Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7002/2003-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Os reconhecimentos fotográficos são uma diligência policial de investigação válida para identificar o possível agente do crime, se bem que de natureza subsidiária e de resultados ainda mais duvidosos do que os que resultam de um reconhecimento presencial. Porém, para ter valor como prova, o reconhecimento fotográfico deve ser seguido de um reconhecimento pessoal, efectuado nos termos previstos no Código de Processo Penal.
II – A rigorosa ritualidade do procedimento previsto na lei é destinada a assegurar a atendibilidade do resultado e a impedir que o reconhecimento seja o fruto de sugestões, da intimidação ou de convencimentos pré-formados.
III - A expressão “fortes indícios” representa uma exigência acrescida de probabilidade de condenação relativamente ao conceito de “indícios suficientes”.
IV – A existência de fortes indícios da prática de um crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos constitui uma conditio sin qua non e não o fundamento da imposição das medidas cautelares. Estabelece apenas um limite. Por mais fortes que sejam os indícios, não se pode aplicar qualquer medida de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, se não se verificar, em concreto, um dos perigos enunciados no artigo 204º.
V – O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução e, nomeadamente, o perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, enunciado na alínea b) do artigo 204º, é, claramente e apenas, um perigo para a prova, servindo a medida aplicada para «evitar a manipulação do material probatório já in actis ou que potencialmente aí possa estar», ou seja, para enfrentar «o perigo de inquinamento das provas».
VI – Nada tem a ver com o impedimento do legítimo exercício do direito à prova por parte da defesa, na modalidade de procura de fontes de prova para contrariar a pretensão punitiva do Estado, nem com o mais que legítimo funcionamento de outros órgãos constitucionais, nomeadamente dos restantes órgãos de soberania.
VII – Mesmo que existisse perigo de que terceiros, com a conivência do arguido, viessem a “perturbar o processo”, esse perigo, só por si, não poderia justificar a aplicação da prisão preventiva uma vez que as medidas de coacção têm de ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer (artigo 193º, nº 1). Ora, a aplicação da prisão preventiva ao arguido não impediria esses terceiros de prosseguir o seu comportamento.
VIII – Para que a limitação da liberdade resultante do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a que se refere a mencionada alínea c) do artigo 204º, seja uma exigência processual de natureza cautelar (artigo 191º), esse perigo tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito e à reacção que a sua prática possa gerar na comunidade.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – Por despacho judicial de 21 de Maio de 2003, proferido na sequência do 1º interrogatório judicial, foi aplicada a prisão preventiva ao arguido P.
Em 15 de Julho de 2003, o sr. juiz de instrução veio, ao abrigo do artigo 213º do Código de Processo Penal, a proferir o seguinte despacho (fls. 6634 e 6635):
«O arguido P. foi preso preventivamente no dia 21 de Maio de 2003 por se mostrar indiciada a prática pelo mesmo de dez crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172 nº 1 e 2 do Código Penal e cinco crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172 nº 1 do mesmo diploma legal e por se verificar, em concreto, a existência de perigo de perturbação do inquérito e da ordem e tranquilidade públicas.
Do conteúdo de fls. 6076 a 6081, 6082 a 6088 e 6303 a 6306 resultam reforçados os indícios de perigo de perturbação do inquérito. Tais indícios surgem ainda reforçados do teor da sessão 1892 do alvo 21379 cuja junção de transcrição foi hoje ordenada e validada supra.
Do teor de fls. 6184 a 6186 e 6152 a 6159 resultam reforçados os fortes indícios da prática pelo arguido dos crimes que indiciariamente lhe são imputados.
Não há nenhuma circunstância que justifique a alteração do seu estatuto coactivo e os indícios recolhidos desde a sua prisão preventiva reforçam os fundamentos de facto e de direito que a determinaram.
O arguido respondeu à solicitação do Tribunal e acabou por, depois de pedir uma aclaração referir os factos que considera relevantes para a prolação de um despacho que revogue a medida. Acontece, no entanto, - e como o arguido reconhece - que os argumentos avançados já os por si já expendidos no recurso apresentado na Veneranda Relação de Lisboa.
Ora, tais argumentos são, pois, baseados em factos já conhecidos do processo à data da decisão que determinou a prisão (ao contrário da factualidade constante de fls. 6076 a 6081, 6082 a 6088 e 6303 a 6306 que é nova e que reforça os indícios) pelo que são insusceptíveis de serem conhecidos nesta instância pois que as decisões judiciais que aplicam medidas de coacção à semelhança das demais transitam em julgado, extinguindo-se o poder jurisdicional do juiz quanto às matérias tratadas da mesma forma que noutra decisão que não de mero expediente.
Por todo o exposto, mantenho a prisão preventiva aplicada ao arguido P.
Notifique».

