Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1305/06.2TBSCR-A.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: PARCELAS EXPROPRIADAS
DIREITO DE PROPRIEDADE
COLONIA
BENFEITORIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/REVOGADA
Sumário: Reconhecida a propriedade plena das parcelas expropriadas, na titularidade dos Requerentes tal direito de propriedade plena exclui logicamente a existência da colonia.

Por conseguinte, perante a propriedade plena titulada pelos Requerentes, não faz sentido afirmar a coexistência de qualquer direito de terceiros (colonos) referente a benfeitorias, no âmbito do incidente a que se refere o art.º 53 .º do Código das Expropriações.

SUMÁRIO: (elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


Nos presentes autos de expropriação litigiosa por utilidade pública em que é Expropriante SECRETARIA REGIONAL DO PLANO E FINANÇAS-DIRECÇÂO REGIONAL DOS ASSUNTOS FISCAIS e são Expropriados:
TURISMADEIRA CONSTRUÇÃO CIVIL PROMOÇÃO E EXPLORAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS, SA
JÁ (herdeiros representados por AT e ACT,
                             
Foi suscitado o incidente previsto no art.º 53.º do Código das Expropriações por:
MS e Outros

Alegaram, em síntese, que a propriedade dos prédios correspondentes aos artigos 301/101 e 301/100, da secção “H”, lhes pertence nos moldes reconhecidos na sentença proferida no âmbito do processo n.º 151/06.8TBSCR, no qual foi parte a Expropriada TURISMADEIRA.
Por sua vez, a expropriada TURISMADEIRA CONSTRUÇÃO CIVIL PROMOÇÃO E EXPLORAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS, S.A., de ora em diante designada abreviadamente de “Turismadeira”, veio dizer que é proprietária do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 27/110789, com a área total de 53.870 m2, não sendo os requerentes proprietários da parte expropriada.
A expropriante, por requerimento com a referência 1999467 (fls. 32 a 42 do presente apenso), refere que, à data da expropriação, o prédio expropriado era explorado em regime de colonia, sendo a “Turismadeira” conhecida como sendo titular da nua propriedade e que havia donos das benfeitorias. Mas que a sentença proferida no âmbito do processo n.º 151/06.8TBSCR, atesta que a propriedade do artigo 301/101 e a parte do artigo 301/100, da Secção “H”, pertence aos ora reclamantes.

Os reclamantes vieram responder à expropriada “Turismadeira” no sentido de somente haver um prédio inscrito na matriz cadastral sob o artigo 301/101 e outro sob o artigo 301/100, ambos da secção “H” e resultar da sentença proferida no processo n.º 151/06.8TBSCR a quem pertence a propriedade destes últimos.

Por despacho com a referência 43912499, foi decidido que estamos perante um incidente que se insere em regime específico referente a “caso de dúvidas sobre a titularidade de direitos, previsto no artigo 53.º do Código das Expropriações” e ordenado que o mesmo fosse tramitado por apenso, dando, consequentemente, origem ao presente apenso A.

Realizadas as diligências consideradas convenientes, o incidente foi julgado parcialmente procedente e consequentemente declarou-se “provisoriamente, nos termos do disposto no art.º 53.º n.º1 do Código das Expropriações de 1999, que a indemnização pela expropriação da nua propriedade das parcelas expropriadas 301/101 e 301/100, na totalidade de 1305 m2 pertence aos requerentes e a restante área de 485 m2 da parcela 301/100 pertence à expropriada “Turismadeira” no que concerne à nua propriedade, não havendo qualquer alteração no que concerne à titularidade da indemnização pelas benfeitorias.”

Inconformada com esta decisão, MS interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

A) A decisão a quo prejudica a recorrente na medida em que,
declarando provisoriamente que “a indemnização pela expropriação da nua propriedade das parcelas expropriadas 301/101 e 301/100, na totalidade de 1.305 m2, pertence aos requerentes” - entre os quais a ora recorrente – determinou, no entanto, não haver “qualquer alteração no que concerne à titularidade da indemnização pelas benfeitorias”
 
B) Tal decisão baseou-se em não terem os requerentes do incidente posto em causa o direito dos alegados colonos nos autos principais, não terem feito prova que ponha em causa esse direito, e bem ainda no facto de a sentença transitada em julgado que reconheceu o direito de propriedade da recorrente não vincular os alegados colonos, já que estes não foram parte no processo em que foi proferida;
 
C) Pressupostos que, com o devido respeito, não estão corretos já que, no requerimento que desencadeou o incidente, os requerentes limitaram-se a dizer que só tardiamente tomaram conhecimento do processo de expropriação e que são eles os proprietários dos terrenos a expropriar;
 
D) A decisão a quo pressupõe ainda – erradamente, com o devido respeito - que no prédio da recorrente persiste uma situação de colonia, existindo uma cisão do direito de propriedade entre domínio útil e propriedade do solo;

E) Contudo, os factos considerados provados na sentença que reconheceu o direito de propriedade da recorrente sobre o prédio em apreço claramente evidenciam que ela e seu falecido marido, e mais tarde ela e seus filhos, há mais de 30 anos consecutivos e com exclusão de outrem, detêm o domínio útil do prédio, que inclui necessariamente as benfeitorias; 
 
F) Por respeito ao caso julgado, à recorrente não pode ser exigido que demonstre o que já está demonstrado por sentença transitada em julgado, que os alegados colonos não puseram em causa pelos meios legais (v. g., pelo recurso de revisão);
 
G) A partir do momento em que a recorrente se apresenta a juízo munida de tal decisão e do registo do prédio a seu favor, nada mais tem que provar quando ao seu direito de propriedade, que é tendencial e presumivelmente pleno e absoluto, tendo as restrições ao mesmo de estar devidamente previstas na lei;
 
H) Ao ignorar esta prova documental, a decisão a quo viola o disposto nos artigos 371º, nº 1 do Código Civil e 607º, nº 4 do Código de Processo Civil.
 
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a nulidade da sentença proferida e ordenando-se seja proferida sentença em que se declare a indemnização pela expropriação das parcelas expropriadas 301/101 e 301/100, na totalidade de 1.305 m2, terra e benfeitorias, pertence aos requerentes,
 
Com o que V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:


IIOS FACTOS.

Foram considerados os seguintes factos na decisão do incidente:


a) Por Resolução do Conselho do Governo n.º 1719/2005, de 29 de Novembro, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, 1.ª Série, n.º 152, a 09.12.2005, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação de um conjunto de parcelas identificadas na Planta de Expropriações necessárias à “Construção do Parque de Estacionamento do Museu da Baleia, no concelho de Machico” entre elas as denominadas parcelas n.os 301/100 e 301/101, Secção “H” — cf. fls. 58 e 59 dos autos principais que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
b) Ambas as parcelas foram destacadas do prédio rústico localizado no sítio da Banda do Silva, freguesia do Caniçal, concelho de Machico, inscrito no Registo Predial de Machico sob o n.º 00027/110789 — cf. despacho de adjudicação com a referência 3145046.
c) A parcela 301/100 tem a área de 1.040 m2, confrontando: Norte: Arruamento; Sul: Estrada; Este: Turismadeira – Construção Civil, Promoção e Exploração de Empreendimentos Turísticos, S.A. e Oeste: Estrada — cf. despacho de adjudicação
com a referência 3145046.
d) A parcela 301/101 tem a área de 750 m2, confrontando: Norte: Arruamento; Sul: Estrada; Este e Oeste: Turismadeira – Construção Civil, Promoção e Exploração de  Empreendimentos Turísticos, S.A. — cf. despacho de adjudicação com a referência 3145046.
e) Relativamente às parcelas de terreno aludidas em a) foi efectuada a vistoria "ad perpetuam rei memoriam", em 13 de Janeiro de 2006 — cf. fls. 86 a 89, 100 e 181 a 184 dos autos principais que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
f) Em 02 de Junho de 2006, a expropriante tomou posse administrativa das parcelas de terreno aludidas em a) — cf. fls. 93 a 95 e 178 a 180 dos autos principais que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
g) Por despacho de 16 de Maio de 2013, com a referência 3145046 (fls. 1054 a 1057, que aqui se dão por integralmente reproduzidas), as referidas parcelas foram adjudicadas à expropriante.
h) Por despacho com a referência 38435456 (fls. 1110 a 1112, que aqui se dão por integralmente reproduzidas) atribuiu-se a indemnização ao proprietário e ao colono.
i) Por sentença de 18 de Maio de 2012, oportunamente transitada em julgado, proferida no processo n.º 151/06.8TBSCR, que correu termos no extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Cruz, no qual figuravam como habilitados dos autores os ora requerentes e como ré a expropriada “Turismadeira”, que deduziu aí contestação, condenou esta última a ver declarado que os autores (ou seja os requerentes na qualidade de habilitados dos autores) adquiriram por usucapião uma porção de terreno com a área total de 1.305m2, correspondente ao artigo 301/101 e a parte do artigo 301/100, da secção “H”, da freguesia do Caniçal, com a configuração constante no primeiro rectângulo vermelho do lado esquerdo do documento de fls. 11 [junto ao presente apenso a fls. 75], e a abster-se de qualquer acto que turbe ou impeça o o exercício do direito dos autores, determinando-se o cancelamento das inscrições matriciais e registos dos mesmos a favor da ré — cf. fls. 52 a 71, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
j) A porção de terreno com a área total de 1.305m2 a que se alude em i) corresponde à totalidade da parcela expropriada 301/101, com a área de 750 m2  e a 555 m2  dos 1040 m2  expropriados da parcela 301/100 — cf. 92 (verso) que aqui se dá por integralmente reproduzida.
k) A restante área de 485 m2 da parcela 301/100 pertence à expropriada “Turismadeira” no que concerne à nua propriedade.
l) As benfeitorias a que se alude no relatório pericial de fls. 1354 a 1371 dos autos principais, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, pertenciam aos colonos aí melhor identificados.

