Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1361/14.0YRLSB.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: RECUSA DE ÁRBITRO
IMPARCIALIDADE
INDEPENDÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Apresenta-se como tempestivo o pedido de recusa de árbitro deduzido no prazo de 15 dias após conhecimento de todos os factos que fundamentam o pedido de recusa.
2. O árbitro tem o dever de revelar todas as circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência.

3. A omissão do dever de revelação, só por si, não implica necessariamente que haja falta de independência e imparcialidade do árbitro.

4. Esses atributos têm se der aferidos perante as concretas circunstâncias do caso em apreciação.

5. A nomeação do mesmo árbitro nos 3 anos anteriores, pela mesma sociedade de advogados, em processos de arbitragem necessária no âmbito de litígios abrangidos pela Lei n.º 62/2011, em cerca de 50 arbitragens, sendo que, em 19 delas, a nomeação provém da mesma parte e/ou suas associadas, e relativa à mesma substância ativa, correspondem a circunstâncias, que quer aos “olhos das partes”, que não as conhecia na sua totalidade e extensão, quer objetivamente, são suscetíveis de criarem fundadas dúvidas sobre a independência e isenção do árbitro.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO:

Em 29/01/2014, e conforme consta da Ata de Instalação do Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2011, de 12/12, foi constituído o Tribunal Arbitral para dirimir o litígio referente ao exercício de direitos de propriedade industrial emergentes das Patentes Europeias n.º (...) e n.º (...), relativas à substância ativa (...), em que são demandantes (...) e Demandada (...)

Constituem o Tribunal:

- O árbitro Presidente, Dr. (...), designado por acordo dos outros árbitros;

- O árbitro nomeado pelas Demandantes, através do escritório de Advogados das mesmas - (...) -, Dr. MM;

- O árbitro nomeado pela Demandada, Prof. Doutor (...).

Por requerimento apresentado em 19/09/2014, dirigido aos árbitros, a Demandada (...) (fls. 73-103), e na sequência de esclarecimentos prestados pelo co árbitro, Dr. MM, ao abrigo do artigo 14.º, n.º 2 da Lei da Arbitragem Voluntária (aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, doravante designada por NLAV), suscitou o incidente de recusa do árbitro.

Para o efeito, invocou, em síntese, o seguinte[1]:
a) Que, numa reunião realizada no passado dia 23.07.2014, com vista a solicitarem um parecer técnico sobre as questões visadas no presente litígio, os mandatários da Demandada tomaram conhecimento que o seu interlocutor havia desempenhado as funções de perito em arbitragem necessária em curso, instaurada pelas aqui Demandantes, representadas igualmente pelos seus advogados da Sociedade de Advogados (...), e em que também era árbitro designado pelas Demandantes o Senhor Dr. MM; arbitragem essa que versaria justamente sobre o exercício de alegados direitos de propriedade industrial das Demandantes emergentes das Patentes Europeias (...) (...) e (...) (...) relativamente a medicamentos genéricos contendo a substância ativa (...), sobre a qual a Demandada nada mais sabia nem sabe;
b) Que, “por forma a avaliar do cabal cumprimento do disposto no art. 13.°, n.°s 1 e 2 da NLAV”, veio a Demandada requerer nestes autos em 02.09.2014 que fossem prestados esclarecimentos pelo árbitro Senhor Dr. MM, o qual os prestou nos termos seguintes:
“1 º Nos últimos 3 anos tive a honra de ser indicado como árbitro, por partes representadas pela distinta sociedade de advogados “(...) & Associados”, em cerca de 50 arbitragens necessárias no âmbito da Lei nº 62/2011, de 12 de Dezembro. Em muitas delas, no entanto, a instância extinguiu se, pelas mais variadas razões, antes de ter sido proferida qualquer decisão de mérito sobre o fundo das questões em apreço. Outras estão ainda em curso e as que já terminaram têm as respetivas decisões publicadas no BPI.
2.º Em 19 destas arbitragens (incluindo a presente) a Demandante é a (...) e/ou empresas consigo relacionadas, estando em causa a substância ativa (...).
3.º As substâncias ativas envolvidas nas demais arbitragens desta natureza (Lei 62/2011) foram ou são: (…)
4.º O dever deontológico de confidencialidade a que estou obrigado não me permite, naturalmente, revelar detalhes sobre o conteúdo, isto é, sobre as concretas questões controvertidas que estão a ser apreciadas em cada uma das outras arbitragem (em curso) que envolvem terceiros e a mesma substância ativa (...) (ou outra qualquer).”
c) Que a NLAV prevê expressamente no seu art. 9.°, n.° 3, que “Os árbitros devem ser independentes e imparciais”; e no art. 13.°, n.° 1, estabelece um dever geral de revelação de “(…) todas as circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência”, o qual, nos termos do seu n.° 2, impende sobre o árbitro e se mantém durante todo o processo arbitral.
d) Que, no tocante à questão de saber como determinar o âmbito do dever de revelação, a questão de saber qual o critério a adotar para avaliar se o árbitro se encontra perante “circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas”, a arbitragem interna e internacional conta com preciosos contributos desenvolvidos pela soft law, isto é, pela adoção de códigos de conduta e princípios éticos, que, embora não sejam juridicamente vinculativos, servem de guia e orientação, dos quais é paradigmático o das Directrizes da IBA on Conflicts of Interests in International Arbitration da International Bar Association (“IBA”), aprovadas em 22.05.2004;
e) Que, também, o Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem, na sua versão de 2014, estabelece o dever de revelação no seu art. 4°, cujo n° 1 prevê que “O árbitro e o árbitro convidado têm o dever de revelar todos os factos e circunstâncias que possam fundadamente justificar dúvidas quanto à sua imparcialidade e independência, mantendo-se tal obrigação até à extinção do seu poder jurisdicional”;
f) Que, muito embora o art. 13.º, n.ºs 1 e 2, da NLAV não o especifique, é pacificamente aceite que a revelação do árbitro deve ocorrer em momento imediatamente seguinte ao da sua designação e constitui uma obrigação contínua ao longo do processo arbitral; e que, em face das circunstâncias reveladas, a parte pode entender iniciar o processo de recusa de árbitro nos termos do n.º 2 do art. 14.º da NLAV;
g) Que é ponto assente na doutrina e jurisprudência atualmente dominante que a violação do dever de revelação não acarreta por si só fundamento de recusa; com efeito, impõe-se analisar em concreto as circunstâncias para concluir sobre a falta de independência ou imparcialidade do árbitro;
h) Que sendo deduzido processo de recusa de árbitro a parte contrária deve ser ouvida, sob pena de violação do princípio do contraditório; e, posteriormente, deverá o tribunal arbitral decidir sobre a recusa deduzida com a participação do árbitro visado (cfr. n.º 2 do art. 14.º da NLAV).
i) Que a designação frequente de um mesmo árbitro - “repeat arbitrators” - colide diretamente com os dois requisitos essenciais da independência e da imparcialidade, os quais são corolários do dever de revelação; tornando-se necessária uma análise caso por caso, com avaliação das circunstâncias específicas, tanto numa perspetiva objetiva como subjetiva, para determinar se a independência e a imparcialidade de um árbitro se encontram comprometidas quando este é designado frequentemente pela mesma parte ou mesmo grupo de empresas, e/ou em que se colocam problemas semelhantes, ou quando um árbitro é designado frequentemente pelo mesmo advogado ou sociedade de advogados, ou ainda quando um árbitro é frequentemente designado para arbitragens que se reportam aos mesmos factos ou negócio, por poder ser visto pelas partes e pelos outros árbitros como detentor de uma vantagem ou conhecimento dos factos superior aos outros co-árbitros, o que pode justificar a recusa de árbitro.
j) Que da Lista Laranja das mencionadas Diretrizes da IBA, constam, entre outras as situações em que: «3.1.3. O árbitro foi nomeado, nos três anos anteriores, para exercer tal função em duas ou mais ocasiões, por uma das partes ou por coligada de uma das partes»; «3.1.5. O árbitro atualmente actua, ou actuou nos três anos anteriores, como árbitro em outro processo arbitral em assunto relacionado envolvendo uma das partes ou coligada de uma das partes»; e «3.3.7. O árbitro foi o destinatário, nos três últimos anos, de mais de três nomeações pelo mesmo consultor jurídico ou pelo mesmo escritório de advocacia”;
k) Que as circunstâncias ora reveladas e levadas ao conhecimento da Demandada preenchem as três situações específicas constantes de tais enunciações, as quais são de molde a suscitar fundadas dúvidas quanto à imparcialidade ou independência do co-árbitro Senhor Dr. MM e que, por esse motivo, impunham o dever de revelação, que o mesmo não observou;
l) Que não deve alegar-se em contrário que, no caso das arbitragens necessária ao abrigo da Lei n.° 62/2011, tal como a dos presentes autos, é prática corrente a designação de árbitros dentro de um grupo restrito e especializado, sendo costume as partes designarem o mesmo árbitro para os diversos litígios, pois o direito da propriedade intelectual se encontra, conceptual e efetivamente, muito longe e afastada dos nichos de conhecimento jurídico especializado a que aludem a regras IBA (designadamente o direito marítimo e o enquadramento jurídico do mercado de “commodities”) e nas quais o elenco de juristas conhecedores é muito reduzido; existindo em Portugal largas dezenas de juristas, nacional e internacionalmente reconhecidos pela sua experiência e qualidade nessa área;
m) Que o facto do árbitro em causa ter sido designado como tal, nos últimos três anos, por partes representadas pela sociedade de advogados (...) & Associados, representantes das Demandantes nos presentes autos, em 50 arbitragens necessárias ao abrigo da Lei n.° 62/2011, coloca necessariamente a questão da compensação económica do árbitro, nomeadamente que esta pode constituir um incentivo para que o árbitro ambicione ser novamente designado;
n) Que considera a Demandada ainda extremamente relevante o facto de em 19 das 50 arbitragens necessárias em o árbitro foi designado, a Demandante é a (...) e/ou empresas consigo relacionadas, estando em causa a substância ativa (...), o que a convence de que os mesmos se reportam a litígios emergentes de direitos de propriedade industrial e em que estão em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, designadamente relativas à Patente Europeia n.° (...); pelo que o co-árbitro Senhor Dr. MM encontra-se em vantagem ou tem um conhecimento mais aprofundado dos factos controvertidos em relação aos demais co-árbitros nos presentes autos, designadamente factos que não pode discutir com os restantes co-árbitros;
o) Que o co-árbitro Senhor Dr. MM assumiu já uma posição quanto às questões controversas a apreciar nos presentes autos importando conhecimento externos advenientes das circunstâncias que não revelou, contribuindo para a admissão nestes autos de um documento corporizando um relatório pericial produzido numa arbitragem em que a Demandada não participou mas onde, ao que se crê, aquele terá sido exercido funções de árbitro por designação das aqui Demandantes e no qual são apreciadas questões técnicas substancialmente idênticas às dos autos;
p) Que estes factos, na sua globalidade, são de molde a colocar em causa a sua imparcialidade, pelo que conclui a Demandada que a violação do dever de revelação conjuntamente com as circunstâncias ora reveladas, constituem circunstâncias que podem suscitar fundadas dúvidas sobre a independência e imparcialidade do co-árbitro Senhor Dr. MM, pelo que se requer a sua destituição nos termos dos Arts. 13.º e 14.º, n.º 2 da NLAV.