2 – O arguido interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada, junta a fls. 7390 a 7428, termina com a formulação das seguintes conclusões:
«1 - O Mmº Juiz, ao decidir (despacho de fls. 6.916 com remissão para a fundamentação do despacho de fls. 4.783 a 4.789) não fornecer à defesa os elementos que constituem a fundamentação fáctica do despacho impugnado, absolutamente essenciais e indispensáveis para efeitos de esta poder impugnar a justeza da aplicação e manutenção da medida de coacção da prisão preventiva, efectua uma interpretação inconstitucional do art. 86°, nºs 1, 5 a 7 e 9 e 89, nº 2, do CPP, violando assim, na interpretação concreta que deles faz, esses preceitos, tomando-os materialmente inconstitucionais, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da garantia do contraditório e da igualdade das armas, da presunção da inocência e do acesso à Justiça consagrados nos artigos 20°, nº 1, 27°, nº 4, 28°, nº 1, e 32°, nºs 1, 2 e 5, da CRP;
2 - O mesmo despacho, ao assim decidir, viola também o artigo 5°, § 2° e § 4° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que prevalece sobre o direito interno, nos termos do artigo 8° da CRP;
3 - O despacho ora recorrido, ao manter a prisão preventiva do arguido após efectivação do reexame da subsistência dos pressupostos em 16.07.03, cerca de 45 dias antes do término do prazo de três meses fixado para o efeito pelo art. 213°, nº 1, do CPP, que terminava apenas em 21.07(8?).03, violou, por errada interpretação e aplicação, aquele preceito legal, o qual, na interpretação concreta que dele fez o despacho recorrido, sofre de manifesta inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da subsidiariedade e da presunção de inocência, previstos nos artigos 28°, nº 2, e 32°, nºs 1, 2 e 5, da CRP;
4 - Na verdade, conforme orientação unânime da jurisprudência, plasmada no Acórdão nº 3/96 para uniformização da jurisprudência tirado pelo pleno das Secções Criminais do STJ (DR, I Série-A, n° 63, de 14.03.96), o reexame antecipado do art. 213º, nº 1, do CPP não serve para manter a prisão preventiva, mas sim para a substituir ou revogar;
5 - O despacho do Mmº Juiz entregue na Assembleia da República para pedir o levantamento da imunidade parlamentar - doc. nº 1 - e o despacho que aplica a medida de coacção da prisão preventiva - doc. nº 7 - não carreiam fundamentos que permitam concluir pela existência de "fortes indícios da prática de crime doloso com pena de prisão de máximo superior a três anos, conforme a exigência do artigo 202°, nº 1, alínea a), do CPP;
6 - Não tendo sido indicados nem fornecidos ao arguido - não obstante ter por ele sido formulado pedido nesse sentido - outros elementos que não os constantes dos documentos nº 1, 2 e 5 que se juntam com a presente motivação, têm que se haver por inexistentes quaisquer outros que, abstractamente invocados, não possam concretamente ser conhecidos pelo arguido;
7 - Na verdade, interpretação diferente que se tente efectivar do disposto no art. 202°, nº 1, alínea a), do CPP, no sentido de se poder admitir a existência de fortes indícios no processado, completamente subtraídos ao conhecimento do arguido, padece de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade, proporcionalidade, garantia do contraditório e da igualdade de armas consagrados nos artigos 28°, nº 1, e 32°, nº 1, da nossa Lei Fundamental e não pode, obviamente, fundamentar a aplicação da medida cautelar da prisão preventiva;
8 - Também no acto da detenção do arguido não lhe foram comunicadas as provas que fundamentaram tal detenção, nem lhe foram expostos ou concretizados, em todas as suas circunstâncias, os factos que lhe são imputados, a fim de ele poder elaborar a sua defesa em toda a sua plenitude, designadamente com a elaboração fundamentada de recurso com vista à revogação da medida, pelo que continua o despacho recorrido a violar, como já o primeiro violou, o teor do art. 141°, nºs 1 e 4, do CPP, os quais, na concreta interpretação que deles foi feita pelo despacho recorrido, padecem do vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio constitucional da legalidade e da proporcionalidade previsto no art. 28°, nº 1, da CRP.
9 - Também é claro, conforme flui do teor dos autos e dos documentos juntos, que a Assembleia da República não autorizou a detenção do arguido, pelo que esta foi determinada pelo Mmº Juiz em violação do disposto no artigo 11º, nº 1, da Lei 7/93 (Estatuto dos Deputados) e em violação dos princípios constitucionais garantísticos consignados no art. 157°, nº 3, da CRP, pelo que se cometeu nulidade insuprível que acarreta a nulidade de todo o processado posterior, sendo que, na interpretação concreta que foi feita pelo Mmº Juiz daquele preceito, ele sempre padece do vício de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios e preceitos constitucionais atrás referidos nesta mesma conclusão.
10 - Por outro lado, não pode fundamentar-se a verificação do mesmo conceito (fortes indícios, para efeito do disposto no art. 202°, nº 1, alínea a), do CPP), como faz o douto despacho recorrido, em depoimentos que se diz terem sido produzidos em relação a fotografia cujas deficiências são expressamente reconhecidas sem se ter procedido à identificação cabal referida no art. 147°, nº 1, do CPP;
11 - Do mesmo modo, porque não foi efectuada a identificação cabal prevista no art. 147°, nº 1, do mesmo Diploma Legal, não podia nunca deixar de se ter recorrido ao mecanismo previsto no nº 2 do mesmo artigo, sob pena de não poderem tais elementos ser valorados como meio de prova (cfr. Acs. do Tribunal da Relação do Porto atrás citados);
12 - Temos pois que o douto despacho recorrido, ao valorar elementos que a Lei expressamente impede (art. 147°, nºs 1, 2 e 4 do CPP), viola claramente estes dispositivos legais, os quais, na concreta interpretação que deles faz o douto despacho recorrido, não podem deixar de considerar-se feridos de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios e preceitos referidos na conclusão 7ª da presente motivação.
13 - Também os próprios elementos de prova indicados no douto despacho recorrido e conhecidos da defesa (depoimentos e escutas telefónicas) ou são completamente vazios e inócuos para o fim pretendido (caso das escutas) ou são insuficientes, ambíguos, vagos, dubitativos e contraditórios (caso do depoimento), sempre absolutamente inadequados para fundamentar a evidência do conceito de fortes indícios e, consequentemente, a aplicação da medida de prisão preventiva;
14 - Pelo que, e concluindo nesta parte, não pode deixar de considerar-se que o douto despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação, viola claramente o disposto no art. 202°, nº 1, alínea a), do CPP, por fazer funcionar tal preceito prescindindo da base de sustentação segura que o seu texto e o seu espírito exigem;
15 - Também não existem quaisquer elementos que permitam vislumbrar sequer a possibilidade de existência dos perigos consagrados nas alíneas b) e c) do art. 204º do CPP, porquanto a actuação do arguido, ao contrário do que conclui o douto despacho recorrido, se pautou rigorosamente pelo favorecimento da aceleração da acção da justiça, propondo-se dispensar a necessidade do pedido de levantamento da respectiva imunidade parlamentar, para, suspendendo imediatamente o seu mandato, para ela se disponibilizar dentro da maior celeridade possível, como aliás havia já anteriormente feito mediante a apresentação, na Procuradoria Geral da República, do requerimento constante do documento nº 2;
16 - O despacho recorrido, remetendo para o teor do primeiro, inverte completamente o sentido de tal actuação, concluindo contra os factos realmente ocorridos, conforme se prova pelo documento nº 3, que teve a intenção contrária, ou seja, a de retardar o andamento da diligência!
17 - É com base neste manifesto erro de facto e com base nas conversas de terceiros - a que o arguido é completamente alheio e que aliás nenhuma relevância têm para os autos - que se considerou haver o perigo por parte deste (?), de perturbação do inquérito ou da tranquilidade pública, apesar de se encontrarem reconhecidamente excluídos, no caso concreto, tanto o perigo de fuga como o de continuação da actividade criminosa;
18 - A sessão nº 1892 do alvo 21.379, cujo teor, como se pode ver do documento nº 5, se reveste de um ridículo atroz, só com manifesto abuso de poder pode ser interpretada no sentido de poder fundamentar qualquer perigo de perturbação do inquérito por parte do arguido;
19 - E, como se vê dos autos, foi recolhida em 29.06.03 e só apresentada ao Juiz para validação e transcrição em 15.07.03, ou seja, dezassete dias depois, em violação da exigência de controle jurisdicional plasmada no art. 188°, nº 1, do CPP e no princípio constitucional da proporcionalidade previsto no artigo 32°, nº 8, da Constituição da República Portuguesa;
20 - Para além do mais, tal escuta foi recolhida de conversa - se bem que trivial e inócua - entre terceiros, ocorrida dois meses após a data da prisão do arguido, não podendo qualquer pessoa de boa fé e recta intenção assacar-lhe qualquer responsabilidade na sua efectivação ou no seu teor;
21 - Violou assim o despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art. 204°, alíneas b) e c) do CPP, preceitos que, na concreta interpretação que por ele lhes é dada, se têm sempre que considerar feridos de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e da proporcionalidade consagrados, designadamente, no artigo 32°, nº 1 e 2, da CRP e também no art. 27°, nº 3, alínea b), da mesma Lei Fundamental;
22 - Tais perigos têm sempre que referir-se ou fundamentar-se em actuação do arguido, sob pena de discricionariedade e, no caso vertente, embora se refira em abstracto a conivência do arguido nesses actos de terceiros, certo é que nenhum elemento concreto é indicado, para além daquele que - como demonstrámos - teve a intenção completamente contrária àquela que lhe é assacada pelo douto despacho recorrido;
23 - Ora, é o próprio despacho recorrido a aceitar que são as conversas de terceiros (do alvo 21379), apresentadas ao arguido já após a detenção deste - aliás completamente inócuas e relevantes para o objecto do processo - "que denotam sobremaneira, quanto a nós, não o perigo mas a perturbação do inquérito" ou, como se diz no despacho ora recorrido, "tais indícios surgem ainda reforçados do teor da sessão 1892 do alvo 21.379 cuja transcrição foi hoje ordenada e validada”, o que se revela legalmente inadmissível e gravemente violador do texto e das razões subjacentes das alíneas b) e c) do art. 204º do CPP;
24 - Aliás as escutas telefónicas de terceiros não suspeitos não podem ser efectuadas nem constituem meios de prova fora das hipóteses excepcionais previstas na Lei nº 5/2002 (artigo 1° e 6°), de 11 de Janeiro, o que não é o caso dos autos, sob pena de cometimento de nulidade insuprível por violação da Lei Ordinária (art. 126°, nº 3, do CPP) e do travejamento constitucional consagrado no artigo 32°, nº 8, da CRP;
25 - De resto, e sem prescindir, diga-se que nunca as escutas invocadas poderiam funcionar ou serem utilizadas para fundamentar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, por a tal se opor o disposto no art. 187°, nº 1, do CPP, que só prevê a sua excepcional utilização como meio de aquisição de prova com vista à averiguação da verdade material e não para quaisquer outros fins, mesmo que instrumentais;
26 - Pelo que, na interpretação concreta que lhe foi dada pelo despacho recorrido (e pelo primeiro sobre o qual pende recurso), sofre aquele preceito (art. 187°, nº 1) do vício de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade e da presunção de inocência previstos nos artigos 28°, nº 2 e 32°, nºs 1 e 2, da CRP;
27 - Por outro lado, o arguido encontra-se detido com base em escutas telefónicas efectuadas de modo selvagem, fora de qualquer controlo jurisdicional ou até policial, efectuadas por quem não tinha competência nem legitimidade, como se vê do facto de respeitarem a datas (2/4, 4/4 e 6/4), anteriores à data em que a autoridade policial certifica ter dado início às escutas (11/4);
28 - Assim, foi expressamente violada a tramitação legal expressamente exigida pelo art. 187°, nºs 1 e 2, e 188°, nºs 1, 2, 3 e 4, do CPP, em violação clara da lei ordinária (art. 125° e 126°, nº 3, do CPP) e do princípio constitucional da proporcionalidade consagrada no art. 32°, nº 8, da CRP;
29 - Assim, por tudo quanto atrás se deixa exposto e factualmente o douto despacho recorrido reconhece, não existe, no caso vertente, fuga ou perigo de fuga (art. 204°, alínea a) do CPP); não há perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, porque ela se encontra protegida nos autos (art. 204°, alínea b), do CPP), não podendo por isso haver perturbação do inquérito ou da instrução do processo por parte do arguido, já que este é alheio a actos de terceiros, bem como ao natural tratamento mediático típico das sociedades modernas;
30 - E ainda, como se encontra documentado nos autos, todos os actos efectuados por terceiros não visavam nem podiam perturbar o inquérito, uma vez que se toma inadmissível pensar que tanto o Senhor Presidente da República, como o Senhor Presidente da Assembleia da República, como o Senhor Procurador Geral da República, pudessem efectuar ou sequer contribuir, para tal invocada perturbação, dado que todos os contactos efectuados o foram dentro das competências constitucionais dos diversos cargos por eles desempenhados;
