Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
840/22.0PFAMD.L1-5
Relator: ANABELA CARDOSO
Descritores: INJÚRIA
AGENTE DA POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
ERRO NOTÓRIO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: . A alegação da arguida, no sentido de considerar que o tribunal a quo deu relevância penal a uma mera falta de cortesia [quando vem afirmar que apelidar de “otário” um agente da PSP, quando este se encontrava no exercício das suas funções, não integra o crime de injúria] não constitui qualquer erro notório na apreciação da prova, por não colocar em causa a apreciação da mesma, em nenhum dos seus segmentos, nem o exercício crítico da prova efectuado, de forma lógica, racional e fundamentada, pelo tribunal recorrido, constituindo antes a invocação de um erro de direito.
II. A expressão “otário”, por duas vezes, proferida pela arguida, em relação a um agente da PSP, que se encontrava no exercício das suas funções, possui carácter manifestamente pejorativo e depreciativo da pessoa daquele, situando-se no puro plano pessoal, para além de se reportar ao seu carácter, por forma de o enxovalhar e humilhar, sendo manifestamente atentória da honra e consideração da pessoa daquele, em concreto, estando para além de qualquer crítica à forma como aquele exerce as suas funções, para além de ser de todo despropositada, imprevista e desnecessária.
III. A falta de consciência da ilicitude do facto, ou erro sobre a ilicitude, traduz a falta de consciência de uma proibição jurídica, não por referência ao conteúdo do tipo legal, mas por referência à capacidade de compreensão, pelo agente, da proibição da sua conduta, o que, no caso, é manifestamente improcedente, por estarmos perante facto típico, cuja punibilidade se pode e deve, desde logo presumir, conhecida de todos, na medida em que a arguida, que até possui, como habilitações literárias, o 11º ano de escolaridade, não podia ignorar que chamar de “otário” um agente da PSP, no exercício das suas funções, integra o tipo legal de crime de injúria.”
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. No Processo Sumário, nº 840/22.0PFAMD, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal da Amadora, Juiz 2, sob acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, foram julgados os arguidos A e B.
Realizado o julgamento, por sentença proferida em 29 de Junho de 2022, foi decidido:
“Pelo exposto, julga-se a acusação pública procedente por provada e, consequentemente:
a) absolve-se o arguido A da prática do crime de injúria agravada por que vinha acusado;
b) absolve-se a arguida B da prática do crime de ameaças agravadas por que vinha acusada;
c) condena-se o arguido A pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1, e 155º, nº 1, alíneas a) e c), do C. Penal, por referência ao artigo 132º do mesmo diploma legal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 900,00€ (novecentos euros);
d) condena-se a arguida B, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos artigos 181º e 184º, ambos do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 5,00€ (cinco euros), no total de 500,00€ (quinhentos euros);
e) condenam-se ainda os arguidos no pagamento das custas crime do processo, fixando-se, a cada um, 2 (duas) UC's como a taxa de justiça devida - cf. artigos 513º, nºs 1 a 3, do C. Processo Penal e artigo 8º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a esse mesmo diploma. (…).”
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2. Não se conformando com o teor desta decisão, a arguida dela interpôs recurso, apresentando motivação da qual extraiu as seguintes conclusões:
“a- A arguida B, vinha acusada em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea c), ambos do C. Penal, e de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos artigos 181º e 184º, ambos do C. Penal.
b- Foi proferida Sentença, que absolveu a arguida B da prática do crime de ameaças agravadas por que vinha acusada e condenou-a pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos artigos 181º e 184º, ambos do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 5,00€ (cinco euros), no total de 500,0 € (quinhentos euros).
c- Dos factos provados, resulta, com interesse para o recurso que: No dia 27/05/2022 (…) Que saindo C da sua viatura e os arguidos daquela em que seguiam, (…) ao mesmo tempo que a arguida saiu igualmente com postura exaltada dizendo que C era “otário”, não estava de serviço e que sabia os seus direitos. E, após terem acorrido ao local outros agentes da PSP, já na presença destes, os arguidos mantiveram a mesma postura exaltada, tendo a arguida afirmado “vocês são uns otários”, “vocês são bons é todos juntos”, expressões que dirigiu a tais agentes, incluindo C.”
d- Ora, a recorrente que foi condenada por ter proferido a expressão “otário” por duas vezes ao agente de autoridade C: e) (…), ao mesmo tempo que a arguida saiu igualmente com postura exaltada dizendo que C era “otário”, não estava de serviço e que sabia os seus direitos.” g) (…), tendo a arguida afirmado “vocês são uns otários”, “vocês são bons é todos juntos”, expressões que dirigiu a tais agentes, incluindo C.