Cumprido o princípio do contraditório, as Demandantes pronunciaram-se quanto ao incidente de recusa nos seguintes termos, que se assim se resumem[2]:
a) Que há muito que a Demandada, como todas as empresas de genéricos envolvidas neste tipo de contencioso, sabia que o Sr. Dr. MM era árbitro em diversas arbitragens para as quais havia sido nomeado por indicação de clientes da (...) e nada tinha dito sobre o assunto;
b) Que, embora as Directrizes da IBA não sejam normas de direito e, muito menos, de direito nacional, as Demandantes não põem em causa que elas possam constituir um instrumento auxiliar na densificação dos conceitos de imparcialidade e independência constantes do artigo 13.º n.º 3 da LAV;
c) Que as Directrizes da IBA e o Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem não dizem, em lado algum, que a nomeação plúrima de um árbitro pela mesma parte ou o pelo mesmo advogado sejam motivos para a sua recusa;
d) Que a “lista laranja” referida nessas Directrizes da IBA e invocada pela Demandada como fundamento para a recusa do Sr.
Dr.MM pela Demandada não constitui um elenco de factos que devam dar lugar ao afastamento dos árbitros, embora inclua entre os factos que possam suscitar dúvidas sobre independência dos árbitros a sua nomeação repetida pelas mesmas partes ou pelos mesmos advogados;
e) Que, porém, existem circunstâncias que devem ser tomadas em conta na interpretação e aplicação desta regra das Directrizes da IBA que põem em causa os argumentos da Demandada, designadamente:
a. As Directrizes da IBA dizem textualmente que elas não podem ser lidas em abstracto, antes devem ser integradas nos factos concretos do caso, donde decorre que a nomeação anterior por mais de duas vezes ou em assunto relacionado com o da arbitragem em questão, desacompanhada de outros factos relevantes para o caso, é irrelevante para determinar se o árbitro pode ser considerado destituído de imparcialidade ou independência;
b. Essas nomeações têm de ser integradas por outras circunstâncias do caso que levem a considerá-las, em concreto, como susceptíveis de criar a dúvida sobre a imparcialidade ou independência, como resulta evidente do facto de as mesmas Directrizes da IBA advertirem que a revelação das circunstâncias previstas na “lista laranja” não resulta numa desqualificação automática do árbitro;
c. Por outro lado, o facto de um árbitro não revelar espontaneamente qualquer facto integrado na “lista laranja” que com ele ocorra não pode significar, ainda de acordo com as mesmas Directrizes da IBA que o mesmo seja tido como parcial ou dependente da parte que o nomeou;
d. Finalmente, a nota 6 das Directrizes da IBA, relativa, exactamente à questão da nomeação repetida, prevê: “Pode ser prática em certos tipos específicos de arbitragem, como a arbitragem marítima ou de mercadorias, de chamar árbitros de um núcleo restrito e especializado. Se, em tais campos, é uso e prática das partes com frequência nomear o mesmo árbitro em casos diferentes, nenhuma divulgação deste facto é necessária, já que todas as partes na arbitragem devem estar familiarizadas com tais usos e práticas”; sendo esta exactamente a situação destes autos.
e. Que a Lei nº 62/2011 impôs um sistema de arbitragem necessária para os litígios em que titulares de patentes invocassem os seus direitos contra empresas que requeressem autorizações de introdução no mercado para medicamentos genéricos, estabelecendo um prazo de trinta dias — que é geralmente considerado como um prazo de caducidade do direito de agir – para a parte demandante iniciar a arbitragem, a contar da data em que tal pedido fosse publicitado pelo Infarmed;
f. Que esta imposição legal incentivou uma abundante litigância, em níveis nunca antes verificados, com base em patentes farmacêuticas, originando centenas de processos arbitrais;
g. Que, ao contrário do que a Demandada parece sugerir, o panorama português em matéria de juristas peritos em matéria de patentes é reduzidíssimo, existindo, para além dos advogados que habitualmente litigam nestas matérias, um pequeno número de docentes universitários com conhecimentos em matéria de patentes que ultrapassam os meros conceitos básicos;
h. Que, assim, se formou um reduzido grupo de individualidades, a quem os titulares de patentes e os comerciantes de genéricos recorrem para a nomeação como árbitros, procurando garantir que os árbitros que nomeiam dominam as matérias em causa e podem por isso compreender com profundidade as questões em debate e promover a tomada de decisões bem fundamentadas e juridicamente estruturadas;
i. Que, como é de conhecimento de todas as partes normalmente envolvidas nestes litígios, uma dessas individualidades é o Senhor Dr. MM, conhecido especialista em direito da propriedade industrial, nomeadamente em matéria de patentes, docente destas matérias na Universidade Católica do Porto e autor de obra publicada sobre as mesmas, muito citada pela jurisprudência e pela doutrina portuguesas, geralmente tido como uma autoridade nesta matéria;
j. Que o Sr. Dr. MM mostrou já nestes autos que é imparcial e independente das Demandantes e não hesita em decidir em sentido contrário às pretensões destas quando assim entende em sua consciência, pois neles votou favoravelmente uma decisão importantíssima proferida por este Tribunal Arbitral, que absolveu a Demandada da instância cautelar;
k. Que a Demandada não alega uma única circunstância relacionada com o caso dos autos que permita converter as anteriores nomeações do Sr. Dr. MM como árbitro numa causa de recusa nos termos das Directrizes da IBA ou da LAV.

