Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2049/20.8T8CSC.A.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: SERVIÇOS JURÍDICOS
PROFISSÃO LIBERAL
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - As prescrições presuntivas de que tratam os artigos 312.º a 317.º do Cód. Civil, fundam-se na presunção de cumprimento, ou seja, apenas têm por efeito fazer presumir o cumprimento da obrigação respectiva pelo decurso de um certo prazo, não conferindo ao devedor, como sucede com a prescrição ordinária, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, visto não ser extintiva de direitos.
II – Tanto da letra, como do espírito do artigo 317.º do Cód. Civil resulta que o critério de subsunção ao preceito se define unicamente pela natureza dos serviços e não da entidade que os presta.
III – Os serviços jurídicos prestados por uma sociedade de advogados, traduzidos em consultoria jurídica e patrocínio judiciário, enquadram-se substancialmente no exercício duma profissão liberal, para efeitos de aplicação da prescrição presuntiva prevista na alínea c) do artigo 317.º do Cód. Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1.1. AA…, RL, intentou, em 01/08/2020, a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, peticionando a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de €100.171,41 (cem mil cento e setenta e um euros e quarenta e um cêntimos), alegando que tal valor corresponde aos honorários devidos pela prestação de serviços jurídicos pela Autora ao Réu e que este, apesar de interpelado para o efeito por diversas vezes, não pagou as facturas emitidas e vencidas em 30/09/2011.
1.2. Em sede de contestação, o Réu, ora Recorrente, invocou as excepções do pagamento e da prescrição presuntiva da referida dívida (artigo 317.º, alínea c), do Cód. Civil), atentas as datas da prestação dos serviços e da emissão da referida factura[[1]].
Concluindo, a final: “Deve a excepção peremptória do pagamento ser julgada totalmente procedente, por provada, e, em consequência, absolver-se o R. do pedido. ”
1.3. Na sua resposta, a Autora pugnou pela improcedência das excepções invocadas pelo Réu.
1.4. Findos os articulados, foi proferido saneador, datado de 18/03/2021, com a referência Citius 129266496, nos termos do qual, além do mais, se julgou improcedente a invocada excepção de prescrição presuntiva da dívida.
1.5. Inconformado com o decidido, o Réu apelou para esta Relação rematando as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«A - Intentou a Autora os presentes autos peticionando ao Réu o pagamento do valor de € 100.171,41 (cem mil cento e setenta e um euros e quarenta e um cêntimos) – correspondendo tal valor aos honorários devidos pela prestação de serviços jurídicos pela Autora à Ré.
B - Em sede de contestação, alegou o Réu, ora Recorrente, o pagamento da dívida, mais alegando, atenta a data da prestação dos serviços e da emissão das referidas facturas (de acordo com a própria Autora – vide Doc. n.º 2 junto à PI – os últimos serviços foram prestados em 2011, data em que foi emitida a factura também junta), nos termos e para os efeitos da al. c) do artigo 317.º do C.C. a prescrição presuntiva da referida dívida.
C - Não obstante tal alegação, bem assim como, adiante-se, o preenchimento in casu dos requisitos legalmente previstos (nomeadamente a data da prestação dos serviços e da emissão das facturas alegadamente em dívida), decidiu o tribunal a quo, através do despacho saneador de que ora se recorre, julgar improcedente a alegada prescrição presuntiva, podendo ler-se no referido despacho, para o efeito, que: “Verifica-se que no caso em apreço o réu invoca a referida prescrição presuntiva, mas por outro lado admite que a dívida já existiu, uma vez que que refere, já a ter pago. É jurisprudência pacífica, à qual aderimos que, numa situação destas não se lhe aproveita a invocação da presunção em causa.”
D - Não assiste, contudo, razão ao tribunal a quo, bastando, para aferir tal conclusão, atentar ao regime legal em vigor, tendo presente a factualidade em causa - conclusão que, de resto, é confirmada pelos Acórdãos citados no despacho recorrido.
E - Tal como já mencionado supra, e como decorre da leitura da petição inicial e dos documentos a ela juntos, os serviços jurídicos que originaram a dívida peticionada nos presentes autos foram todos prestados até 2011.
