Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2007/14.1TTLSB.L1-4
Relator: DURO MATEUS CARDOSO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
SINISTRADO
PARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I A LAT/2009 estabelece nos arts. 86º a 92º um compreensivo sistema de participações obrigatórias e facultativas do sinistro laboral em que cada interveniente tem obrigações/deveres específicos e próprios.

II Participado o acidente pelo sinistrado ao empregador, este, caso tenha transferido a sua responsabilidade para uma seguradora e sob pena de responsabilidade por perdas e danos, tem de participar a esta última a ocorrência do acidente no prazo de 24 horas.

III Se o sinistrado cumprir a sua obrigação de participar tempestivamente o acidente ao empregador, enquanto a seguradora não lhe comunicar a sua alta clínica (ou que não lhe reconhece quaisquer lesões incapacitantes), o prazo de caducidade de um ano não começa a correr, tenha o empregador participado o acidente à seguradora, ou não.

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


I AAA, intentou na Secção de Trabalho de Lisboa Tribunal do Trabalho de Torres Vedras a presente acção declarativa de condenação, com processo especial, emergente de acidente de trabalho, CONTRA,
BBB, SA
e
CCC – COMPANHIA DE SEGUROS, SA.

II PEDIU o reconhecimento de um acidente como de trabalho, o nexo entre o acidente e as lesões e a condenação dos réus a:
-Pagar uma pensão anual e vitalícia em função do grau de incapacidade que lhe venha a ser fixado;
-Pagar indemnizações por ITA até à alta clínica que lhe vier a ser fixada e respectivos juros de mora;
-Pagar indemnizações por ITP no valor de € 1.969,11;
-Pagar indemnização a título de danos morais no montante de € 30.000,00;
-Pagar o valor das despesas médicas, medicamentosas e dos transportes com deslocações ao Centro de Saúde, Hospitais e INML, e respectivos juros de mora;
-Prestar assistência médica ao sinistrado por parte da ré seguradora até total recuperação;
-Continuar a pagar a pensão provisória já fixada nos autos.

III ALEGOU, em síntese, que:
-No dia 24/1/2012 quando trabalhava por conta, sob a autoridade, direcção e fiscalização da ré BBB com a categoria de trabalhador de armazém indiferenciado, foi vítima de um acidente do qual resultaram lesões que determinaram uma (IPP) de 12%;
-Auferia uma retribuição de € 600,00 X 14 meses, acrescida de € 5,00 x 22 x11 a título de subsídio de refeição;
-Comunicou de imediato ao administrador da ré BBB as dores que sentiu na coluna lombar no momento em que empilhava caixas pesadas para formar paletes de madeira, o que aquele desvalorizou;
-No dia seguinte, 25/1/2012, porque continuasse com as dores, contactou o médico da ré BBB que também desvalorizou as queixas e recomendou-lhe repouso e toma de Bem-u-ron;
-A 26/1/2012, porque continuasse com dores, mandaram-no somente ir para casa descansar;
-A 27/1/2012, na persistência das dores foi ao Centro de Saúde onde foi medicado com analgésicos e anti-inflamatórios, prescrito repouso e lhe foi dada baixa;
-Após 27/1/2012, recorreu várias vezes ao Centro de Saúde e, a 29/1/2012, foi às urgências do Centro Hospitalar … onde lhe foi dito que deveria mostrar o RX à entidade empregadora e ao médico da empresa e dizer-lhes que como se tratou de um acidente de trabalho deveriam participar à respectiva companhia de seguros;
-Novamente comunicou a situação à ré BBB que voltou desvalorizar e não participou o acidente à seguradora;
-Foi-lhe depois atribuída baixa médica pelo Centro Hospitalar de … entre 13/4/2012 e 12/5/2012;
-Foi posteriormente sujeito a diversos tratamentos médicos e a vários gastos médicos, medicamentosos e de transporte por o acidente não ter sido participado à seguradora;
-Acabou por participar o sinistro ao Ministério Público a 23/6/2014;
-Sofreu danos morais.

IV As rés foram citadas e CONTESTARAM, dizendo, no essencial, que:

A ré Seguradora:
-A retribuição encontrava-se transferida pelo valor referido na petição inicial
-O acidente nunca foi participado pela ré empregadora;
-Desconhece a existências de qualquer acidente de trabalho envolvendo o autor;
-É alheia às delongas dos presentes autos não tendo responsabilidade nos alegados danos morais;
-As lesões que o autor apresenta têm origem degenerativa e também resultantes de acto médico, inexistindo nexo de causalidade entre o acidente e as lesões;
-Não está em situação de IPATH.