Em 06/10/2014, o Tribunal Arbitral proferiu a Deliberação que se encontra inserida a fls. 106 a 129, concluindo do seguinte modo:

“(…) delibera-se julgar improcedente o incidente de recusa do Árbitro Sr. Dr. MM: (i) por ter sido deduzido fora do prazo previsto no nº 2 do art. 13º da NLAV ; e (ii) por não ocorrerem “circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência”, como exigido pelo nº 3 do mesmo artigo.”

O árbitro nomeado pelas Demandantes apresentou voto de vencido que se encontra inserdo a fls. 124 a 129, onde concluiu no sentido da procedência do pedido de recusa de árbitro.

Em 27/10/2014, a Demandada dirigiu-se ao Tribunal da Relação de Lisboa pedindo que seja apreciado o pedido de recusa, conforme consta do requerimento de fls. 02 a 38, alegando, no essencial, em conformidade com os fundamentos apresentados aquando da formulação do pedido de recusa junto do Tribunal Arbitral, formulando, contudo, as seguintes conclusões:
1. Em face das circunstâncias reveladas, a aqui Requerente vê-se forçada a concluir que as mesmas são de molde a suscitar fundadas dúvidas sobre a sua independência e imparcialidade do árbitro Dr. MM.
2. Em primeira linha, coloca-se, desde logo, a questão de o mesmo não ter observado o dever de revelação que sobre si impendia à luz do n.º 1 do Art. 13.º da NLAV.
3. Como referido supra, a violação do dever de revelação não acarreta por si só fundamento de recusa.
4. Contudo, tal como refere Marc Henry, a omissão de revelação constitui um factor objectivo, que em conjunto com outras circunstâncias objectivas não reveladas, é suscetível de fazer suspeitar, aos olhos das partes, da independência e imparcialidade do árbitro. Com efeito, algumas circunstâncias, por si só, não poderão justificar tal dúvida, mas o facto de não terem sido reveladas, conjuntamente, poderão fundamentar legitimamente tal dúvida.
5. É o que se verifica nos presentes autos!
6. A respeito do dever de revelação, não se diga que no caso das arbitragens necessárias ao abrigo da Lei n.º 62/2011 se verifica a excepção a tal dever de revelação da nota de rodapé 6 à Directriz da IBA constante do ponto 3.1.3, nem tão-pouco que é prática corrente a designação de árbitros dentro de um grupo restrito de árbitros para os diversos litígios, por forma a concluir-se que a revelação não seria necessária, porquanto tal argumento não corresponde à verdade.
7. Em segundo lugar, é por demais relevante o facto do árbitro em causa ter sido designado como tal, em menos de três anos, por partes representadas pela mesma sociedade de advogados, representantes das Demandantes nos presentes autos, em 50 (!) arbitragens necessárias ao abrigo da Lei n.º 62/2011.
8. Com efeito, perante tal facto coloca-se necessariamente a questão da compensação económica do árbitro, nomeadamente que esta pode constituir um incentivo para que o árbitro ambicione ser novamente designado, colocando fundadas dúvidas, quer “aos olhos das parte” que de uma “terceira pessoa razoável”, sobre a independência e imparcialidade do árbitro.
9. Considera a Requerente ainda extremamente relevante o facto de em 19 das 50 arbitragens necessárias em o árbitro foi designado, a Demandante é a (...) e/ou empresas consigo relacionadas, estando em causa a substância ativa (...).
10. Adicionalmente, e em face disso, o árbitro Dr. MM encontra-se em vantagem ou tem um conhecimento mais aprofundado dos factos controvertidos em relação aos demais co-árbitros nos presentes autos, designadamente factos que não pode discutir com os restantes co-árbitros, colocando-se, inclusivamente, colocar o problema do “issue conflict”.
11. Por fim, o árbitro Dr. MM assumiu já uma posição quanto às questões controversas a apreciar nos presentes autos importando conhecimento externos advenientes das circunstâncias que não revelou, contribuindo para a admissão nestes autos de um documento corporizando um relatório pericial produzido numa arbitragem em que a Demandada, aqui Requerente, não participou mas onde terá exercido funções de árbitro por designação das Demandantes.
12. Estes factos, na sua globalidade e conjunto, são de molde a colocar em causa a sua imparcialidade. É o aludido fluxo de negócios de que fala a jurisprudência francesa supra citada.
13. Tal como refere o Prof. (...), “o presente caso é claro, e dificilmente poderia mesmo ser mais claro, pois se uma situação como a presente não causa, numa apreciação objetiva, “fundadas dúvidas sobre a imparcialidade e independência” pela repetição de arbitragens por indicação da mesma parte e dos mesmos mandatários, em caso algum elas existirão para repeat arbitrators com esse fundamento. Considero que isso é incompatível com os requisitos legais mínimos a que deve obedecer a prática da arbitragem, voluntária ou necessária.” (cfr. Doc. n.º 3 junto).
14. Em face de todo o exposto, conclui a Requerente que, a violação do dever de revelação conjuntamente com as circunstâncias reveladas, constituem circunstâncias que podem suscitar fundadas dúvidas sobre a independência e imparcialidade do co-árbitro Dr. MM, pelo que se requer a sua destituição nos termos dos Arts. 13.º e 14.º, n.º 3 da NLAV.
15. Com efeito, considera a Requerente que fica irremediavelmente abalada a confiança que a Requerente depositava na independência e imparcialidade do co-árbitro impugnado e, por consequência, no Tribunal e na sua legítima aspiração a obter uma decisão justa.
16. Por fim, refutam-se quaisquer acusações de que o presente processo de recusa constitui o uso de um meio dilatório por parte da Requerente para evitar que os presentes autos sejam julgados, porquanto a seriedade dos factos aqui reportados fala por si, ao que acresce o facto das Demandantes não serem isentas de responsabilidade no sucedido, porquanto tinham conhecimento das circunstâncias em causa e poderiam tê-las revelado, evitando, assim, a recusa nesta fase do processo arbitral.

Juntou ainda 15 documentos.

Por despacho da Relatora foi ordenado o cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 60.º da NLAV.

O Sr. árbitro recusado pronunciou-se conforme consta de fls. 281 a 284, defendendo que, em seu entender, não existem, nem poderiam existir quaisquer dúvidas acerca da sua isenção e independência.

O Tribunal Arbitral, através do seu Presidente, veio dizer que mantinha a posição expressa na Deliberação tomada em 06/10/2014 (fls. 285).

Igualmente o árbitro nomeado pela Demandada veio informar que nada mais tem a acrescentar ao que afirmou no voto de vencido (fls. 288).

Entretanto, as Demandantes atravessaram nos autos o requerimento de fls. 290 a 302, arguindo a falta e nulidade da sua citação, o qual veio a ser objeto do despacho da Relatora proferido em 13/01/2015 (fls. 330 a 333), que indeferiu a referida arguição de falta e nulidade da citação.

Em 28/01/2015, e conforme consta de fls. 347 a 400, as Demandantes apresentaram resposta, concluindo e pedindo que o incidente de recusa seja julgado extemporâneo e, caso assim não se entenda, que seja indeferido o pedido de recusa.

Juntaram ainda documentos e um parecer.

A Demandada, invocando o direito ao contraditório, apresentou o requerimento de fls. 490 a 511.

Os autos foram remetidos aos vistos.

Colhidos os mesmos, importa proferir decisão, considerando que nada obsta ao conhecimento do pedido de apreciação do incidente de recusa de árbitro, não se justificando ou julgando pertinente a realização de quaisquer diligências preparatórias da decisão a proferir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

As ocorrências processuais relevantes ao conhecimento do presente incidente constam do antecedente Relatório.

As questões colocadas à apreciação e decisão deste Tribunal Superior são, em suma, as seguintes:
a)- Tempestividade da dedução do incidente de recusa de árbitro.
b)- Independência e imparcialidade dos árbitros e violação do dever de revelação.
c)- O caso concreto em apreciação.

III- DO CONHECIMENTO DO INCIDENTE DE RECUSA DE ÁRBITRO

Identificadas as questões a decidir, passamos à sua análise.
a)- Tempestividade da dedução do incidente de recusa de árbitro:

Resulta da documentação junta aos autos que, através de carta datada de 8 de Novembro de 2013, as Demandantes, ora Requeridas, intentaram contra a Demandada, ora Requerente, arbitragem necessária, na qual foi suscitado o presente incidente de recusa de árbitro.