F - O ora Recorrido alegou, em sede de contestação, o pagamento da dívida peticionada - veja-se, nesse sentido, o artigo 5.º da Contestação apresentada, onde se pode ler que “Sucede que tal alegação não corresponde à verdade (motivo pelo qual vai expressamente impugnada), porquanto o R. já pagou à A. o referido valor”).
G - Voltando agora os olhos para o regime legal da prescrição presuntiva, dispõe o artigo 312.º do C.C. que “as prescrições de que trata a presente subseção fundam-se na presunção de cumprimento”.
H - Estatui, por seu lado, a al. c) do artigo 317.º do C.C., prescreverem no prazo de dois anos os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais – previsão que abrange o crédito em discussão nos presentes autos, pois que falamos de serviços de advocacia.
I - Por seu turno, o n.º 1 do artigo 313.º do referido diploma legal dispõe que “a presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a divida tiver sido transmitida por sucessão.”
J - Para completar a análise do regime legal, importa ainda atentar ao artigo 314.º do C.C. que estabelece considerar-se “confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou a praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de pagamento”.
K - Ora, tendo presente tal regime legal, decorrido que está o prazo legalmente estabelecido de dois anos, alegado o pagamento e inexistindo qualquer confissão, judicial ou extrajudicial do devedor, no sentido do não pagamento, nem tão pouco praticado qualquer acto incompatível com a presunção de pagamento prevista na lei, a solução jurídica do presente caso não poderia ser outra que não a da procedência da alegada prescrição presuntiva, com a consequente inversão do ónus da prova, cabendo à Autora provar, nos termos e com a prova legalmente permitida para o efeito, o não pagamento.
L - Esteve, portanto, mal o tribunal a quo ao decidir como decidiu, nomeadamente quando refere que: “Verifica-se que no caso em apreço o réu invoca a referida prescrição presuntiva, mas por outro lado admite que a dívida já existiu, uma vez que que refere, já a ter pago.”
M - Naturalmente que o Réu admitiu a existência do crédito. Só por isso é que o liquidou.
N - Face à concreta factualidade em análise, é, assim, claro, que o tribunal a quo fez uma errónea aplicação do direito ao concreto caso em análise.
[…]
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida e ordenada a sua substituição por outra em conformidade com as alegações e conclusões supra expostas.
Só assim se fazendo a habitual Justiça.!».
1.6. A Autora apresentou contra-alegações motivadas alegando, em substância: (i) que a prescrição invocada pelo Recorrente na contestação inclui-se no âmbito das prescrições presuntivas e não das prescrições extintivas, pelo que a sua simples invocação não extingue o crédito, apenas cria presunção de cumprimento, transferindo o ónus da prova do devedor para a esfera do credor; (ii) e que o disposto na alínea c) do artigo 317.º do Cód. Civil não se aplica ao caso concreto, uma vez que a Recorrida é uma sociedade de advogados com personalidade jurídica, pessoa coletiva que presta aos seus clientes profissionalmente serviços jurídicos, incluindo serviços de representação judicial com assunção de mandato forense, como sucedeu no caso vertente, sendo que a génese e finalidade da prescrição presuntiva invocada pelo Recorrente encontra-se na proteção do devedor contra o risco de satisfazer duas vezes a mesma dívida em casos em que os serviços prestados são-no de uma forma relativamente informal e com prazos de pagamento à vista ou muito curtos, numa lógica de economia local, não sendo habitual exigir-se quitação pelo devedor.
Termos em que concluiu dever o recurso ser julgado integralmente improcedente e, em consequência, mantida a decisão ora recorrida quanto à matéria aqui discutida.
1.7. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Objecto do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 5.º, 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 3, do CPC), sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608, n.º 2., “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal. E porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Consoante resulta das conclusões das alegações do Apelante, a única questão a decidir é a de saber se o Réu, ora Recorrente, se pode prevalecer da prescrição estabelecida na alínea c) do artigo 317.º do Cód. Civil.
*
P.S.- Na sua resposta ao recurso, a Autora suscitou duas questões prévias – a da extemporaneidade do recurso e da inadmissibilidade do recurso. Estas questões encontram-se definitivamente resolvidas no processo, face ao despacho do presente relator, de 13/09/2021, que não foi objecto de reclamação para a conferência (artigos 652.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).
III – Fundamentação
A) Motivação de Facto
Os factos que relevam para a decisão do recurso são os descritos no relatório que antecede (nota de rodapé incluída).