31 - E ainda, como reconhece o douto despacho recorrido, o arguido tem a sua vida estruturada, não decorrendo qualquer perigo da sua personalidade para a perturbação da ordem e tranquilidade pública, como demonstra a sua exigência de levantamento da imunidade parlamentar para que fosse descoberta a verdade e todas as suas intervenções públicas anteriores a 21 de Maio de 2003, bem como a conferência de imprensa em que directamente exigiu ao Parlamento a eliminação de qualquer impedimento legal ou burocrático ao funcionamento da justiça, pelo que falece claramente a verificação do perigo da perturbação da tranquilidade pública (art. 204°, alínea c) );
32 - Como o despacho recorrido também reconhece, não invocando aliás qualquer fundamento em contrário, não existe o perigo de continuação da actividade criminosa nem, em razão das circunstâncias dos eventuais factos do crime, existe qualquer perturbação da tranquilidade pública, encontrando-se pois afastada a verificação dos requisitos das alíneas b) e c) do art. 204º do CPP, por não ser invocado, como é jurisprudência pacífica, qualquer facto concreto susceptível de corporizar os referidos requisitos legais;
33 - Aplicação que aliás fica bem demonstrada não pode nunca ter tido lugar quando se verifica que os alegados perturbadores coniventes ( Dr. F. e Dr.  C.) foram já ouvidos nestes autos como testemunhas, em datas posteriores à data da prisão do arguido, e não foram constituídos arguidos pela indiciação da prática de crime algum, designadamente pelo previsto no art. 367º do Código Penal;
34 - Assim, e face a tudo quanto se deixa alegado, verifica-se também que o douto despacho recorrido, ao aplicar a medida de prisão preventiva, violou claramente o princípio da adequação e proporcionalidade previstos no art. 193°, nº 1 do CPP, por as exigências cautelares do caso afastarem completamente a necessidade de tal medida;
35 - E, com a aplicação de tal medida cautelar, viola claramente, por errada interpretação, não só aquele princípio de adequação, mas também o princípio da subsidiariedade consagrado no art. 193°, nº 2, e 202°, nº 1, ambos do CPP, pois que sendo a prisão a extrema ratio das medidas de coacção, qualquer outra medida menos gravosa, designadamente as que são previstas nos artigos 196º, 197º, 198º e 200º do Código de Processo Penal, estariam em condições de defender os mesmos interesses que com aquela se visa proteger, sendo mesmo o douto despacho a reconhecer expressamente que a medida por ele adoptada não acautela totalmente os interesses em jogo, o que constitui mais uma razão acrescida para a sua não aplicação e, em substituição dela, se determinar a aplicação de outra, menos gravosa, em que as eventuais obrigações a impor ao arguido sejam susceptíveis de defender os mesmos interesses em jogo;
36 - Na verdade, dispondo os artigos 193º, nº 2, e 204°, nº 1, ambos do CPP, que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção - e nada disto sucede - segue-se que, na interpretação que deles é feita no douto despacho recorrido, estão aqueles preceitos feridos de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e subsidiariedade previstos no art. 28°, nº 2, da CRP;
37 - Finalmente diga-se que, não existindo contra o arguido qualquer acusação definitiva nem se tendo configurado no caso a situação de flagrante delito, segue-se que não poderia ter-lhe sido aplicada a medida de prisão preventiva, sob pena de violação do princípio constitucional de garantia das imunidades parlamentares, previstas no art. 157°, nº 3 e 4 da CRP, que não podem ser contrariadas pelas normas da lei nº 7/93, na redacção da Lei nº 3/2001, de 23 de Fevereiro, designadamente, o seu art. 11°, nºs 1 e 3, que têm que ser considerados inconstitucionais materialmente, por violação daqueles princípios e preceito constitucionais, quando interpretados no sentido de admitir a prisão de deputado fora daquelas situações (flagrante delito e a acusação definitiva ).
Termos em que deve o presente recurso merecer, da parte de Vossas Excelências, o consequente provimento, por ser de Lei e de Justiça, e, consequentemente, deve ser revogado o douto despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que restitua imediatamente o arguido à liberdade, com as consequências legais, assim se fazendo a habitual justiça».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de 1 de Agosto de 2003 (fls. 7565).
4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada (fls. 159 a 253 deste apenso), formulando nessa peça processual as seguintes conclusões:
«1° - "Face aos princípios legais por que se rege a aplicação das medidas de coacção, o reexame trimestral imposto pelo art. 213º tem de ser entendido como uma garantia suplementar para o arguido preso, de que não poderá decorrer esse período sem ver a sua situação oficiosamente revista ". Por isso, um reexame oficioso dos pressupostos fácticos e jurídicos subjacentes a uma decisão, num quadro temporal inferior ao previsto no artigo 213º nº 1 do CPP, não consubstancia qualquer violação daquele normativo, porquanto o mesmo representa uma garantia mínima.
2° - O arguido, com o reexame dos pressupostos da medida de coacção que lhe foi aplicada, passou a dispor de informação avalizada acerca da consistência reforçada dos indícios contra si recolhidos, com inegáveis vantagens em termos da preparação da defesa e não ficou impedido de, ao abrigo do preceituado no artigo 212, nº 4, do Código de Processo Penal, por sua iniciativa, suscitar, a qualquer momento, a revisão da medida de coacção.
3° - Nada impede o Mmº Juiz de Instrução de reexaminar, oficiosamente, os pressupostos de facto e de direito de aplicação da medida de coacção prisão preventiva, sendo tal acto uma garantia suplementar dos direitos constitucionais dos arguidos que usufruem, assim, de uma possibilidade de, num período de tempo mais curto, verem a sua situação processual analisada, podendo reagir processualmente a tal decisão em intervalos de tempo mais curtos, o que reforça, obviamente, as suas garantias de defesa.
4° - Todos os elementos de prova constantes do processo relevam para a aferição da existência de fortes indícios dos crimes imputados ao arguido, independentemente do conhecimento que o arguido, em concreto, tenha de tais elementos de prova.
5° - Ao arguido, na fase de inquérito, mesmo que seja sujeito a medidas de coacção, mormente de prisão preventiva, não pode ser dado conhecimento do conteúdo do processo, coberto pelo segredo de justiça até ao momento da decisão instrutória, ou, se não houver instrução, até ao momento em que tal fase processual já não possa ser requerida, vd. artigo 86° do CPP.
6° - Um dos principais fundamentos do segredo de justiça prende-se com a necessidade de garantir a prossecução dos objectivos inerentes a todo e qualquer processo penal de perseguição e repressão criminal, salvaguardando-se por essa via, nomeadamente, a perturbação na recolha de provas e até a alteração/adulteração de provas já recolhidas.
7° - Tal opção não contende com as normas constitucionais, relativas ao direito de defesa do arguido, nomeadamente com os artigos 32° nºs 1 e 5 da CRP, sendo evidente que o princípio do contraditório apenas assume a sua plenitude em fase de julgamento, e desde que, na fase de inquérito, seja dado conhecimento ao arguido detido, dos motivos da sua detenção e dos factos que lhe são imputados, conforma artigo 141º, nº 4, do Código de Processo Penal, como aconteceu relativamente ao ora recorrente.
8° - Não obstante, o arguido tomou conhecimento de alguns dos elementos de prova constantes do processo, por força de circunstâncias particulares, atinentes à sua condição de Deputado à Assembleia da República, e à correlativa necessidade de os membros de tal Órgão de Soberania, conhecerem, de uma forma minimamente circunstanciada, os factos consubstanciadores dos crimes relativamente aos quais se visava o exercício da acção penal, a fim de se pronunciarem sobre o pedido de levantamento da imunidade parlamentar.
9° - A pretensão de que só os elementos constantes do pedido de levantamento da imunidade parlamentar relevam para fundamentar os fortes indícios dos crimes imputados ao arguido, além de destituída de qualquer fundamento legal, traduz-se numa aberração, consubstanciada na impossibilidade de invocar no âmbito do processo, como fundamento da prática de actos, nomeadamente decisórios, dos próprios elementos integrantes do mesmo, por não constarem de peças processuais fornecidas a outras entidades com um fim específico.
10° - A aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva depende, para além do mais, da existência de prova consistente, de molde a criar a convicção de que o mesmo, face a tais elementos probatórios será, com elevado grau de probabilidade, condenado em julgamento.
11° - Foi por via da prova testemunhal, produzida logo numa fase embrionária do processo, que o arguido foi referenciado com estando envolvido na prática de abusos sexuais de crianças tendo, no decurso do inquérito, e na sequência da ulterior prova produzida, sido recolhidos elementos concretos atinentes à forte e efectiva indiciação do arguido como autor dos quinze crimes de abuso sexual de crianças que lhe foram imputados no despacho recorrido.
12° - A prova vertida nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, foi analisada segundo as regras da experiência, de acordo com o critério constante do artigo 127° do CPP, sendo, nessa medida, inquestionável a credibilidade, coerência e consistência dos depoimentos constantes dos autos.
13° - Analisados os depoimentos constantes dos autos, é manifesto que os mesmos traduzem o relato de abusos sexuais, inexistindo quaisquer elementos que permitam, sequer, a formulação da mais leve suspeita de que, subjacente aos mesmos, esteja qualquer outro escopo para além do relato de factos ocorridos.
14° - Face à natureza dos crimes em causa, é evidente que a prova testemunhal assume protagonismo, não podendo deixar de se concluir pela existência de fortes indícios da prática dos crimes que foram imputados ao arguido, por inexistirem quaisquer circunstâncias que permitam duvidar da credibilidade da prova produzida.
15° - A credibilidade dos depoimentos constantes dos autos é também atestada, conforme salientado no despacho recorrido, pelas perícias médico-legais efectuadas às testemunhas e pelo reconhecimento, pelas mesmas, dos locais e interior das residências onde ocorreram os crimes.
16° - Os exames médico-legais, para além de atestarem o, como o arguido lhe chama, "elemento objectivo da agressão", isto é, a existência de sinais no corpo das vítimas que permitem concluir que as mesmas foram sujeitas aos abusos sexuais que descreveram, atestam também a veracidade e credibilidade de tais depoimentos.
17° - A prova pericial e os reconhecimentos efectuados a lugares reforçam a credibilidade de cada um dos depoimentos no seu todo, não se descortinando de que forma se poderá, como pretende o arguido, considerar que tais depoimentos podem ser verídicos, com excepção da parte em que o envolvem, a ele, na prática dos factos.
18° - A defesa assente na existência de motivos "ocultos e tenebrosos" para o incriminarem, falece por completo face, não só à natureza da prova constante dos autos, mas também à própria tramitação processual. Com efeito, a simples leitura dos autos evidencia a impossibilidade de tal tramitação poder ter sido desviada dos seus fins - o exercício da acção penal contra cada um e todos aqueles que, no decurso do processo, se tem vindo a apurar terem cometido crimes de abuso sexual de crianças.
19° - O universo de potenciais ofendidos no âmbito deste processo estava delimitado à partida, correspondendo aos alunos da ..... que, por isso, foram ouvidos, não por sua própria iniciativa, mas na sequência da investigação encetada, o que permitiu detectar as vítimas de crimes de abusos sexuais e os seus autores.
20° - Assim, à luz da experiência não faz qualquer sentido a versão da defesa, sendo de todo inconcebível a possibilidade de alguém ou alguma organização seviciar crianças, delas abusando sexualmente; convencer essas crianças a mentir, e conseguir que as mesmas imputassem ao arguido a prática dos factos de que foram vítimas, com o objectivo de o denegrirem, de denegrirem o Partido X ou o seu Secretário Geral.
21° - No âmbito do processo não foi feito qualquer reconhecimento de pessoas nos termos do artigo 147° do CPP, nomeadamente do arguido, por não se terem suscitado quaisquer dúvidas relativamente à identificação do arguido ou restantes co-arguidos como tendo sido o autores dos factos que lhes foram respectivamente imputados.
22° - No início do inquérito foram logo referenciadas várias pessoas, nomeadamente o arguido, como estando envolvidas na prática de abusos sexuais de alunos da ..., mencionadas pelos nomes, umas com maior ou menor projecção pública e outras completamente anónimas, tendo sido organizado um apenso a estes autos, contendo várias dezenas de fotografias, de forma a viabilizar a investigação, nos casos em que as vítimas não soubessem identificar pelos seus nomes os autores dos factos que lhes imputavam.