Consta igualmente, sem oposição das Demandantes, que veio ao conhecimento da Demandada, em 23/07/2014, que o Sr. Dr. MM, árbitro nomeado por indicação da sociedade de Advogados que representa as Demandantes, igualmente tinha sido nomeado noutro processo arbitral, versando o mesmo sobre o exercício de direitos de propriedade industrial das Demandantes relativos às PE também em causa nesta arbitragem necessária.

Consta igualmente dos autos, também sem oposição das Demandantes, que o Sr. Dr. MM prestou os esclarecimentos acima resumidos e transcritos, tendo a ora Requerente sido notificada dos mesmos em 11/09/2014.

Consta ainda da Deliberação em crise que o árbitro Presidente solicitou, em 30/10/2014, ao árbitro Dr. MM que prestasse informações, tendo-lhe tal sido solicitado nos seguintes termos:
Com vista ao esclarecimento de factualidade que se me afigura poder ser relevante para a decisão do incidente de recusa de árbitro ora pendente, venho solicitar a V. Exª a prestação de informações sobre a existência de eventuais processos arbitrais em que tenha intervindo também como Árbitro e no qual seja parte a aqui Demandada (...), e, se for caso disso, se foi ou é neles patrocinada pelos mesmos ilustres Mandatários que por ela intervêm nestes autos. Mais solicito que, a existirem tais processos, informe sobre as datas de início e, se já findos, de conclusão das respectivas instâncias arbitrais.”

Em resposta, o mesmo informou:

“Encontro nos meus arquivos 3 processos de arbitragens no âmbito da Lei nº 62/2011 que poderão ser de interesse no âmbito da informação solicitada:

1º Demandante: (...)

Mandatários: (...) & Assoc.

Substância activa: (...)

Demandadas: (...) e outras.
Mandatários desta Demandada: (...), Soc. de Advogados, com intervenção pessoal do Sr. Dr. (...).

Árbitros: Senhora Professora (...), indicada pelas Demandadas, M. MM, indicado pela Demandante, e Senhor Professor (...), como Árbitro-Presidente.

Arbitragem iniciada em Fevereiro de 2012 e encerrada, por decisão homologatória de transacção, salvo erro, em Novembro de 2013 (o acordo homologado pela decisão do TA tem data de 15/07/2013).

2º Demandantes: (...) e outras.

Mandatários: (...) & Assoc.

Substância activa: (...)

Demandadas: (...) e outras.
Mandatários desta Demandada: (...), Soc. de Advogados, com intervenção pessoal do Sr. Dr. (...).

Árbitros: Senhor Professor (...), indicado pelas Demandadas, M. MM, indicado pelas Demandantes, e Senhor Conselheiro (...), como Árbitro-Presidente.

Esta arbitragem teve o seu início em Fevereiro de 2012, tendo incluído um procedimento cautelar.

A decisão final da acção principal foi notificada às partes em 23 de Setembro de 2013.

3º Demandante: (...)

Mandatários: (...) & Assoc.

Substância activa: (...)

Demandadas: (...) e outras.

Mandatários desta Demandada: (...), Soc. de Advogados, com intervenção pessoal do Sr. Dr. (...).

Árbitros: Senhor Professor (...), designado pelo Tribunal da Relação de Lisboa em substituição das Demandadas, M. MM, indicado pela Demandante, e Senhor Professor (...), como Árbitro-Presidente.

Arbitragem iniciada em Fevereiro de 2012 e encerrada em Abril de 2013. Nestes autos, a Demandada (...) renunciou expressamente ao seu direito de apresentar contestação."

Em 19/09/2014, a Demandada apresentou o pedido de recusa de árbitro.

Entendeu-se na Deliberação em crise que:

“…à data de início da presente arbitragem – por carta do Mandatário das Demandantes de 08.11.2013, na qual foi expressamente consignada a designação por estas como Árbitro do Sr. Dr. MM – já a Demandada tinha conhecimento de que este Árbitro desempenhara idênticas funções, por designação por partes representadas pelos mesmos Mandatários, em três litígios contra a mesma ora Demandada.

Por conseguinte, o prazo de 15 dias para a dedução do presente incidente decorreu a partir da recepção daquela carta de 08.11.2013 (à qual os Mandatários da Demandada responderam por carta de 29.11.2013, designando o seu Árbitro), pelo que se achava há muito esgotado quando a Demandada apresentou o aludido requerimento de 19.09.2014.”

Analisada a questão, não cremos que tal conclusão possa ser corroborada.
Vejamos.

Estipula o artigo 14.º, n.º 2 da NLAV:

“Na falta de acordo, a parte que pretenda recusar um árbitro deve expor por escrito os motivos da recusa ao tribunal arbitral, no prazo de 15 dias a contar da data em que teve conhecimento da constituição daquele ou da data em que teve conhecimento das circunstâncias referidas no artigo 13.º.”

O artigo 13.º prescreve quais os fundamentos de recusa, estipulando no seu n.º 1, do seguinte modo:

Quem for nomeado para exercer as funções de árbitro deve revelar todas as circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência.”

O n.º 2 prescreve igual dever ao longo de todo o processo arbitral relativamente a circunstâncias “supervenientes ou de que só tenha tomado conhecimento depois de aceitar o encargo.”

No caso presente, aquando da aceitação do encargo, o árbitro recusado nada revelou nos termos prescritos no n.º 1 do citado artigo 13.º.

Apenas veio prestar as informações supra referidas após a Demandada o ter solicitado, complementadas na sequência da solicitação do árbitro Presidente.

É inquestionável que a Demandada conhecia as anteriores intervenções do árbitro recusado nos processos em que foi Demandada e em que o mesmo árbitro foi nomeado – aquelas expressamente aludidas na Deliberação e acima transcritas.

Porém, o fundamento do pedido de recusa não incide especificamente sobre essas intervenções. As mesmas fazem apenas parte de um todo mais vasto.

Situação que a Deliberação recorrida olvidou e nem sequer mencionou na análise que fez quando analisou a questão da tempestividade do incidente de recusa.

Ora, como decorre da leitura dos fundamentos do incidente de recusa, as circunstâncias que a Demandada invoca reportam-se ao número de arbitragens revelado pelo árbitro em questão, nas quais foi indicado por partes representadas pela mesma sociedade de Advogados (“(...) & Associados”), nos últimos 3 anos, que correspondem a cerca de 50 arbitragens necessárias ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12/12, e pela mesma parte e/ou suas associadas, em relação à mesma substância ativa, em 19 arbitragens necessárias, também nos últimos 3 anos.

E o conhecimento da totalidade das intervenções do árbitro recusado apenas veio ao conhecimento da Demandada após ter solicitado, em 02/9/2014, esclarecimentos sobre as intervenções do referido árbitro.

Não existem elementos nos autos que permitam concluir que, apesar do árbitro recusado não ter revelado as circunstâncias que fundam agora o incidente de recusa, a Demandante tinha conhecimento de todas as nomeações do referido árbitro.

Por conseguinte, a contagem do prazo de 15 dias previsto no artigo 13.º, n.º 1 da NLAV, no caso em apreço, apenas se pode ter como iniciado após a Demandada ter sido notificada do esclarecimento prestado pelo árbitro recusado.

Situando-se essa data em 11/09/2014 e tendo o incidente sido suscitado em 19/09/2014, não se encontrava esgotado o aludido prazo de 15 dias, pelo que o mesmo não foi deduzido extemporaneamente.

b)- Independência e imparcialidade dos árbitros e violação do dever de revelação:

1. Como decorre do supra exposto, e se quisermos sintetizar o objeto do presente incidente, está em causa apreciar se a nomeação de um árbitro, em arbitragens necessárias na área dos medicamentos (ao abrigo da Lei n.º 62/2011), 50 vezes, nos últimos 3 anos, e pela mesma parte e/ou suas associadas, em relação à mesma substância ativa, 19 vezes, também nos últimos 3 anos, constituiu fundamento para uma das partes, aquela que não procedeu a tais nomeações, recusar o referido árbitro.

A esta questão, porém, não se pode dar de imediato uma resposta categórica negativa ou positiva, já que, como sempre, mas com particular ênfase nesta matéria em que estão em causa questões relacionadas com a independência e imparcialidade dos árbitros, impõe-se, num primeiro passo, uma breve análise do regime legal que regula esta matéria para, num segundo momento, se ponderarem as circunstâncias que rodeiam o caso concreto.

