Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
52/14.6T8ALQ.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
ANIMAL
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para conhecer de acção onde se peça, ainda que em sub-rogação ou direito de regresso, a condenação da concessionária de uma auto-estrada na indemnização pelos danos materiais resultantes de um acidente de viação ocorrido nessa via, provocado pela entrada e circulação na mesma de um animal, em consequência da omissão de cumprimento de deveres de vigilância que incumbiam à concessionária.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


PARTES:


C... de S... ... Portugal, SA - Autora / Apelante

CONTRA

... – Concessão Rodoviária, SA - Ré / Apelada

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I –RELATÓRIO:


A Autora intentou a presente acção em 13OUT2014, peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 3.058,35 €, acrescida de juros desde a citação, correspondente ao dano causado, em 28JUL2011, na viatura conduzida pelo seu segurado com o embate em animal quando circulava em auto-estrada concessionada à Ré, a qual, no âmbito do respectivo contrato de seguro, já pagou ao seu segurado.¨

A Ré contestou impugnando os factos alegados, invocando a prescrição e requerendo a intervenção acessória da sua seguradora.

Convidadas a pronunciar-se sobre a eventualidade de verificação da incompetência material do tribunal ambas as partes manifestaram o entendimento de não verificação da apontada excepção dilatória.

Após o que foi proferida decisão que, entendendo ser de aplicar ao caso o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, considerou o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo a Ré da instância.

Inconformada, apelou a Autora concluindo ser a relação jurídica em causa a sub-rogação / direito de regresso, regulada pelo direito civil e não pelo direito administrativo e que, de qualquer modo, a situação em causa nos autos não se enquadra no conceito de gestão pública, requisito legal da competência dos tribunais administrativos.

Não houve contra-alegação.
           
II–Questões a Resolver.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas a única questão a resolver é a da competência em razão da matéria do tribunal.

III–Fundamentos de Facto.

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV–Fundamentos de Direito.
          
É hoje entendimento sedimentado (nem isso é posto em causa nos autos) que a responsabilidade pelos danos advenientes de acidentes causados por animais ou objectos que se encontrem nas auto-estradas se insere no âmbito da responsabilidade extracontratual.

O caso dos autos, tal como resulta da configuração dada à causa de pedir e ao pedido na petição inicial, reporta-se precisamente a uma dessas situações (indemnização pelos danos decorrentes de acidente de viação em auto-estrada causado por animal que se encontrava na faixa de rodagem), a qual não se descaracteriza / dilui pelo facto de a Autora exercer o seu direito em sub-rogação / direito de regresso.

Com efeito em ambas as situações[1] o que está em causa e o que determina a essência da questão é sempre a responsabilidade pelo acidente e a consequente fixação de indemnização. A forma ou modo como essa indemnização é paga e as consequências daí advenientes são ainda circunstâncias do cumprimento daquela obrigação de indemnizar, não tendo potencialidade para se autonomizar como causa de pedir autónoma.

Até porque, como no caso dos autos, a sua eventual ocorrência está intrinsecamente dependente da existência da obrigação de indemnização alegadamente cumprida.

Em conclusão, o litígio objecto da acção, ainda que deduzida em sub-rogação / direito de regresso, é a verificação da responsabilidade civil extracontratual da Ré relativamente ao alegado acidente.

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigos 211º, nº 1, da Constituição, 40º, nº 1, LOSJ, e 64º do CPC).