B) Motivação de Direito
Alega o Recorrente, em resumo, que o Tribunal a quo fez uma aplicação errónea do direito ao caso concreto, que a alegação do pagamento da dívida não configura, ao contrário do que foi entendido na decisão recorrida, uma qualquer actuação do Recorrente que permitisse ao tribunal decidir como decidiu – muito menos em sede de despacho saneador -, julgando improcedente a invocada prescrição presuntiva.
Nos termos da alínea c) do art.º 317º, do Cód. Civil, prescrevem no prazo de dois anos “os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.
Prevê-se nesta alínea c) uma prescrição presuntiva que se fundamenta na presunção de cumprimento, como decorre da epígrafe e do normativo contido no art.º 312.º do Cód. Civil.
As prescrições presuntivas de que tratam os artigos 312.º a 317.º do Cód. Civil, são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento; decorrido o prazo legal presume, pois, a lei que a dívida está paga, dispensando, assim, o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderá ser difícil ou, até, impossível, por falta de quitação (Vaz Serra, RLJ, 109.º - 246).
Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 304º, do Cód. Civil, completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
Por sua vez diz-nos o art.º 298º, nº 1 do Cód. Civil que estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
Sobre a natureza e os efeitos jurídicos da prescrição presuntiva estabelecida na alínea c) do artigo 317.º do Cód. Civil, não existe, ao contrário do que afirma a Recorrida, qualquer divergência entre as partes, como se constata do confronto dos respectivos articulados[[2]] e das alegações e contra-alegações de recurso.
Na verdade, o que o Réu sempre afirmou no processo é que tinha direito a prevalecer-se da prescrição presuntiva estabelecida na alínea c), do artigo 317.º do Cód. Civil, presumindo-se, assim, o pagamento da dívida à Autora, ficando esta com o ónus de ilidir a referida presunção de cumprimento.
Daí que tenha concluído a contestação pugnando pela procedência - naturalmente a final - da excepção peremptória de pagamento; na mesma linha se situa a sua perplexidade pela decisão proferida em sede de despacho saneador (cfr. corpo das alegações).
Diga-se, desde já, que acompanhamos o Recorrente quando afirma que não existe qualquer incompatibilidade lógica entre a alegação do pagamento da dívida e a invocação da prescrição presuntiva, considerando-se, assim, que o Tribunal a quo andou mal ao usar este argumento para julgar improcedente a excepção invocada. Diferente seria se o Recorrente discutisse a existência da dívida, o seu montante, vencimento ou de outras características da dívida, se invocasse a compensação ou outra forma de extinção da obrigação diferente do cumprimento, se suscitasse a invalidade do contrato de que promana a dívida, então, sim, não poderia aproveitar-se da prescrição presuntiva porque estava, de algum modo, a contradizer o cumprimento da dívida.
Como se viu, a alínea c) do art.º 317.º do Cód. Civil tem aplicação a “créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.
Já se viu que o objectivo da prescrição presuntiva é o de proteger o devedor da dificuldade de prova e corresponde, em regra, a dívidas que se pagam em prazos curtos e sem que ao devedor seja entregue documento de quitação, ou sem que seja corrente conservá-lo.
Como já referimos, as prescrições presuntivas de que tratam os artigos 312.º a 317.º do Cód. Civil, fundam-se na presunção de cumprimento, ou seja, apenas têm por efeito fazer presumir o cumprimento da obrigação respectiva pelo decurso de um certo prazo, não conferindo ao devedor, como sucede com a prescrição ordinária, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, visto não ser extintiva de direitos.
Assim, provado o decurso do prazo presume-se o cumprimento, recaindo sobre o credor o ónus de ilidir a presunção, mediante prova em contrário, ou seja, provando o não cumprimento ou pagamento.
Todavia, essa prova só pode resultar de confissão expressa (artigo 313º) ou tácita (artigo 314º) do “devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão”, entendendo-se que há confissão tácita “se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.
A especialidade, aqui, reside em que a recusa a depor ou a prestar juramento (que, em geral, tem o mesmo efeito que a recusa a depor, no âmbito da prova por confissão, como resulta do artigo 559º, nº 3, do Código de Processo Civil) não é livremente apreciada pelo juiz, como em regra sucede (artigo 357º, nº 2, do Código Civil).”
Ora, tendo presente o citado regime legal, decorrido que está o prazo legalmente estabelecido de dois anos (as facturas venceram-se em 30/09/2011 e a acçao foi proposta em 01/08/2020), alegado que foi pelo Réu (devedor) o pagamento e inexistindo qualquer confissão, judicial ou extrajudicial do devedor, no sentido do não pagamento, nem tendo, sequer, sido praticado por este qualquer acto incompatível com a referida presunção de pagamento, a solução jurídica do presente caso não poderá ser outra que não a da procedência da alegada prescrição presuntiva, com a consequente inversão do ónus da prova, cabendo à Autora provar, nos termos e com a prova legalmente permitida para o efeito, o não pagamento.
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Não se olvida que a Autora-Recorrida alegou, na contestação e nas contra-alegações de recurso, que o seu crédito, por respeitar a um crédito de uma sociedade de advogados, pessoa colectiva dotada de personalidade jurídica e com contabilidade organizada, não se inclui no âmbito das prescrições presuntivas e em especial na estabelecida na alínea c) do artigo 317.º do Cód. Civil, por entender que não estavam em causa serviços prestados no exercício de profissão liberal, mas a prestação, por pessoa colectiva (sociedade de advogados), de serviços jurídicos, incluindo serviços de representação judicial a coberto de mandato forense.
A Recorrida estriba esta sua alegação no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/10/2010, proferido no Proc. n.º 843/08.7JLSB.L1 (Relator Gouveia Barros) e nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 11/10/2011 e 23/02/2012, proferidos, respectivamente, nos Processos n.ºs 151882/10.0YIPRT-A.P115 (Relatora Maria Cecília Agante) e 154791/10.9YIPRT-A.P116, (Relator Ramos Lopes), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Ora, adianta-se, desde já, que não se concorda com esta alegação da Recorrida.
Não se desconhece que esta concreta questão tem suscitado controvérsia na jurisprudência, onde também avultam decisões no sentido de que os serviços jurídicos em causa, ainda que praticados por uma sociedade de advogados, se enquadram na actividade da advocacia (profissão liberal), aplicando-se aos respectivos créditos o regime das prescrições presuntivas, [[3]-[4]].
Sobre esta mesma temática pronunciou-se profusamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-06-2013 (Relator Eurico Reis), disponível em www.dgsi.pt., nos seguintes termos:
«No caso ajuizado, o elemento fulcral é o tratar-se de créditos por serviços prestados no exercício de profissão liberal. Ora, tal elemento está demonstrado, contrariamente ao que a autora, recorrida, sustenta. Na verdade, encontra-se provado que a autora é uma sociedade por quotas que tem por objecto a prestação de serviços na área da contabilidade, sendo certo que os serviços que estão na base dos honorários reclamados se traduziram, essencialmente, em consultoria fiscal (segundo a petição, a autora efectuou para a ré, conforme o contratado, estudos económicos, análises contabilísticas e trabalhos de organização empresarial, efectuou pedidos de isenções e acompanhou os pro­cessos administrativos e burocráticos, obtendo benefícios fiscais para a ré). Ser­viços, portanto, que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, sendo indiferente para o legislador a qualificação jurídica da entidade que os presta; tanto da letra como do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os presta.”.
E, como bem alude a recorrente, essa posição é também seguida em outros arestos, nomeadamente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29 de Maio de 2012 (relator Manuel Pinto dos Santos), em cujo sumário se lê:
I - É enquadrável na previsão da al. c) do art. 317º do CCiv. o crédito de uma sociedade por quotas resultante de serviços prestados ao réu no âmbito de um projecto de arquitectura com este contratado, quando o objecto social daquela consiste, precisamente, na prestação de serviços de elaboração de projectos de tal natureza e respectivo licenciamento, mediante a cobrança de honorários.
II - Isto porque o que releva para o efeito é a natureza dos serviços em causa e não o facto de serem prestados por uma pessoa singular ou por uma sociedade comercial.
Em sentido inverso, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Outubro de 2010 (relator Gouveia Barros), propõe que:
“(…), decisivamente, o crédito da requerente não cabe na previsão da alínea c) do mencionado artigo porquanto não emerge do exercício de profissão liberal pois, como é intuitivo, uma sociedade, enquanto tal e dada a sua própria natureza, não exerce nenhuma profissão.
Ora, mesmo que a autora prestasse os seus serviços através de profissionais liberais (facto nem sequer alegado), o crédito da recorrente emerge do contrato de prestação de serviços e não do exercício da actividade de tais profissionais.
Ou seja, a prescrição presuntiva invocada pela recorrida apenas abarca os créditos de que sejam titulares os profissionais liberais, emergentes de serviços prestados (ou despesas efectuadas) no âmbito da respectiva profissão, não se estendendo aos créditos de quaisquer outras entidades sobre os terceiros beneficiários de tais serviços.
Concede-se que o que vem de afirmar-se não é isento de controvérsia pois já se entendeu que “para efeitos da aplicação do artigo 317º, c) do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta” (Ac. STJ de 12/9/2006, Cons. Nuno Cameira).
Entendeu-se no caso invocado que “os serviços na área da contabilidade, traduzidos em consultoria fiscal, designadamente a realização de estudos económicos e análises contabilísticas (…) se enquadram substancialmente no exercício duma profissão liberal”, dizendo-se ainda que “tanto da letra como do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito se define unicamente pela natureza dos serviços e não da entidade que os presta”.
Ora, com o devido respeito, a afirmação transcrita não nos parece isenta de dificuldades, tanto no que tange ao elemento literal como no que concerne à intenção que lhe está subjacente.
Com efeito, será porventura temerário sustentar que a expressão “profissões liberais” abarca a actividade dos entes societários e não estritamente das pessoas singulares (“dos arquitectos, engenheiros e agentes técnicos de engenharia, dos médicos, médicos veterinários e dentistas, dos enfermeiros e parteiras, dos professores e explicadores, dos advogados e solicitadores, dos desenhadores” como refere Mário de Brito (CCAnotado, vol. I, pág.407).
Por outro lado, a razão de ser das prescrições presuntivas radica na circunstância de “as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir, por via de regra, quitação, ou pelo menos não se conservar por muito tempo essa quitação” (Almeida Costa, Obrigações, 4ª ed. pág. 795).
Tem por isso razão a recorrente quando assinala que, na situação dos autos, tal circunstancialismo não se verifica, porquanto todos os pagamentos têm necessariamente de ser acompanhados de documento de quitação e este deve ser incorporado na contabilidade e aí permanecer por largo lapso de tempo.
Aliás, radica por certo na mesma ordem de considerações a diferenciação operada na alínea b) do mesmo artigo, ao estabelecer igual presunção a favor das dívidas resultantes da aquisição de bens a comerciantes e industriais, mas excluindo-a quando tais bens se destinam ao exercício da “actividade industrial” do devedor (entendendo-se tal expressão com o alcance que a doutrina e a jurisprudência lhe conferem, ou seja, qualquer actividade económica produtora de riqueza).”
Sem prejuízo do respeito que é sempre devido pelas opiniões contrárias que estão minimamente fundamentadas, não pode o presente Colectivo Julgador hic et nunc sufragar a opinio juris manifestada neste último acórdão (o da Relação de Lisboa).
Vejamos.
Considerar que “actividade industrial” significa qualquer actividade económica produtora de riqueza é inaceitável, por redutor, pois, se assim fosse, que sentido teria dividir os produtos da criatividade humana, materiais ou imateriais, em bens e serviços?
E, em última análise, para que serviriam as outras alíneas desse art.º 317º do Código Civil? Pois não são - ou podem ser - os estabelecimentos referidos na alínea a) detidos por comerciantes, incluindo sociedades comerciais, e não existe, quer na linguagem comum quer na jurídica, a expressão “indústria hoteleira” (que pode servir estudantes)?
E será que essas entidades não produzem riqueza? E o mesmo não acontece também com aqueles que exercem profissões liberais?
4.3. Por razões de ordem lógica e ontológica tem de entender-se, repete-se, à luz das instruções consubstanciadas nos três números do art.º 9º do Código Civil - e porque o inverso seria absurdo pois, por definição, o Legislador não pratica actos inúteis e, consagrando sempre as soluções mais acertadas, sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3) -, que as várias situações descritas nas três alíneas do art.º 317º do Código Civil configuram realidades materiais totalmente distintas e diversas entre si.
E, admitido esse pressuposto, que não é apriorístico, antes resulta de raciocínios de natureza lógica, carece apenas determinar o significado da expressão “no exercício de profissões liberais”.