A ré BBB:
-Ocorreu a caducidade do direito de acção prevista no art. 179º da LAT/2009 porque o acidente terá ocorrido a 24/1/2012,a alta clínica foi comunicada ao sinistrado a 9/1/2015 e somente pediu apoio judiciário para nomeação de patrono a 29/4/2013 para participar o acidente de trabalho;
-Nunca o autor comunicou à ré qualquer ocorrência de que tenha sido vítima que pudesse ser enquadrada como acidente de trabalho;
-A patologia invocada não tem qualquer conexão com o evento que o autor invoca ter ocorrido a 24/1/2012 e ou é degenerativa ou consequência de um grave acidente de viação ocorrido há muitos anos.

O ISS, IP, veio deduzir, contra ambas as rés, pedido de reembolso das prestações da Segurança Social no valor de € 2.131,24, a título de subsídio de doença pagos ao autor.

A ré Seguradora veio responder e invocara a prescrição dos créditos do ISS, reafirmando também o já alegado na sua contestação ao pedido do autor.

V Foi proferido despacho saneador em que se conheceu da invocada excepção de caducidade tendo-se decidido pela forma seguinte:
 “DECISÃO.
Por tudo o que se deixou exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo procedente a excepção da caducidade do direito de acção do autor e, em consequência, absolvo as rés do pedido”.
Dessa sentença, o autor interpôs recurso de Apelação (fols. 1558 a 1568), apresentando as seguintes conclusões:
I.- O Tribunal “a Quo” faz uma incorrecta aplicação da lei e decidiu sem estar na posse dos necessários factos para a proferir, conforme se concluirá em seguida.
II.- A obrigação de comunicação do acidente de trabalho à seguradora e desta ao tribunal, não é, em primeira linha, do acidentado que apenas tem de fazer a respectiva comunicação à entidade empregadora.
III.- O prazo de um ano para o impulso processual, previsto no artº 179º da Lei nº 98/2009 de 04de Setembro, é um prazo que pressupõe que a entidade empregadora cumpriu a obrigação de comunicação do acidente à Companhia de Seguros, e que esta agiu com base em tal comunicação, acompanhando medicamente o sinistrado até à alta que, então, lhe comunica. Situação que não ocorre no caso em apreço.
IV.- O artº 92º da Lei nº 98/2009 de 4 de Setembro não prevê nenhum prazo para a situação em que é o próprio sinistrado a participar o acidente de trabalho ao tribunal.
V.- Sendo que, não é de acolher uma alegação de caducidade em que o alegante contribuiu activamente para o decurso do tempo constrangendo conscientemente os direitos do sinistrado, que foi o que sucedeu, in casu.
VI.- Por outro lado, e sem conceder, ainda que se considerasse que o prazo para o exercício do direito era um ano, esse ano teria de contar-se do momento em que o sinistrado toma conhecimento de que a entidade patronal não cumpriu a obrigação de participação à seguradora.
VII.- Ora, esse momento não foi apurado pelo tribunal “a Quo” que apenas concluiu que o acidente não foi participado à entidade empregadora. E, em boa verdade, tal data só poderia ser apurada entrando no mérito da causa e fazendo o julgamento.
VIII.- Por outro lado, verifica-se que o Recorrente pediu apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono (em data ainda não apurada), que lhe veio a ser concedido em 31 de Maio de 2013, verificando-se posteriormente uma série de vicissitudes, com nomeações de patronos subsequentes, que conduziram posteriormente à nomeação da advogada que intentou a presente acção.
IX.- Sucede que o artº 33º nº 4 da Lei 34/2004 de 29 de Julho diz que a acção se considera proposta na data em que é formulado o pedido de apoio judiciário. Logo, a presente acção terá de considerar-se proposta em momento, a apurar, que terá de ser anterior a 31 de Maio 2013.
X.- Ora, assim sendo, o tribunal “a Quo” não estava em condições de decidir o momento em que o Recorrente pode exercer o seu direito, já que não apurou o momento em que este tomou conhecimento de que a entidade empregadora não iria participar o acidente à seguradora. Sendo certo que essa data se situa entre 29/01/2012 e 07/06/2012 e que o Recorrente praticou um acto (pedido de apoio judiciário) que interrompe a caducidade já que a lei atribui a esse acto afixação da data de propositura da acção.
XI.- Além disso, é de entender que o próprio Ministério Público, no processo em que foram pagos os salários ao Recorrente, tomou conhecimento do acidente de trabalho, podendo também entender-se que a data desse conhecimento é valida como participação.
XII.- Pelo exposto: não podia o tribunal “a Quo” ter decidido a existência de caducidade do direito do Recorrente.
Pelo exposto, requer-se que o presente recurso seja julgado procedente por provado e julgando-se, para já, a inexistência de caducidade, baixando o processo à primeira instância para se apurarem os factos que permitam a decisão sobre a caducidade e inexistindo esta, sobre o mérito da causa, realizando-se, para o efeito, o julgamento.