No que concerne ao enquadramento legal da questão, importa ter em conta que a Lei n.º 62/2011, de 12/12 (que cria um regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos), remete para a regulação prevista na NLAV, sendo esta a aplicável ao caso em apreço (cfr.  artigos 2.º e 3.º, n.º 7 da Lei n.º 62/2011 e artigos 3.º e 4.º, n.º1, da parte preambular, da Lei n.º 63/2011).

E desde já se diga, esclarecendo-se, assim, os pressupostos jurídicos que presidem à presente decisão, que o facto da arbitragem em curso se apresentar como necessária, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, em nada interfere ou altera os dados da questão, ou seja, os princípios da independência e da imparcialidade que regem as funções exercidas pelos árbitros designados no âmbito da arbitragem necessária são exatamente os mesmos que se encontram previstos para as arbitragens voluntárias.[3]

Na verdade, e conforme se deixou claro no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/92[4], embora à arbitragem necessária, dada a sua natureza publicista baseada em ato legislativo, não se adequem as teses contratualistas que vigam na arbitragem voluntária, as quais buscam o fundamento na auctoritas arbitral decorrente da vontade das partes, os tribunais arbitrais formados no âmbito da arbitragens necessárias também se incluem na categoria de tribunais, estando os árbitros que nele exercem funções – “juízes-árbitros” que desenvolvem uma função jurídica pela qual declaram o Direito (jurisdictio) -, sujeitos aos mesmos princípios de independênia e imparcialidade.

Assim, e como se refere neste aresto:

“A Constituição da República, no artigo 211.º, n.º 2[5], inclui, expressamente, os tribunais arbitrais entre as diversas categorias de tribunais.  E não distingue entre tribunais arbitrais voluntários e tribunais arbitrais necessários. Legítimo será concluir que, na nossa ordem constitucional, a jurisdictio não tem necessariamente de ser exercida por órgãos do Estado: certos litígios podem ser decididos por árbitros, em resultado de convenção ou disposição da lei.

E «mesmo que os tribunais arbitrais se não enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos de soberania (CRP, artigo 205.º), nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos como categoria autónoma de tribunais» (cfr. o Acórdão n.º 230/86 do Tribunal Constitucional — Diário da República, I Série, de 12 de Setembro de 1986).”

 Donde decorre e, como alguns autores mencionam, ainda que reportando-se às arbitragens voluntárias, mesmo que na fonte do sistema de arbitragem esteja um contrato, a arbitragem é sempre judicial pelo seu objeto, sendo que a última contestação se aplica indiscutivelmente às arbitragens necessárias.

Sendo assim, o que revela para a apreciação da questão a decidir é o comando normativo inserto no artigo 9.º, n.º3 da NLAV que enuncia o princípio que rege nesta matéria, ou seja, “Os árbitros devem ser independentes e imparciais.”[6]

Embora a lei não forneça uma noção do que seja independência e imparcialidade dos árbitros, costuma a doutrina esclarecer que a imparcialidade apela a um conceito mais subjetivo (posição do árbitro perante as partes e seus advogados) e a independência ao aspeto mais objetivo (mais conexionada com o objeto do concreto em litígio e pretensões das partes).[7]

Noções doutrinárias à parte, importa acentuar que esses atributos constituem um dever, uma obrigação dos árbitros para com as partes, tratando-se, aliás, de um princípio aceite nas leis de arbitragem de vários países.

Porém, a densificação desses conceitos, nem sempre é feita em normas jurídicas stricto sensu. Nesta matéria acaba por ser determinante o recurso à chamada soft law, i.e., normas éticas e deontológicas inseridas em instrumentos nacionais e internacionais acolhidos em sede arbitral.

A nível nacional releva o Código Deontológico do Árbitro, aprovado em 11/04/2014, pela Associação Portuguesa da Arbitragem (APA)[8], prescrevendo no seu artigo 3.º os referidos princípios de independência e imparcialidade.[9]

A nível internacional relevam especialmente[10] as Diretrizes da IBA relativas a Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional, aprovadas em 22/05/2004 pelo Conselho da Internacional Bar Association (IBA), e revistas em 23/10/2014[11], que, apesar de não terem caráter vinculativo, estabelecem um conjunto de princípios relativos à imparcialidade, independência e dever de revelação dos árbitros, orientadores nesta matéria, onde consta, desde logo, o dever do árbitro ser imparcial e independente e o dever de revelação das circunstâncias que aos olhos das partes possam suscitar dúvidas quanto à imparcialidade e independência do árbitro (cfr. (1) Princípio Geral (1) e (3) Divulgação pelo Árbitro).

Outros exemplos se poderiam mencionar, como por exemplo, o Regulamento de Arbitragem da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara do Comércio Internacional (CCI) ou as Recomendaciones do Club Español del Arbitraje por igualmente prescreverem tais princípios, bem como o dever dos árbitros revelarem as circunstâncias que os podem colocar em crise.

De referir em especial que as Diretrizes da IBA estabelecem em anexo umas Listas (Vermelha, Laranja e Verde) que descrevem as circunstâncias concretas que devem ser objeto de atenção por parte do árbitro e das partes no que concerne a situações que revelam conflito de interesses ou que podem suscitar dúvidas razoáveis sobre a independência e imparcialidade dos árbitros.

A independência e a imparcialidade são, pois, caraterísticas essenciais para o correto desempenho das funções de árbitro.

Num Estado de Direito Democrático como o nosso, a partir do momento em que o árbitro assume esse status, o de “juiz-árbitro”, a sua atividade judicial encontra-se estritamente conexionada com a prossecução de um processo equitativo, na formulação constante do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

Como refere Miguel Galvão Teles no estudo supra citado, “…a imparcialidade de quem julga representa, a par da independência, um requisito mínimo do processo equitativo.”[12]

Desse modo, a independência e imparcialidade dos árbitros constituem garantias do exercício legítimo dos direitos das partes, mormente do princípio do contraditório e da obtenção de uma decisão em conformidade com as regras de direito e com princípios de equidade, não sujeita à defesa dos interesses particulares de quem os indica.

Neste sentido, e conforme se enfatiza no acórdão do STJ de 12/0/2011[13], também nos litígios arbitrais têm de estar asseguradas as caraterísticas de independência e imparcialidade, um vez que, “para além de tais características serem essenciais à configuração de um órgão como «tribunal», estaria obviamente em sério risco a possibilidade de um juiz não isento, por dependente de uma das partes ou pessoalmente envolvidos, de forma profunda, na matéria do litígio que deve resolver como terceiro/decisor cumprir e fazer cumprir o princípio da igualdade das partes e assegurar que a solução do pleito decorre segundo as regras de um processo equitativo.”

Acrescentando-se no mesmo aresto que “nesta perspetiva, é evidente que a designação de algum dos árbitros pela parte não pode significar nem implicar que esse elemento do tribunal fique colocado numa situação de dependência relativamente a quem o nomeou – mas apenas e tão-somente que tal designação assenta numa relação, não de subordinação, mas de confiança da parte do árbitro: confiança nas suas qualidades pessoais, profissionais, técnicas e deontológicas que potenciem uma justa composição da lide, tendo naturalmente particular atenção à posição e pretensões da parte que o designou, mas em perder o fundamental dever de objectividade (que, aliás, se não for cumprido, poderá conduzir a uma descredibilização do árbitro parcial perante a «comunidade arbitral» e perante os restantes árbitros, incluindo o presidente…).”

Daqui decorre que a independência e imparcialidade dos árbitros permitem que se diga que o árbitro não é um representante da parte que o indicou. Nesse sentido, o artigo 3.º, n.º 2 do Código Deontológico do Árbitro acima mencionado, prescreve de forma lapidar: “O árbitro designado pela parte não é seu representante ou mandatário estando em todas as circunstâncias, sujeito às obrigações deontológicas previstas neste Código.”

Esperam legitimamente as partes que os árbitros sejam pessoas de bem, íntegras e honestas, regendo a sua atividade por esses valores. Por consequência, inerente à relação que se estabelece entre as partes e os árbitros está o princípio da confiança. Donde a insegurança da parte quanto à independência e imparcialidade do árbitro, causada por comportamentos tidos como menos transparentes, como seja, a violação do dever de revelação, quebram a referida relação de confiança.[14]

Para além do já mencionado artigo 9.º, n.º 3 da NLAV, a matéria relacionada com os árbitros e com o tribunal arbitral encontra-se regulada nos artigos 8º a 17.º da NLAV, com especial enfoque quanto à matéria que ora nos ocupa, nos artigos 13.º e 14.º.