e- Quanto à Motivação da matéria de facto dada como provada : “Em súmula, a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto alicerçou-se no teor do auto de notícia do auto de notícia de fls. 3/4, conjugado e complementado com as declarações prestadas pelos arguidos e os depoimentos prestados em audiência pelos agentes da PSP C, D e E, conjugados entre si, apreciados criticamente e à luz das regras de experiência comum.(…) Os arguidos optaram ambos por prestar declarações quanto aos factos que lhes eram imputados, mencionando, em síntese, reconhecer apenas terem sido abordados pelo agente da PSP C e, posteriormente por outros elementos da PSP nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação, mas não se apercebendo inicialmente que aquele era agente da autoridade, uma vez que apenas avistaram uma viatura particular a persegui-los após o arguido ter acelerado para passar um sinal de trânsito luminoso que estava amarelo, sendo apenas posteriormente, quando o respectivo condutor saiu do carro, que viram que C estava fardado como agente da PSP.
(…). Sucede que tais declarações dos arguidos não lograram obter o convencimento do Tribunal, nomeadamente considerando que se patenteou, da parte de ambos, um discurso bastante agitado, nervoso e eminentemente desresponsabilizante, o qual, de resto, não se mostrou conforme às regras da experiência e da lógica e foi substancialmente contrariado pelos depoimentos dos agentes da PSP envolvidos na sua abordagem e fiscalização.
Por seu turno, este último, pese embora não ter confirmado a totalidade das expressões proferidas pelos dois arguidos no momento da abordagem inicial que lhes realizou ainda sozinho, confirmou o proferimento das que se deram como provadas nesse âmbito, bem como esclareceu as circunstâncias que motivaram a referida abordagem, na sequência da viatura em que os arguidos seguiam ter ultrapassado um sinal de trânsito luminoso que apresentava cor vermelha, colocando em risco os demais utentes da via.”
f- Ora, com o devido respeito e que é muito, verifica-se a ocorrência dum Erro Notório na Apreciação da Prova
g- O “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
h- Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
i- Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
j- Nos presentes autos, o bem jurídico protegido por este normativo legal é a honra, que será vista como “um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada individuo, radicado na sua dignidade quer a proporia reputação ou consideração exterior.”
k- No que se refere ao elemento objectivo deste ilícito, o agente terá de imputar factos a outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, que ofendam a honra ou consideração desta, podendo ser enquadrado mediante a direcção a outra pessoa, por parte do agente, de palavras; palavras essas que têm, necessariamente, de ser ofensivas da honra e consideração daquela.
l- Não basta a pronúncia de palavras ou expressões que constituam falta de educação, ou indelicadeza para estarmos perante um crime de injúrias; é necessário mais do que isso: que tais palavras ou expressões ofendam a honra e consideração do seu destinatário.
m- No entanto, nem todas as condutas que causam vergonha ou humilhação no visado são susceptíveis de ser enquadradas no artigo 181º do C.Penal. Efetivamente, “aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena”, cf. Beleza dos Santos
n- Acresce dizer que, como diz Oliveira Mendes “…nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180º e 181º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa.”
o- Não podemos confundir a injúria com a mera indelicadeza ou mesmo com a grosseria.
p- No que se refere ao seu elemento subjectivo, o crime de injúrias é um crime essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjectiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 13.º do Código Penal com o artigo 181.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
q- No caso da recorrente, o contexto dos factos foi os ânimos exaltados, provocados por um agente de autoridade na abordagem com o seu carro particular, e quando não se encontrava de serviço, mandou parar o veículo dos arguidos, após a passagem dum sinal vermelho, sendo que a arguida vinha no banco traseiro com o seu filho de 4 anos.
r- Assim, considera-se natural, que a arguida saindo do carro, ficasse exaltada com toda a situação que se gerou á volta da paragem dos dois veículos, acrescida depois com a chegada de uma carrinha policial, para a deter a ela e ao marido.
s- Podemos concluir, que a arguida deveria de ter agido de outra forma, uma forma mais calma, mas o seu comportamento não foi mais do que uma justificação, com o devido respeito, para o comportamento inapropriado daquele agente de autoridade.
t- As palavras da Arguida encerram sem dúvida uma carga negativa, e na perspectiva do ofendido C, foram aptas a ofendê-lo, contudo, afigura-se-nos, salvo o respeito devido, não possuírem idoneidade objectiva a fim de preencher o tipo incriminador em causa.
u- Podemos considerar que o comportamento da Arguida foi desrespeitoso e nada educado ou cortês, tanto mais que dirigiu a expressão a um agente de autoridade, mas conforme entendeu o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. 294/19.8PABCL.G1:
v- “ I- As palavras dirigidas pelo arguido ao assistente, dizendo-lhe que “ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante”, no contexto em que estas palavras foram proferidas, relativo a um caso de estacionamento de veículo automóvel indevido na via pública, visaram direta e essencialmente a ação do assistente, enquanto agente da PSP no exercício da sua atividade de policia, e não a pessoa deste.