23° - O arguido não era detentor de uma popularidade tal que o tomasse conhecido de todos os portugueses e, em particular, do universo de pessoas que deveriam proceder à sua identificação - jovens, na fase de adolescência, em geral não especialmente nem particularmente atentas aos pormenores da vida política e da acção governativa, não sendo de esperar que conhecessem ou identificassem, inequivocamente, o arguido, pelo facto de ter sido membro do anterior Governo ou de ser porta voz do Partido Socialista.
24° - Pelo menos, uma das testemunhas referidas no pedido de levantamento de imunidade parlamentar identificou cabalmente o arguido pelo nome, fazendo inclusivamente apelo aos cargos públicos que desempenhou, e a outra referiu-se-lhe dizendo expressamente "é político, acho eu ".
25° - A expressão "é político, acho eu" é perfeitamente natural, não descredibilizando em nada a testemunha, como pretende o arguido, antes pelo contrário, uma vez que, para além de ter identificado o arguido através da fotografia, tinha a ideia de que o mesmo seria político.
26° - O depoimento no qual, entre parêntesis, pelo agente que realizou a diligência, é indicado o nome do arguido, de acordo com as referências feitas pela testemunha, não se consubstancia em qualquer contradição dessa testemunha que, por não saber o nome do arguido, o referenciou sempre pela fotografia e através da indicação de que tinha a ideia de que era político.
27° - Na fotografia do arguido, constante dos autos (fotografia nº 8 do Apenso AJ) são patentes a fisionomia e as feições do mesmo, que está, perfeitamente identificável, não tendo, por isso, as testemunhas tido dúvidas em apontá-lo como tendo sido o autor dos factos de que foram vítimas, de entre muitos outros indivíduos retratados nas fotografias constante daquele apenso.
28° - Carece de qualquer sentido, como faz o arguido, invocar a invalidade formal e substancial da prova produzida, por o reconhecimento não ter respeitado as regras a que alude o artigo 147° do CPP, precisamente porque, nos autos, não houve necessidade de efectuar qualquer reconhecimento, do arguido ou dos restantes co-arguidos, que foram cabalmente identificados pelas testemunhas que conhecem perfeitamente o arguido com quem, aliás, estiveram em várias ocasiões conforme está patentemente demonstrado nos autos.
29° - A identificação por fotografia é um meio legal de prova, valendo em processo penal, nos termos do artigo 125º do Código de Processo Penal, a regra da admissibilidade geral das provas, desde que não proibidas por Lei.
30° - Depois de identificado o arguido através de fotografia, o recurso à forma de reconhecimento expressa no artigo 147º do Código de Processo Penal careceria de qualquer valor legal.
31° - Depois da prisão preventiva do arguido foram carreados para os autos elementos de prova que reforçam os fortes indícios da prática dos crimes que lhe são imputados, uns atestando a credibilidade de depoimentos que o incriminam, outros demonstrando que há já vários anos o arguido vinha praticando abusos sexuais de crianças da CPL, em circunstâncias idênticas àquelas em que foram praticados os crimes que lhe são imputados, apenas diferindo os locais onde foram praticados e a identidade dos seus acompanhantes.
32° - O arguido não soube apontar as tais "complexas organizações da sociedade moderna ". que estariam por trás da cabala que invocou, inexistindo nos autos, até ao momento, qualquer explicação que torne plausível tal cabala, urdidura ou maquinação.
33º - Todas as diligencias efectuadas no sentido de averiguar a verosimilhança da existência da referida cabala demonstraram que, até ao momento, a mesma não passa de uma estratégia de defesa de contornos mirabolantes, sendo desmentida peremptoriamente pelas pessoas inquiridas, pela lógica das coisas e até pelos próprios amigos e conhecidos do arguido que inicialmente sobre ela especularam.
34° - Os crimes que em sede indiciária se imputam ao arguido são todos punidos com pena de prisão de máximo superior a três anos, e todas as intercepções telefónicas realizadas foram determinadas por despacho judicial no qual se justificou a pertinência e o interesse das mesmas para a descoberta da verdade e a recolha de prova.
35° - À excepção das conversações entre o arguido e o seu defensor - que não constituam objecto ou elemento de crime - todas as conversações telefónicas que se julgue, com razoabilidade, poderem ter interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, podem ser interceptadas, não excepcionando a Lei nenhuma pessoa do elenco das que podem ser alvo de escutas telefónicas.
36° - A aferição concreta da sua admissibilidade, para além do mais sustenta-se num juízo de prognose razoável sobre o grande interesse que das mesmas possa resultar para a prova de todos os elementos do tipo legal dos crimes em causa bem como de todos os outros elementos relacionados com a sua prática, ainda que não referentes directamente o tipo.
37° - Nem do texto do artigo 187° do CPP, nem do teor da artigo 6° da Lei nº 5/2002, decorre que apenas arguidos ou suspeitos podem ser alvo de intercepções telefónicas, sendo que ambos os diplomas apenas graduam - em função do tipo de criminalidade em investigação - as exigências formais e substanciais da sua realização ou da recolha de imagens e registos de voz.
38º - Investigando-se, nos presentes autos, crimes de lenocínio e de tráfico de menores – havendo já arguidos indiciados pela sua prática – sempre tal lei, ainda que interpretada no sentido que o recorrente pretende, teria aplicação.
39° - Os despachos judiciais que determinaram a realização de todas as escutas dos autos, cumpriram todos os requisitos formais e substanciais do artigo 187° do CPP, tendo o Mmº Juiz de Instrução ponderado os interesses em causa, atenta a gravidade dos crimes indiciados e o interesse público da realização da Justiça, entendido, e bem, que os mesmos se sobrepunham à reserva da vida privada.
40° - No que concerne em particular à data de início de intercepção das conversações telefónicas do arguido, foi já tal questão cabalmente esclarecida nos autos, por via do despacho judicial constante de fls. 6630, notificado ao arguido em 16 de Julho de 2003, apenas se podendo qualificar como manifesta litigância de má fé a persistência na invocação de um lapso na referenciação da data do início de tais intercepções, já completamente esclarecido na tentativa, quiçá, de desviar a atenção da gravidade dos crimes indiciariamente imputados ao arguido.
41° - O teor das escutas realizadas, analisadas global e contextualmente, e não de uma forma desgarrada como o fez o arguido, demonstra à evidência a existência do grande interesse das mesmas para a prova e para a aferição dos perigos de perturbação do inquérito, e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
42° - O teor de todas as escutas que foram ordenadas nos autos - quer ao arguido quer a terceiros - permite afirmar que todos agiram concertadamente, com o conhecimento, a pedido, e por causa do arguido, tentando, por todas as vias, obstruir o normal desenvolvimento do inquérito.
43° - O Senhor Presidente da República, o Senhor Presidente da Assembleia a República, o Senhor Procurador Geral da República, um Senhor Ministro do Governo, o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados foram contactados, concertadamente, a pedido, ou com a conivência do arguido que, dessa forma, tentou, por todas as vias, impedir o curso e a tramitação normal e legal do presente inquérito.
44° - Da análise do teor das intercepções telefónicas e da "certidão" junta pelo arguido ao seu recurso, resulta evidente que este tudo fez, ao contrário do que alega, para ser ouvido nos autos em atropelo aos procedimentos legais e processuais aplicáveis, tendo tentado suster o pedido de levantamento da sua imunidade parlamentar, mediante a invocação da possibilidade de suspensão do mandato, por sua iniciativa, como forma de evitar a publicidade e a demora inerente à tramitação conducente ao levantamento da imunidade parlamentar.
45° - Como o arguido não poderia deixar de saber, a suspensão do mandato parlamentar obedece a requisitos específicos que dificilmente se poderiam considerar preenchidos no presente caso, dependendo ainda de diligencias regimentais cuja tramitação, delonga e publicidade são em tudo semelhantes ao procedimento legal aplicável, isto é, levantamento da imunidade parlamentar.
46° - As intercepções telefónicas e a "certidão" junta pelo arguido demonstram, ainda, uma tentativa de criar, junto da opinião pública suspeitas sobre o funcionamento da Justiça, que o mesmo sabia não serem verídicas, o que perturbaria enormemente a paz e a tranquilidade públicas.
47° - De tais intercepções não ressalta nenhum elemento que permita com lógica, razoabilidade e seriedade levantar qualquer suspeita da existência de qualquer "urdidura", "cabala", ou "organização poderosa" que pretendesse incriminar um inocente, isto é, o arguido, à qual, aliás, nunca fez nenhuma referência, no período que antecedeu o seu  interrogatório, apesar de dela ter conhecimento pelo menos há doze dias.
48° - Os crimes de abuso sexual de crianças pela prática dos quais o arguido está indiciado nos presentes autos, geram um forte sentimento de repulsa por parte da sociedade e traduzem um "comportamento hediondo", como ele próprio o classifica no seu recurso aqui em análise, profundamente rejeitado e criticado pelo seu desvalor ético-social nas sociedades modernas, que exigem que os Tribunais adoptem medidas adequadas a garantirem a segurança e a tranquilidade de todos os cidadãos.
49° - O sentimento de insegurança e de intranquilidade públicas despertado pela criminalidade em apreço nestes autos, é reforçado pela circunstância de o arguido ter praticado os factos que lhe são imputados no período de tempo em que exerceu funções públicas nas estruturas do Estado e pelo facto de as suas vítimas estarem sob a tutela de uma instituição desse mesmo Estado, sem quaisquer referências afectivas sólidas e sem apoio familiar, o que as tomava particularmente indefesas.
50° - Os cidadãos não compreenderiam que os Tribunais, que sempre têm considerado os crimes de abuso sexual de crianças como fortemente geradores de alarme social, deixassem agora de o fazer, só porque está em causa um Deputado, e quando esta circunstância agrava de sobremaneira a existência desse alarme.
51° - Os perigos referidos na alínea c) do artigo 204° são alternativos (continuação da actividade criminosa ou perturbação da ordem e tranquilidade públicas) e a sua aferição há-de ser realizada em função das circunstâncias do crime ou da personalidade do agente, sendo que da não indiciação do perigo de continuação da actividade criminosa não decorre de todo a inexistência de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
52° - O perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas que se mostra indiciado decorre, não apenas da natureza e circunstâncias dos crimes que se imputam ao arguido, mas, também da análise das intercepções realizadas nos autos.
53° - A medida de coacção de prisão preventiva foi aplicada em estrita obediência aos requisitos legais e, face à natureza e ao número dos ilícitos imputados ao arguido e à existência dos perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de perturbação do inquérito, mostra-se ser a única proporcional à medida abstracta da pena e àquela que previsivelmente irá ser aplicada ao arguido em julgamento, e adequada e suficiente à prevenção dos perigos acima referidos.
54° - A circunstância de a perturbação do inquérito ser tão intensa que não fica cabalmente acautelada com a aplicação da medida de prisão preventiva, não implica que aquela medida seja desadequada, de todo, à prevenção da verificação de tal perigo, sendo que tal "desadequação" decorre do facto de a mesma não poder ser cumulada com nenhuma outra, para além do TIR, e não do reconhecimento de tal "desadequação" de per se.
55° - Mostrando-se indiciados crimes puníveis com penas de prisão de máximo superior a oito anos - como é o caso dos autos - e tendo a Assembleia da República autorizado o interrogatório como arguido de um seu Deputado, e a aplicação de medida de coacção de prisão preventiva - tal como aconteceu nos presentes autos - , a aplicação de tal medida de coacção não é inconstitucional, pois mostram-se preenchidos todos os requisitos do artigo 157° da CRP, nem ilegal, pois mostram-se, também preenchidos os requisitos do artigo 11 ° da Lei nº 3/2002, uma vez que a detenção do arguido foi um acto meramente formal, implicitamente autorizado pela AR, condição necessária à sujeição do arguido a primeiro interrogatório judicial, nos termos do artigo 141° do CPP.
56° - A alegação da referida inconstitucionalidade é contraditória com a tese defendida pelo arguido de que pretendia entregar-se à Justiça, já que nada tinha a dever, pois, mesmo que o fizesse, a sua eventual prisão preventiva seria sempre, segundo o seu ponto de vista, inconstitucional, pelo que nada lhe poderia acontecer.
57° - Ao aplicar a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido P., o Mmº Juiz de Instrução não violou qualquer preceito legal, constitucional ou ordinário - designadamente os artigos 18°, 27° e 157° da CRP e 191°, 193°, 201°, 204° e 213° do CPP - devendo ser mantida tal medida de coacção, por ser a única capaz de acautelar os perigos que, em concreto se verificam, adequada e proporcional à gravidade dos crimes indiciados e à pena que, previsivelmente será, em julgamento, aplicada ao arguido.
Assim, a decisão recorrida deverá ser mantida, continuando o arguido P. a aguardar os ulteriores termos processuais em prisão preventiva».