O artigo 13.º, n.º 1 estabelece um princípio essencial nesta matéria que é o do dever de revelação, ao prescrever do seguinte modo:

“Quem for convidado para exercer as funções de árbitro deve revelar todas as circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência”, aplicando-se tal princípio ao longo de todo o processo arbitral.

Por consequência e conforme estipula o n.º 3 do citado artigo 13.º, “um árbitro só pode ser recusado se existirem circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade ou independência ou se não possuir as qualificações que as partes convencionam.”

O dever de revelação das circunstâncias que possam fundar suscitar fundadas dúvidas sobre a independência e imparcialidade do árbitro configura-se como um dever ético e jurídico do árbitro assente na mencionada relação de confiança e de transparência da atuação do árbitro.[15]

As circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a independência e imparcialidade do árbitro não se reconduzem a meras suposições, devem antes corresponder a dúvidas razoáveis, relacionadas com factos reais e substanciais, como sejam todas as relações profissionais, comerciais e pessoais entre os árbitros, as partes e os seus advogados.

O dever de revelação não se deve confundir com o dever do árbitro se manter imparcial e independente, mas sim com a divulgação das circunstâncias que aos olhos das mesmas se possam enquadrar nas fundadas dúvidas aludidas no preceito.[16]

Discute-se na doutrina se o critério (test) a utilizar pelo árbitro quanto ao dever de revelação assenta na sua valoração das circunstâncias (critério que apela à subjetividade do árbitro) ou à valoração que dessas circunstâncias faria um terceiro razoável (critério com teor mais objetivado).[17]

Porém, o que também vem sendo defendido, entendimento consentido pelo artigo 13.º, n.º 1 da NLAV, é que a ponderação das circunstâncias que devem ser reveladas não assenta em critérios pessoais e próprios do árbitro, nem sequer em critérios estritamente objetivos, devendo ser aferidas considerando-se, na visão das partes, se as mesmas são suscetíveis de levantar dúvida razoável quanto à sua independência e imparcialidade do árbitro.

Em caso de dúvida, deve o árbitro optar pela revelação, conforme consta no n.º 5 do artigo 4.º do Código Deontológico do Árbitro (“Havendo dúvida sobre a relevância de qualquer facto, circunstância ou relação, prevalecerá sempre o dever de revelação”) e na Diretriz (3.c) da IBA (“Eventual dúvida quanto à necessidade de divulgação de determinados fatos ou circunstâncias por um árbitro deve ser dirimida em favor da divulgação”).

De qualquer modo, quer a revelação de factos e circunstâncias, quer a sua omissão, não significam, respetivamente, que o árbitro não esteja apto a desempenhar as funções, ou que o mesmo não seja independente e imparcial (nesse sentido, veja-se artigo 4.º, n.º 6 do Código Deontológico do Árbitro e Aplicação Prática dos Princípios Gerais, 4 e 5, da IBA).

Assim, só a caraterização em concreto das circunstâncias reveladas, ou não reveladas, pode justificar a conclusão sobre a falta de independência e imparcialidade.

c)- O caso concreto em apreciação:

No caso em apreço, o árbitro designado pelas Demandantes não revelou aquando da aceitação da sua nomeação que nos últimos 3 anos tinha sido nomeado 50 vezes em arbitragens semelhantes à dos autos, sendo que em 19 foi indicado pelas Demandantes, reportando-se estes à mesma substância ativa.

O artigo 13.º, n.º 2 da NLAV, como se referiu, impõe aos árbitros um dever de revelação das circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência.

Também os instrumentos de soft law mencionados prescrevem igual obrigação.

O dever de revelação depende de um juízo crítico e valorativo do árbitro que conhecedor das circunstâncias concretas que podem suscitar a “fundadas dúvidas”, deve analisá-las, não apenas numa perspetiva objetiva, mas também na perspetiva das partes (“aos olhos das partes” como acima se mencionou) e decidir se as mesmas podem ou não fundar alguma reserva das partes que minem o princípio da confiança e da transparência essenciais à aferição da independência e imparcialidade exigíveis ao seu desempenho.

Contudo, a não revelação, não determina que se tenha como demonstrada a sua desqualificação automática para o exercício da função, conforme acima se mencionou e que as Diretrizes do IBA e o Código Deontológico do Árbitro também reconhecem.

O que não significa que não exista violação do referido dever de revelação.

Na situação em apreço, afigura-se de mediana clareza concluir que impendia sobre o árbitro nomeado pelas Demandantes a obrigação de revelar, aquando da sua nomeação, que nessa qualidade já tinha sido indicado pelos mesmos mandatários, 50 vezes, nos últimos 3 anos, e pela mesma parte e/ou suas associadas, em relação à mesma substância ativa, 19 vezes, também nos últimos 3 anos.

Na verdade, à luz do critério que deve ser prevalecente – acima mencionado como sendo o critério que atende à valoração que a parte faz das circunstâncias que possam suscitar dúvidas sobre a independência e imparcialidade do árbitro – afigura-se justificável que a parte questione esses atributos perante uma reiterada nomeação do mesmo árbitro pelas mesmas partes quando está em causa o mesmo tipo de interesse em discussão, sobretudo quando o árbitro não cumpriu o dever de revelação a que se encontra obrigado.

De qualquer modo, e como também se deixou assinalado, em caso de dúvida, sempre prevalece o dever de revelação.

Acresce, ainda, e como infra melhor se dirá que não é líquido que no âmbito das arbitragens como a presente se possa defender o afastamento do dever de revelação.

Questão diferente, como também já se mencionou, é se as concretas circunstâncias em apreço, ainda que não tenham sido reveladas, como deveriam ter sido, correspondem a fundamento de recusa.

Contrariamente ao decidido na Deliberação arbitral, entendemos que a resposta a dar a esta questão só poder ser afirmativa.

Decorre do já mencionado artigo 13.º, n.º 3 da NLAV que um árbitro só pode ser recusado se existirem circunstâncias que possam suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência ou se não possuir qualificações que as partes convencionaram.

Não está obviamente em causa a parte final do preceito, pelo que resta apurar se as circunstâncias que vieram a ser conhecidas pela Demandante são suscetíveis de criarem, aos olhos da mesma, fundadas dúvidas sobre a independência e imparcialidade do árbitro indicado pelas Demandantes.

A extensão do número de indicações e nomeações pelos mesmos mandatários, ainda que possam estar em causa Demandantes diversas – os autos, na verdade, não fornecem elementos concretos sobre essa específica abordagem da questão – correspondem a circunstâncias, que aos olhos da parte, não podem deixar de evidenciar o risco de estarem criadas condições de dependência económica do árbitro relativamente a quem assim o indica (e, por conseguinte, das partes que delegam essa indicação naquela sociedade de advogados) e que lançam uma indelével suspeita sobre a atuação do árbitro em prol dos interesses privados dessa(s) parte(s).

Anátema que se adensa com a concretização das nomeações nos referidos 19 processos. Aqui estão em causa as mesmas partes Demandantes e a mesma substância ativa, num período de tempo relativamente curto.

Por muito distanciamento que um árbitro assim nomeado possa ter em relação a quem o nomeia e aos interesses da parte, afigura-se-nos que “aos olhos” da parte contrária, dificilmente se poderá censurar que suscite dúvidas quanto à manutenção incólume dos princípios da independência e da imparcialidade.

A proximidade que resulta das reiteradas nomeações num espaço de tempo não muito distanciado no tempo, cria a aparência de “comprometimento” com os interesses da parte e, subliminarmente, lança fundadas suspeitas sobre uma possível dependência económica do árbitro em relação a essa parte, que fundam, de forma que se nos afigura suficientemente objetivada, ainda que, admite-se, mitigada por uma perspetiva subjetiva da parte, a existência de circunstâncias que se enquadram nas “fundadas dúvidas” a que se alude nos n.º 1 e 3 do artigo 13.º da NLAV.

Também numa perspetiva meramente objetiva, são circunstâncias que suscitam dúvidas justificáveis quanto à imparcialidade ou independência do árbitro, conforme consta das Diretivas da IBA[18], enquadrando-se a situação em várias especificações da Lista Laranja acima aludida, tais como:

“3.1.3. O árbitro foi nomeado, nos três anos anteriores, para exercer tal função em duas ou mais ocasiões, por uma das partes ou por coligada de uma das partes”

“3.1.5. O árbitro atualmente atua, ou atuou nos três anos anteriores, como árbitro em outro processo arbitral envolvendo uma das partes ou coligada de uma das partes.”