w- II- Quem exerce funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à critica objetiva. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social.
x- III- O direito penal tutela valores fundamentais da vida em sociedade e deverá promover a pacificação social, sendo um direito de ultima ratio, pelo que fazendo aqui apelo ao princípio da proporcionalidade e à concordância prática entre, por um lado, o direito ao bom nome e à reputação, e o direito à liberdade de expressão e ao direito de critica objetiva por outro, consideramos que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria.”
y- No caso da recorrente, é nosso entendimento que as palavras dirigidas pela arguida ao ofendido, dizendo-lhe que “vocês são uns otários”, “vocês são bons é todos juntos”, no contexto em que estas palavras foram proferidas, visam direta e essencialmente a ação do ofendido, enquanto agente da PSP no exercício da sua atividade de polícia, e não a pessoa deste.
z- A arguida criticou fundamentalmente a ação deste, enquanto agente da PSP, pelo facto de entender que este agente não procedeu com o devido respeito para com o seu marido e ter chamado uma carrinha de reforços para o deter, porque o mandou parar e este questionou –o a dizer que não estava de serviço.
aa- O que vale por dizer que a conduta da arguida se situou no âmbito da critica objetiva relativamente à ação de um agente da PSP no exercício da sua função de segurança pública.
bb- O Ac. RL de 17.04.2018, processo 515/17.1PHSNT.L1, 5ª Secção, publicado em www.pgdlisboa.pt também assim o   entendeu: “Outrossim, é hoje pacificamente aceite que quem exercer funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à critica objetiva nos termos em que ficaram acima assinalados. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social (…)”
cc- Assim, considera-se a expressão proferida pela Arguida reprovável, reveladora de falta de polidez e de grosseria, no entanto, não ultrapassa o limiar da relevância penal.
dd- Verificando-se assim o vicio da existência de erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, pois aos olhos de um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, pois tratou-se de uma expressão que não poderia ofender um agente de autoridade no exercício das suas funções.
ee- A decisão recorrida interpretou as normas constantes dos mencionados artigos no sentido de que se pode ser punido pela prática de um crime, quando da factualidade dada como provada, não resulta que o arguido agiu com consciência da ilicitude penal, ou seja, de que sabia que a sua conduta constituía um crime.
Sendo que esta interpretação colide com o estatuído no artigo 29.º, 32º, nºs 1 e 5 da CRP e violação do artigo 410º n.º 2 do CPP.”
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3. Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, ao mesmo respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, junto do tribunal recorrido, pugnando no sentido de se negar provimento ao mesmo e de se manter, na íntegra, a sentença recorrida. Não foram apresentadas conclusões.
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4. Neste Tribunal da Relação de Lisboa, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual concluiu que o recurso deve ser indeferido e confirmada a sentença em crise, uma vez que: - nenhum erro notório na apreciação da prova evola o texto da sentença; - apelidar de “otário” o agente da PSP em funções é injúria agravada; -não é atendível uma pretensa falta de consciência da ilicitude penal.
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5. Cumpridos os vistos, foi realizada a competente conferência.                            
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6. O objecto dos recursos, tal como ressalta das conclusões da motivação, versa a apreciação das seguintes questões:
- Erro notório na apreciação da prova;
- Impugnação da matéria de direito (errada aplicação do direito).
- Falta de consciência da ilicitude penal.
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7. Da sentença recorrida consta o seguinte no que concerne aos factos provados e não provados e respectiva fundamentação:
“Discutida a causa e produzida a prova, estão assentes os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:
a) No dia 27/05/2022, pelas 07h40, o agente da PSP C, devidamente fardado, encontrava-se a circular na respectiva viatura pessoal na Av. Dr. Jorge Sampaio, Amadora.
b) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar os arguidos circulavam no veículo automóvel de matrícula F, conduzida pelo arguido A, imediatamente à frente do veículo tripulado por C.
c) A dado momento, perante a passagem de um sinal vertical luminoso de regulamentação do trânsito para a cor vermelha, o arguido imprimiu maior velocidade ao veículo por si conduzido, circulando para além do referido sinal, motivando que C decidisse abordar os ocupantes da viatura F a fim de os fiscalizar.
d) Então, ao aperceber-se da aproximação do veículo conduzido por C e que este efectuava gestos para que imobilizasse a sua viatura, o arguido travou repentinamente, tendo igualmente aquele parado o veículo em que seguia.
e) De seguida, saindo C da sua viatura e os arguidos daquela em que seguiam, o arguido A, apercebendo-se que aquele era agente da PSP devidamente fardado e no exercício das suas funções, dirigiu-se-lhe em tom de voz alto e postura exaltada, afirmando, além do mais, "o que queres caralho?", ao mesmo tempo que a arguida saiu igualmente com postura exaltada dizendo que C era "otário", não estava de serviço e que sabia os seus direitos.
