Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
162/09.1TYLSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
NOME DE ESTABELECIMENTO
MARCAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: São requisitos para o decretamento da providência prevista no art. 338º-I do Código da Propriedade Industrial a existência de violação ou receio justificado de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade industrial da requerente, e que esta seja titular de tal direito ou esteja autorizada a utilizá-lo.
O nome “Hospital de Todos-os-Santos” que irá denominar um futuro hospital público de grande dimensão estabelece manifesta confusão com o nome, já existente, registado e utilizado, da “Clínica de Todos-os-Santos”.
As palavras “Hospital” e “Clínica” não são só por si susceptíveis de eliminar tal confusão, até porque existem diversos estabelecimentos privados prestadores de cuidados no domínio da saúde com o nome “Hospital”.
O uso repetido da denominação do futuro hospital, quer em diplomas legais, quer junto da comunicação social e do grande público, constitui já violação do direito da clínica requerente, levando à diluição da identidade de tal clínica junto do público, identidade que em grande medida se traduz na sua denominação.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Clínica SA intentou o presente procedimento cautelar contra Ministério da Saúde, pedindo que seja ordenada a cessação imediata do uso da designação “HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS”, sob qualquer forma, em todos os documentos e meios de divulgação em que a mesma já tenha sido utilizada pelo Estado, como seja nos documentos relativos ao concurso público para construção desse hospital e no sítio da internet do Ministério da Saúde.
Pede ainda que seja o Estado, através do Ministério da Saúde, intimado a abster-se de pedir e usar a expressão “HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS” para identificar estabelecimentos de saúde.
Por último, requer a fixação de uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 500,00 a ser paga pelo Ministério requerido por cada dia de atraso no cumprimento da intimação que lhe vier a ser feita.

Alegou e em síntese, ser titular da denominação social, marca, insígnia, nome de estabelecimento e marca comunitária, todos caracterizados pela expressão “Clínica de Todos os Santos”, exercendo a actividade de prestação de serviços médicos há mais de 30 anos.
O Estado, através do Ministério da Saúde, está a lançar a construção de um novo hospital, com a designação “Hospital de Todos os Santos”, o qual, por ser confundível, viola os direitos de propriedade industrial da requerente e potencia a concorrência desleal, podendo causar lesões a si e ao valor do seu sinal e mesmo à saúde pública.

O requerido deduziu oposição, pedindo que a providência seja indeferida por improcedente.

A seu tempo foi proferida decisão que decretou a providência requerida.

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Inconformado, recorre o requerido, concluindo que:
A denominação HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS não deve ser considerada, para os efeitos nos autos, decomposta nos seus elementos, devendo sim ser admitida e valorada na sua totalidade, com todas as características e diferenciação global natural.
Não pode ser desprezada a componente “HOSPITAL” na denominação “HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS”, isto face ao disposto no art. 26º do DL nº 48.357 de 27/4 e no art. 6º do Código Civil.
É inconfundível para o apreciador mediano a realidade de um hospital inserido no Serviço Nacional de Saúde (estabelecimento que não visa o lucro, que assegura uma prestação social constitucionalmente garantida e que cobrará aos utentes, nos casos em que seja aplicável, apenas a taxa moderadora) e um estabelecimento prestador de cuidados de saúde privado com as características da requerida.
A recorrente alegou e provou que a composição gráfica do “O” em volta do “S” tem o significado de “Omnium Sanctorum”, ou seja, “Todos os Santos”, bem como que o mesmo se encontra, ainda hoje, em uso pelo Centro Hospitalar , E.P.E., o que implica a nulidade em sede da oposição prevista nas alíneas a) e b) do nº 4 do art. 238º do CPI.
Não aceita a recorrente que a expressão “Todos os Santos” é de uso corrente quando aplicada ao feriado nacional de 1 de Novembro e que a mesma já não é de uso corrente quando em ligação com o elemento “Hospital” ou “Clínica”, qualificado como desprezível, violando-se assim o disposto no art. 223º nº 2 do CPI.
É do conhecimento público a existência do maior e mais importante estabelecimento hospitalar nacional, fundado por D. João II em 15/5/1492, com o nome “Hospital de Todos-os-Santos”, sendo igualmente público e notório que o mesmo foi parcialmente destruído no terramoto de Lisboa de 1755.


