Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23387/10.2T2SNT-A.L1-6
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O prazo definido na 1.ª parte do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Civil não é aplicável aos embargos de terceiro com função preventiva.
É assim porquanto para tal conclusão apontam com nitidez a própria natureza da intervenção processual e o conteúdo da circunstância despoletadora da reacção.
Nos embargos de terceiro de vocação preventiva não há prazo, mas limites processuais, a saber: a) dedução após ordem judicial de realização da diligência, b) apresentação antes de efectuada a mesma.
É aplicável aos embargos preventivos a limitação emergente da parte final do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Civil que proscreve a dedução dos embargos de terceiro de finalidade repressiva depois de os bens visados terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.RELATÓRIO:

                   
M..., com os sinais identificativos constantes dos autos, deduziu embargos de terceiro contra S... e outros, melhor identificados na acção principal, em cujo âmbito pediu que fossem «admitidos os presentes embargos, reconhecendo-se o seu direito e a posição que detém sobre o imóvel, determinando, como consequência a sustação da diligência ordenada, considerando que esta diligência ofende os seus direitos». Alegou, para o efeito, que: tomou conhecimento, quando se deslocou ao seu domicilio Agente de Execução acompanhada de 4 agentes da polícia, que o imóvel que habita com o seu agregado familiar há mais de 50 anos, na qualidade de arrendatária, está penhorado num processo executivo que envolveu ou envolve a executada; a desocupação desse imóvel foi determinada, com diligencia ordenada e agendada; o  processo está a correr à sua total revelia, apesar de ali viver há mais de 50 anos; viveu também nesse imóvel o seu marido, ao qual sucedeu na posição de arrendatária, após o óbito deste, tendo, sempre, pago as respectivas rendas e todos os consumos e aí tendo o seu domicilio fiscal, recebendo correspondência, dormindo, comendo, tomando as suas refeições, recebendo amigos e família, assim como apoio domiciliário da Santa Casa; tem mantido e estimado o imóvel fazendo no mesmo obras necessárias, tendo as suas chaves assim como as do correio; a diligência e acto ordenado nos autos ofende a posse da embargante.

Foi proferida decisão judicial que indeferiu liminarmente os referidos embargos de terceiro. 

É dessa decisão que vem o presente recurso interposto por M..., que alegou e apresentou as seguintes conclusões:
A) A douta sentença recorrida não só não fez a adequada e justa ponderação dos  factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporiam decisão diferente;
B) A mesma não cumpre, integralmente, o previsto e estatuído no n° 1 do Art. 154 e no n° 4 do Art. 607 do CPC., mormente porque não esta fundamentada, de facto e, especialmente de direito, sendo tal injunção um imperativo e que se prende com a própria garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma, com o acarreta de nulidade, que se argui ;
C) A recorrente, pessoa de muita idade, doente, vive, mora e reside no imóvel que lhe foi locado, e de que é arrendatária, pagando, pontualmente, as rendas, há mais de 50 anos ;
D) Não teve conhecimento dos presentes autos até ao dia em que foi confrontado com a diligência;
E) Os embargos que deduziu são preventivos, conforme lhe permite o Art. 350 actual, anterior Art. 359 do CPC.
F) Os embargos preventivos podem ser deduzidos antes de realizada mas depois de ordenada a diligencia a que se refere o Art. 342 do CPC.
G) Estes embargos têm um regime excepcional e diferente ao do regime dos embargos de função repressiva.
H) No regime excepcional, oposto ao regime-regra, estas normas não contemplam analogia, conforme estatui o Art. 11 do Cod. Civil.
I) No regime actual, os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada pela diligencia judicial mas, também, à defesa de qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligencia e que se traduza num acto de agressão patrimonial;
J) Os embargos consubstanciam uma verdadeira acção declarativa, autónoma e especial enxertada numa execução, visando acautelar não só a posse, mas qualquer outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligencia judicial ordenada.
K) Se assim não fosse a exequente nos autos teria de dirigir a execução contra a ora recorrente, dado que o credor que deseje pagar-se por força dos bens ou direito de quem seja terceiro na relação jurídica obrigacional tem também de demandar este.
L) Não fará sentido que seja realizada a diligência, com a "expulsão" da recorrente da sua casa, a sua casa de morada de família, com os seus pertences, mudando-se a fechadura e esta ter de aguardar, depois, despejada, o resultado de uma acção que tivesse de instaurar a anular ou reivindicar o seu direito nos termos dos Arts. 838 e al. d) do Art. 859 e Art. 346 do CPC.
Termos em que, nos demais de direito que V.Exas., muito doutamente proverão, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, revogando-se a decisão recorrida (…)