5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 923 a 947.

6 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido veio juntar a resposta a essa peça processual, resposta essa que consta de fls. 1114 a 1116.

7 – Veio entretanto a ser junto um parecer elaborado, em Setembro de 2003, pelos Professores Manuel da Costa Andrade, José Francisco de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues e Maria João Antunes (fls. 1029 a 1105).

II – FUNDAMENTAÇÃO
Análise dos factos imputados a este arguido
8 – De acordo com o despacho recorrido, o sr. juiz considera que se mostra indiciada a prática pelo arguido de dez crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172º nºs 1 e 2, do Código Penal, e cinco crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172º, nº 1, do mesmo diploma legal.
Uma vez que ainda estamos na fase de inquérito, não tendo, portanto, sido deduzida acusação, e não se encontra junta a este apenso qualquer peça processual em que se narrem os concretos factos que sustentam esta qualificação jurídico-penal, teremos de, num primeiro momento, procurar, de entre os elementos fornecidos pelos meios de prova descobertos e recolhidos no inquérito[1], aqueles que podem contribuir para a definição, ainda que provisória, dos factos que podem ser imputados ao arguido.
Porque se trata, exclusivamente, de meios de prova pessoal, vejamos então quais são os elementos indiciários que resultam do ou dos depoimentos prestados por cada uma das pessoas ouvidas na qualidade de testemunhas[2].

Depoimentos da 1ª testemunha (nascida em 1985)
9 – Com datas anteriores à do despacho recorrido, foram juntos a este apenso 4 autos contendo depoimentos seus prestados entre 6 de Janeiro e 21 de Maio de 2003, transparecendo do primeiro deles que essa pessoa já tinha sido anteriormente ouvida no processo.
Nas declarações prestadas a 6 de Janeiro (fls. 278 a 280), diz nomeadamente:
- «o S. tinha uma série de pessoas com quem se dava muito bem. Tinha muitos amigos. Um dos amigos dele foi um dos antigos ministros do Partido X de nome P.. Sabe que ele substituiu o F.. Diz que este indivíduo ia muitas vezes à Provedoria e contactava com o provedor de então, o L., também muito amigos. Diz que tinham muitas conversas. Quando tal acontecia reuniam-se também o M., B., também amigo. Quando tal acontecia o Dr. R. chamava sempre o S. para participar na conversa».
- «Deseja acrescentar que também este indivíduo, P., o político que sucedeu a F., também se envolvia frequentemente com rapazes da ...».
- «O P. costumava também contactar com o S. para que este lhe “arranjasse” rapazes para a prática de actos sexuais».
- «Nunca o próprio P. compareceu no local do encontro. Era um outro indivíduo, calculando o depoente que seria um motorista e sempre o mesmo. Conduzia sempre uma carrinha Ford Transit, de cor branca».
- «Estas solicitações de encontros aconteciam duas e três vezes por mês».
- «Perguntado, diz já não se lembrar dos nomes dos rapazes que “estiveram” com P.».
Não refere ter sido ele próprio vítima de qualquer prática sexual com o arguido, parecendo até deste depoimento que nunca o teria visto.
Quando foi ouvido, a 4 de Fevereiro (fls. 305 e 306), no que a este arguido respeita, limitou-se a confirmar «as referências por si feitas a todos os nomes que já indicou, constantes dos autos. Nomeadamente, reafirma que o S. lhe contou que também, “fornecia” crianças ao ... e ao P., não tendo, contudo, o depoente alguma vez visto qualquer deles».
Apesar disso, de forma surpreendente, no dia 6 de Fevereiro, sob a forma de nova inquirição, colocam essa pessoa a fazer um reconhecimento fotográfico, apresentando-lhe para o efeito 3 páginas de fotografias (com 17 fotografias), de entre as quais ele identificou cinco pessoas, entre os quais o arguido.
Acrescenta, de forma algo enigmática, «que conhece o nome de todos eles, sem precisar de qualquer legendagem e afirma que os conheceu muito bem, sendo que essa relação implicava até o tratamento com eles “por tu”».
Nada sobre este arguido foi acrescentado no seu depoimento de 21 de Maio.
Não se pondo em causa que, numa primeira fase da sua permanência na Casa Pia, esta pessoa tenha sido abusada sexualmente, tal como parece resultar da perícia de fls. 352 a 360, e que identifique uma casa como tendo sido um dos locais a que conduziu crianças[3], não se pode deixar de considerar que tais depoimentos, no que respeita a este arguido, não têm qualquer valor. Em primeiro lugar porque se trata de depoimentos indirectos não corroborados pela pessoa que indicou como fonte da informação (artigo 129º do Código de Processo Penal). Depois porque, pelo seu próprio conteúdo, parecem não ter consistência.
Também por isso, não pode ser tomada em consideração a “abonação” que a Drª C. faz do depoimento dessa testemunha e das dúvidas que as conversas com ela lhe provocaram quanto à inocência do arguido.

Depoimentos da 2ª testemunha (nascida em 1986)
10 – Esta testemunha foi ouvida 5 vezes, entre 16 de Janeiro e 24 de Abril de 2003.
No seu 1º depoimento relata que, no ano de 2000, quando ainda tinha 13 anos, foi com o  S., juntamente com outros rapazes, a uma casa, que localiza, no interior da qual se encontravam  «sete ou oito homens adultos». «Alguns vestiam fato e outros vestiam camisa e colete». Depois de indicar vários dos presentes disse que «reconheceu também um indivíduo de óculos, mas não sabe o nome (acrescentando quem tomou as declarações que se sabe chamar P.). Perguntado sobre o que sabe sobre a vida profissional deste indivíduo responde “... é político, acho eu ...”». Acrescenta a seguir que «reparou que o indivíduo de óculos, mas o mais novo (voltou a acrescentar quem redigiu o acto, que indicou e identificou e que dá pelo nome de P.) conversava com um outro indivíduo, um dos que vestia camisa» ... «de seguida, o indivíduo que falava com o outro de óculos (idem P., pela sua indicação na foto) dirigiu-se ao depoente e disse-lhe: tu vens comigo», relatando depois as práticas sexuais que mantiveram (fls. 293 a 295).
No final da inquirição, para esclarecer dúvidas, disse que «“acompanhou” sempre os indivíduos que não conhecia e não os que indicou nas fotos».
Cerca de dois meses depois, em 10 de Março, depois de confirmar na íntegra o seu depoimento anterior, diz ter mais alguns elementos a acrescentar. Parece motivado pelo facto de ter tido conhecimento de que iria ser submetido a perícia médico-legal. Reconheceu então que, para além das relações orais antes referidas, praticou também relações anais, «desempenhando sempre o papel passivo».
«Perguntado se estes actos também ocorreram na casa ..., responde que sim. Confirma que teve também um contacto sexual com ..., duas vezes com o indivíduo de óculos, que reconheceu nas fotos que lhe foram exibidas (idem de nome P.) e a quarta vez com um indivíduo que deveria ser amigo dele. Novamente são exibidas fotos de diversos indivíduos ao que o depoente aponta sem dúvida a foto desse indivíduo (idem P., foto com o nº 8)».
Não lhe foi assinalada a contradição com o anterior depoimento, nem se estranhou que, constando desse álbum de fotografias duas fotos deste arguido[4], sendo a outra muito maior e bem mais nítida, essa não tenha sido reconhecida.
No depoimento prestado em 9 de Abril, volta a confirmar o reconhecimento da mesma fotografia do arguido (e só esta), localizando as duas vezes que esteve com o arguido naquela casa em Abril/Maio de 2001 e em Julho/Agosto do mesmo ano.
Nas declarações seguintes, prestadas em 24 de Abril, rectifica o ano dos referidos contactos sexuais com o arguido, dizendo ter sido em 2000 e não em 2001, rectificando também outros pontos que, para o caso, não parecem relevantes.
A forma como foram feitos os reconhecimentos, que mais adiante se abordará, o facto de apenas ter sido indicada uma das fotografias (a mais pequena e menos clara) e as contradições assinaladas fragilizam o valor indiciário destes depoimentos, isto sem pôr minimamente em causa que o mesmo tenha sido vítima prolongada de abusos (perícia de fls. 407 e segs.) e que tenha estado na casa onde ocorreram os factos que narra (fls. 309).