Além disso, o Hospital de Todos os Santos não entrará em funcionamento tão cedo, pelo que não existe qualquer violação actual dos sinais da recorrida.

A requerente contra-alegou, insurgindo-se contra a junção de documentos pelo requerido nesta fase de recurso e defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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Com relevo para a decisão da presente apelação, foi dado como provado que:
1) Clínica … SA encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa desde 24/1/78.
2) Tem por objecto social o recebimento de doentes para consulta, observação, tratamento, intervenção cirúrgica e hospitalização.
3) Exerce a sua actividade comercial no seu estabelecimento designado “Clínica de Todos Os Santos”, estabelecimento fundado em 1/11/73.
4) Desde a inauguração da Clínica de Todos os Santos que aí são prestados serviços médicos e hospitalares num edifício com vários andares situado em Lisboa.
5) A requerente dispõe, na sua clínica, de um corpo especializado nas áreas de cirurgia plástica e reconstrutiva, cirurgia da mão, da face e dos maxilares, cirurgia estética e de médicos especializados nas áreas de cirurgia vascular, neurocirurgia, ortopedia, oftalmologia e ginecologia, entre outras.
6) A requerente dispõe na sua clínica de serviços de internamento com quartos e enfermarias.
7) A requerente tem também um serviço de atendimento permanente vocacionado para o atendimento da sinistralidade, meios auxiliares de diagnóstico, serviço de raio X, ecografia e um bloco operatório com salas de grande cirurgia.
8) Em Outubro de 2007 a requerente criou na sua clínica uma unidade oncológica da mama.
9) A requerente é titular dos registos de nome e de insígnia de estabelecimento nº…. e …., respectivamente, “CLÍNICA DE TODOS-OS-SANTOS”, pedidos em 7/5/90 e concedidos por despachos de 12/3/93 e 2/10/92.
10) A insígnia é composta da forma exposta a fls. 225, não reivindicando cores.
11) A requerente é titular do registo do pedido de marca comunitária nº …., apresentado em 25/1/2008.


12) Tal marca visa assinalar os seguintes serviços de classe 44ª: serviços médicos, cuidados de higiene e de beleza para seres humanos, serviços de informação e assessoria relativos a saúde.
13) A marca está exposta da forma exibida a fls. 225, não reivindicando cores.
14) Está projectada a edificação de um novo hospital na zona oriental de Lisboa, designado por Hospital de Todos os Santos, projecto que actualmente se acha em fase de concretização.
15) A requerente enviou ao então Ministro da Saúde, com data de 18/7/2005 a carta de fls. 53 e 54, na qual chamava a atenção para a eventual confusão de nomes.
16) Em resposta, a requerente recebeu do Ministério da Saúde, sem data, o escrito de fls. 55, do qual consta, nomeadamente: “Encarrega-me Sua Excelência a Secretária de Estado Adjunta e da Saúde de agradecer a V. Exª as sugestões apresentadas para a designação de um futuro hospital na cidade de Lisboa”.
17) A requerente insistiu, enviando ao Ministro da Saúde a carta datada de 9/3/2006, alertando de novo para a confusão inevitável dos nomes da sua clínica e do futuro hospital, pedindo igualmente que fosse impedida tal violação dos direitos de propriedade industrial da ora requerente.
18) O anterior Ministro da Saúde, em intervenção na cerimónia pública do lançamento do Hospital de Todos os Santos, anunciou a composição da respectiva comissão de acompanhamento.
19) Foi publicada no Diário da República, 1ª Série, nº 72, de 11/4/2008 a Resolução do Conselho de Ministros nº 65/2008 conforme teor de fls. 69/70 dos autos, da qual consta, nomeadamente: “Considerando que o lançamento do Hospital de Todos-os-Santos é reconhecido, há já várias décadas, como uma necessidade pelo Ministério da Saúde, constituindo a sua construção uma alavanca para todo o processo de reordenamento hospitalar da cidade de Lisboa (...) o Conselho de Ministros resolve:
“1. Autorizar a aquisição onerosa para o Estado do direito de propriedade sobre 13 parcelas de terreno com a área total de 100.561 m2, pertencentes ao Município de Lisboa, cuja regularização registral está a ser promovida pelo Município, destinadas à construção do futuro Hospital de Todos-os-Santos (...)”.

20) Foi publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 79, de 22/4/2008, o anúncio de concurso, sendo identificado como objecto do contrato “Contrato de gestão do Edifício Hospitalar de Todos-os-Santos (...)”
21) Entre Abril de 2008 e Janeiro de 2009 foi por várias vezes referido em meios de comunicação social o Hospital de Todos os Santos como futuro hospital de Lisboa.
22) Foram publicados no DR 2ª Série, nº 73 de14/4/2008 o Despacho dos Ministérios das Finanças e da Administração Pública e da Saúde nºs 10926-A/98 e 10926-B/2008, lançando o procedimento prévio para a celebração de uma parceria público-privada relativa ao contrato de gestão do Edifício Hospitalar do Hospital de Todos os Santos e nomeada a comissão de avaliação das propostas.
23) Foi publicado no DR 2ª Série nº 114, de 16/6/2008, o despacho dos Ministérios das Finanças e da Administração Pública e da Saúde nº 16365/2008 designando a Comissão de Abertura de propostas no âmbito do concurso público relativo ao contrato de gestão do edifício do Hospital de Todos os Santos.
24) A requerente, com a sua designação, pretendeu recordar o Hospital Real de Todos os Santos, que ocupava a actual área da Praça D. João I e que foi destruído na sequência do terramoto de 1755 e o seu espírito de pioneirismo, uma vez que ela própria foi pioneira em Portugal na constituição de um centro de cirurgia plástica reconstrutiva e estética (unidade de queimados).
25) A requerente é ocasionalmente designada por Hospital de Todos os Santos, Hospital Todos os Santos ou Hospital Clínico de Todos os Santos.
26) O futuro hospital a construir irá substituir os hospitais de S. José, Sta. Marta, Capuchos, Desterro e Estefânia.
27) Está prevista a conclusão e pleno funcionamento desse hospital no início do ano de 2012.
28) O futuro Hospital de Todos-os-Santos integrar-se-á no Serviço Nacional de Saúde com vista à prestação tendencialmente gratuita de cuidados de saúde a todos os cidadãos.
29) O Ministério da Saúde usa o sinal exibido a fls. 228, associado ao Centro Hospitalar de Lisboa.

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Cumpre apreciar.
Insere-se a presente acção no âmbito do procedimento cautelar previsto no art. 338º- I do CPI, o qual dispõe que:
1 – Sempre que haja violação ou fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade industrial, pode o tribunal, a pedido de qualquer interessado, decretar as providências adequadas a:
a) Inibir qualquer violação iminente;
b) Proibir a continuação da violação.

Exige-se ainda a demonstração de que o requerente é o titular do direito de propriedade industrial ameaçado, no nº 2 do mesmo preceito.
Quanto a este requisito, é indiscutível que a requerente demonstrou ser titular da denominação social, registo de nome de estabelecimento, de insígnia de estabelecimento e de marca, todos caracterizados pela expressão “Clínica de Todos-Os-Santos”.

Coloca-se pois a questão em termos de apurar se ocorreu violação do direito da requerente ou se existe motivo que fundamente o receio de lesão grave ou dificilmente reparável.
Na decisão recorrida entendeu-se que se verificavam os requisitos exigíveis e assim foi decretada a providência nos termos requeridos.