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais vigente à data da propositura da acção determinava, no seu artº 4º, nº 1, al. i)[2], competir aos tribunais da respectiva jurisdição apreciar os litígios que tivessem por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicado o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Por seu turno o nº 5 do art.º 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei 67/2007, 31DEZ, determina que esse regime se aplica também à responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito privado por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

No que respeita às concessões rodoviárias a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos têm-se revelado quase unânime[3] no sentido de que “a natureza privada do concessionário e a regra de que a sua actuação ocorre nos quadros da gestão privada não acarreta a natureza privada de todos os actos que lhe sejam imputáveis praticados no âmbito da concessão. Essa actividade, ao lado de actos de natureza privada, comporta actos enformados pelo direito administrativo decorrentes do uso dos poderes de natureza pública que sejam exercidos” estando a apreciação destes últimos actos integrada na jurisdição dos tribunais administrativos por força das disposições legais citadas. Em particular “a manutenção e a conservação das auto-estradas, bem como a garantia de segurança dos utentes das mesmas[4] fazem parte do complexo de matérias que nas nossas sociedades são essenciais à vida colectiva e que, por tal motivo, são enquadradas pelo Estado de forma a garantir a realização daqueles valores colectivos. Deste modo, as actividades prosseguidas pela Ré relativas à segurança da auto-estrada são enquadradas por normas e princípios de direito administrativo e devem considerar-se como actividades de gestão pública”.

No seguimento dessa jurisprudência, à qual se adere, conclui-se, como no despacho recorrido, pela incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para apreciar o litígio em causa.

E não se invoque, como fazem as partes, o decidido pelo Tribunal dos Conflitos nos acórdãos de 12JAN2012 (proc. 08/11), 28SET2010 (proc. 010/10) e 21JAN2015 (proc. 052/13), no sentido de serem competentes os tribunais da jurisdição comum, porquanto os mesmos não têm aplicação ao caso por aplicarem regime jurídico ou tratarem de situações diversas.

Com efeito no primeiro deles tratava-se de situação abrangida ainda pelo anterior ETAF.

No segundo caso estava em causa a “reivindicação de um prédio pertencente a particulares, alegadamente ocupado pela Ré”, em que “a causa de pedir invocada pelos AA. não se reporta à relação expropriativa, mas antes ao alegado incumprimento de acordos estabelecidos amigavelmente e visando a aquisição do prédio em causa pela via do direito privado”, pelo que se considerou não se estar perante uma relação jurídico-administrativa.

No terceiro caso estava em causa pedido de indemnização pelo desgaste anormal das vias municipais causado pela utilização de máquinas e camiões na sequência de obras de construção de auto-estrada onde se não considerou que “os danos cuja indemnização é peticionada com origem numa utilização anómala das suas vias (…) se situem num patamar diferente daquele em que se situariam se fossem ocasionados por uma entidade privada, ou seja que decorram de acções ou omissões que tenham sido adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

V–Decisão:

Termos em que, na improcedência da apelação, se confirma o despacho recorrido.
Custas pela apelante.



Lisboa, 24JAN2017


                                                                                  
(Rijo Ferreira)                                                                                  
(Afonso Henrique)                                                                                
(Rui Vouga)



[1]-que se distinguem uma vez que a sub-rogação consiste em um terceiro pagar a dívida do devedor ao credor assumindo a posição deste enquanto que o direito de regresso consiste na possibilidade de o devedor que saldou uma dívida própria poder exigir o que pagou de outras pessoas de algum modo causalmente relacionadas com a dívida.                                                                        
[2]-actualmente, face às alterações introduzidas pelo DL 214-G/2015, 2OUT, art.º 4º, nº 1, al. h).
[3]-cf., em www. dgsi.pt, acórdãos de 20JAN2010 (proc. 025/09), 30MAI2013 (proc. 017/13), 27FEV2014 (proc. 048/13), 27MAR2014 (proc. 046/13), 12MAR2015 (proc. 049/14), 07MAI2015 (proc. 05/15), 07MAI2015 (proc. 010/15), 15OUT2015 (proc. 030/15), 04FEV2016 (proc. 025/15) e 20OUT2016 (proc. 021/16) ; em sentido contrário apenas se conhecem os acórdãos de 26ABR2007 (proc. 015/06) e 18DEZ2013 (proc. 028/13) bem como os dois votos de vencido apostos no acórdão de 27FEV2014 (proc. 048/13).
[4]-que por norma se encontram estabelecidas nas bases das respectivas concessões.

Decisão Texto Integral: