Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5194/2007-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I-A lei confere hoje força executiva a todos os “ documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805.º (artigo 46.º/1, alínea c) do Código de Processo Civil).
II- Do título executivo devem resultar, dada a necessidade de se acautelar a certeza e segurança das obrigações, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias o que não sucede quando estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título, isto é, não estão por ele documentados nos termos exigidos pelo referenciado artigo 46.º/1, alínea c9 do C.P.C
Decisão Texto Integral: Por apenso ao processo de execução que

B […]LDª, move contra SÉRGIO […] veio este deduzir oposição invocando a falta de título executivo.

A exequente contestou os embargos.

No despacho saneador foi julgada procedente a oposição, determinando-se o arquivamento da execução.

A exequente recorreu e concluiu que:

a) Dispõe o art. 46º, n° 1, al. c), do CPC, que podem servir de base à execução os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
b) O embargante reconheceu que assinou o Contrato de Aluguer e que após a assinatura do contrato passou a utilizar o veículo e a pagar as rendas mensais, no valor de Esc. 53.332$00 cada uma.
c) Reconheceu igualmente que entregou o veículo à locadora em Dezembro de 2000.
d) Ora, do contrato de aluguer consta que os pagamentos de aluguer tinham início em 9-2-00, vencimento ao dia 5 dos períodos seguintes, periodicidade mensal, n° de alugueres 48, no valor de Esc. 53.332$00 cada um. Mais à frente consta que o Cliente/Locatário, teria de pagar um seguro com franquia de 2 %, com início em 9-2-00, periodicidade mensal, n° de pagamentos 48, e no valor de Esc. 10.274$00.
e) Portanto, o embargante tinha de pagar, mensalmente, pelo aluguer da viatura, a quantia de Esc. 53.332$00, a título de renda mensal, e a quantia de Esc. 10.274$00 a título de seguro mensal, com franquia de 2 %, o que perfaz um total mensal de Esc. 63.606$00.
f) Não restam dúvidas de que o respectivo valor era determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, dados os valores e prazos expressos no contrato de aluguer.
g) Da declaração de entrega de viatura junta pelo exequente consta que a “entrega da viatura agora efectuada é motivada pela rescisão do referido contrato de ALD”, a qual foi assinada pelo embargante em 29-12-00, de onde resulta que, claramente, concordou com a mesma.
h) Ao assinar o contrato de aluguer, o Locatário aceitou igualmente as suas cláusulas contratuais constantes do verso do contrato.
i) Decorre dos documentos que:
- Cada prestação mensal era de Esc. 53.332$00;

- A resolução do contrato e o respectivo incumprimento ocorreu em 29-12-00, tal como o próprio embargante confessa e reconhece;

- Em Dezembro de 2000 tinham sido pagas as prestações vencidas entre 9-2-00 e 5-12-00, num total de 11;

- E faltavam pagar 37 prestações, que perfaziam um total de Esc. 1.973.234$00;

- Ora, 30 % deste montante de rendas vincendas ascendia a Esc. 591,985$20.

j) Assim, o contrato de aluguer assinado pelo executado é título executivo, não podendo o mesmo ser absolvido do pedido.

II – Elementos a ponderar:

- A exequente indicou no requerimento executivo que era credora da quantia de € 4.169,28, correspondente a capital, e dos juros vencidos e vincendos a partir de 29-12-00;
- O valor do capital em dívida não foi justificado no requerimento executivo, limitando-se a exequente a dizer que se encontrava em dívida a quantia de € 4.169,29 e juros de mora;
- Juntou para o efeito o contrato de ALD celebrado com o executado de onde resulta, além do mais, que eram 48 as prestações mensais a pagar no valor de 53.332$00, acrescida de 10.274$00 pelo seguro;
- Foram pagas 11 das referidas prestações;
- De acordo com tal documento, o contrato teve início em 9-2-00, sendo o vencimento no dia 5 dos meses seguintes;
- Nos termos da cláusula 6ª do contrato, “a resolução por incumprimento não exime o cliente do pagamento de ... uma indemnização no montante correspondente a 30% do valor de todas as prestações vincendas à data da resolução por incumprimento, para além dos respectivos juros de mora”;
- No requerimento executivo a exequente alega que “o executado deixou de liquidar as prestações/rendas mensais a que se tinha obrigado, a partir de 29-12-00, tendo nessa data procedido à entrega da viatura ao ora exequente, conforme documento que ora se junta ...”;
- Tal documento é integrado por uma declaração datada de 29-12-00, subscrita pelo executado, intitulada “declaração de entrega da viatura”, onde se diz, além do mais, que “declaramos que nesta data foi entregue nos nossos serviços o veículo abaixo identificado, que era objecto do contrato de ALD ... A entrega da viatura agora efectuada é motivada pela rescisão do referido contrato de ALD”;
- A exequente alega no requerimento executivo que procedeu à “rescisão do contrato por incumprimento, a partir dessa data – 29-12-00”..