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A marca é, basicamente, um sinal distintivo de estabelecimento, mercadorias, produtos ou serviços, que visa individualizá-los no mercado, perante o consumidor. Pode, ou não, referenciar a empresa de onde provêm as mercadorias ou serviços, mas a sua função essencial, a individualização referida é o objectivo essencial, quer pela chamada de atenção para o produto em si mesmo, quer pela identificação, mesmo que fantasista ou sugestiva, da sua natureza, quer pela ocupação e manutenção de um espaço no seu mercado específico, distinguindo o produto dos que, no mesmo género, com ele concorrem.

Para usar a expressão de Ferrer Correia, “a marca funciona, assim, como um cartão de apresentação do empresário que a usa, como um factor de potenciação da sua clientela” –“ Lições de Direito Comercial”, pág. 181.
Decorre daqui a necessidade imperiosa de defender a marca de outras, que por cópia ou semelhança, destruam tal individualização ou até aproveitem a faixa de mercado conquistada por determinado produto, induzindo em erro o consumidor (ou o utente).

Sendo a requerente titular do direito de propriedade industrial relativamente à insígnia e nome de estabelecimento, “CLÍNICA DE TODOS OS SANTOS”, tal direito consiste não só no uso de tal designação ou marca, mas no seu uso exclusivo, ou seja, no impedimento de que terceiros venham a usar “qualquer sinal igual, ou semelhante, em produtos ou serviços idênticos ou afins daqueles para que a marca foi registada, e que, em consequência da semelhança entre os sinais e da afinidade dos produtos ou serviços, possa causar um risco de confusão, ou associação, no espírito do consumidor” - art. 258º do CPI.

Como vem sendo jurisprudência constante do STJ “na valorização da confundibilidade deve atender-se à opinião de um homem médio, de diligência normal, isto é, ao juízo que emitiria um consumidor médio ... se para o homem medianamente diligente e esclarecido a quem o produto ou serviço se destina ... a marca se diferenciar de outras já existentes de modo a excluir a possibilidade de confusão ou erro ... dá-se cumprimento ao princípio da novidade ou do exclusivismo” – ver Acordão do STJ in Col. Jur. (Acordãos do STJ), Tomo I, 2000, pág. 99.

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O art. 245º do CPI delimita os casos de imitação ou usurpação da marca, exigindo a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Que a marca registada tenha prioridade.
b) Que ambas as marcas se destinem se destinem a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins.
c) Que exista uma semelhança gráfica, figurativa, fonética, ou outra, que induza facilmente o consumidor (ou utente) em erro ou confusão ou que suscite um risco de associação com marca anteriormente registada.
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No caso dos autos, estabelecida a prioridade do direito da requerente, é facilmente constatável que entre as designações “CLÍNICA DE TODOS-OS-SANTOS” e “HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS” existe uma similitude profunda: a única diferença consiste nas designações “Clínica” e “Hospital” e essa diferença não tem qualquer relevância, na medida em que constituem, para além de elementos componentes de um nome, substantivos comuns, ou seja, vocábulos que identificam coisas concretas mas também coisas na generalização de características comuns. “Clínica” e “hospital” são palavras que identificam determinadas realidades pelo que têm em comum, nomeadamente prestação de cuidados de saúde, sejam elas quais foram, situem-se onde se situarem e partilhem ou não outras características. Um hospital para tratamento de doenças oftalmológicas, um outro para tratamento psiquiátrico e um terceiro para tratamento de crianças, decerto se diferenciam pelo tipo de assistência que prestam, pelas características das doenças ou lesões de que se ocupam, pelo próprio nível etário dos doentes, mas são todos hospitais.
Logo, será absurdo querer integrar na identificação específica de um nome, um substantivo comum que o integre, do mesmo modo que a palavra “leite” não identifica uma marca. O vocábulo poderá servir como elemento de identificação e distinção apenas quando confrontado com outros vocábulos que se reportem a realidades diversas, insusceptíveis de serem abrangidas pelo mesmo substantivo comum.
Será este o caso de marcas em que a diferenciação opera apenas por tal substantivo comum. Imagine-se o seguinte exemplo: “papelaria Todos-os-Santos” e “azeite Todos-os-Santos”. Aqui seria realmente o substantivo comum (papelaria/azeite) a diferenciar ambos os nomes, já que indica de imediato duas realidades inteiramente diferentes.