“3.3.8. O árbitro foi o destinatário, nos três últimos anos, de mais de três nomeações pelo mesmo consultor jurídico ou pelo mesmo escritório de advocacia.”

Argumenta-se, porém, na Deliberação arbitral que as Diretrizes da IBA não podem ser entendidas em abstrato e que a nomeação repetida só pode revelar para a qualificação do árbitro como desprovido de imparcialidade ou independência, se acompanhada de outros factos que conduzam a tal conclusão, e que a não revelação de qualquer facto integrado na Lista Laranja não determina uma desqualificação automática do árbitro.

É certo que as situações específicas descritas nas listas, incluindo as da Lista Laranja, correspondem a situações não taxativas, como se reconhece na explicação prática dos princípios gerais que estão na base daquelas Listas.

É certo também, como já se teve o ensejo de referir, que a não revelação não determina a desqualificação automática do árbitro.

Porém, a recondução da concreta situação aos factos especificados nas referida Lista Laranja, dificilmente se pode considerar como não correspondendo a circunstâncias que objetivamente justificam a recusa.

Trata-se de situações em que a reiterações das nomeações só não justificam a recusa de árbitro se as partes, perante a revelação, aceitaram o árbitro. As situações descritas na Lista Laranja, baseam-se, no fundo, em critérios de razoabilidade, bom senso e de atuação de boa-fé por parte do árbitro e das partes.

Ora no caso presente, pelo menos, os critérios de razoabilidade e de bom senso encontram-se completamente exauridos perante a reiteração das nomeações, pela mesma parte, relativamente aos mesmos interesses em jogo.

Não se corrobora, assim, o entendimento que subjaz à decisão arbitral que, independentemente do número de nomeações, e das circunstâncias em que as mesmas ocorrem, o comprometimento da independência e imparcialidade apenas se pode apurar em face de circunstâncias adicionais que teriam de ser concretamente especificadas e apuradas.

Ora, como é bom de ver, a seguir-se tal critério, estaria aberta a porta para se admitir que a nomeação reiterada do mesmo árbitro, pela mesma parte, para o mesmo tipo de litígio, nunca estaria sob a alçada do escrutínio da contraparte, a não ser que a mesma demonstrasse em cada caso e perante concretas circunstâncias que essas nomeações comprometiam a independência e imparcialidade do árbitro.

Não é de todo esse o critério que a nossa a lei elegeu para fundamentar a recusa de árbitro, nem é também o seguido nos mencionados instrumentos internacionais utilizados em sede de arbitragens.

O que está em causa é se essas repetidas nomeações criam, na ótica da parte, um receio, uma dúvida fundada, sobre as caraterísticas que norteam a atividade dos árbitros.

E a extensão das nomeações, num espaço de tempo relativamente curto e situado no tempo, referente ao mesmo tipo de litígio, aliado à omissão da revelação dessas nomeações por parte do árbitro, como já se disse, quer numa perspetiva subjetiva (aos olhos das partes), quer numa perspetiva objetiva (considerando a extensão das nomeações, o tempo em que ocorreram e os interesses em jogo) conduzem a um juízo valorativo positivo no sentido de estarem reunidas as condições que fundamentadamente permitem à parte suscitar reservas e dúvidas sobre a independência e imparcialidade do árbitro.

Independentemente das nuances de cada caso em que o árbitro já teve participação (que não estão, nem podem estar em apreciação no incidente de recusa de árbitro), estando em apreciação questões relacionadas com a mesma substância ativa, o thema decidedum de todas as arbitragens gravita na mesma zona de interesses, num espaço de tempo relativamente curto, o que, a nosso ver, em última instância, e considerando sempre a perspetiva da parte que se vê confrontada com tal situação,  pode colocar em crise um julgamento em conformidade com o comando constitucional inserto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa nos termos acima aludidos.

Reconhece-se, contudo, que é muito difícil, senão mesmo impossível, determinar em concreto quanto vezes é necessário a mesma parte nomear o mesmo árbitro para que se coloque em xeque a sua independência e imparcialidade em termos que não sejam meramente faliciosos ou que apenas visem fomentar manobras dilatórias da parte recusante.

Porém, no caso em apreço, a repetição de nomeações do mesmo árbitro, pela mesma parte, relativamente a litígios onde está em causa a mesma substância ativa, num espaço de tempo relativamente curto, é de tal forma expressiva, e tão desconforme com o número de nomeações “admitidas” pela Lista Laranja, que se afigura mais do razoável considerar que objetivamente existe um risco provável de ausência de independência e consequente imparcialidade do árbitro assim nomeado.

Será conveniente enfatizar, em face da argumentação expendida na Deliberação arbitral,  que não está em causa uma aplicação automática da mencionada Lista Laranja, por nenhuma outra circunstância ter sido aduzida que seja considerada comprometedora da independência e imparcialidade do árbitro.

A questão assim colocada afigura-se-nos deslocada em termos da correta perspetiva que deve presidir à sua análise.

Na verdade, as situações descritas na Lista Laranja têm carácter objetivo e as nomeações repetidas nas circunstâncias ali mencionadas indiciam claramente comprometimento da imparcialidade e independência do árbitro.

Poderá a parte, confrontada com tal situação, conhecedora dos reais contornos das circunstâncias das anteriores nomeações, considerar que, mesmo perante repetições e sucessivas de nomeações do mesmo árbitro, suscetíveis de integrarem as situações descritas na Lista Laranja, não lhe suscita dúvidas a sua independência e imparcialidade.

Mas também poderá fazer um juízo inverso, assente na desconfiança que decorre da falta de transparência de uma situação com esses contornos, sobretudo quando apenas teve conhecimento da mesma por via da sua própria diligência e não por via da revelação espontânea do árbitro.

Nesse caso, o juízo de apreciação que tem de ser levado a cabo, suscitado que foi o incidente de recusa, é apenas e tão circunscrito à perspetiva da parte baseada na concreta situação, consistente num número expressivo de nomeações do mesmo árbitro, no mesmo tipo de processos, pela mesma parte, num período curto. O que, na ótica da parte, pode razoavelmente fundar o receio de que o referido árbitro mantém uma relação de proximidade com os interesses da parte, suscetíveis de, por sua vez, criarem fundadas dúvidas sobre a manutenção incólume dos princípios da independência e da imparcialidade.

Referem, contudo, as Demandantes que a situação retratada nos autos se enquadra na nota 6 das Directrizes da IBA, que corresponde na versão de 2014, à nota 5, ainda que com igual teor.
Esta nota, aposta ao ponto 3.1.3. acima transcrito, refere textualmente o seguinte:

“Pode ser prática corrente em algumas espécies de arbitragem, tais como aquelas envolvendo commodities ou o setor marítimo, selecionar os árbitros a partir de um grupo restrito e especializado. Se, nessas áreas, o costume for o de as partes geralmente nomearem o mesmo árbitro para controvérsias distintas, a divulgação de tal facto não será necessária desde que todas as partes no procedimento arbitral estejam familiarizadas com tais usos e costumes.”

Referencia o Sr. Dr. MM a fls. 282 destes autos que as arbitragens no âmbito dos medicamentos constituem zonas se hiperespecialização, mesmo no domínio dos direitos de propriedade industrial, em que poucas pessoas possuem conhecimentos que permitam exercer as funções de árbitro nessas arbitragens, nas quais é prática habitual não fazer revelação da nomeação frequente, reconduzindo a situação à mencionada nota das Diretivas da IBA.

A decisão arbitral também defendeu o mesmo entendimento.

Sobre essa questão, cumpre assinalar que, independentemente de se poder discutir se a arbitragem necessária na área dos medicamentos se enquadra na mencionada ressalva, de natureza exemplificativa, e acima transcrita, discussão que se afigura algo estéril face à subjetividade da apreciação que decorre, desde logo, da incompletude da informação que resulta dos autos e que dificilmente se poderia colmatar com a consulta avulsa e casuística de deliberações arbitrais publicadas, o que se nos afigura relevante frisar, para afastar a aplicação da referida ressalva, é que não se descortina que esteja demonstrada nos autos a existência de uma prática (“usos e costumes”) no sentido de ser nomeado o mesmo árbitro para controvérsias distintas (ou seja, nomeações repetidas) e que as partes envolvidas neste tipo de arbitragens (sejam as partes desta arbitragem ou de outras) aceitam a desnecessidade da divulgação desse tipo de nomeações.