III – Decidindo:

1. A única questão que se coloca é se a documentação apresentada pela exequente juntamente com o requerimento inicial da execução constitui título executivo relativamente à quantia exequenda.

Na decisão recorrida, a Mª Juíza pronunciou-se no sentido da falta de título executivo, procedendo a extensas transcrições do Ac. desta Relação de 25-2-03, proferido no âmbito do recurso de apelação nº 664/03, com o mesmo relator, ainda que sem qualquer menção da fonte.

2. Nos termos do art. 45º do CPC, toda a execução tem por base um título executivo pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

A apresentação de um documento a que a lei reconhece exequibilidade deixa em segundo plano a substância da relação de crédito, erigindo como factor determinante aquilo que é formalmente revelado pela simples análise do título. Por isso, para efeitos de acção executiva, mais importante do que a efectividade do crédito é a sua formalização num documento legalmente idóneo. A mera existência de um direito de crédito será irrelevante para efeitos da acção executiva se não se encontrar consubstanciado num documento que, de acordo com a lei, seja dotado de exequibilidade.

O título executivo é, assim, condição necessária da acção executiva, já que sem título não pode ser instaurada acção executiva; se for instaurada, deve ser indeferida liminarmente; se o não for, pode ser objecto de oposição à execução.

Mas, por outro lado, o título executivo é também condição suficiente da acção executiva, uma vez que a sua apresentação faz presumir as características e os sujeitos da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de se encontrar assegurada, com apreciável grau de probabilidade, a existência e o conteúdo da obrigação. Assim, a análise do título deve demonstrar, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da acção executiva

3. Seguindo uma orientação que já foi acusada de ser excessivamente permissiva, o legislador, na última revisão do CPC, generalizou a força executiva a todos os "documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805º" (art. 46º, nº 1, al. c)).

No entanto, apesar da maior amplitude que decorre deste preceito, devem encontrar-se sempre acauteladas a certeza e segurança das obrigações.

Para que a execução possa prosseguir no seu rumo normal, sem prejuízo da dedução de oposição, relativamente à obrigação primária decorrente da celebração de um contrato bastará a alegação do seu incumprimento e a verificação das condições de viabilidade da acção executiva, ligadas à certeza, à exigibilidade e à liquidez da obrigação.

Já quando a relação jurídica entra numa fase patológica, como acontece em situações de incumprimento contratual em que a par da resolução do contrato se constitui o direito de indemnização, a obrigação sucedânea é qualitativa e quantitativamente diversa da obrigação primária, exigindo maiores indagações que, em regra, não se satisfazem com a junção do documento que titulava o contrato nem com a alegação dos factos em que se funda a resolução contratual.

Ainda que os pressupostos abstractos da obrigação de indemnização decorrente da resolução se encontrem inseridos no contrato, a sua concretização exige a alegação e prova de factos, retirando à documentação apresentada o grau de certeza e de segurança próprios do título executivo.

Porque a acção executiva não constitui o instrumento adequado à definição de direitos, privilegiando-se a actividade conducente ao cumprimento coercivo das obrigações, em vez de o credor avançar de imediato para a acção executiva, deve optar pela propositura de acção declarativa em que em processo contraditório e de natureza cognitiva se poderão apreciar os fundamentos do direito de indemnização e a quantificação do direito de crédito.

4. No caso concreto a exequente optou logo por recorrer à acção executiva, aproveitando-se do facto de ser parte num contrato de ALD integrado num documento particular que lhe atribuía um direito de crédito a determinadas prestações e no qual se previa ainda o direito de indemnização em caso de resolução do contrato por incumprimento do devedor.

A execução foi instaurada com base num documento representativo de um contrato de ALD que incidiu sobre um veículo, de onde resultava a obrigação de o locatário efectuar o pagamento de 48 prestações mensais. Invocando que o devedor apenas efectuou o pagamento de 11 dessas prestações e que a exequente procedeu à resolução do contrato por incumprimento do executado, veio requerer o cumprimento coercivo da obrigação de indemnização calculada em função das prestações vincendas.

Se acaso pudesse dar-se como assente a sua versão dos factos, com base em documentação apresentada pela exequente, não se verificariam obstáculos formais ao prosseguimento da execução. Ou seja, se estivesse documentalmente comprovada a efectivação de uma fundada resolução do contrato por incumprimento do executado, reconhecendo este, por exemplo, que, por via da justificada resolução, se constituíra na obrigação de suportar a indemnização contratualmente acordada, todos os elementos necessários à certeza e segurança ao título executivo se encontrariam presentes, sendo a exequibilidade do título o resultado da conjugação de elementos documentais dispersos.

Todavia, a documentação apresentada pela exequente não proporciona esse grau de certeza. Aliás, o modo como a exequente se defendeu na oposição à execução deixa uma larga margem de incerteza quanto ao condicionalismo de que contratualmente depende a constituição do seu alegado direito de indemnização.

5. Alegou a exequente que o contrato se extinguiu por resolução fundada no incumprimento do contrato por parte do executado.

Todavia, tal alegação não encontra sustentação no documento apresentado, pois que a declaração de entrega da viatura que o executado subscreveu, para além de não definir com clareza qual o motivo por que se extinguiu o contrato e por que foi entregue a viatura, de modo algum traduz o reconhecimento da constituição da dívida correspondente a 30% das prestações vincendas.

A incerteza que paira sobre o modo de extinção da relação contratual decorre também da própria alegação da exequente formulada no requerimento executivo, onde alegou, por um lado, que o executado cumpriu todas as prestações vencidas até 29-12-00 e, por outro, que nessa mesma data (quando lhe foi entregue a viatura e foi subscrita a declaração de entrega) procedeu à resolução do contrato por incumprimento do executado.

Perante esta alegação e em face dos documentos apresentados é justificada a dúvida acerca do processo extintivo do contrato de ALD e, por essa via, acerca dos factos de que este faz depender o surgimento do direito de indemnização.

6. Decorre da cláusula 6ª do contrato que a resolução do contrato por iniciativa da exequente depende do incumprimento do contrato pelo executado, acrescentando-se ainda que tal resolução deve efectivar-se mediante carta registada contendo notificação fundamentada nesse sentido. Ora, no caso concreto, não existe o menor vestígio de um tal procedimento.

A incerteza quanto a tal forma de extinção contratual e, desse modo, quanto à constituição da obrigação sucedânea correspondente a 30% das rendas vincendas decorre dos próprios termos empregues na declaração de entrega do veículo, onde se alude à “rescisão” do contrato de ALD, o que tanto pode significar a “resolução” operada por iniciativa da exequente, como a aceitação de uma “denúncia” apresentada pelo executado, como ainda pode significar a existência de uma “revogação” do contrato por acordo de ambas as partes.

A definição rigorosa do que sucedeu ao contrato de ALD é tanto mais importante quanto é certo que a cláusula onde a exequente funda o seu alegado direito de indemnização tem como epígrafe “resolução e denúncia do contrato”, prevendo-se a indemnização apenas para os casos de “resolução fundamentada em incumprimento contratual do executado”.

Sendo a resolução o pressuposto da extinção da relação jurídica e a justificação para a invocação de um direito de indemnização, os documentos apresentados pela exequente no processo de execução não se mostram suficientes para configurar as posições jurídicas de cada uma das partes, exigindo uma actividade complementar a que não se ajustam os quadros limitados, as regras processuais e os objectivos da acção executiva virada para a exercitação coerciva de direitos certos e não tanto para a definição de direitos cujos contornos qualitativos e quantitativos sejam incertos e pressuponham uma actividade cognitiva.

Em suma, ante a situação de incerteza quanto à qualificação da forma de extinção do contrato e quanto aos motivos que à mesma presidiram e em face da ausência de prova documental que defina, com segurança, o direito de crédito da exequente e a correspondente obrigação do executado, há que concluir pela verificação da falta de título executivo

IV – Em conclusão:

Face ao exposto, decide-se julgar improcedente o agravo, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo da exequente.
Notifique.
Lisboa, 27-6-07


António Santos Abrantes Geraldes