f) Então C solicitou aos arguidos que se acalmassem, ao que o arguido lhe retorquiu "se fosse antes tu ias ver o que te ia acontecer", "eu conheço-te?" e "tu vais ver o que te vai acontecer a ti e ao teu carro".
g) E, após terem acorrido ao local outros agentes da PSP, já na presença destes, os arguidos mantiveram a mesma postura exaltada, tendo a arguida afirmado "vocês são uns otários", "vocês são bons é todos juntos", expressões que dirigiu a tais agentes, incluindo C.
h) Os arguidos sabiam que C era agente da PSP e que se encontrava no exercício das suas funções.
i) Ao proferir as palavras acima descritas em f), o arguido A actuou com o propósito de provocar medo e inquietação a C, ciente de que as mesmas eram adequadas a alcançar tal resultado, o que quis e conseguiu.
j) Ao proferir as palavras acima referidas em e) e g), a arguida B actuou com o propósito concretizado de ofender C na respectiva honra e consideração que lhe eram devidas como pessoa e agente de força de segurança policial, sabendo aquelas idóneas a alcançar tal resultado, o que quis e conseguiu.
k) Os arguidos agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
l) Os arguidos residem um com o outro, bem como um filho de 4 anos de idade e ainda dois filhos do arguido de 13 anos e um da arguida de 14 anos de idade.
m) Residem em casa arrendada para o efeito, suportando o pagamento de uma renda mensal de cerca de 300,00€.
n) O arguido exerce actividade laboral como serralheiro, do que aufere cerca de 800,00€ mensais.
o) Possui, como habilitações literárias, o 8º ano de escolaridade.
p) A arguida exerce actividade laboral como vigilante de segurança privada, do que aufere cerca de 700,00€ mensais.
q) Possui, como habilitações literárias, o 11º ano de escolaridade.
r) A arguida não possui condenações criminais registadas.
s) O arguido possui condenações criminais registadas, tendo sido condenado:
- por sentença transitada em julgado em 12/10/2006, pela prática, em 09/06/2005, de um crime de roubo, na pena de 120 dias de multa, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento;
- por sentença transitada em julgado em 12/02/2007, pela prática, em 23/03/2005, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, posteriormente declarada extinta por cumprimento;
- por sentença transitada em julgado em 21/06/2010, pela prática, em 20/05/2010, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento;
- por acórdão transitado em julgado em 04/05/2011, pela prática, em 07/05/2008, de um crime de ofensa à integridade física simples, um crime de tráfico de estupefacientes e dois crimes de roubo, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento;
- por acórdão transitado em julgado em 23/07/2012, pela prática, em 06/2010, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 5 anos de prisão, posteriormente declarada extinta por cumprimento, com efeitos a contar de 01/10/2017; e
- por sentença transitada em julgado em 10/04/2013, pela prática, em 08/03/2008, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um crime de injúria agravada, na pena de 100 dias de multa e 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, ambas posteriormente declaradas extintas pelo cumprimento.
2.2. Factos não provados
Não se provou que:
1- O arguido A afirmou a C "já estavas no chão todo partido".
2- A arguida B afirmou a C "o que é queres ó careca do caralho".
2.3 Motivação da decisão de facto
A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada resultou do teor da documentação junta aos autos, designadamente, do auto de notícia de fls. 3/4, conjugado e complementado com as declarações prestadas pelos arguidos e os depoimentos prestados em audiência pelos agentes da PSP C, D e E, conjugados entre si, apreciados criticamente e à luz das regras de experiência comum.
Os arguidos optaram ambos por prestar declarações quanto aos factos que lhes eram imputados, mencionando, em síntese, reconhecer apenas terem sido abordados pelo agente da PSP C e, posteriormente por outros elementos da PSP nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação, mas não se apercebendo inicialmente que aquele era agente da autoridade, uma vez que apenas avistaram uma viatura particular a persegui-los após o arguido ter acelerado para passar um sinal de trânsito luminoso que estava amarelo, sendo apenas posteriormente, quando o respectivo condutor saiu do carro, que viram que C estava fardado como agente da PSP.
De resto, quanto ao mais, invocaram que não afirmaram qualquer das expressões que lhes são imputadas, quer a C quer a outros elementos da PSP, desconhecendo o motivo da respectiva detenção porquanto o arguido desde logo acedeu ao pedido daquele para apresentar os documentos de identificação e da viatura, sendo os arguidos surpreendidos com a voz de detenção subitamente dada por C ao arguido A.
Sucede que tais declarações dos arguidos não lograram obter o convencimento do Tribunal, nomeadamente considerando que se patenteou, da parte de ambos, um discurso bastante agitado, nervoso e eminentemente desresponsabilizante, o qual, de resto, não se mostrou conforme às regras da experiência e da lógica e foi substancialmente contrariado pelos depoimentos dos agentes da PSP envolvidos na sua abordagem e fiscalização.