Depoimentos da 3ª testemunha (nascida em 1984)
11 – Esta testemunha foi ouvida duas vezes. Logo em 3 de Janeiro e, posteriormente, em 13 de Fevereiro.
No primeiro depoimento, constante de fls. 261 a 266, não faz qualquer referência a este arguido.
No segundo depoimento, ao voltar a indicar as pessoas presentes na única vez que foi à já mencionada casa, disse encontrar-se aí um «indivíduo de óculos (que sabe chamar-se P.) que já reconheceu em fotografias que lhe foram exibidas e outras pessoas que não reconheceu na altura».
Sem, mais uma vez, pôr em causa que a testemunha tenha sido vítima de abusos sexuais continuados e que tenha estado uma vez na casa que indicou, o que narra sobre o arguido, surgido inopinadamente, num segundo depoimento, sem qualquer localização temporal e depois de declarações idênticas prestadas por seus conhecidos, não pode deixar de ser, em termos indiciários, muito frágil.

Depoimentos da 4ª testemunha (com 16 anos em 28 de Abril de 2003)
12 – Apenas se encontra junto a este apenso um segundo (?) depoimento desta testemunha, prestado na data acima indicada.
Também ele, confrontado com o álbum de fotografias, aponta «de forma inequívoca o indivíduo constante na fotografia nº 8, o qual desconhece o nome, bem como qual a sua profissão» (fls. 390).
Declara que nos últimos meses de 1999, um bom bocado antes do Natal, já tinha feito 13 anos, numa casa a que já se fez referência, de que, apesar do enorme esforço, não conseguiu precisar pormenores, encontravam-se 5 adultos, sendo um deles «o indivíduo constante da foto nº 8». Esse indivíduo «abordou o depoente dizendo-lhe para este o acompanhar até um dos quartos, o que o depoente fez». Descreve depois os actos praticados, entre os quais se encontram as relações orais e anais.
Disse que voltou uma segunda vez a essa casa, «cerca de uma semana depois das férias do Natal, situando tais factos em início de Janeiro de 2000». Voltou a acompanhar o arguido, tudo se passando em termos semelhantes aos anteriormente relatados.
Uma terceira vez, em meados de Fevereiro de 2000, tudo se passou de modo semelhante.
O valor indiciário deste depoimento, no que respeita à indicação do arguido como sendo uma das pessoas que praticou com ele actos sexuais, será analisado quando, mais à frente, se abordar a questão do valor dos reconhecimentos fotográficos, feitos nas condições em que estes ocorreram neste processo.

Depoimentos da 5ª testemunha (nascida em 1981?)
13 – Já depois da prisão preventiva do arguido consta um outro depoimento, que parece surgir no seguimento de outros já anteriormente prestados e que não se encontram juntos a este apenso (fls. 475 a 482, identificadas no despacho como fls. 6152 a 6158).
A sua inverosimilhança, quanto ao arguido e a outras figuras públicas, nomeadamente pessoas que desempenham ou desempenharam cargos políticos, é tão notória que não merece outra qualquer referência.

Depoimentos da 6ª testemunha (nascido em 1987)
14 – A última testemunha a referir o arguido nas suas declarações, prestadas em 24 de Junho (fls. 483 a 485, referenciadas no despacho como fls. 6184 a 6186), limita-se a dizer ter ouvido o  S. a perguntar a um outro arguido deste processo «pelo arguido P.».
O contexto em que esta afirmação surge, a estranheza que suscita a conservação em memória deste facto e a ausência de qualquer outro esteio a que se apoie suscitam-nos as maiores reservas.

O valor dos reconhecimentos em geral e dos reconhecimentos fotográficos em particular
15 – Para abordar a questão do valor dos reconhecimentos, enquanto meio de prova, importa, antes mais, ouvir os psicólogos que se dedicam ao estudo da psicologia do testemunho[5].
Escrevia Luisella de Cataldo Neuburger[6], já no ano de 1988, que «está demonstrado que a memória humana é um instrumento frágil e evasivo: pode ser “ajudada”, parcialmente reestruturada ou completamente alterada por inputs posteriores ao acontecimento. É sensível ao peso das palavras e tudo a pode desviar do percurso: expectativas, situações, pré-juízos, cores, sons». «As pessoas, habitualmente, reconhecem facilmente uma cara de um amigo num compartimento repleto: parece uma tarefa que não admite erros. Mas o acto de reconhecer apresenta-se como muito simples e imediato porque, em geral, respeita a objectos, situações ou pessoas que nos são familiares». «Mas as coisas alteram-se de modo radical se a observação e a recordação saem do quotidiano e são realizados num contexto diferente. E os circuitos mnésicos não são o único ponto em que os processos de reconhecimento se podem desviar do seu percurso; podem também ser desviados com grande facilidade pelas expectativas e pela alteração do contexto».
E acrescenta mais à frente, «o legislador, preocupado em evitar ou tornar menos prováveis pelos menos os erros mais grosseiros, como aqueles que são induzidos pela sugestão ou pelas lacunas mnésicas, prescreveu, se bem que de forma apodíctica, determinadas cautelas para salvaguardar o resultado do reconhecimento[7]».
«A rigorosa ritualidade do procedimento é destinada a assegurar a atendibilidade do resultado e a impedir que o reconhecimento seja o fruto de sugestões, da intimidação ou de convencimentos pré-formados[8]», chegando mesmo a afirmar-se na doutrina italiana que há, da parte do legislador, uma certa desconfiança quanto a este meio de prova[9].
Seja como for, trata-se inegavelmente de um meio de prova muito delicado[10].
Por isso, também o legislador português o rodeou de tantas cautelas (artigos 147º a 149º), considerando, no nº 4 do artigo 147º, que «o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova».
Não quer isto, no entanto, dizer que julguemos ilícitos os reconhecimentos fotográficos, não regulados no Código[11].
Pelo contrário. Consideramo-los uma diligência policial de investigação válida para identificar o possível autor do crime[12], se bem que de natureza sempre subsidiária, e de resultados ainda mais duvidosos. Para ter valor como prova, deve, porém, ser seguida de um reconhecimento pessoal[13], efectuado nos termos previstos no Código de Processo Penal[14].
Por isso, aquelas indicações, fornecidas por algumas testemunhas, só por si, não podem «ter valor como meio de prova».
Mas mesmo que nenhuma destas objecções se colocasse, sempre enfraqueceriam esse valor os reconhecimentos efectuados num único “álbum” em que as fotografias tinham sempre a mesma numeração (álbum esse que contém 84 fotografias, de tamanhos e formas diferentes, em que apenas a do arguido e a de uma outra pessoa estão repetidas), sendo o arguido sempre foi reconhecido através da fotografia mais pequena e menos nítida (a nº 8). Tendo uma das testemunhas afirmado que se tratava de um político, o mínimo que se exigiria era que se colocasse a fotografia do arguido, juntamente com outras, de igual dimensão e formato, de figuras públicas que não desempenhassem aquela actividade. Só assim seria possível detectar o eventual erro da testemunha. Colocando-se em simultâneo pessoas que, todas elas, podem, eventualmente, se indicados, vir a transformar-se em suspeitos, não há possibilidade de detectar um eventual erro. Por isso mesmo é que o Código de Processo Penal exige que, sendo necessário realizar uma pluralidade de reconhecimentos, eles tenham lugar separadamente.
Exemplificando, para ser mais explícito. Se num reconhecimento pessoal de um determinado membro de uma organização terrorista se colocar o suspeito no meio de outros membros da organização (em vez de o colocar entre pessoas insusceptíveis de qualquer suspeita), o eventual erro de identificação pode ser interpretado pelos investigadores não na sua verdadeira natureza mas como a descoberta de outro possível responsável pelo crime que se investiga.
Por tudo isso, não se pode atribuir qualquer valor probatório aos “reconhecimentos” fotográficos efectuados.

Avaliação global desses indícios
16 – Do que se disse, resulta por demais evidente que todos os indícios recolhidos são claramente insuficientes para imputar ao arguido a prática de qualquer crime concreto. Isto bastaria, só por si, para revogar a prisão preventiva que lhe foi aplicada e determinar a sua libertação imediata (artigo 27º, nº 3, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e artigos 202º, nº 1, alínea a), e 212º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal).
Mas, mesmo que se entendesse que existiam indícios com algum grau de consistência, ou mesmo que eles eram suficientes para deduzir uma acusação ou suportar um despacho de pronúncia, nunca seriam “fortes”, como exige a lei para a imposição das três medidas de coacção mais graves, entre as quais se conta a prisão preventiva[15].
Contrariamente ao que se diz no despacho prévio à solicitação de levantamento da imunidade parlamentar, a expressão “fortes indícios[16]” representa uma exigência acrescida de probabilidade de condenação relativamente ao conceito de “indícios suficientes”[17].
E, note-se, que, de resto, já este conceito pressupõe «a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final[18]». A diferença está apenas na maior fragilidade dos elementos considerados, uma vez que resultam de uma actividade não contraditória, sem imediação, nem oralidade.
Essa maior exigência, de resto, bem se justifica já que é muito mais grave sujeitar uma pessoa à prisão preventiva do que deduzir contra ela uma acusação, por muito relevante e pernicioso que isso mesmo possa ser. O entendimento contrário, levado até ao absurdo, legitimaria que se prendesse preventivamente uma pessoa em relação à qual não existiam sequer indícios para, contra ela, deduzir acusação. A prisão preventiva nesse caso só poderia servir, então, como meio de obter indícios, o que, pelo menos desde 1972[19], é expressamente proibido, legal e constitucionalmente.

A qualificação jurídico-penal desses factos
17 – Diga-se ainda que, mesmo que se desse credibilidade a todos os elementos de prova que se referiram, sem proceder a qualquer exame crítico, não se vê como é que se poderia chegar à conclusão de que o arguido teria praticado «dez crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e cinco crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172º, nº 1, do mesmo diploma legal» uma vez que não se conseguem identificar dez vítimas dos seus actos. Mas, mesmo que disso se prescindisse, por se entender que não havia, relativamente a cada um dos ofendidos, um único crime continuado, não se conseguem determinar dez actos sexuais, dos mencionados no nº 2 do artigo 172º do Código Penal, praticados em momentos diferentes.
Idêntico raciocínio haveria que fazer quanto aos outros cinco crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo nº 1 do artigo 172º do Código Penal. Sendo as mesmas vítimas e tendo os actos sido praticados nas mesmas ocasiões, não se compreende como é que se poderia sustentar a existência de um concurso efectivo de crimes.
Diga-se ainda que, sendo todos esses crimes semi-públicos, não vemos que tenha sido apresentada tempestivamente qualquer queixa (artigo 115º do Código Penal), nem nos foi remetida certidão de nenhum despacho do Ministério Público que, nos termos do actual nº 4 do artigo 178º do Código Penal, tenha, em nome do interesse de cada uma das concretas vítimas, decidido exercer a acção penal.

Os requisitos gerais de que depende a aplicação das medidas de coacção previstas nos artigos 197º a 202º do Código de Processo Penal e na legislação avulsa.
18 – Mas, mesmo que se considerasse que existiam fortes indícios de que o arguido tinha praticado todos aqueles factos integrantes de todos aqueles crimes que se referem no despacho recorrido, não seria, por certo, a sua existência que justificaria a imposição da prisão preventiva ou de qualquer outra medida de coacção, excepção feita ao termo de identidade e residência.
É que a existência de fortes indícios da prática de um crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos constitui uma conditio sin qua non e não o fundamento da imposição das medidas cautelares. Estabelece apenas um limite. Por maiores que sejam os perigos, não se pode aplicar qualquer medida de coacção, com excepção da indicada, se não se verificar, em concreto, um dos perigos enunciados.
Analisemos então se existe, no caso, em concreto, algum dos perigos mencionados no despacho recorrido.

O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova – alínea b) do artigo 204º.
19 – O perigo a que se refere este preceito é, claramente e apenas, um perigo para a prova, servindo a medida aplicada para «evitar a manipulação do material probatório já in actis ou que potencialmente aí possa estar[20]», ou seja, para enfrentar «o perigo de inquinamento das provas[21]».
Visa, no dizer de Roxin[22], evitar o perigo de entorpecimento com base na forte suspeita de que o arguido «destrua, modifique, oculte, suprima ou falsifique meios de prova», «influa de maneira desleal nos co-arguidos, testemunhas ou peritos» ou «induza outros a realizar tais comportamentos».
Para que possa fundamentar a aplicação de uma medida de coacção, uma vez que tem que ser concreto, tem que ser possível a «indicação precisa das circunstâncias, objectivas e subjectivas, que tornam altamente provável “uma intervenção ‘inquinante’ sobre as fontes de prova”[23]».
Nada tem a ver com o impedimento do legítimo exercício do direito à prova por parte da defesa, na modalidade de procura de fontes de prova para contrariar a pretensão punitiva do Estado, nem com o mais que legítimo funcionamento de outros órgãos constitucionais, nomeadamente dos restantes órgãos de soberania.
Por isso, não conseguimos ver como é que se descortina neste caso algum perigo desta natureza quando o arguido, beneficiário de uma imunidade, deu imediatamente o seu assentimento ao levantamento desta e se dispôs mesmo a suspender o mandato para poder prestar declarações sem o levantamento da imunidade parlamentar[24]. O facto de ter procurado conter as repercussões negativas que, em termos de opinião pública, daí resultavam para o partido de que era porta-voz, o que do ponto de vista da sua actividade político-partidária é perfeitamente compreensível, nada tem a ver com as finalidades das medidas cautelares. Também não conseguimos perceber qualquer perigo em conversas de terceiros, nomeadamente aquelas que foram transcritas no despacho que precedeu o pedido de levantamento da imunidade parlamentar e a referida no despacho recorrido (sessão nº 1892 do alvo 21379 – fls. 731 e 731) ou em quaisquer outras, todas elas completamente inócuas.
Também não se vê em que é que os depoimentos prestados pelos Drs. C. (fls. 6076 a 6081),  F. (fls. 6082 a 6088) e S1 (fls. 6303 a 6306) denotam qualquer perturbação do inquérito.
Mas mesmo que existisse perigo de que terceiros, com a conivência do arguido, viessem a “perturbar o processo”, esse perigo, só por si, não poderia justificar a aplicação da prisão preventiva. É que a medida de coacção tem de ser adequada às exigências cautelares que o caso requer (artigo 193º, nº 1). Ora, a aplicação da prisão preventiva ao arguido não impediria esses terceiros de prosseguir o seu comportamento.
Seria ocasião de relembrar as sábias palavras de Pisapia[25] quando ele escrevia que «uma justificação da prisão preventiva como instrumento para impedir o inquinamento da prova é, ao mesmo tempo, “ingénua e perversa”. Ingénua porque considera que a prisão do arguido serve para o isolar eficazmente do resto do mundo; enquanto é óbvio que o próprio interessado antes do isolamento, ou outro por ele depois da detenção, podem facilmente levar a cabo as temidas mistificações. Perversa porque, admitindo-se que o detido permaneça verdadeiramente isolado do seu ambiente familiar e social, a detenção poderia então impedir-lhe um válido exercício dos seus direitos de defesa».
Não existe, portanto, por tudo o que se disse, o assinalado perigo.

O perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas – 1ª parte da alínea c) do artigo 204º.
20 – Resta-nos verificar se existe, em concreto, o perigo previsto na 1ª parte da alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal, ou seja, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
O tribunal recorrido interpretou essa expressão, se bem vemos as coisas, como perigo de «alarme social[26]» e a medida de coacção que em função dele é imposta como reacção provisória, imediata e dissuasora, com finalidade exemplar[27], que permite aplacar ou, pelo menos, conter esse mesmo alarme.
Tal interpretação, se podia colher algum apoio no momento em que o Decreto-Lei nº 185/72, de 31 de Maio, deu uma nova redacção ao artigo 291º do Código de Processo Penal de 1929, não pode ser aceite depois da entrada em vigor, em 1976, da Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 32º, nº 2, consagra o princípio da presunção de inocência, em todas as suas dimensões, ou seja, enquanto regra de julgamento, regra de prova e regra de tratamento do arguido ao longo do processo[28]. Com um tal sentido seria sempre uma disposição inconstitucional, porque se traduziria na aplicação provisória de uma pena a uma pessoa que pode ser inocente. Aplacar os ânimos à custa do sacrifício de uma pessoa que ainda não foi declarada culpada seria certamente contrário à dignidade da pessoa humana, pedra basilar do nosso ordenamento constitucional.
E não será o facto de, depois da sua entrada em vigor, se ter acrescentado, no artigo 291º do Código revogado, a expressão «tranquilidade pública[29]», que dele originalmente não constava, nem a referência que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 477/82, revogado em 1987, fazia ao alarme que a libertação do arguido poderia causar, que poderão legitimar uma interpretação claramente inconstitucional.
Como dizíamos num outro acórdão[30], «no nosso modo de ver, para que a limitação da liberdade resultante do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas a que se refere a mencionada alínea c) do artigo 204º seja uma exigência processual[31] de natureza cautelar (artigo 191º), esse perigo tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito e à reacção que a sua prática pode gerar na comunidade».
Com base neste entendimento, que coincide, no essencial, com o expresso no parecer junto, não se vê que exista, no caso concreto, qualquer perigo de o arguido vir a perturbar a paz pública.
Porque não existe este, nem qualquer outro dos perigos de que depende a aplicação de uma medida de coacção (excepção feita, como se disse, ao termo de identidade e residência), nunca poderia ser aplicada ao arguido outra medida que não a prevista no artigo 196º do Código de Processo Penal.

21 – A apreciação das restantes questões suscitadas pelo recorrente, de natureza instrumental relativamente ao objecto do presente recurso, não serão, portanto, apreciadas, não só porque, em face da decisão tomada, perderam relevo, mas também porque uma pronúncia sobre elas requereria a solicitação e junção de outras peças processuais, o que inevitavelmente demoraria a prolação da decisão e prolongaria a privação de liberdade do arguido.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em revogar o despacho recorrido e, consequentemente, a medida de coacção por ele mantida, ordenando a imediata libertação do arguido P., o qual deverá aguardar os ulteriores termos do processo mediante a prestação de termo de identidade e residência (artigo 196º do Código de Processo Penal).
²

Lisboa, 8 de Outubro de 2003


(Carlos Rodrigues de Almeida – 1º adjunto, relator do acórdão nos termos do artigo 425º do CPP)


(Horácio Telo Lucas)


(João Moraes Rocha)

DECLARAÇÃO DE VOTO – Votei vencido o presente Acórdão pelas razões que em sínteses passo a enumerar.

I – Indícios suficientes
A indiciação necessária para a aplicação de uma medida de coacção não exige a comprovação categórica dos factos conducentes à aplicação de uma pena, basta a convicção, formulada no momento da aplicação da medida e apoiada no material probatório existente nos autos, de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado(s) crime(s).
Perante a conjugação dos depoimentos da 1ª, 2ª, 3ª e 4ª testemunhas, entendo que existem fortes indícios da prática por parte do arguido de crime(s) doloso(s) punível com pena de máximo superior a três anos (artigo 172º, nos. 1 e 2, do Código Penal).

II – Perigo de perturbação do decurso do inquérito
Existem diversas formas possíveis de perturbação do decurso de um inquérito, umas mais subtis, outras óbvias, umas directas outras através de terceiros, ... Nem sempre as mais óbvias e directamente produzidas são as mais eficazes.
Dos autos emerge de forma clara e repetida a intervenção de terceiros que no interesse do arguido actuam de forma a criar perigo de perturbação do decurso do inquérito, art. 204.º, al. b), do Código de Processo Penal.

