Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6041/19.7T9LSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ACUSAÇÃO
NULIDADE
ACUSAÇÃO PARTICULAR
ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Nos termos do nº 3, do artigo 285º, do CPP, à acusação particular aplica-se o disposto nos nºs 3, 7 e 8 do artigo 283º, do mesmo Código, pelo que a acusação particular se tem de fazer “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e bem assim “a indicação das disposições legais aplicáveis.
- A cominação de nulidade feita no artigo 283º CPP visa não deixar seguir para a fase de julgamento uma acusação deficiente e trata-se de uma nulidade que deve ser arguida perante o magistrado que a praticou (que deduziu a acusação), com admissibilidade de reclamação para o superior hierárquico.
- Não sendo arguida nos termos legais, e não tendo sido requerida a instrução, o processo segue para a fase de julgamento, onde as deficiências da acusação podem ser conhecidas oficiosamente no momento processual a que corresponde o artigo 311º, do CPP, já não enquanto nulidades, mas enquanto circunstâncias susceptíveis de conduzir à rejeição da acusação por manifestamente infundada.
- Assim, o conhecimento, pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal, da nulidade da acusação, enquanto tal, na fase de instrução, logo após a declaração da sua abertura, não se mostra admissível.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o NUIPC 6041/19.7T9LSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal – Juiz 4, foi proferido, aos 01/02/2022, despacho pelo Mmº JIC que declarou nula a acusação particular deduzida pela assistente “SENTIR LISBOA – Mediação Imobiliária, Lda.”, ao abrigo do estabelecido no artigo 283º, nº 3 ex vi artigo 285º, nº 3, do CPP.
2. A assistente não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. É errada a interpretação e aplicação, feita na decisão recorrida, da norma do artigo 283, n.º 3 do CPP daí tendo resultado na (errada e indevida) decisão de declaração de nulidade da Acusação Particular deduzida pela Recorrente.
2. Mesmo que, por hipótese, seja esse o vício assacado à Acusação Particular, sempre se dirá que o Mm.º JIC confunde a existência "de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança" com o mérito dessa mesma imputação.
3. No caso em apreço, a Acusação Particular formulada pela Recorrente, ainda que ferida de uma das nulidades previstas no artigo 283, n.º 3, mantém o seu efeito útil, por força do princípio da conservação dos atos imperfeitos.
4. A existência na acusação uma alegada deficiência formal, será sempre passível de correção sem que seja violado o princípio da independência do juiz em relação às partes.
5. Quanto a esta irregularidade, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a retificação da Acusação Particular e que se pronuncie sobre o objeto da instrução, proferindo despacho de pronúncia ou não pronúncia.
6. Ainda que assim não se entenda, a Acusação Particular procede à descrição da factualidade suscetível de integrar os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva.
7. Nos artigos 64.º a 106.º da Acusação Particular, a ora Recorrente procede à narração fáctica do comportamento do Arguido no decurso da relação negociai mantida, descrevendo pormenorizadamente e com recurso a transcrições de emails, as inúmeras queixas apresentadas perante um conjunto considerável de entidades.
8. Conforme descrito nos artigos 43.º a 63.º, tais queixas afiguram-se como infundadas face ao circunstancialismo negociai verificado, uma vez que o Arguido incumpriu com a cláusula contratual a que estava adstrito e que o obrigava a restituir o montante entregue pelos Promitentes-Compradores a título de sinal.
9. Precisamente por carecerem de fundamento jurídico é que se depreende o intuito depreciativo do Arguido ao formular as referidas queixas contra a Recorrente junto daquelas entidades.
10. Por sua vez, nos artigos 107.º a 113.º da Acusação Particular, a Recorrente procede ao enquadramento jurídico-penal das condutas do Arguido, integrando-as no tipo legal de crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelo artigo 187 do CP.
11. Ainda assim, não se coibiu de o fazer atuando de forma livre, esclarecida e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punível por Lei - conforme consta do artigo 113.º da Acusação Particular.
12. Mesmo na hipótese de se considerar a descrição fáctica e respetivo enquadramento jurídico formulados na Acusação Particular insuficientemente taxativos, o que não se concede, sempre se dirá que, nos termos da al. b) do artigo 283, n.º 3 do CPP, basta uma narração sintética dos factos que são imputados ao Arguido.
13. Consequentemente, por inexistir a apontada nulidade da Acusação Particular deduzida pela Recorrente, impõe-se a pronúncia do Arguido, sob pena de violação do disposto nos artigos 284 e 285 do CPP e 187 do CP.
NESTES TERMOS:
1) Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, substituindo-se o despacho recorrido por outro que pronuncie o Arguido AA nos precisos termos em que estes foram acusados;
Ou então, caso assim se não entenda (o que por mero dever de patrocínio se admite),
2) Deve o Tribunal ad quem notificar a Recorrente para proceder ao aperfeiçoamento da sua Acusação Particular.
3. O recurso foi admitido por despacho de 11/03/2022, a subir imdiatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
4. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela substituição do despacho recorrido por outro que “abra a instrução e determine o seu prosseguimento, nos termos dos artºs 287º e seguintes do CPP.”
5. Também o arguido AA apresentou resposta à motivação de recurso, concluindo por não merecer este provimento.
6. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos (transcrição):
1. O Recurso
Não se vislumbra circunstância que obste ao conhecimento do recurso, porque tempestivo e interposto por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir.
Dever-se-ão manter o regime e efeito que lhe foram fixados e creio não ocorrer fundamento conducente a rejeição.
O Recurso vem interposto pela Assistente “Sentir Lisboa - Mediação Imobiliária, Lda.”, do despacho proferido em 01.02.2022, no Processo de Instrução n.º 6041/19.7T9LSB do Juízo Central de Instrução Criminal de Lisboa J4, no qual foi decidido:
“(...) Pelo exposto, declaro nula a acusação particular deduzida, nos termos do artigo 283º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi 285º, n.º 3, do mesmo Código. (...)”.
O recurso interposto pela Assistente visa abordar as seguintes questões:
A Errada interpretação da norma contida no art.º 283.º, n.º 3 do C.P.P.
2. Posição do Ministério Público na 1.ª Instância
A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu à motivação de recurso interposto nos termos constantes nos autos, defendendo o provimento do mesmo.
Invocou, em suma, que:
“(...) 1- A acusação em apreciação contem os elementos necessários ao preenchimento dos tipos legais de crime de ofensa a pessoa colectiva, órgão ou organismo p. e p. no artº 187º do CP;
2- A acusação particular em apreciação, não padece de nulidade por violação do nº 3 do 283 do CPP,
3- A decisão recorrida baseia-se num juízo previamente formulado sobre o "mérito da acusação " antecipando-se ao julgamento e à prova que se vier a produzir, mas a decisão sobre a natureza de tais afirmações, isto é, se estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo cabe ao "julgamento " e ao Juiz de Julgamento e não ao juiz de Instrução, cuja competência se insere na fase de instrução com a abertura ou não da mesma, sua realização e culminando com decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia;
4- Ao declarar a nulidade da acusação, o Mmº JIC violou o disposto no artº187º do C.P e fez uma errada interpretação dos artºs 308º nº 1 e 283º nº1 e nº3 e 285º nº 3 do C.P.Penal.
5- O despacho de nulidade da acusação deve, consequentemente, ser substituído por outro que abra a instrução e determine o seu prosseguimento, nos termos dos arts 287º e seguintes do CPP.”.
3. Posição do Ministério Público no TRL
i. Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a resposta da digna magistrada do Ministério Público junto da 1.a instância, mas acrescentaríamos mais o seguinte:
a. Como se constata através da referência Citius n.º ..., o requerimento de abertura de instrução foi formulado pelo arguido AA, requerimento onde o mesmo peticiona a prolação de um despacho de não pronúncia, por, no seu entender, i) não estar demonstrado nos autos ter sido o arguido o autor dos email’s mencionados na acusação particular, ii) a acusação particular não conter o texto integral desses email’s juntos aos autos e iii) o conteúdo desses emaiEs não integrar o ilícito tipificado no art.º 187.º do Código Penal;
b. Como se constata através da referência Citius n.º ..., em 01.02.2022, o Mmo. Juiz de Instrução proferiu o seguinte despacho “I. Abertura de instrução. Por ser admissível, ter sido requerida tempestivamente e por quem para tal tem legitimidade, nos termos do disposto no art.º 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 1, al. A), do CPP, declaro aberta a instrução requerida pelo arguido AA/...)”;
c. No mesmo despacho, e sob o ponto II., o Mmo. Juiz de Instrução decide declarar “(...) nula a acusação particular deduzida, nos termos do artigo 283º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi 285º, n.º 3, do mesmo Código. (...)”.
d. Ou seja, o Mmo. Juiz de Instrução, na decisão ora posta em crise, sem realizar qualquer diligência de instrução, sem designar data para o debate e sem que este se realizasse, colocou termo à instrução “rejeitando” a acusação particular por a mesma padecer de nulidade, que não identificou e, inclusivamente, pronunciou-se sobre o mérito da acusação, ao assumir uma posição jurídica quanto ao direito de liberdade de expressão e ao direito de ação.
e. Ora, a instrução é formada pelo conjunto dos atos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado.
f. É o que decorre do art.º 289.º, n.º 1, do C.P.P.;
g. E bem assim, do art.º 297.º, n.º 1 do C.P.P., mesmo quando não há lugar à prática de atos de instrução;
h. Apenas depois de realizado o debate é que o Tribunal de Instrução profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia e é neste despacho que este Tribunal decide, em primeiro lugar, das nulidades ou de questões prévias ou incidentais de que deva conhecer - art.º 307.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1 e 3, ambos do C.P.P.;
i. No caso, o Mmo. Juiz de Instrução a quo, ao proferir a decisão recorrida, preteriu o ato de instrução obrigatório de debate instrutório e impediu, desse modo, os intervenientes processuais de exercerem o contraditório e o direito de defesa dos respetivos pontos de vista jurídicos;
j. O Tribunal a quo conheceu das eventuais nulidades em momento processual que não era o próprio.
k. Ao atuar desta forma, o Tribunal a quo proferiu uma decisão que violou o disposto nos art.º 286.º, n.º 1, 297.º, n.º 1, 307.º, n.º 1, e 308.º, n.ºs 1 e 3, todos do CPP e também os art.º 2.º e 20.º, n.º 1 e 5, da C.R.P.
l. A decisão em crise padece de nulidade insanável, nos termos do disposto no art.º 119.º, al. d), do C.P.P., uma vez que, tendo sido requerida a fase facultativa de instrução, não basta que o Mmo. Juiz de Instrução a declare aberta, num simples despacho de um parágrafo, para que possamos concluir que a mesma se realizou;
m. A consequência da nulidade insanável ocorrida é a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que determine a realização dos atos de instrução que tiverem sido requeridos, sendo o caso, ou que designe data para a realização do debate instrutório, onde, oralmente, irão ser debatidas as questões controversas constantes do requerimento de abertura de Instrução.
ii. Em conformidade, e embora com outro fundamento, somos de parecer que ao Recurso interposto pela Assistente “Sentir Lisboa - Mediação Imobiliária, Lda.” deve ser concedido provimento.
7. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
8. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Se a acusação particular apresentada pela assistente contém a narração dos factos que fundamentariam a aplicação de uma pena ao arguido.
Admissibilidade do aperfeiçoamento da acusação particular apresentada pela assistente.
2. Elementos relevantes para a decisão
2.1 Aos 02/12/2021, a assistente “SENTIR LISBOA – Mediação Imobiliária, Lda.” deduziu acusação particular contra o arguido AA imputando-lhe o que, no seu entender, são factos integradores de um crime p. e p. pelo artigo 187º, nº 1, do Código Penal.
2.2 Em 07/12/2021, o Ministério Público, ao abrigo do estabelecido no artigo 285º, nº 4, do CPP, acusou o arguido pelos mesmos factos.
2.3 Em 20/01/2022, o arguido veio requerer a abertura da instrução, impetrando fosse proferido despacho de não pronúncia.
2.4 Em 01/02/2022, o Mmº JIC despachou como segue:
“Abertura da Instrução
Por ser admissível, ter sido requerida tempestivamente e por quem para tal tem legitimidade, nos termos do disposto no artº 286, nº 1, 287, nº 1, al. a), do CPP, declaro aberta a instrução requerida pelo arguido AA.”
2.5 Nessa mesma data foi lavrada a decisão recorrida, que tem o seguinte teor (transcrição):
I.
Abertura de instrução.
Por ser admissível, ter sido requerida tempestivamente e por quem para tal tem legitimidade, nos termos do disposto no artº 286, nº 1, 287, nº 1, al. a), do CPP, declaro aberta a instrução requerida pelo arguido AA.
II.
Nulidade da acusação particular
A assistente Sentir Lisboa - Mediação Imobiliária, Lda., S.A, deduziu acusação particular contra o arguido AA, pela prática de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187º, n.º 1, do Código Penal, acusação esta que foi parcialmente acompanhada pelo Ministério Público.
A acusação particular deve conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido incluindo, se possível, o lugar e o tempo da respectiva prática; ou seja, a acusação deve conter a descrição de factos que preencham alguma incriminação.
Ora a acusação particular apenas descreve um conflito negociai e a pretensão de uma das partes quanto ao desenvolvimento das respectivas relações negociais.
Ainda que se possa pretender a invocação de má-fé no desenvolvimento de tais relações, os termos expostos (obviamente apenas releva o que se encontra expressamente descrito no texto da acusação particular) reflectem a posição negocial das partes, traduzindo a realização de juízos negociais quanto a um assunto concreto e a sua opinião, incluindo os argumentos jurídicos que decidiu assumir, não integrando a propalação de factos falsos, mas da opinião negativa quanto à assistente, que esta não aceita.
Mas isso não se enquadra na incriminação do art. 187.º do Código Penal.
Pelo que não se descrevem os necessários factos integradores da responsabilidade criminal da arguida.
Se qualquer discordância quanto aos termos de um negócio, que implicasse a opinião de uma das partes de um juízo extremo quanto à posição da contraparte fosse susceptível de integrar tal incriminação, estaríamos perante uma intolerável restrição à liberdade de expressão (art. 37.º da CRP) e ao próprio direito de acção.
De acordo com o texto da acusação particular o arguido limita-se a culpar a assistente pela forma como o negócio se desenrolou, de forma muito peremptória e negativa, mas não lhe imputa a prática de factos falsos (independentemente de se determinar como se desenvolveu a relação negocial).
Pretendendo a assistente a declaração de que nada deve ao arguido ou que cumpriu o contracto referido possui os meios de litigância cível onde tal pode eventualmente ser declarado. A tutela penal apenas se pode referir a ofensas graves de interesses fundamentais.
Pelo exposto, declaro nula a acusação particular deduzida, nos termos do artigo 283º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi 285º, n.º 3, do mesmo Código.
Custas pela assistente (art. 515.º, n.º 1, f), do Código de Processo Penal).
Notifique.
Apreciemos.
Resulta do nº 3, do artigo 285º, do CPP, que à acusação particular se aplica o disposto nos nºs 3, 7 e 8 do artigo 283º, do mesmo Código.
De onde, na acusação particular se tem de fazer “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e bem assim “a indicação das disposições legais aplicáveis.”
Ou seja, impõe-se que contenha os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo (ou tipos) criminal que o assistente considera terem sido preenchidos.
Conforme resulta da decisão recorrida, entendeu o Mmº JIC que a acusação particular apenas descreve um conflito negocial e a pretensão de uma das partes quanto ao desenvolvimento das respectivas relações negociais.
Ainda que se possa pretender a invocação de má-fé no desenvolvimento de tais relações, os termos expostos (obviamente apenas releva o que se encontra expressamente descrito no texto da acusação particular) reflectem a posição negocial das partes, traduzindo a realização de juízos negociais quanto a um assunto concreto e a sua opinião, incluindo os argumentos jurídicos que decidiu assumir, não integrando a propalação de factos falsos, mas da opinião negativa quanto à assistente, que esta não aceita (…) Pelo que não se descrevem os necessários factos integradores da responsabilidade criminal da arguida (…) De acordo com o texto da acusação particular o arguido limita-se a culpar a assistente pela forma como o negócio se desenrolou, de forma muito peremptória e negativa, mas não lhe imputa a prática de factos falsos (independentemente de se determinar como se desenvolveu a relação negocial).