Não é esse o caso dos vocábulos clínica/hospital. Ambos descrevem instituições prestadoras de cuidados de saúde. E pouco importa que legalmente a palavra hospital esteja reservada a determinado tipo de estabelecimentos públicos prestadores de cuidados na área da saúde. Desde logo, é do conhecimento geral que existem estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde privados que usam a palavra Hospital: Hospital Particular, Hospital da CUF, Hospital da Cruz Vermelha, por exemplo.

Por outro lado, o utente médio desconhece a subtileza dessa exigência legal. E não se diga, como o faz o recorrente, que o desconhecimento da lei não pode aproveitar a ninguém. Isso aplica-se aos casos de violação da lei, não à percepção que um utente comum tenha de ambas as designações e à possibilidade de o mesmo utente médio estabelecer confusão entre elas. Tal utente comum não tem, enquanto tal, qualquer obrigação de saber distinguir o regime jurídico associado à palavra “hospital” e o associado à palavra “clínica”. Isso faria dele não um utente comum mas antes alguém com conhecimentos especializados e é exactamente isso que nunca deve ser considerado na abordagem da possibilidade de confusão entre marcas ou denominações similares.

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O facto de a designação “Hospital de Todos-os-Santos” ter sido primitivamente empregue no estabelecimento hospitalar criado por D. João II, estabelecimento esse que viria a ser destruído durante o terramoto de 1755, não é susceptível de criar prioridades no tocante a essa designação, desde logo porque se trata de mera referência histórica – ainda que muito relevante, mas não no domínio da designação – e depois porque tal hospital há séculos que deixou de existir.
O recorrente alega que o Ministério da Saúde usa o sinal referido a fls. 228, associado ao Centro Hospital de Lisboa, ou seja, um S contido num O. Pretende assim que nunca renunciou à designação “todos-os-santos”. Contudo, o sinal referido é indicativo de “Omnia Santorum”.
Para o utente normal, médio, “todos-os-santos” e “omnia santorum” não são expressões equivalentes. Foneticamente são diversas, como seria natural, uma vez que se reportam a duas línguas diferentes. O que o recorrente pretende dizer é que se equivalem ao nível semântico, na medida em que uma é tradução da outra para a língua portuguesa. Mas o facto de significarem a mesma coisa, cada uma no âmbito da língua em que se insere, não indicia de modo algum que esse significado seja do conhecimento público.
Ainda menos que o sinal a que alude a recorrente, o S inscrito no O, signifique para o comum do público “omnia santorum”.
Nessa medida, invocar o art. 514º do CPC parece-nos despropositado. Não estamos, como parece evidente, perante um facto notório no sentido de facto do conhecimento geral.

Não colhe igualmente e no seguimento do que já referimos atrás, que a distinção se estabeleça pela diferente estrutura e natureza de cada um dos estabelecimentos. É certo que a Clínica Todos-os-Santos” é uma entidade privada, visando o lucro, e o “Hospital de Todos-os-Santos” uma entidade pública inserida no Serviço Nacional de Saúde e sem fins lucrativos.
Essa diferença contudo não afasta o facto de ambos os estabelecimentos visarem a prestação de cuidados na área da saúde e é esta característica que os identifica perante o utente médio, não a sua diversa natureza jurídica e económica. Aliás do mesmo modo que dois produtos afins, por exemplo leite, provenientes de diferentes produtoras terão composição química minimamente diferenciada, mas, se estiverem designados por uma marca foneticamente idêntica, causarão inevitável confusão no consumidor médio.