Ao proceder à interpretação deste conceito, tem forçosamente que ser reconhecido que as sociedades comerciais exercem uma actividade e não desempenham ou exercem uma profissão.
Porém, como resulta do estatuído nos nºs 1 e 3 do atrás citado art.º 9º do Código Civil, mais do que às palavras escritas no texto legal, há que atender à mens legis - ou seja, ao chamado “espírito da Lei”, que mais não é do que uma emanação dos já referenciados valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade.
E porque assim é, é equitativo e proporcional considerar, como aqueles dois outros arestos antes identificados (do STJ e da Relação do Porto), que, para o que aqui se discute, deve valer a actividade material concretamente realizada e não a qualificação jurídica da entidade com quem foi contratualizada a prestação de serviço, mais não seja porque a inversa sempre constituiria uma injustificada manifestação de preferência e privilégio concedidos às sociedades em detrimento dos profissionais liberais isolados, o que geraria uma situação de concorrência desleal favorecedora daqueles que já são, à partida, económica e sociologicamente mais poderosos. [sublinhado nosso]
E isso, nunca por nunca, poderá ser entendido como constituir a vontade do Legislador.
Aliás, bem pelo contrário, sublinha-se.» (Fim de citação).
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Só podemos sufragar a posição sustentada neste aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-06-2013, por mais consentânea com a letra e o espírito da lei.
Consideramos, pois, que para efeitos da aplicação da alínea c) do artigo 317.º do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta.
Revertendo ao caso dos autos tem-se por apodítico que estão em causa créditos por serviços jurídicos prestados no exercício de profissão liberal. Na verdade, a Autora e Recorrida é uma sociedade de advogados que tem por objecto a prestação de serviços jurídicos de consultoria e/ou patrocínio judiciário, serviços característicos de profissão liberal, sendo indiferente que sejam prestados por ente societário.
Por conseguinte, sendo aplicável ao caso a alínea c) do artigo 317.º do Cód. Civil, decorrido que se mostra, manifestamente, o prazo da prescrição presuntiva, que não foi interrompido, e não tendo o Réu renunciado a ela, outrossim a invocando, presume-se que o pagamento foi efectuado (artigo 312º do Código Civil).
Nestes termos, procede o recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que julgue verificada a excepção de prescrição invocada, presumindo-se que o Réu/Recorrente efectuou o pagamento do crédito reclamado pela Autora/Recorrida, presunção que a Autora poderá elidir em julgamento, nos termos e com os limites apontados.
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Atento o seu decaimento, as custas do recurso ficam a cargo da Autora/Recorrida – artigo 527.º do CPC.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, em consequência revogam a decisão recorrida no segmento impugnado, que substituem por este acórdão que julga verificada a excepção de prescrição presuntiva invocada, presumindo-se que o Réu/Recorrente efectuou o pagamento do crédito reclamado pela Autora/Recorrida, presunção que esta poderá elidir em julgamento, nos termos e com os limites apontados.
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- Custas do recurso pela Autora/Recorrida.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 18 de Novembro de 2021
Manuel Rodrigues
Ana Paula Albarran Carvalho
Nuno Lopes Ribeiro
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[1] De acordo com a própria Autora, os últimos serviços foram prestados em 2011 e a correspondente factura foi emitida em 30/09/2011 (cfr. Docs. 1 e 2 juntos com a PI)
[2] Uma nota especial para os artigos 14.º a 16.º da Contestação do Réu e para a conclusão K) das suas alegações de recurso.
[3] Cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/03/2015, Proc.º n.º 102608/13.9YIPRT.P1 (Relator Henrique Araújo), acessível em www.dgsi.pt., no qual se considerou que  “a forma como se encontra organizada a entidade que presta os serviços específicos duma actividade liberal é indiferente para a definição do âmbito de aplicação da alínea c) do artigo 317º, pois o que releva para esse efeito é a própria natureza desses serviços[4]. E estes são, indiscutivelmente, específicos do exercício da advocacia.”
[4] No mesmo sentido, ver o acórdão do STJ de 12/09/2006, no processo n.º 06A1764; o acórdão do TRL, de 25/06/2013, no processo n.º 92437/11.1YYPRT-A.L1-1; e o acórdão do TRP, de 29/05/2012, no processo n.º 212/11.1TVPRT.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.