Com efeito, estes apresentaram depoimentos espontâneos, fluidos, coerentes e consistentes e essencialmente coincidentes entre si, corroborando de modo significativo o teor do auto de notícia junto aos autos no que atém à postura então evidenciada por ambos os arguidos e confirmando as expressões proferidas pela arguida B em direcção a todos, incluindo C.
Por seu turno, este último, pese embora não ter confirmado a totalidade das expressões proferidas pelos dois arguidos no momento da abordagem inicial que lhes realizou ainda sozinho, confirmou o proferimento das que se deram como provadas nesse âmbito, bem como esclareceu as circunstâncias que motivaram a referida abordagem, na sequência da viatura em que os arguidos seguiam ter ultrapassado um sinal de trânsito luminoso que apresentava cor vermelha, colocando em risco os demais utentes da via.
Por conseguinte e denotando-se ser inverosímil que um agente da PSP optasse por efectuar tal abordagem na ausência da verificação de qualquer infracção ou suspeita da respectiva prática relativamente a pessoas que desconhecia, mostrou-se igualmente inverosímil que os arguidos não soubessem o risco criado pela condução realizada pelo arguido.
Por outro lado, mostrou-se igualmente inverosímil que na sequência da abordagem realizada por C e perante a circunstância de este estar devidamente fardado e ter anunciado a sua qualidade de agente da PSP, os arguidos nada tivessem dito ou feito que justificasse a respectiva detenção, nomeadamente a do arguido A ocorrida ainda no local dos factos.
 Aliás, antes se revelou compatível com as regras da experiência e da lógica que tal detenção se deveu à conduta dos arguidos e, em especial, por via da natureza ameaçadora e insultuosa das expressões que dirigiram a C.
E, pelo tanto, mostrou-se ao Tribunal que, como já se disse, os arguidos, em audiência, apenas procuraram fazer vingar uma versão factual que sabiam não corresponder à verdade, procurando evitar a respectiva responsabilização criminal.
Em suma os depoimentos prestados pelos mencionados agentes da PSP, em adverso das declarações dos arguidos, mereceram a credibilidade do Tribunal e, portanto, atento o contexto probatório formado, resultou como provada a factualidade constante dos factos provados, no sentido em que o foi.
Já a factualidade relativa à actual condição económica, social e profissional dos arguidos resultou provada à luz das declarações que optaram por prestar também nessa parte e que se mostraram genericamente credíveis.
Quanto aos registos criminais dos arguidos, o Tribunal teve em conta o teor dos seus CRC's juntos aos autos.
3. Enquadramento jurídico-penal
3.1. Dos crimes de ameaças agravadas
Imputa-se aos arguidos, além do mais, a prática, como autores materiais, cada um, de um crime de ameaças agravadas, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea c), ambos do C. Penal.
Dispõe o artigo 153º, nº 1, do C. Penal que "Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.".
Por sua vez, estipula a alínea a) do nº 1 do artigo 155º do C. Penal que, que quando os factos previstos no referido artigo 153º, nº 1, forem realizados "Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos
E a alínea c) do mesmo preceito legal, que quando os factos previstos no referido artigo 153º, nº 1, forem realizados "(...) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas (...) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias (...)”.
Ameaçar é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro, de modo a que esse anúncio provoque receio, medo ou inquietação ou que lhe prejudique a sua liberdade de determinação.
Como salienta FIGUEIREDO DIAS, "(...) o que se exige, para o preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação (...)" - cf. Acta nº 45, Comissão Revisora do Código, p. 500.
Do exposto, resulta que o crime se consuma logo que a ameaça atinge o ofendido e lhe causa medo, intranquilidade ou prejuízo na sua liberdade de determinação.
Medo é o temor ou receio de que o mal ameaçado ou prometido venha efectivamente a acontecer. Por seu turno, inquietação consiste na intranquilidade, no desassossego que a ameaça provoca no destinatário.
E como ensina TAIPA DE CARVALHO, in "Comentário Conimbricense ao Código Penal", tomo I, p. 348, "(...) O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico- mentais da pessoa ameaçada (relevância das "sub capacidades " do ameaçado). Uma vez que o actual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem se exige a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é a de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado.".
Por outro lado, importa referir que o crime de ameaça, após a Revisão de 1995 ao C. Penal, deixou de ser um crime de resultado e de dano, passando a crime de mera acção e de perigo.
Sendo que para a respectiva verificação é necessário a existência do carácter futuro do mal anunciado. Caso a ameaça seja iminente, estaremos já perante tentativa ou início de execução do crime e a liberdade de determinação nunca chega a ser afectada.
"Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois, que nesse caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal (...)" - cf. "Comentário Conimbricense ao Código Penal", Tomo I, p. 343.