Assim e mesmo com o risco de sermos apelidados de esquizofrénicos, rótulo que o recorrente amavelmente atribuiu aos representantes da parte contrária e à própria decisão recorrida, a distinção clínica/hospital não é o elemento diferenciador que afaste a confusão do uso de denominação idêntica “Todos-os-Santos”.
Relembre-se que, no âmbito do direito de marca, e nos termos do art. 223º nºs 1 c) e 2 do CPI, os sinais constituídos exclusivamente por indicações que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino e outros elementos genéricos, e que entrem na composição de uma marca não serão considerados de uso exclusivo do requerente.

De resto, a esquizofrenia que o recorrente detecta nos outros intervenientes nos autos, terá ainda a ver com o facto de o elemento “Todos-os-Santos” ser considerado de uso corrente quando aplicado ao feriado nacional de 1 de Novembro, mas já não o ser no caso dos autos quando ainda por cima é precedido dos “diferenciadores” vocábulos clínica/hospital.
O nome “Todos-os-Santos” quando referenciado ao feriado de 1 de Novembro, releva de um culto festivo inerente a uma dada religião, culto que se expandiu e tornou comum a toda uma comunidade ao longos de séculos de práticas colectivamente reiteradas. O mesmo se dirá do Natal, Páscoa ou, numa perspectiva algo diferente, do Carnaval. É por isso que se tratam de vocábulos de uso corrente, já que aplicados a uma tradição cultural colectiva.
Não é a mesma coisa usar a palavra “Natal” associada ao dia de 25 de Dezembro e a uma sapataria que, por capricho do seu proprietário, adoptou a designação de “Sapataria Natal”.

E isto, pois que aplicado à sapataria o vocábulo “Natal” tornou-se um nome, uma designação de estabelecimento, algo de particular e específico, perdendo o seu significado supra-individual e genérico.
É por isso que o nome de uma pessoa, por exemplo, J de Deus Pinheiro não significa que o dito J, por qualquer bizarra transfiguração druídica, seja uma divindade de um dado tipo de árvore. É que o sentido originário, corrente, das palavras “Deus” e “Pinheiro” perdeu.-se, ao ser inserido como designação de uma entidade particular, tornando-se muito simplesmente naquilo que é: o nome de uma pessoa, que, como tal, não tem certamente nada de público ou corrente.

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Finalmente, argumenta o recorrente que não está preenchido o requisito para o decretamento da providência, uma vez que, não estando ainda a funcionar – nem sequer construído – o novo hospital, nenhuma lesão pode estar a sofrer a requerida.
Como vimos, a providência prevista actualmente no art. 338º-I do CPI tem como requisito essencial que haja violação ou fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade industrial do requerente.
Ora, a conclusão e pleno funcionamento do Hospital de Todos-os-Santos estão previstos para o início de 2012.

O facto de o hospital em questão ainda não estar sequer construído não afecta, em nosso entender, que exista já, no presente, violação do direito de propriedade industrial da requerente.
De acordo com os factos provados, o então Ministro da Saúde, em cerimónia pública procedeu ao lançamento do Hospital de Todos-os-Santos, anunciando a composição da respectiva comissão de acompanhamento.
Foi publicada no DR em 11/4/2008 a resolução do Conselho de Ministros que autoriza a aquisição do terreno onde ficará situado o Hospital de Todos-os-Santos.
Foi publicado no DR nº 79 de 22/4/2008 o anúncio de concurso, relativo ao contrato de gestão do Edifício Hospitalar do Hospital de Todos-os-Santos.
Entre Abril de 2008 e Janeiro de 2009 foi diversas vezes referido na comunicação social o Hospital de Todos-os-Santos como futuro hospital de Lisboa.