III – Perturbação da ordem e da tranquilidade pública
A al. c) do art. 204.º do Código de Processo Penal tem uma função cautelar referente ao próprio processo, devendo o perigo resultar das circunstâncias do(s) crime(s) ou, então, da personalidade do arguido.
Considerando que existe esse perigo de perturbação uma vez que os crimes causaram e causam revolta na sociedade portuguesa, sendo previsível comportamentos ou reacções menos cordatas em relação ao arguido, será razoável a aplicação de uma medida de coacção que atente nessa circunstância.

IV – Demais requisitos de aplicação de uma medida de coacção
Não referindo o Acórdão os demais requisitos, importa reconhecer que cumpre acautelar a presença do arguido no decurso do processo e, assim, surge como razoável o perigo de fuga, al. a) do art. 204.º do Código de Processo Penal.
Consigne-se, ainda, que se verificam as condições gerais de aplicação das medidas de coacção previstas no artigo 192.º do Código de Processo Penal.

V – Adequação e proporcionalidade

As medidas de coacção devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso, em concreto, requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (art. 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Por seu turno, a prisão preventiva só pode ser aplicada se, em concreto, as demais medidas de coacção forem inadequadas ou insuficientes (art. 193.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Do que se disse resulta que em cada caso se deve utilizar a medida de coacção menos gravosa, desde que satisfaça as exigências cautelares impostas à gravidade do crime e às sanções que venham a ser aplicadas.

Tais exigências cautelares, no caso dos autos, estariam acauteladas com a obrigação de permanência na habitação (art. 201.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o que significa que a prisão preventiva é, concretamente, excessiva.

Em suma: pelas razões que de forma contida ficaram expostas, no seguimento do projecto de Acórdão que não obteve vencimento, revogaria o despacho recorrido, substituindo a medida de coacção de prisão preventiva por a obrigação do arguido permanecer na habitação, art. 201.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.



(João Luís de Moraes Rocha)


____________________________________________________

[1]  Antes de ser proferido o despacho recorrido, únicos meios de prova que para o efeito podem ser considerados, uma vez que se trata de um recurso de reponderação e não de reexame (sobre a teoria geral dos recursos e, nomeadamente, sobre as suas classificações, veja-se MENDES, Armindo Ribeiro, in «Recursos em processo civil», Lex, Lisboa, 1992, p. 138.
[2]  Relativamente a uma delas, salvo se, na data, ainda não tivesse completado os 16 anos de idade, seria de dar cumprimento ao disposto no artigo 59º, nº 1, do Código de Processo Penal uma vez que confessou a co-autoria de um crime de lenocínio de menores, crime público p. e p. pelo artigo 176º, nº 1, do Código Penal, um crime de tráfico de menores, crime público p. e p. pelo artigo 176º, nº 2, do mesmo diploma, e um crime de falsificação de documentos autênticos, crime público p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea a), e nº 3, desse código.
[3] Constitui, no entanto, grave vício de raciocínio pretender inferir da credibilidade do reconhecimento de uma casa a exactidão da identificação de uma pessoa que estaria no seu interior.
[4] O que, se bem notámos, só acontece com uma outra pessoa.
[5] Assinale-se, antes de mais, que, ao contrário do que muitas vezes perpassa, a incorrecção de um depoimento não resulta apenas de uma falta de correspondência entre as representações que tem a pessoa que o presta e o que por ela é declarado, mas também dos próprios processos de observação, memorização, integração, reelaboração e transmissão das representações do declarante.
[6] In «Psicologia della testimonianza e prova testimoniale», Giuffrè, Milano, 1988, p. 132.
[7] Ob. cit. p. 134.
[8] DÁLIA, Andrea António, e FERRAIOLI, Marzia, in «Manuale di diritto processuale penale», 4ª edizione, Cedam, Padova, 2001, p. 219.
[9] CONSO, Giovanni, e GREVI, Vittorio, in «Compendio di procedura penale», Cedam, Padova, 2000, p. 313.
[10] Neste sentido, PISAPIA, Gian Domenico in «Compendio di procedura penale», 5ª edizione, Cedam, Padova, 1988, p. 335.
[11] Se bem que nos pareça insustentável a pretensão de os fazer valer “sem regras” ao abrigo do artigo 125º, disposição que consagra o princípio da atipicidade dos meios de prova uma vez que seria incompreensível que o legislador fosse muito rigoroso com os reconhecimentos pessoais (“en rueda”, como lhe chamam os autores espanhóis) e deixasse campo aberto aos reconhecimentos fotográficos, cujo grau de fiabilidade é muito menor (sobre a questão da tipicidade ou da atipicidade dos meios de prova veja-se, a mero título de exemplo, TONINI, Paolo, in «Manuale di Procedura Penale», 4ª edizione, Giuffré, Milano, 2002, p. 205).
[12] Devem, porém, tomar-se os devidos cuidados ao efectuar esse reconhecimento fotográfico, nomeadamente os indicados por PÉREZ, Francisco Alonso in «Médios de investigación en el proceso penal», Dykinson, 2003, p. 162.
[13] Não se ignora, porém, que é discutível a influência que o prévio reconhecimento fotográfico pode vir a ter no reconhecimento presencial (quanto a este ponto veja-se, nomeadamente, NEUBURGER, Luisella de Cataldo, in «Esame e controesame nel processo penale», Cedam, 2000, p. 313.
[14] Neste mesmo sentido DURÁN, Carlos Climent in «La prueba penal», Tirant lo Blanch, Valencia, 1999, p. 1113, e DIEZ, Luis Alfredo de Diego in «Identificación fotográfica y reconocimiento en rueda del inculpado», Bosch, Barcelona, 2003, p. 29 e segs.
[15] Referindo-se aos §§ 112 e 113 do StPO, diz ROXIN, Claus, que «deve existir uma suspeita veemente em relação ao cometimento do facto punível, isto é, deve existir um alto grau de probabilidade» (in «Derecho Procesal Penal», tradução da 25ª edição alemã, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2000, p. 259).
[16] Por exemplo, o artigo 273º do Código de Processo Penal italiano fala em «gravi indizi di colpevolezza», o que é entendido pela doutrina como uma exigência acrescida relativamente à suficiência dos indícios (neste sentido, já em 1990, se pronunciavam AMODOI, Ennio, e DOMINIONI, Oreste, in «Commentario del nuovo Codice di Procedura penale», volume terzo, parte seconda, Giuffrè, Milano, 1990, p. 15. No mesmo sentido veja-se, mais recentemente, BUZZELLI, Sílvia, «I gravi indizi di colpevolezza nel sistema delle misure cautelari tra probabilità e certezza», in Rivista Italiana di Diritto e Procedura penale», fascicolo 4, 1995, p. 1146.
[17] Já no domínio do Código de Processo Penal de 1929, depois da redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 185/72, de 31 de Maio, se distinguia, no § 1º a «forte suspeita da prática da infracção» dos  «indícios suficientes da sua imputação ao arguido». Foi, no entanto, com a redacção dada a esse artigo 291º pelo Decreto-Lei nº 277/77, de 6 de Setembro, que se introduziu a formulação de «fortes indícios da prática do crime».
[18] NEVES, A. Castanheira, in «Sumários de Processo Criminal», Coimbra, 1968, p. 37, acompanhado por DIAS, Jorge de Figueiredo, in «Direito Processual Penal», Coimbra Editora, Coimbra, 1974, p. 133.
[19] Ver a parte final do § 1º do artigo 291º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 185/72, de 31 de Maio, onde se dizia «sendo sempre ilegal a captura destinada a obter estes indícios».
[20] CHIAVARIO, Mário, in «Commento al nuovo Códice di Procedura Penale», tomo III, UTET, p. 47.
[21] CONSO e GREVI, ob. cit. p. 353.
[22] Ob. cit. p. 260.
[23] CHIAVARIO, ob. cit. p. 46.
[24] Que, tendo em conta o Estatuto dos Deputados (aprovado pela Lei nº 7/93, de 1 de Março, e sujeito a sucessivas alterações, entre as quais a introduzida pela Lei nº 3/2001, de 23 de Fevereiro, que republicou o diploma, e a introduzida pela Lei nº 24/2003, de 4 de Julho) e o Regimento da Assembleia da República (alterado e republicado pela Resolução nº 2/2003, de 17 de Janeiro), numa situação normal, duraria cerca de 1 mês, dada a necessidade de convocação da Comissão de Ética, da sua deliberação, do agendamento do assunto em Plenário e da aprovação da autorização.
[25]  Ob. cit. p. 262.
[26] Sobre esse conceito veja-se, nomeadamente, VASSALLI, Giuliano in «Scritti giuridici», volume III, Giuffrè, 1997, p. 567, e SANGUINÉ, Odone, in «Prisión provisional y derechos fundamentales», Tirant lo Blanch, Valencia, 2003.
[27] VASSALLI, ob. cit. p. 566, e ILLUMINATI, Giulio, in «Finalità della custodia preventiva e criteri di valutazione alla luce dell’articolo 254 c.p.p.», in «Tribunale della libertà e garanzie individuali», Zanichelli, Bologna, 6ª edizione, 1988, p. 61.
[28] V. ILLUMINATI, Giulio, in «La presunzione d’innocenza dell’imputato», Zanichelli, Bologna, 6ª edizione, 1984, DIAS, Jorge de Figueiredo, in «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in «Jornadas de direito processual penal – O novo Código de Processo Penal», Livraria Almedina, Coimbra, 1988, p. 27, VILELA, Alexandra, in «Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal», Coimbra Editora, Coimbra, 2000, e COSTA, Eduardo Maia, in «A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito», in Revista do Ministério Público», nº 92, p. 65 e segs.
[29] Feita pelo Decreto-Lei nº 377/77, de 6 de Setembro.
[30] Recurso nº 5372/03.
[31] Muitos autores consideram que disposições como a da alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal consagram finalidades extra-processuais, de natureza substantiva, e, como tal, ilegítimas (ver, a mero título de exemplo, para além de grande parte da doutrina italiana, nomeadamente Grevi e Illuminati, HASSEMER, Winfried, in «Crítica al derecho penal de hoy», tradução de Patrícia Ziffer, 2ª edição, ADHOC, Buenos Aires, 1998, p. 115 e segs.