In casu, atenta a factualidade dada como provada, constata-se ter-se demonstrado que em direcção ao agente da PSP C, o arguido A dirigiu-lhe, em voz alta, as expressões "se fosse antes tu ias ver o que te ia acontecer", "eu conheço-te?" e "tu vais ver o que te vai acontecer a ti e ao teu carro".
Resulta, assim, no entender do Tribunal, que a conduta do arguido, ao proferir tais expressões ao referido agente da PSP, foi, em abstracto, adequada a causar medo ao seu destinatário.
E assim é por força da adequação abstracta de tais expressões para o efeito, tendo em conta que foi dita por alguém que, na data, se encontrava revoltado com a actuação policial que lhe estava a ser movida e, por via de tais expressões, visou prometer represália ao agente da PSP ofendido nos autos.
Ao que acresce que a gravidade de tais expressões e o modo sério como foram ditas, mostram, também, a idoneidade necessária para o medo que visavam instilar.
E, estando provado que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, no intuito de, com as palavras proferidas causar temor e medo ao ofendido, conduta que sabia ser proibida, terá que se concluir que o arguido actuou com dolo directo.
Assim, verifica-se que o arguido ameaçou o ofendido, como quis e conseguiu, ciente da qualidade de agente da autoridade daquele, (cf. artigo 132º, nº 2, alínea l), do C. Penal), pelo que se conclui que a sua conduta, nesta parte, se subsume no tipo de crime de ameaça agravada que lhe era imputado.
Por outro lado, no que atém à arguida B não resulta dos factos provados que a mesma tenha proferido qualquer expressão de cariz ameaçador, pelo que, naturalmente, sem necessidade de ulteriores considerações, importa concluir pela sua absolvição nesta parte, o que se determina.
3.2. Do crime de injúrias agravadas
Imputa-se ainda aos arguidos a prática, a cada um, de um crime de injúria agravada.
O crime de injúria está previsto no artigo 181º do C. Penal, inserido no capítulo destinado aos crimes contra a honra e visa proteger a dignidade individual do cidadão.
Preceitua o nº 1 da citada disposição legal que "quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias".
São pressupostos do crime de injúrias: um elemento objectivo, concretizado na imputação directa ou insinuada, i.e. dirigida sob a forma de suspeita, de facto (visto como dado real da experiência) ou palavras, ofensivos da honra ou consideração de outrem; e, no campo do elemento subjectivo do tipo, um dolo genérico, não se exigindo, portanto, que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando estar ciente que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir - v., por todos, Acórdãos da Relação de Coimbra de 12/07/2000, in CJ XXV, 4, 46; de 25/02/98, in CJ XXIII, 1, 57; e de 02/10/96, in BMJ 460, 818.
Neste tipo de ilícito, protege-se a dignidade pessoal do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas - cf. neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 26/10/2000, in CJ, Ano XXV, Tomo IV, 155.
Por outro lado, uma das características da injúria é a sua relatividade, ou seja, o carácter injurioso de determinada palavra ou acto é indissociável do local ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre e do modo como ocorre. Assim, a "injúria" também não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, comportamentos que, em si, apenas podem traduzir falta de educação.
 Injúria é, assim, a manifestação, por qualquer forma de expressão do pensamento, que importe ofensa, ultraje, insulto contra outrem.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, o artigo 181º exige o dolo, em qualquer uma das suas manifestações, o que significa que o agente agiu com o propósito de praticar este tipo de crime.
Da factualidade provada consta que a arguida B, em tom de voz alto, apelidou o agente da PSP C de "otário", o que fez com o propósito de atingir a honra e consideração pessoal e profissional do mesmo, sabendo tratar-se de agente da autoridade no exercício das suas funções.
Tal circunstancialismo é suficiente para considerarmos que se tratou de expressão que colocou em causa a dignidade e o profissionalismo daquele como agente de uma força policial, de modo susceptível de ofender a respectiva honra e consideração.
Deste modo, não temos dúvidas de que se encontra plenamente preenchido tal tipo de ilícito criminal relativamente à arguida.
Acresce ainda que, o artigo 184º do C. Penal estabelece uma agravação à pena prevista no artigo 181º, no caso da vítima ser uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.
Assim, estando presentes os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, assim como a verificação dos pressupostos para aplicar a agravação constante do artigo 184º, não restam dúvidas de que a arguida cometeu o crime de injúria agravada que lhe era imputado.
Por outro lado, no que atém ao arguido A não resulta dos factos provados que tenha proferido qualquer expressão de cariz insultuoso, pelo que, naturalmente, sem necessidade de ulteriores considerações, importa concluir pela sua absolvição nesta parte, o que se determina. (…).”