Foi publicado no DR de 14/4/2008 o lançamento do procedimento prévio para a celebração de uma parceria público-privada relativa ao contrato de gestão do edifício hospitalar do Hospital de Todos-os-Santos e nomeada a comissão de avaliação de propostas.
Em 16/6/2008 foi publicado no DR o despacho ministerial que designa a Comissão de Abertura de Propostas no âmbito do concurso público relativo ao contrato de gestão do edifício do Hospital de Todos-os-Santos.
O futuro hospital irá substituir os hospitais que integram o Centro Hospitalar de Lisboa Central (Hospitais de S. José, Sta. Marta, Capuchos, Desterro e Estefânia) e será integrado no Serviço Nacional de Saúde.

Como vemos, são já diversos os actos relativos ao futuro hospital e nos quais o nome é sistematicamente repetido, mesmo nas publicações oficiais como o Diário da República.
Isto significa que a denominação do futuro hospital está a ser usada de modo a que a mesma se torne uma realidade junto da comunicação social e mesmo do público em geral.
Existe assim já uma flagrante violação do direito de propriedade industrial da requerente, introduzindo e à escala nacional a divulgação de uma denominação que, como se salientou, cria inevitavelmente confusão com a denominação da requerente.
É que não estamos a falar de um pequeno centro de saúde ou de qualquer outra iniciativa de reduzido relevo. Trata-se do futuro grande hospital de Lisboa, de uma referência evidente e predominante entre os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde da capital.
Perante a importância do hospital projectado, com denominação idêntica à da clínica da requerente, a identidade desta, em termos de nome e assim de referência junto do público, acaba inevitavelmente por se diluir.
Ora, é exactamente isto que o art. 338º-I visa impedir: o direito da requerente está já a ser violado e tal violação irá prosseguir inexoravelmente, com lesão grave do direito e interesses da requerente que é uma instituição privada e insusceptível de se impôr perante a grandiosidade do novo empreendimento, da amplitude da sua divulgação junto do público, isto sem falar do número de utentes do futuro hospital.

Note-se que não estamos a falar de concorrência comercial. O problema é outro: é o direito de uma clínica privada manter a sua identidade própria, representada em larga medida pela sua designação e que ao longo dos anos a foi identificando junto do público em geral e dos utentes em particular.

Argumenta o recorrente que a decisão recorrida viola os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação.
Concordamos que tais requisitos são aplicáveis à presente providência cautelar.
Contudo, a decisão recorrida em nada os violou.
Primeiro, é manifesto que o recorrente não tem a menor intenção de mudar seja o que for na denominação do futuro hospital. E, uma vez que o novo hospital esteja em funcionamento, estará criada uma situação de “facto consumado”, quase impossível de alterar.
Segundo, porque é incomparavelmente mais fácil resolver o problema nesta fase, com custos reduzidos para o requerido, e numa altura em que a confusão dos nomes ainda não atingiu uma expressão máxima e irremediável.

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Podemos pois concluir que:
São requisitos para o decretamento da providência prevista no art. 338º-I do Código da Propriedade Industrial a existência de violação ou receio justificado de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade industrial da requerente, e que esta seja titular de tal direito ou esteja autorizada a utilizá-lo.
O nome “Hospital de Todos-os-Santos” que irá denominar um futuro hospital público de grande dimensão estabelece manifesta confusão com o nome, já existente, registado e utilizado, da “Clínica de Todos-os-Santos”.
As palavras “Hospital” e “Clínica” não são só por si susceptíveis de eliminar tal confusão, até porque existem diversos estabelecimentos privados prestadores de cuidados no domínio da saúde com o nome “Hospital”.
O uso repetido da denominação do futuro hospital, quer em diplomas legais, quer junto da comunicação social e do grande público, constitui já violação do direito da clínica requerente, levando à diluição da identidade de tal clínica junto do público, identidade que em grande medida se traduz na sua denominação.

Assim e pelo exposto julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.

LISBOA, 5 de Novembro de 2009

António Valente
Ilídio Martins
Teresa Pais