IIIO DIREITO.

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o âmbito de cognição deste Tribunal, a única questão a resolver consiste em saber se deverá manter-se o decidido quanto à titularidade da indemnização pelas benfeitorias nas parcelas expropriadas. A questão colocada afigura-se-nos bastante simples.

Na decisão recorrida, pode ler-se, designadamente, no que a esta matéria interessa:
“É de referir que os requerentes no presente incidente — no requerimento inicial—não vieram pôr em causa o direito dos colonos a receber o valor titulado pelas benfeitorias, não lhes sendo, pois, lícito, somente posteriormente, vir apresentar oposição a esse direito. Mais, o fundamento com que se arrogam serem proprietários da totalidade das parcelas expropriadas consiste na sentença a que se alude na factualidade provada na qual não condenou os colonos, não pôs em causa a existência de colonia, nem aí figuram como partes os colonos, pelo que sempre não os vincularia.
Logo, não está correcto nem demonstrado que os requerentes sejam, igualmente, titulares das benfeitorias existentes nas parcelas expropriadas.”

Ora, cremos que estas afirmações constantes da decisão recorrida revelam uma contradição no raciocínio do julgador, pois a existência de um regime de colonia é incompatível com a propriedade plena. Naquele regime de colonia existe uma cisão entre a nua propriedade e o domínio útil do solo. Na propriedade plena existe o direito de uso, fruição e disposição da coisa, nos termos previstos no art.º 1305.º do Código Civil, não sendo permitida “ a constituição, com caráter real de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional”[1].

Não é exacto dizer-se que os requerentes – entre os quais a ora recorrente -não tenham posto em causa o direito dos alegados colonos quanto às benfeitorias existentes no prédio que lhes pertence, muito menos que não tenham feito prova susceptível de por em causa tal suposto direito. No requerimento que desencadeou o incidente, os requerentes afirmaram que determinadas parcelas do terreno expropriado lhes pertencem e que o seu direito de propriedade sobre os mesmos foi reconhecido por sentença transitada em julgado na ação de processo ordinário que correu termos pelo J2 do Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz do Tribunal da Comarca da Madeira sob o nº 151/08.8TBSCR, em que a Turismadeira foi parte.
Ora, se assim é, reconhecida a propriedade plena de tais parcelas de terreno, na titularidade dos Requerentes entre eles a ora Apelante, tal direito de propriedade plena exclui logicamente a existência da colonia. Logicamente, naquela acção 151/08, não teriam de ser demandados quaisquer colonos que não existiam, pois que os Autores eram titulares da propriedade plena das respectivas parcelas.
Tal como se deu como provado na sentença proferida naquele processo:
“2.5.– Os autores fundiram parte do prédio inscrito na matriz cadastral sob o nº 301/100 e o prédio inscrito na matriz cadastral sob o nº 301/101, numa área total de 1305 m2 (…); 2.7. – “Há 30 anos que os autores entram, permanecem e saem do terreno acima referido em 2.5, sem recato ou ocultação, podendo ser vistos por todos aqueles que por ali lidavam ou nisso pudessem ter interesse;
2.8.– Os autores cultivam produtos agrícolas, cavam a terra, entram com sementes e ferramentas, plantam, semeiam, adubam, regam, sacham, colhem frutos e providenciam pelo cultivo do terreno referido em 2.5.; 2.9. – Os autores vedaram o terreno acima referido em 2.5 com uma cerca, sem que nunca prestassem contas desse ato a ninguém; 2.10. – os autores atuaram como acima referido em 2.7 e 2.8 ininterruptamente e à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de que o terreno acima referido lhes pertencia.”
              
Assim sendo, perante a propriedade plena titulada pelos Requerentes incluindo a ora Apelante, não faz sentido afirmar a coexistência de qualquer direito de terceiros  (colonos)  referente a benfeitorias, relativamente às parcelas  de terreno, aqui em causa.

Procedem inteiramente as conclusões de recurso da Apelante.


IVDECISÃO.

Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e consequentemente, revogando a decisão recorrida, julgar procedente o presente incidente e, consequentemente, declara-se, provisoriamente, nos termos do disposto no art.º 53.º n.º1 do Código das Expropriações de 1999, que a indemnização pela expropriação das parcelas 301/101 e 301/100, terra e benfeitorias, na totalidade de 1305 m2 pertence aos requerentes e a restante área de 485 m2 da parcela 301/100 pertence à expropriada “Turismadeira” no que concerne à nua propriedade.

Custas pela Expropriada Turismadeira.



Lisboa, 5 de julho de 2018



Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal


[1]Vide art.º 1306.º do Código Civil