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8. Apreciando, agora, as questões que são objecto dos recursos em causa:
- Erro notório na apreciação da prova:
Vem a recorrente invocar que se verifica o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do nº 2 do artigo 410.º do CPP, pois, aos olhos de um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se percebe que o tribunal recorrido violou as regras da experiência, ou efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, na medida em que a expressão “otário”, por si proferida, no contexto em que o foi, em relação a um agente da PSP, que se encontrava no exercício das suas funções, visava directa e essencialmente a acção do mesmo, enquanto agente da PSP, no exercício da sua atividade de polícia, e não a pessoa deste, o que vale por dizer que a conduta da arguida se situou no âmbito da crítica objetiva, relativamente à acção de um agente da PSP, no exercício da sua função de segurança pública.
Concluiu que, tal expressão, embora reprovável, reveladora de falta de polidez e de grosseria, não ultrapassa, contudo, o limiar da relevância penal.
Considerou, ainda, a recorrente que, da factualidade dada como provada, não resulta que tivesse agido com consciência da ilicitude penal, ou seja, que soubesse que a sua conduta constituía um crime.
Apreciando:
O erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do art.º 410º do CPP, caracteriza-se como o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum (vide neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-04-00, no B.M.J. n.º 496, pág.169).
No caso, a alegação da arguida, no sentido de considerar que o tribunal a quo deu relevância penal a uma mera falta de cortesia [quando vem afirmar que apelidar de “otário” um agente da PSP, quando este se encontrava no exercício das suas funções, não integra o crime de injúria] não põe em causa a apreciação da prova, em nenhum dos seus segmentos, nem o exercício crítico da prova efectuado, de forma lógica, racional e fundamentada, pelo tribunal recorrido, constituindo antes a invocação de um erro de direito.
Na verdade, do texto da decisão recorrida, tanto quanto à fixação da matéria provada e não provada, como na sua fundamentação, não se vislumbra, nem a recorrente aponta, concretamente, qualquer erro notório na apreciação da prova, pois a divergência da arguida funda-se unicamente na apreciação de direito, ou seja, na subsunção dos apurados factos ao direito, efectuada pelo tribunal a quo, por da mesma discordar, o que é totalmente diverso do regime dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP.
Nestes termos, e perscrutando a decisão recorrida, facilmente se observa não ser possível surpreender nela qualquer asserção contrária às regras da experiência comum, ou qualquer juízo ilógico, arbitrário ou contraditório, pelo que é manifesta a inexistência do apontado vício de raciocínio ou de violação das regras de experiência comum, que regem o princípio da livre apreciação da prova.
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Cabe, agora, apreciar a sustentação da arguida, quando vem afirmar que apelidar um agente da PSP, no exercício das suas funções, de “otário” constitui uma mera “deselegância” ou “desconsideração”, incapaz de integrar o crime de injúria, a que acresceria uma falta de consciência da ilicitude penal.
Apreciando:
Para que haja consumação do crime de injúria, ou do crime de difamação, não é preciso que o agente esteja ciente da falsidade da imputação, muito menos que aja com intuito de injuriar ou difamar, pois, como é sabido, os crimes contra a honra bastam-se com o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades - directo, necessário ou eventual -, ou seja, com a vontade de o agente proferir as afirmações, sabendo, ou apenas admitindo, que as mesmas são objectivamente atentatórias da honra do visado, ou que, necessariamente, terão esse efeito.[1]
Como ensina Faria e Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 602 e sgts., com este tipo legal de crime protege-se a honra, encarada numa dupla perspectiva, em que se combina uma concepção fáctica, subjectiva e objectiva, com uma concepção normativa, pessoal e social.
A honra é, assim, vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
O direito à honra e consideração constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade, tem consagração constitucional e noutras Leis Fundamentais, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH).
Honra e consideração, no entanto, são conceitos que não se confundem.
A honra tem componente individual ou subjectiva, podendo definir-se como o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua inviolável dignidade, atributo inato de qualquer pessoa. A consideração envolve uma componente social, devendo entender-se como a reputação que a pessoa tem no seio da comunidade em que se insere.
Como escreve o Prof. Beleza dos Santos, in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, n.º3152, pág. 167/168, a honra consubstancia-se “naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração é “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo”.
O art.º 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao bom nome e reputação, entre os vários direitos de personalidade, que representa um lado individual (o bom nome), e um lado social (a reputação), cujo conteúdo é constituído basicamente pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja, a pretensão de não ser vilipendiado, ou depreciado no seu valor, aos olhos da comunidade, independentemente do reconhecimento real, ou merecido de que uma pessoa goza ou deve gozar (cf. Augusto Silva Dias, “Alguns aspetos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias”, AAFDL-1989, p.p. 16-24).).
No caso, a expressão, “otário[2], por duas vezes, proferida pela arguida, em relação a um agente da PSP, que se encontrava no exercício das suas funções, nos termos dados como provados, possui um carácter manifestamente pejorativo e depreciativo da pessoa daquele, situando-se no puro plano pessoal, para além de se reportar ao seu carácter, por forma de o enxovalhar e humilhar, sendo manifestamente atentória da honra e consideração da pessoa daquele, em concreto, estando para além de qualquer crítica à forma como aquele exerce as suas funções, para além de ser de todo despropositada, imprevista e desnecessária.