É certo que o Mmº JIC aduz também outra fundamentação que se confunde com uma apreciação de mérito (o que lhe está vedado, pois esta só poderia ter lugar no âmbito de despacho de pronúncia ou não pronúncia, como resulta do consagrado no artigo 308º, nº 1, do CPP), mas esta constitui obiter dictum. Quer dizer, argumentação acessória expendida para completar o raciocínio, mas que não desempenha papel fundamental na formação da decisão (são argumentos acessórios), mostrando-se dispensável tendo em conta a ratio decidendi, que é a não descrição dos factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos do tipo criminal imputado.
Vejamos então se esses factos se mostram narrados.
Estabelece-se no nº 1, do artigo 187º, do Código Penal: “Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido (…)”.
Como se assinala no Ac. R. de Lisboa de 16/03/2021, Proc. nº 2464/19.0T9LSB.L2-5, disponível em www.dgsi.pt, “o núcleo do bem jurídico que se quer proteger nesta incriminação prende-se, como ensina Faria Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, § 8 da anotação ao artigo 187.º, p. 782), com a “a ideia de bom nome” do sujeito passivo (que, desde a reforma de 2007, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é o organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação), bom nome que se assume «como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético-socialmente relevante».
Acrescenta o mesmo autor que tudo isto «nos faz ter como ponto de referência, para a compreensão e determinação do bem jurídico em estudo a ideia de exterioridade. O que conta, neste contexto, é a imagem real que os “outros” têm da pessoa colectiva. O seu prestígio, credibilidade e confiança dependem muito da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva ou instituição», acabando por concluir que é a «valoração que a comunidade faz da actuação» do sujeito passivo «que constitui a pedra angular para uma correcta e ajustada compreensão do bem jurídico em análise.»
Trata-se de um bem jurídico complexo - «mais do que poliédrico, um bem jurídico heterogéneo», nas palavras de Faria Costa -, englobando a credibilidade, o prestígio e a confiança do organismo, serviço, pessoa colectiva, instituição ou corporação, cujo significado se identifica com o do seu bom nome.”” – fim de citação
São elementos objectivos do tipo a afirmação ou propalação de factos inverídicos; que esses mesmos factos sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima; e que o agente activo não tenha fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros, sendo que o tipo de crime em questão supõe a imputação de factos inverídicos, não a formulação de juízos”, como cabalmente se esclarece no Ac. R. do Porto de 11/09/2013, Proc. nº 4581/10.2TAVNG.P1, que pode ser lido no mesmo sítio.
Pois bem.
Percorrendo a acusação particular formulada pela assistente e no que tange à afirmação ou propalação de “factos inverídicos”, diz-se de forma genérica que “resta-nos concluir que o arguido imputou à assistente factos ofensivos da sua credibilidade, prestígio e confiança desta, bem sabendo que são falsos”, mas ao longo dos 113 artigos por que se espraia a acusação, enunciando vicissitudes contratuais diversas e sucessivas, não concretiza que factos dos articulados (aliás, amalgamados com interpretações e opiniões da assistente), reputa como não correspondentes à realidade, o que é essencial para a subsunção nesse tipo criminal.
Pelo que, temos que concluir que da acusação particular apresentada não consta, efectivamente, a narração concretizada, ainda que sumária, da factualidade consubstanciadora dos elementos objectivos do tipo legal de crime imputado.
Só que, como se salienta no Ac. R. do Porto de 27/06/2012, Proc. nº 581/10.0GDSTS.P1, consultável em www.dgsi.pt, “o referido vício da acusação não provoca a sua nulidade, mas antes a sua improcedência. Será nula, nos termos do referido artigo 283º, nº 3, b), uma acusação que não contém a narração dos factos imputados ao arguido. Se a acusação contém a descrição desses factos e eles não constituem crime, porque deles não constam factos que consubstanciem um, ou mais, dos elementos constitutivos de um qualquer crime, a acusação será improcedente, e não nula.”