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

São as seguintes as questões a avaliar:
1. A decisão impugnada é nula por falta de fundamentação de facto e de Direito?
2. Face ao Direito processual vigente, os embargos de terceiro não deviam ter sido rejeitados por se revelarem tempestivos?

II.FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto
Por não ter sido validamente questionado o conjunto fáctico de sustentação da decisão recorrida, consideram-se provados os factos aí vertidos, ou seja, que:
1. O Banco ... adquiriu o imóvel referido nos presentes autos em venda judicialmente ordenada no processo de execução, realizada em 13.02.2012;
2. O respectivo título de transmissão foi emitido em 27.02.2012;
3. A diligência de entrega do imóvel à adquirente foi tentada em 12.06.2017;
Face ao conteúdo do auto de fl. 35, acrescenta-se, corrigindo o cristalizado na aludida decisão, que:
4. O requerimento inicial do processo de embargos de terceiro em que foi proferida a decisão apreciada neste recurso foi apresentado em juízo em 23.06.2017.

Fundamentação de Direito
1. A decisão impugnada é nula por falta de fundamentação de facto e de Direito?
Extrai-se da análise da decisão criticada que a mesma contém a indicação, ainda que sem a devida autonomização, dos factos em que se esteou. Aliás, tais factos foram expressamente extraídos e vertidos no presente acórdão.
Apela também o decidido para a razão e o hetero-convencimento, indicando  as normas jurídicas e as razões técnicas pelas quais se justificaria a rejeição liminar decretada.
Não estamos, pois, a nenhuma luz, colocados perante situação subsumível ao disposto na al. b) do n.º 1 do  art. 615.º do Código de Processo Civil.
É flagrantemente negativa a resposta a esta questão.
2. Face ao Direito processual vigente, os embargos de terceiro não deviam ter sido rejeitados por se revelarem tempestivos?
É adequada e sufragável a leitura jurisprudencial que considera inaplicável o prazo definido na 1.ª parte do n.º 2 do  art. 344.º do Código de Processo Civil aos embargos de terceiro com função preventiva – vd., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo: 06B014, Relator: Juiz Conselheiro SALVADOR DA COSTA, data: 09-02-2006, in http://www.dgsi.pt, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo: 01279/15, Relator: Juiz Conselheiro FRANCISCO ROTHES, data: 26-10-2016, ibidem, a Decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa, processo: 5225/2008-8, Juiz Desembargador SALAZAR CASANOVA, data: 14-06-2008, ibidem; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo: 1129/09.5TBVRL-H.G1, Relator: Juiz Desembargador JORGE TEIXEIRA, data: 24-09-2015, ibidem,, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo: 801-B/2002.P1, Relator: Juiz Desembargador FILIPE CAROÇO, data: 11-07-2012.

É assim porquanto para tal conclusão apontam com nitidez a própria natureza da intervenção processual – enquanto nos embargos repressivos se reage contra diligência já materializada, nos preventivos visa-se «evitar o esbulho» tendo «por fundamento o justo receio» (Pf. ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, vol. I, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 436) – e o conteúdo da circunstância despoletadora da reacção – no primeiro caso, conhecimento da concretização de diligência ou dos contornos da ofensa materializada (vd. n.º 2 do  art. 344.º do Código de Processo Civil), no segundo, perspetivação de penhora ou qualquer acto «judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bem», por ter sido determinada mas ainda não executada a injunção judicial de realização da diligência entrevista como atentatória de direitos constituídos nos termos previstos na lei (vd. n.º 1 do  art. 350 e n.º 1 do  art. 342.º, ambos do encadeado normativo referido).