Somente a ré Seguradora contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Correram os Vistos legais, tendo a Digna Procuradora-Geral Adjunto do Ministério Público emitido Parecer (fols. 1602 a 1603), no sentido de ser dado provimento ao recurso, indicando diversa jurisprudência atinente.

VI A matéria de facto a considerar com relevância para a decisão é a que consta do relatório supra.

VII Nos termos dos arts. 635º-4, 637º-2, 608º-2 e 663º-2, todos do CPC/2013, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação; os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas pelas partes, salvo se importar conhecê-las oficiosamente.

Tratando-se de recurso a interpor para a Relação, como este pode ter por fundamento só razões de facto ou só razões de direito, ou simultaneamente razões de facto e de direito, assim as conclusões incidirão apenas sobre a matéria de facto ou de direito ou sobre ambas (v. Fernando Amâncio Ferreira, "Manual dos Recursos em Processo Civil", 3ª ed., pag. 148).

Atento o teor das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a questão que fundamentalmente se coloca no presente recurso diz respeito a saber-se se os autos já continham factos suficientes para se poder concluir pela verificação da invocada caducidade.

VIII Decidindo.
A decisão recorrida estribou-se fundamentalmente no Ac. da Relação de Lisboa de 11/03/2015, P. nº 4765/12.9TTLSB.L1-4, disponível em www.dgsi.pt/jtrl, que, por sua vez, se socorre do Ac. do STJ de 11/10/2005, P. nº 05S1695, disponível em www.dgsi.pt/jstj.

A apelada Seguradora, nas suas contra alegações, referiu ainda o Ac. da Relação do Porto de 27/06/2011, P. nº 271/08.4TTLMG.P1, disponível em www.dgsi.pt/jtrp e o Ac. da Relação do Porto de 23/05/2016, P. nº 2325/15.1T8OAZ.P1, disponível em www.dgsi.pt/jtrp que também vão buscar inspiração àquele referido Ac. do STJ.

No essencial estas posições consideram que, caso a entidade empregadora não participe, nem à seguradora, nem ao Tribunal/Ministério Público, a ocorrência de um acidente de trabalho, é indiferente que o sinistrado tenha, ou não, participado o mesmo à sua entidade empregadora, começando o prazo de caducidade a correr para este desde a data do acidente.

Desde já se diga que, e salvo o devido respeito, não se pode concordar com o sentido da decisão agora em recurso, nem com o defendido nos referidos Acs. do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações de Lisboa e Porto.

Vejamos porquê.

A LAT/2009, tal como a anterior LAT/1997 conjugada com o DL nº 143/99 de 30/4, estabelece nos arts. 86º a 92º um compreensivo sistema de participações obrigatórias e facultativas do sinistro laboral em que cada interveniente tem obrigações/deveres específicos e próprios.

Decorre do art. 86º da LAT/2009 que é obrigação legal do sinistrado participar o acidente de trabalho ao empregador no prazo de 48 horas, excepto se o empregador tiver presenciado o acidente ou dele tiver conhecimento no mesmo prazo.

Participado o mesmo ao empregador, este, caso tenha transferido a sua responsabilidade para uma seguradora e sob pena de responsabilidade por perdas e danos, tem de participar a ocorrência do acidente no prazo de 24 horas – art. 87º da LAT/2009.

Já o art. 179º-1 da LAT/2009 determina que “O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado…”.