Isto até em paralelo com o estabelecido no artigo 311º, do CPP, porquanto uma acusação “que não contenha a narração dos factos” – nº 3, alínea b) – ou uma acusação em que os factos não constituem crime – nº 3, alínea d) – não enferma de nulidade, antes tem de ser rejeitada por manifestamente infundada.
Ou seja, entendendo o tribunal de 1ª instância existir uma insuficiência ou deficiência da narração de factos, teria de lavrar despacho de não pronúncia.
Lê-se, precisamente, no Ac. R. de Lisboa de 30/01/2007; Proc. nº 10221/2006-5, disponível no mesmo sítio, que “concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art. 308.º, n.º 1, in fine, do CPP.”
Até porque, a questão de saber se os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar a prática do crime imputado não integra uma “questão prévia” de conhecimento oficioso, mas precisamente o cerne da decisão de mérito da causa.
“A decisão sobre questões prévias visa o saneamento do processo, respeitante sobretudo à validade e regularidade da instância, sendo independentes da questão de mérito, ou melhor dizendo, visam remover os obstáculos que se opõem à decisão de mérito. E se o objecto da decisão instrutória é a acusação, esta pode ser nula, mas em razão da nulidade do processo ou por exemplo da ilegitimidade do MP ou do acusador, questões que serão previamente conhecidas para que se possa vir a proferir a decisão de mérito acerca da acusação.
Ora, terminada a instrução, a decisão instrutória pode consistir i) num despacho de pronúncia, se se concluir pela suficiência de indícios), ii) num despacho de não pronúncia que pode ser:
- despacho que conhece de nulidades, irregularidades ou pressupostos processuais que obstem ao conhecimento do mérito da causa; ou
- despacho que conclui pela insuficiência de indícios” – como se elucida no Ac. R. de Lisboa de 06/04/2016, Proc. nº 402/12.0TAPDL-A.L1-3, in www.dgsi.pt.
Pode então questionar-se qual o sentido e utilidade da cominação de nulidade que é feita no referido artigo 283º.
Visa não deixar seguir para a fase de julgamento uma acusação deficiente. Trata-se de uma nulidade sanável (porquanto o regime das nulidades apresenta-se sujeito aos princípios da legalidade e tipicidade, como resulta do artigo 118º, nº 1, do CPP, constituindo apenas nulidades insanáveis as que no artigo 119º se mostram elencadas ou as que, como tal, são cominadas em outras disposições legais) que deve ser arguida perante o magistrado que a praticou (que deduziu a acusação), com admissibilidade de reclamação para o superior hierárquico.
Não sendo arguida nos termos legais (e não tendo sido requerida a instrução) o processo segue para a fase de julgamento, onde as deficiências da acusação podem ser conhecidas oficiosamente no momento processual a que corresponde o artigo 311º, do CPP, já não enquanto nulidades, mas enquanto circunstâncias susceptíveis de conduzir à rejeição da acusação por manifestamente infundada.
Daí que, o conhecimento pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal, na fase de instrução (que no caso em apreço impetrada foi, como se disse, pelo arguido), logo após a declaração da sua abertura, da nulidade da acusação, enquanto tal, se não mostre admissível.
Termos em que, cumpre revogar o despacho recorrido, devendo prosseguir a instrução com observância da tramitação legalmente prevista no artigo 289º e segs., do CPP.
Face ao exposto, fica prejudicado o conhecimento da questão do convite ao aperfeiçoamento da acusação.

III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso pela assistente “SENTIR LISBOA – Mediação Imobiliária, Lda.” interposto, ainda que por fundamentos diferentes dos aduzidos e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, devendo o tribunal recorrido fazer prosseguir a instrução com observância da tramitação legalmente prevista no artigo 289º e segs., do CPP.
Sem tributação.

Lisboa, 21/06/2022
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário - artigo 94º, nº 2, do CPP).
Artur Vargues
Jorge Gonçalves