Aliás, não deixa de ser sintomático que o Código Deontológico do Árbitro, elaborado em 2014, portanto já em plena vigência da NLAV e, de acordo com a informação constante nos autos, numa fase de exponencial litigância arbitral na área dos medicamentos, não tome partido sobre essa questão, sendo que no artigo 11.º, relativo às disposições finais, recomenda que as normas do mesmo sejam aplicáveis em arbitragens ah hoc, aí se incluíndo a arbitragem necessária ao abrigo da Lei n.º 62/2011, remetendo ainda, mas genericamente, para a interpretação e integração da melhores práticas internacionais designadamente as Diretrizes da IBA (cfr. artigo 1.º, n.º 2).

Como também não deixa de se sublinhar que na Ata de Instalação do Tribunal, no artigo 21.º, tenha sido mencionado que se aplica àquela arbitragem, mormente, a NLAV, sem que nenhuma menção tenha sido feita quanto ao afastamento do dever de revelação previsto na mesma, inclusivamente por aplicação da mencionada ressalva aposta nas Diretrizes da IBA.

Afigura-se-nos, outrossim, que a constatação da verificação dos requisitos que permitiriam aplicar a mencionada ressalva sempre careciam de melhor explicitação e concretização nos autos, não se bastando com a cómoda referênciação a juízos conclusivos, ou quanto muito apelando a conhecimentos e dados suscetíveis de interpretações díspares, nem sequer passíveis de confirmação com cumprimento do incontornável princípio do contraditório, para se poder aprioristicamente concluir no sentido defendido pelas Demandantes e pelo senhor árbitro recusado.

Por outro lado, não está em causa se existem poucas ou muitas pessoas que em Portugal tenham perfil técnico científico para intervir neste tipo de litígios. O que está em causa é a aparente ligação de um determinado árbitro ao mesmo tipo de conflito, indicado sempre pela parte que defende o mesmo tipo de interesse, sem sequer se entender que existe um dever de revelação por parte da pessoa assim nomeada. São, pois, essencialmente, questões de transparência que minam a relação de confiança subjacente a este tipo de procedimentos que, a nosso ver, a parte Requerente coloca em crise neste incidente, e que merecem ser atendidas, nos termos acima expostos.

Em face de todo o exposto, e sintetizando, a apreciação da questão relacionada com a omissão do dever de revelação e princípios da independência e imparcialidade que regem o cargo dos árbitros, a omissão do dever de revelação, só por si, não implica necessariamente que haja falta de independência e imparcialidade do árbitro.

Na verdade, esses atributos têm se der aferidos perante as concretas circunstâncias do caso em apreciação.

A nomeação do mesmo árbitro nos 3 anos anteriores, pela mesma sociedade de advogados, em processos de arbitragem necessária no âmbito de litígios abrangidos pela Lei n.º 62/2011, em cerca de 50 arbitragens, sendo que, em 19 delas, a nomeação provém da mesma parte e/ou suas associadas, e relativa à mesma substância ativa, correspondem a circunstâncias, que quer aos “olhos das partes”, que não as conhecia na sua totalidade e extensão, quer objetivamente, são suscetíveis de criarem fundadas dúvidas sobre a independência e isenção do árbitro.

Procede, assim, o incidente de recusa.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo das Demandantes/requeridas (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça a fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em revogar a Deliberação arbitral proferida em 06/10/2014, porquanto, no caso em apreciação, e face aos elementos que constam dos autos, existem fundadas dúvidas sobre a independência e imparcialidade do árbitro nomeado pelas Demandantes, ora Requeridas, (...), Dr. MM, pelo que, ao abrigo do artigo 14.º, n.º 3 da Lei n.º 63/2011, de 14/12, julgam procedente o incidente de recusa do referido árbitro, suscitado pela Demandada, ora Requerente, (...)

Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 24 de março de 2015

(Maria Adelaide Domingos - Relatora)

(Eurico José Marques dos Reis - 1.º Adjunto)
(Ana Grácio - 2.ª Adjunta)


[1] Neste segmento do presente acórdão transcreve-se o resumo que consta da Deliberação do Tribunal Arbitral sobre o pedido de recusa.
[2] Seguindo-se também aqui o que consta da Deliberação mencionada.

[3] Neste sentido, MIGUEL GALVÃO TELES, “A independência
e imparcialidade dos árbitros como imposição constitucional”
, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida - vol. III, Almedina, 2011, p. 265.
[4] Ac. TC, n.º 52/92, de 05.02.92, em www.tribunalconstitucional.pt .
[5] Cfr. atual redação do n.º 2 do artigo 209.º da Constituição da República Portuguesa.
[6] Este preceito foi introduzido na NLAV mas inspira-se noutros ordenamentos jurídicos que igualmente o prescrevem, conforme anotam RIBEIRO MENDES et al, “Lei da Arbitragem Voluntária Anotada”, Almedina, 2012, p. 25.
[7] Cfr. AGOSTINHO PEREIRA DE MIRANDA, “Dever de Revelação e Direito de Recusa de Árbitro Considerações a Propósito dos Artigos 13º e 14º da Lei da Arbitragem Voluntária”, Novembro de 20013, p. 2 (5), disponível em http://arbitragem.pt/conselhos/deontologia/doutrina/nacional/dever-de-revelacao-e-direito-de-recusa-de-arbitro--2013--agostinho-pereira-de-miranda.pdf 
[8] Disponível no site http://www.caad.pt/files/documentos/CAAD-Codigo_Deontologico-2013-01-09.pdf

[9] O artigo 3.º, n.º 1 prescreve o seguinte: “1. “O árbitro deve julgar com absoluta imparcialidade e independência as questões que forem submetidas à sua apreciação.”
[10] Por ser o resultado de um grupo alargado de trabalho, envolvendo 14 países. Agostinho Pereira de Miranda na ob. cit. p. 7 (22) menciona a este propósito que embora as Diretrizes adotadas “são hoje invocadas e aplicadas, tanto em arbitragens internacionais como nacionais, pelos tribunais judiciais e arbitrais de mais de uma dezena de países, incluindo os Estados Unidos da América, a Suíça, o Reino Unido e a Bélgica. Para além disso, as Diretrizes têm sido incorporadas materialmente ou pro referência, nas leis nacionais dos chamados estados Model Law Plus, de que são exemplos os Emirados Árabes Unidos e Singapura.”
[11] As duas versões, sendo que a última apenas se encontra disponível em inglês, encontram-se publicadas no site http://arbitragem.pt/conselhos/deontologia/boas-praticas/iba/
[12] P. 258.
[13] Proferido no P. 170751/08.7YIPRT.L1.S1 (Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt.
[14] SELMA FERREIRA LEMES, “A independência e a imparcialidade do árbitro e o dever de revelação”, in III Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), Almedina, 2010, p. 44, refere a este propósito: “É do conceito “confiança” que deriva o dever de transparência do árbitro, o dever de revelar fatos ou circunstâncias que possam abalar a confiança gerada nas partes.”
[15] O dever de revelação encontra-se igualmente prescrito nos instrumentos de soft law a que se vem aludindo. Cfr., por exemplo, o artigo 4.º do Código Deontológico do Árbitro, Princípio (3) das Diretrizes IBA e artigo 11.2 do Regulamento CCI/2012.
[16] A Diretriz (3) Divulgação pelo Árbitro da IBA, na sua alínea (a) refere expressamente: “Se houver factos ou circunstâncias que, aos olhos das partes, possam suscitar dúvidas quanto à imparcialidade ou independência do árbitro, cumpre ao árbitro divulga-los às partes, à instituição arbitral ou a outra autoridade responsável pela nomeação (se houver, e se assim requerido por força das normas institucionais aplicáveis) e aos co-árbitros, se houver, antes de aceitar sua nomeação ou, após tal aceitação, assim que deles tiver conhecimento.”(sublinhado nosso)
[17] AGOSTINHO PEREIRA DE MIRANDA, “Dever de Revelação e Direito de Recusa de Árbitro Considerações a Propósito dos Artigos 13º e 14º da Lei da Arbitragem Voluntária”, Novembro de 20013, p. 5, disponível em http://arbitragem.pt/conselhos/deontologia/doutrina/nacional/dever-de-revelacao-e-direito-de-recusa-de-arbitro--2013--agostinho-pereira-de-miranda.pdf
[18] Versão de 2014 (tradução livre, seguindo-se, contudo, a tradução para português das versão de 2004, devidamente adaptada).