Na realidade, a arguida, com tal expressão, não se reporta a quaisquer comportamentos, declarações ou argumentos utilizados pelo ofendido, enquanto se encontrava no exercício das suas funções.
A expressão utilizada pela arguida foi dirigida, em concreto, à pessoa do agente da PSP, exprimindo juízos de apreciação e de valoração pessoais depreciativos, que ultrapassam o âmbito da crítica sustentada, sendo desnecessária para o exercício de um qualquer direito, designadamente o de realizar qualquer interesse legítimo, ou de informação, ou de crítica, integrando, assim, tal expressão as restrições elencadas no art.º 10º nº 2 da CEDH, ao extravasar largamente aquilo que se entende por liberdade de expressão, sendo inadmissível que se trate alguém por “otário”.
Esta é uma conduta perante a qual a sociedade não fica indiferente, reclamando a tutela que a confiança nos agentes da autoridade nos merecem.
Mais se provou que a arguida, ao proferir as palavras acima referidas em e) e g), da matéria de facto dada como provada, actuou com o propósito concretizado de ofender C na respectiva honra e consideração, que lhe eram devidas, como pessoa e agente de força de segurança policial, sabendo aquelas idóneas a alcançar tal resultado, o que quis e conseguiu, agindo de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pelo que, também, se mostra preenchido o elemento subjectivo do crime, a título de dolo directo.
Não é, também, atendível a pretensão da recorrente, quando vem sustentar uma pretensa falta de consciência da ilicitude penal.
O art.º 17º do CP dispõe sobre a relevância do erro sobre a ilicitude:
1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”
Como refere a Professora Teresa Beleza in “Direito Penal”, 2.º vol., na problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito e, em consequência disso, intentar verificar se assim era ou não” (...), concretamente, informar-se (...). E isto porque (...) “haverá que evitar o «amolecimento ósseo» do Direito Criminal”. Por isso, “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência” – mesma Autora in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, a p. 71.
Na verdade, não basta a afirmação da falta de consciência da ilicitude, sendo sempre necessário averiguar se o erro do agente lhe é, ou não, censurável.
A falta de consciência da ilicitude do facto, ou erro sobre a ilicitude, traduz a falta de consciência de uma proibição jurídica, não por referência ao conteúdo do tipo legal, mas por referência à capacidade de compreensão, pelo agente, da proibição da sua conduta, o que, no caso, é manifestamente improcedente, por estarmos perante facto típico, cuja punibilidade se pode e deve, desde logo presumir, conhecida de todos, na medida em que a arguida, que até possui, como habilitações literárias, o 11º ano de escolaridade, não podia ignorar que chamar de “otário” um agente da PSP, no exercício das suas funções, integra o tipo legal de crime de injúria, não tendo, por isso, fundamento a invocada falta de consciência da ilicitude penal.
Preenchida, igualmente, se mostra a circunstância qualificativa invocada, prevista no art.º 184º do C.P. - agravação da pena prevista no art.º 181º, no caso de a vítima ser uma das pessoas referidas na al. l) do nº 2 do art.º 132º do CP, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.
Em suma, considerando a factualidade dada como provada e sem que se verifique qualquer causa justificativa da actuação, ou de exclusão da ilicitude ou da culpa, designadamente nos termos do art.º 16º, 17º, 31º nº 2 al. b) do Código Penal, ou qualquer violação do art.º 181.º do mesmo diploma legal, ou dos art.ºs 26º, 37º ou 18º da Constituição da República Portuguesa ou do Art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, dúvidas não existem que se impõe a condenação da arguida, pela prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º e 184º do Código Penal, termos em que, também, nesta parte, improcede o recurso.
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- Decisão:
Pelo exposto, os Juízes Desembargadores desta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, B, confirmando-se a sentença recorrida
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 (quatro) UCS.

(Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto)
Lisboa, 7 de Março de 2023
Anabela Simões Cardoso
Jorge Antunes
Sandra Oliveira Pinto
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[1]Cf. o Acórdão do STJ, de 03-06-2009, Proc. n.º 617/09 - 5.ª Secção Rodrigues da Costa (relator) Arménio Sottomayor: “I -O crime de difamação, tendo como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria – a honra e consideração –, distingue-se desta por a imputação de factos ou utilização de expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que, na injúria, a imputação ou juízo ofensivos da honra são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (art.ºs 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do CP).
II - Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano.”
[2] "Otário", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ot%C3%A1rio, é aquele que é ingénuo, fácil de ser enganado, lorpa, tolo, trouxa, que ou o que denota falta de inteligência, estúpido, idiota, parvo, pateta.