Por assim ser, o mencionado autor referia, no estudo apontado e na mesma página, que, nos embargos de terceiro de vocação preventiva não há prazo mas limites processuais, a saber: a) dedução após ordem judicial de realização da diligência, b) antes de efectuada a mesma.

No caso em apreço, provou-se que a «diligência de entrega do imóvel à adquirente foi tentada em 12.06.2017» daqui se extraindo, por razões lógicas, que a mesma foi ordenada mas não logrou ser plenamente realizada. Não se ultrapassaram, pois, os referidos limites processuais, sendo aplicável o regime do art. 350.º do Código de Processo Civil.

O n.º 1 deste artigo manda aplicar aos embargos preventivos as regras dos embargos repressivos, com as devidas adaptações. Uma dessas adaptações é, necessariamente, a acima referida, por razões que são, também, de ontologia, ou seja, relativas às essências e naturais divergências dos institutos em função das suas finalidades.

A grande questão que se põe, neste processo, a este nível, é a de saber se é aplicável aos embargos preventivos a limitação emergente da parte final do n.º 2 do  art. 344.º do Código de Processo Civil que proscreve a dedução dos embargos de terceiro de finalidade repressiva depois de os bens visados terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.

Quanto à jurisprudência firmada sobre a matéria, é segura a resposta afirmativa. Esta extrai-se directamente, aliás, de vários dos arestos acima invocados.

Pareceria tentadora a tese sufragada no recurso, em situações marcadas por penhoras e vendas por demais formais, em que, ao menos de jure condendo, se poderia desejar que se pudesse lançar mão da reacção em apreço quando houvesse confronto de cidadãos não necessariamente letrados e instruídos com os primeiros actos materiais de desapossamento. Porém, sempre terá que se afirmar que, no que tange à penhora e venda de imóveis, realidade a que se reportam os presentes autos, são relevantes e dotados de suficiente materialidade os actos de contacto com o espaço físico visado – cf. n.º 3 do  art. 755.º, al. b) do n.º 1 do  art. 817.º, n.º 1 do  art. 800.º, n.º 2 do  art. 836.º, n.º 2 do  art. 837.º, todos do Código de Processo Civil. Tais actos possuem suficientes condições de serem apreendidos pelos respectivos ocupantes, o que afasta a sensação de menor justiça ou, ao menos, insuficiência da solução normativa lida como vedando os embargos após venda ou adjudicação. Neste quadro protector, o cidadão prejudicado pelo acto judicial sempre poderá invocar nulidade se for preterido qualquer desses gestos processuais decisivos.

Na presente situação, não se vislumbra a arguição de qualquer invalidade pela Embargante, apesar de ter invocado que tudo correu à sua revelia. Para essa arguição, aliás, a via devida não era a da dedução de embargos, como a Recorrente deverá saber por se encontrar patrocinada por profissional do foro que sempre poderia corporizar a devida tutela dos seus direitos a esse nível.                                                                                                                                           
À míngua de particularidades dos embargos preventivos que justifiquem uma derrogação da constrição normativa, impõe-se concluir que também estes embargos de terceiro não podem ser deduzidos após os bens em apreço terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados. 

In casu, quando o requerimento inicial do processo de embargos de terceiro foi apresentado à Primeira Instância, o bem referido nesse requerimento já tinha sido vendido. Por tal razão, o Tribunal «a quo» não errou ao indeferir liminarmente os embargos.

É, assim, negativa a resposta à questão proposta.

III.DECISÃO.
Pelo exposto, julgamos a apelação improcedente e, em consequência, confirmamos a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.



Lisboa, 06.12.2017



Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)
Anabela Moreira de Sá Cesariny Calafate (1.ª Adjunta)
António Manuel Fernandes dos Santos (2.º Adjunto)
Decisão Texto Integral: