Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6514/10.7YIPRT.L1-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: QUESTÃO NOVA
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PRESUNÇÃO DE CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. As questões novas que nunca foram objeto de alegação e competente prova no processo e que, como tal, se inscrevem como questões que não tendo sido objeto de decisão, não podem ser também objeto de reapreciação.
II. Nos termos dos artigos 313º e 314º do Código Civil, a presunção de cumprimento pode ser ilidida por confissão tácita, considerando-se confessada a dívida quando o devedor pratique em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.

iII. Discutir a exigibilidade da dívida – afirmando a sua inexistência - é um acto incompatível com a presunção de cumprimento.

Iv. A jurisprudência é praticamente unânime quanto ao entendimento  de que ao devedor que se queira valer da prescrição presuntiva cabe-lhe o ónus de alegar expressa e inequivocamente que já efectuou o pagamento, ficando apenas dispensado de provar esse pagamento e cabendo à parte contrária o ónus de provar que ele não ocorreu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa



I. RELATÓRIO

AP, .., Ld.a, intentou contra CJ, procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-lei n.° 32/2003, de 17 de Fevereiro, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 4.559,8, acrescida do montante de € 2.252,44 a título de juros de mora e de € 51,00 a título de taxa de juros.

Fundamentou a sua pretensão, mencionando, na causa de pedir, um contrato de compra e venda, e na descrição sumária da origem do crédito reclamado, a data do contrato, alegando, em síntese que, no exercício da sua actividade, vendeu ao Réu artigos do seu comércio no valor total de € 4.559,81 não tendo aquele procedido ao pagamento das facturas respectivas, não obstante ter sido interpelado para tal.

Regularmente notificado, o réu veio contestar, alegando que se acha prescrita a obrigação de pagar as facturas que a A. apresenta. Mais invocou que não comprou à A. qualquer produto que não tivesse pago.

Aduziu, ainda, que as facturas peticionadas devem ter origem num conluio entre um ex-empregado da autoria e outra pessoa que usaram o nome do réu para facturarem, concluindo pela improcedência da acção.

A A. foi convidada a vir aperfeiçoar o seu requerimento de injunção, convirte que aceitou, apresentando nova petição inicial e as facturas ali mencionadas.

Regularmente notificado, o Réu pronunciou-se quanto ao articulado aperfeiçoado da A., mantendo a sua posição inicial.

A A. pronunciou-se quanto à excepção de prescrição invocada pelo Réu, tendo pugnado pela sua improcedência.

Designado dia para a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente condenando o Réu no pedido formulado.

Inconformado com o assim decidido, o Réu interpôs recurso de Apelação no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:

1. As facturas não foram enviadas apra a sede do apelante, não tendo portanto, chegado o seu pagamento a ser reclamado.

Em todo o caso, mesmo que assim se não entenda,

2. Acha-se prescrito o direito da credora, aqui apelada, de exigir o pagamento, pois entretanto se operou a prescrição presuntiva, nos termos do n.º 2 do artigo 317.º do C. Civil, dado o apelante não ser comerciante de peças automóvel.

3. Deve assim o Réu, aqui apelado, ser absolvido da instância e do pedido nos termos do n.º 2 doa rt. 317.º do C. Civil e do artigo 496.º do C. Proc. Civil, que foram violados.

E assim se fará Justiça.

Não foram apresentadas contra alegações de recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.



II. FACTOS PROVADOS

1.  A autora dedica-se ao comércio de peças e acessórios para veículos automóveis.

2.  No exercício desse mesmo comércio, a autora vendeu e entregou ao réu CJ, diversas peças e acessórios para automóvel, conforme consta das facturas n.°s …  com vencimento as primeiras 13 em 1 de agosto de 2003, as 13 seguintes em 31 de agosto de 2003, as 6 seguintes em 29 de agosto de 2003, as 12 seguintes em 29 de Setembro de 2003, a seguinte em 30 de Outubro de 2003, as 2 seguintes em 29 de novembro de 2003 e as três últimas em 29 de Abril de 2004, 29 de Setembro de 2004 e 30 de dezembro de 2004 respectivamente.

3.  Tais peças eram adquiridas directamente na loja da autora pelo próprio réu, que as recebia e que as levava pessoalmente.

4.  Ou eram por ele encomendadas telefonicamente, e era o vendedor da autora que lhas entregava pessoalmente no Stand de Automóveis CJ.

5.  Outras vezes, mas pouco significativas, o réu encomendava as peças directamente e pessoalmente na loja da autora, ou por telefone e mandava-as entregar, numa oficina por este indicada, que prestava á época serviços de reparação automóvel ao réu, no âmbito do seu comércio de venda de veículos automóveis, que à data este se dedicava.

6.  Nestes casos, o vendedor da autora deslocava-se à dita oficina e lá entregava as peças, conforme tinha sido requerido pelo réu.

7.  Tais peças seriam para aplicação nos automóveis por este vendidos no stand de sua propriedade.

8.  Tais facturas deveriam ter sido pagas nas datas dos seus vencimentos.

9.  No dia 30 de Dezembro de 2004, a dívida do réu à autora ascendia ao montante global de €4.559,81.

10.      Apesar de várias vezes instado para proceder ao pagamento dos montantes em divida, quer pessoalmente, quer por telefone e por fim por carta registada, nunca o réu procedeu a qualquer pagamento.




III. FUNDAMENTAÇÃO

O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso.

O conteúdo de tais conclusões deve ainda obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas que devem ser objecto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas tão só aqueles que fazem parte do respectivo enquadramento legal, como linearmente decorre do disposto no artigo 664.º do Código de Processo Civil (artigo 5.º do Código de Processo Civil na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

Como podemos observar pelo conteúdo das conclusões apresentadas, as questões ali suscitadas sob o Ponto 1.º são insusceptíveis de poderem ser conhecidas por este Tribunal de recurso.

Com efeito, trata-se de questões novas, que nunca foram objeto de alegação e competente prova no processo e que, como tal, se inscrevem como questões que não tendo sido objeto de decisão, não podem ser também objeto de reapreciação.

Em relação à questão que constitui o Ponto 2 das alegações de recurso cumpre referir que a mesma se circunscreve apenas à apreciação de verificação ou não de uma situação de prescrição presuntiva invocada pelo Réu/Apelante.

O Réu, na sua oposição à injunção veio invocar a prescrição do crédito da A., ao abrigo do artigo 317º/1/b do Código Civil e, paralelamente, negar que tenha comprado à A. os produtos cujo pagamento são reclamados na acção.

Alegou naquela peça processual que “ não comprou qualquer produto á A. que não tivesse pago, produtos esses que aliás foram só comprados pro duas ou três vezes e de forma esporádica e como cliente particular” concluindo que “as facturas devem ter origem num conluio entre um ex-empregado da A. e outra pessoa que usaram o nome do R. para facturarem o que a A. apresenta na presente acção”.

A A. sustentou a improcedência da prescrição invocada alegando que os bens foram entregues ao Réu e que, até à presente data, não foram pagos.

Na apreciação desta questão importa ter presente a matéria de facto dada como provada, e que não é objeto de impugnação, matéria essa em relação à qual podemos observar o Réu, pessoalmente adquiriu as peças de automóvel cujo pagamento é aqui peticionado, decaindo, assim, a sua tese quer em relação ao pretenso conluio da A. com terceiros, quer em relação à prescrição da dívida por inexistência de qualquer transacção com a A.

Ora, nos termos do artigo 317º/b do Código Civil, prescrevem no prazo de dois anos “os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma industria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuada a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor”.

De acordo com o disposto no artigo 312º do Código Civil, esta prescrição é meramente presuntiva, ou seja, funda-se na presunção de cumprimento.

As prescrições presuntivas são presunções de pagamento e apoiam-se no facto de as obrigações a que se referem serem normalmente pagas num prazo curto e não ser costume exigir quitação do seu pagamento ou guardar durante muito tempo tal quitação. Decorrido o prazo legal, presume a lei que a dívida está paga dispensando assim o devedor da prova de pagamento, prova essa que lhe poderia ser muito difícil ou até impossível (Cf. Vaz Serra in RLJ, 109º, 246).

As prescrições presuntivas são meras presunções de cumprimento e não se confundem com as prescrições extintivas. Nestas últimas, para que os seus efeitos operem, basta ao devedor invocar o decurso do prazo. A partir daí, a excepção procede e a obrigação transforma-se numa obrigação natural, tendo o devedor a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito.

Nas prescrições presuntivas a sua eficácia restringe-se à liberação do devedor do ónus de prova de cumprimento, destinando-se o prazo prescricional estabelecido na lei a fixar o momento a partir do qual passa a recair sobre o credor a prova em contrário da presunção de cumprimento, prova essa que fica restringida à confissão expressa ou tácita.

Por isso, ao devedor que se queira valer da prescrição presuntiva cabe-lhe o ónus de alegar expressa e inequivocamente que já efectuou o pagamento, ficando apenas dispensado de provar esse pagamento e cabendo à parte contrária o ónus de provar que ele não ocorreu.

A jurisprudência é praticamente unânime quanto ao entendimento atrás expendido, citando-se apenas, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos da Relação do Porto de 23.1.1997, 26.9.1994, 29.11.1999, 2.11.1999 e 16.5.2002 in www.djsi.pt.

No caso em análise, o Réu não invocou que tenha efectuado o pagamento da dívida, antes negando a existência do próprio negócio realizado, bem como o decurso do prazo da prescrição presuntiva. Ora, o decurso do prazo de dois anos, por si só, não é suficiente para produzir os efeitos pretendidos de recusa do pagamento do crédito, pois a prescrição em questão não é extintiva.

Nos termos dos artigos 313º e 314º do Código Civil, a presunção de cumprimento pode ser ilidida por confissão tácita, considerando-se confessada a dívida quando o devedor pratique em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento. Ora, discutir a exigibilidade da dívida – afirmando a sua inexistência - é um acto incompatível com a presunção de cumprimento.

Assim, a prescrição presuntiva nunca poderia produzir os seus efeitos devendo, como tal, ser confirmada a decisão em apreciação.



IV. DECISÃO

Face ao exposto, julga-se improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

Custas pelo Apelante.

Lisboa, 03 de Junho de 2014
Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
José Gouveia Barros