Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(...)
8- Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
(...)”.
Cotejando a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril com a Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, vemos que, apesar de revogar a primeira o Artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro -, vem porém e no essencial manter [ agora no artº Artigo 6.º-E, nº 7, alínea c) ] a SUSPENSÃO já anteriormente decretada pelo nº 11 do Artº 6-B,  da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021,de 1 de Fevereiro -, pois que revelava ele que :
São igualmente suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais actos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.”

Tendo presente o conteúdo dos dois normativos acabados de transcrever [ o 6-E,  nº 7, alínea c), e o revogado nº 11 do Artº 6-B,  da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março ] , temos assim que o “nó górdio” da questão da presente apelação tem a ver com a pertinência de a suspensão a que alude o Artigo 6.º-E,  nº 7, alínea c) , operar ope legis – que não ope judicis e após averiguação da verificação dos necessários pressupostos de facto.

Ora, se da decisão apelada se infere que a suspensão a que alude o Artigo 6.º-E,  nº 7, alínea c) , opera ope legis, para a apelante a resposta a tal questão só pode ser a contrária, ou seja, importa que  - e na sequência de pertinente alegação dos arrendatários – seja produzida prova que confirme que os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, sejam susceptíveis de colocar os arrendatários/despejados em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
O que dizer ?
Estando no fundamental o objecto da apelação  relacionado com a questão da interpretação da Lei, então a respectiva resolução há-de necessariamente passar pela aplicação do disposto no artº 9º, do CC, o qual reza que :
1.-A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3.- Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Assim, e sendo – como decorre do normativo acabado de transcrever - o elemento/sentido literal apenas um dos primeiros a atender, logo o adverte o legislador que não é ele o decisivo, antes situa-se o mesmo no patamar inicial da actividade interpretativa, ou seja, o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei  para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e controlo (2).
Importando portanto que a letra da lei seja entendida na sua conexão, ou seja, que o pensamento da lei seja inferida a partir de uma compreensão harmónica de todo o seu contexto, impõe-se portanto começar por afastar liminarmente uma interpretação do artigo 6º E, nº 7, alínea c) da Lei 1- A 2020, de 19 de Março, aditado pela Lei 13-B 2021 de 5 de Abril, como obrigando a mesma a uma total/absoluta paralisação/suspensão das acções de despejo e/ou dos procedimentos especiais de despejo, e qualquer que seja o estado e momento em que a mesma se encontre.
É que – e apesar de a redacção da norma não ser a mais feliz e clara, bem pelo contrario, o que apenas se aceita e compreende em razão da pressão legislativa decorrente da necessidade de conformar/adaptar a Lei às decorrências diárias da pandemia covid - o aludindo a lei a actos de execução da entrega do local arrendado, os referidos actos pressupõem necessariamente que a montante exista uma decisão que os suportem e, por outro lado, e ainda que tal decisão exista, mas, estando em causa a entrega de locado idónea e susceptível de colocar o despejado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, necessário é que seja proferida uma decisão que confirme.

Ou seja, as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, não se suspendem ope judicis, antes podem vir a ser suspensas caso seja proferida decisão que o determine [ correndo termos até que seja a mesma proferida ], o que só ocorrerá [ na linha do que decorre de resto do artº 15º-N,nº2, do NRAU, propósito do Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação ], quando comprovado existir o necessário fundamento legal, v.g. não dispor o arrendatário de outra habitação a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação .

O aludido regime, de resto, não diverge de todo do introduzido logo pela Lei nº 4/2020, de 6.04, diploma que, republicando em anexo a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, passou esta última a dispor no respectivo artº 7º, nº 11, que “Durante a situação excepcional referida no n.º 1, são suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Ora, perante a “repetida“ e clara letra da lei, pacifico é que o entendimento do tribunal a quo assenta em pensamento legislativo que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, razão porque a interpretação que perfilha não pode aceitar-se, sendo manifesto que a suspensão que decretou não opera ope legis, antes só poderá  efectivar-se se verificados os pressupostos na lei expressos/fixados.
Mas, para além da letra da lei, também o elemento racional da interpretação ( também presente no nº 1, do artº 9º, do CC ), máxime a ratio legis da lei [ o seu fundamento racional objectivo ] e a occasio legis (a circunstância histórica que levou à sua implementação), estão longe de amparar na plenitude o despacho recorrido, e isto se atentarmos que as leis Covid de suspensão dos prazos processuais surgem no âmbito das medidas de contenção tomadas no essencial pela necessidade de controlo da pandemia Covid 19 e perante o entendimento ( cientifico ) de que para o referido efeito importa sobremaneira preservar/manter as pessoas nas respectivas habitações [daí visar apenas as situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa], impondo-se o isolamento social como resposta à situação epidemiológica
Ora, o despacho recorrido, ao não diferenciar o arrendatário desprovido de  alternativa ao locado do não carecido, convenhamos que casa muito mal com uma legislação que surge norteada pela preocupação do legislador em fazer face ao um momento extraordinário de pandemia.
De resto, é logo com a Lei n.º 16/2020, de 29/5,  que ao revogar o artigo 7.º e os n.os 1 e 2 do artigo 7.º-A da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção actual à data ( cfr. art.º 8º), que deixou de haver qualquer suspensão geral de “prazos para a prática de actos processuais e procedimentais”, “razão porque menos se compreende a decretada Suspensão da instância, pretensamente nos termos do disposto no artigo 6º-E, alínea c) da Lei 1- A 2020, de 19 de Março, aditado pela Lei 13-B 2021 de 5 de Abril.
O entendimento acabado de explanar, de resto, é aquele tem vindo a merecer a adesão praticamente unânime da nossa jurisprudência, o que se comprova através de diversos Acórdãos da segunda instância (3), chamando-se à colação vg o proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa e de 25/2/2021 (4) , no qual se concluiu que “As acções de despejo não ficam suspensas por força da legislação Covid-19; para que ocorra a suspensão, tem de houver um despacho judicial que declare verificados os pressupostos da previsão da suspensão do artigo 6-A/6-c da Lei 1-A/2020 na redacção agora em vigor”.
Outrossim a doutrina vem sufragando o entendimento jurisprudencial praticamente unânime supra alinhavado, designadamente Higina Castelo (5),  pois que considera  que “Da gramática da disposição, resulta que a suspensão do processo não é automática (...) “, antes depende  da apreciação e prova de um requisito complexo, a saber, que “ o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa“ e, tendo em consideração o princípio dispositivo, densificado nos artigos 3º e 5º do CPC , conclui que “ o tribunal só deverá apreciar a questão da suspensão se a mesma for suscitada pela parte que nela tem interesse, com indicação dos factos que a fundamentam, e dando oportunidade à parte contrária de exercer o contraditório. Trata-se de um incidente enxertado na marcha do processo a que se aplicarão os artigos 292º a 295º do CPC.
Igualmente para José Joaquim Fernandes Oliveira Martins (6), existe uma clara “preocupação do legislador em evitar que arrendatários sejam despejados ou retirados dos locais que ocupam, dado que ficariam sujeitos a não ter onde viver no meio de uma pandemia, propiciando também a possibilidade de serem agentes transmissores da mesma para terceiros”, mantém-se suspensas as “acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada”, mas apenas “quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa” (al. c)).
Mais esclarece também Oliveira Martins, que é “de difícil aferição judicial, neste momento, o saber-se se alguém poderá “ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria”, utilizando-se também outra cláusula geral ainda de mais difícil concretização ( “razão social imperiosa” ), considerando-se, por sua vez, que deverá ser o arrendatário a alegar a existência dessa “situação de fragilidade” ou essa “outra razão social imperiosa”, dado que dificilmente tal poderá resultar unicamente dos termos do processo em causa.
Ainda a perfilhar o mesmo entendimento, vem Luís Menezes Leitão (7) esclarecer que dos vários processos indicados no artº Artigo 6.º-E, nº 7, alínea c), da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, apenas um deles é urgente - o procedimento especial de despejo -, mas a lei estabelece um regime geral de suspensão, que tem a particularidade de depender da situação especial de fragilidade do arrendatário, sendo que, tudo aponta para que o processo pode continuar quando essa situação de fragilidade não exista, mas a lei não esclarece em que termos.
Em face de tudo o exposto, e mais não se justifica aduzir, manifesto é que não dispunha o tribunal a quo de fundamento legal bastante para suspender o andamento do processo, quer porque não foi proferida nos autos qualquer decisão final, quer ainda porque não apreciada sequer qualquer prova susceptível de julgar verificado o circunstancialismo legal exigido para que pudesse ser decretada a suspensão - no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto na Lei e com referência à  situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19- dos actos de execução da entrega do locado e a realizar em sede do presente procedimento especial de despejo
Procede, pois, a apelação, devendo revogar-se o despacho recorrido, e devendo prosseguir os autos os seus termos ..
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4.– Sumariando  (cfr. artº 663º, nº7,  do CPC).(acima transcrito)

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5.–Decisão.

Em face do supra exposto, acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em :
5.1.-Concedendo procedência à apelação de A, revogar a decisão recorrida ;
5.2.-Na sequência do decidido em 5.1., determinar o prosseguimento dos autos.
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Sem Custas.
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(1)Que procede à décima alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, alterada pelas Leis n.os 4-A/2020, de 6 de Abril, 4-B/2020, de 6 de Abril, 14/2020, de 9 de maio, 16/2020, de 29 de maio, 28/2020, de 28 de Julho, 58-A/2020, de 30 de Setembro, 75-A/2020, de 30 de Dezembro, 1-A/2021, de 13 de Janeiro, e 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que estabelece medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
(2)Cfr. FRANCISCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, 4ª Edição, Coimbra 1987, pág.138.
(3)Vide v.g. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/4/2021 [  proferido no processo nº 3011/19.9YLPRT.L1-7 ], de 11/2/2021 , de 25/2/2021 , e de 27/4/2021 [ proferido no processo nº 4421/18.4T8FNC-7],  os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 9/2/2021 [ proferido no processo nº 1275/19.7T8PVZ.P1], de 8/3/2021 [ proferido no processo nº 3744/06.0TBVLG-B.P1], de 27/4/2021 [ proferido no processo nº 1212/20.6T8LOU-B.P1 ] e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11/3/2021 [ proferido no processo nº 7532/19.5T8STB-H.E1] disponível em www.dgsi.pt.
(4)Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25/2/2021, proferido no processo nº 3463/19.7T8VFX.L1-2, e disponível em www.dgsi.pt.
(5)Em “O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, na RMP, Número Especial COVID-19 / 2020, págs. 336/337
(6)Em ( De novo a ) Lei n.º 1-A/2020 –  uma terceira leitura (talvez final?) JULGAR Online, maio de 2020, página 20 e acessível no sitio file:///C:/Data/mj01343/Documents/Downloads/20200529-JULGAR-De-novo-a-Lei-1-A2020-uma-terceira-leitura-talvez-final-Jos%C3%A9-Joaquim-Martins-v2.pdf.
(7)Em “Os prazos em tempos de pandemia COVID-19, em Estado de Emergência – COVID-19 Implicações na Justiça, CEJ, 2.ª ed., pág. 71, e disponível em (http:// www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19.pdf),

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Lisboa, 17/6/2021


António Manuel Fernandes dos Santos(O Relator)
Ana de Azeredo Coelho(1ª Adjunta)
Eduardo Petersen Silva(2º Adjunto)