Ora desta arquitectura legal podemos até concluir que se o sinistrado cumprir a sua obrigação de participar tempestivamente o acidente ao empregador (que é a única imposta pela LAT/2009) enquanto a seguradora não lhe comunicar a sua alta clínica (ou que não lhe reconhece quaisquer lesões incapacitantes), o prazo de caducidade de um ano não começa a correr, tenha o empregador participado o acidente à seguradora, ou não.

Contrariamente ao que se defende na decisão recorrida e nos arestos acima referidos, se o empregador, depois de receber a participação do sinistrado, não participa, por sua vez, à seguradora, não tem o sinistrado de participar o acidente à seguradora ou ao tribunal ao abrigo do art. 92º-a) da LAT/2009 para evitar a verificação da caducidade do direito de acção.

Aqueles entendimentos jurisprudenciais, mais não fazem do que criar para o sinistrado uma obrigação que não existe na lei, transformando uma faculdade numa obrigatoriedade.

Mas, pior, tais entendimentos fazem recair sobre o sinistrado que tenha cumprido a sua obrigação de participar ao empregador, as consequências do incumprimento do empregador ou da seguradora, que assim podem eventualmente ver-se eximidas dos pagamentos decorrentes da LAT, num claro e chocante “benefício ao infractor”.

Carlos Alegre, em “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, 2ª ed., Almedina, em comentário ao semelhante art. 32º da Lei 100/97 de 13/9, pag. 154, qual “Prof. Alberto dos Reis dos acidentes de trabalho”, na sua perspicácia e sabedoria para perspectivar possíveis situações reais e concretas perante normas abstractas, esclarece que a caducidade do direito de acção refere-se, “apenas, aos casos em que o sinistrado ou os seus beneficiários detêm a faculdade de participar, em situações em que não exista o dever de participação da outra parte”.

Portanto, após participação do sinistrado ao empregador, se este em seguida não participar à seguradora, poderá responder pelas perdas e danos inerentes que causar, não só, obviamente, à seguradora, mas também, a nosso ver, por aqueles que a sua omissão eventualmente causar ao sinistrado, como por exemplo por atraso ou deficiência na prestação de cuidados médicos necessários (art. 87º-1 da LAT/2009). Agora o seu incumprimento, ou da seguradora, impossibilitando ou inviabilizando a comunicação da alta clínica ao sinistrado não pode ter consequências para o sinistrado.

Mas se o sinistrado não cumprir a sua obrigação de participação ao empregador, nem este tiver conhecimento do evento, naturalmente que o empregador não tem obrigação de participação à seguradora e, aí sim, o prazo de caducidade aplica-se ao sinistrado e contar-se-á a partir da data do acidente, não havendo nenhuma razão para que assim não seja, pois é o próprio sinistrado que inviabiliza o despoletar de toda a tramitação do procedimento legal infortunístico.

Revertendo para o caso dos autos, decorre dos articulados de todas as partes que a empregadora não presenciou o alegado acidente, nem do mesmo teve conhecimento por terceiros, pelo que, no caso em apreço, era obrigação do sinistrado participar o mesmo à ré … no prazo de 48 horas.

O autor/sinistrado alega que participou o sinistro à ré/empregadora no próprio dia do acidente. Esta diz nenhuma participação lhe foi feita.

Se o autor/sinistrado fez a participação à ré/empregadora, esta tinha a obrigação de participar à ré/seguradora (art. 87º-1-da LAT/2009) e a seguradora a obrigação de participar ao tribunal em caso de IPP (art. 90º da LAT/2009) e, portanto, a caducidade prevista no art. 179º da LAT/2009 não será aplicável ao autor/sinistrado.

Mister é saber-se se o autor/sinistrado, efectivamente, cumpriu a sua obrigação legal e comunicou o acidente de trabalho à ré/empregadora.

Sendo factualidade que está controvertida não podia o Mmº Juiz a quo ter decidido pela verificação da caducidade do direito de acção por ausência de participação do sinistrado à seguradora ou por tardia participação ao tribunal.

A decisão recorrida não pode subsistir.

IX Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida determinando que o despacho saneador relegue para momento posterior o conhecimento da excepção de caducidade e que seja retomada a normal tramitação processual.
Custas da apelação a cargo da ré Seguradora.



Lisboa, 23 de Maio de 2018



Duro Mateus Cardoso
Leopoldo Soares
Eduardo Sapateiro