Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2532/07.0TVLSB.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL DO ADVOGADO
BOA-FÉ
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Não cabe na disponibilidade das partes a dispensa do segredo profissional do advogado
- O ónus da alegação e prova dos factos integrantes da boa fé prevista no art. 291º do Código Civil, ou seja, a ignorância do vício do 1º negócio, sem culpa, impende sobre o terceiro, por constituir matéria de excepção.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


A... instaurou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra C..., N..., J... e I... em 28/05/2007, pedindo:
- seja declarada a nulidade da compra e venda realizada entre a A. e os RR C... e N... da fracção identificada nos autos,
- e que seja declarada nula a compra e venda entre os RR C... e N... e os RR J... e I... da mesma fracção,
- e que seja, em consequência, reconhecida a propriedade da A. sobre essa fracção.

Alegou, em síntese:
- em Maio de 2003, devido a graves dificuldades financeiras optou pelo recurso a ajuda financeira de entidades bancárias e dirigiu-se ao Centro Financeiro do D... em Mem Martins, tendo contactado com B... que, na ocasião se identificou como responsável pelo Centro, a quem explicou a sua urgência na obtenção de financiamento para prosseguir as suas actividades comerciais e cumprir as suas obrigações financeiras;
- o referido B... afirmou-lhe que se fosse proprietária de bens imóveis não haveria problema na concessão de crédito;
- então, aliviada, a A. disse-lhe ser proprietária de uma fracção autónoma em Lisboa e ficou agendada uma reunião para 26/6/2003 para entrega da documentação do imóvel;
- nessa reunião foi a A. confrontada com a informação prestada pelo B... de que para o financiamento ser concedido a A. deveria vender a fracção a uma terceira pessoa a qual recorreria, para a respectiva aquisição, ao crédito bancário, hipotecando a fracção e facultando à A. a disposição das verbas de que necessitaria para fazer face aos seus encargos, liquidando a A. a prestação mensal relativa ao mútuo concedido;
- assim, o referido B... apresentou à A. a R. C..., e ambos explicaram-lhe que tudo iria decorrer com enorme transparência desde  que a A. cumprisse quer no pagamento das prestações mensais relativas ao mútuo concedido quer na liquidação das advenientes da outorga da escritura com o à data designado Banco ... garantida por uma hipoteca registada;
- foi então elaborado um documento particular denominado “Gentleman’s Agreement” (doc. 1) contendo regras e objectivos da operação financeira em apreço, com assinaturas notarialmente reconhecidas;
- a A. recorreu ao aconselhamento do advogado Dr A...;
- acreditando na boa fé dos envolvidos e na procura de resolução urgente dos seus problemas financeiros a A. outorgou, em 23/7/2003, no 6º Cartório Notarial de Lisboa a escritura pública de compra e venda com a C..., sendo pela A. vendida àquela a fracção pelo preço de 78 000 €, com menção do ónus da hipoteca igualmente transmitido;
- contudo tal valor não foi pago e nenhum dos RR liquidou à A. qualquer quantia adveniente do negócio em apreço conforme o acordado entre todos os envolvidos no negócio;
- no Gentleman’s Agreement foram explicitadas as razões que determinaram a outorga da escritura e ficou expresso que em caso de frustração de obtenção do empréstimo à A. o imóvel seria vendido a esta ou a quem a mesma indicar até ao dia da escritura;
- a fim de garantir a outorga da escritura da compra e venda com os RR C... e F..., foi outorgada uma procuração irrevogável a favor do B...;
- o empréstimo não foi concedido e a A. nada recebeu nem foi realizada nova escritura a seu favor;
- apenas em finais de 2005 a A. tomou conhecimento de que o B... já não era trabalhador do D...;
- em 08/05/2006 a A. foi contactada pelo R. J... que a informou que era o actual proprietário da fracção que habitava;
- a A. foi ludibriada, pois pretendeu unicamente a obtenção de um financiamento bancário e nada recebeu, sendo lesada com a actuação dos co-RR que colocaram em risco a sua propriedade, desrespeitando o acordo entre todos: A., B... e co-R. C...;
- é evidente a ocorrência de um negócio simulado nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 241º do CC e por isso nulo (art. 240º nº 2 do CC);
- a simulação pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si e é oponível ao adquirente da fracção, uma vez que era pleno conhecedor do vício do negócio.

Apenas contestaram os RR J... e I..., alegando, em resumo:
- o R J... nunca conheceu os RR C... e N... e apenas tomou conhecimento da sua existência aquando da compra e venda que outorgou em 30/06/2003;
- nunca antes ou depois falou com qualquer um desses RR, sequer foi por estes abordado ou contactado;
- também da A. nunca tomou conhecimento senão em 14/12/2006 quando se deslocou à fracção a fim de a mesma lhe ser entregue judicialmente;
- a R. I... igualmente desconhece os RR C... e N... e desconhecia a sua existência até à data da sua citação para esta acção; também da existência da A. e do B... só tomou conhecimento na data da citação para esta acção;
- desconhecem e por isso impugnam toda a factualidade invocada nos art. 1º a 54º da pi.;
- os RR são adquirentes de boa fé e pagaram o preço devido;
- sabem agora os RR que a A. e pelo menos, a R. C... e B... são velhos amigos;
- a A. nem identifica os invocados débitos vencidos;
- o denominado Centro Financeiro D... não é uma agência de uma entidade bancária mas sim um estabelecimento que integra uma rede de promotores autorizados a praticarem certas operações de promoção de produtos e serviços bancários e financeiros;
- a A. mente quando refere que existiria um acordo quanto à liquidação das prestações mensais do mútuo pela A. junto do Banco Totta & Açores pois consta na escritura de compra e venda outorgada em 23/7/2003 que constituiu pressuposto dessa compra e venda a liquidação imediata do mútuo estando no texto da escritura que o cancelamento do registo da hipoteca estava assegurado;
- impugnam o teor do documento 1 junto com a p.i, onde aliás a natureza de compra e venda é especificamente reforçada e onde consta toda uma disciplina que, incumprida, poderia ter sido executada pela A.;
- resulta do alegado pela A. nos art. 26º e ss da p.i. que foi acompanhada e esclarecida dos actos que praticava;
- a A. soube da existência e termos concretos da procuração passada pelos RR C... e N... a favor de António B...;
- foi no uso dos poderes conferidos por essa procuração que B... vendeu a fracção aos RR mediante o pagamento de um preço de 80.000 €;
- como os vendedores não entregaram a fracção aos RR estes instauraram acção executiva na qual a A. se opôs à concretização da diligência de entrega invocando ser arrendatária;
- a A. admite que quis celebrar um contrato de compra e venda com os RR C... e N... e não refere que se conluiou com a R Carla com o objectivo de enganar terceiros, pelo que não estão preenchidos os requisitos da simulação;
- além disso, nunca a suposta simulação seria oponível aos RR pois nunca tiveram participação nos factos em que a A. fez assentar a alegada simulação ou sequer tiveram conhecimento dos mesmos;
- mesmo que a suposta simulação fosse oponível aos RR a sua arguição seria manifestamente abusiva nos termos do art. 334º do CC pois o Gentleman’s Agreement prevê a execução específica e a A. nada fez, além de que até à data da entrada da presente acção nunca fez o quer que fosse que pudesse levar o R. J... a duvidar da validade da aquisição feita pela R. C... e a pensar que viria a suscitar a nulidade do negócio e reclamar a propriedade do imóvel;
- os apelantes adquiriram a fracção com desconhecimento de todo o alegado pela A. e que, mesmo que se verificasse, em nada afectaria  a validade e eficácia do negócio jurídico efectuado pelos RR., nem lhes seria oponível qualquer eventual vício de que o mesmo pudesse padecer, sob pena de enriquecimento sem causa dos RR C...  e N..., que assim se constituiriam na obrigação de indemnizar os contestantes, em conjunto com a A. e B... por todos os prejuízos causados.
Concluíram pugnando pela improcedência da acção e condenação da A. como litigante de má fé.

Em 26/01/2009 os RR J... e I... apresentaram articulado superveniente onde alegaram em resumo:
- em 17/05/2008 a A. instaurou contra eles acção em que confessa ser arrendatária da fracção desde 23/7/2003 e pede o reconhecimento da validade do contrato de arrendamento e a sua qualidade de arrendatária dos ora RR;
- é uma contradição nos termos a coexistência de uma situação de real proprietária com uma situação real de arrendatária;
- devem ser os RR absolvidos do pedido.

O articulado superveniente foi admitido.

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença constando no dispositivo:
«Por tudo o exposto, decido julgar procedente a presente acção e, em consequência decido:
a) Declarar a anulabilidade da compra e venda efectuada entre a A. e 1º e 2º RR;
b) Declarar a anulabilidade da compra e venda efectuada entre 1º e 2º e o 3º R;
c) Reconhecer a propriedade sobre o imóvel em causa a favor da A.».

Inconformados, apelaram os RR J... e I..., e por acórdão desta Relação proferido em 13/03/2014 foi decidido:
«b) confirmar a sentença recorrida no segmento em que anulou o contrato de compra e venda celebrado entre a apelada e a Ré C..., julgando-se nessa parte improcedente a apelação;
c) anular a sentença recorrida nos segmentos em que anulou o contrato de compra e venda celebrado entre o apelante J... e os Réus C... e N... e reconheceu a propriedade sobre o bem imóvel em causa a favor da apelada, determinando-se a ampliação da matéria de facto e consequentemente a repetição do julgamento, com aditamento à base instrutória de artigos que contemplem a matéria de facto alegada na contestação conforme acima indicado.».

Interposto recurso de revista pelos RR J... e I..., foi proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 26/11/2014 negando a revista.

Tendo baixado os autos à 1ª instância, foram aditados artigos à base instrutória, e realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu «julgamos improcedente a presente ação na parte ainda em discussão absolvendo os 3º e 4º R.R. dos pedidos de anulação da compra e venda efectuada entre o 1º e 2º R e de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel em causa sobre o imóvel em causa a favor da A.».

Inconformada, apelou a A., terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:
a) É pacificamente aceite e entendido quer pela Doutrina, quer pela Lei quer, ainda, pela Jurisprudência que Recurso traduz-se num meio de impugnação processual que tem por fim sujeitar uma decisão judicial a uma nova apreciação jurisdicional;
b) O termo impugnação segundo Satta e Punzi (in “Diritto Processuale Civile”, Salvatre Satta e Punti, 16ª Edição, 1996, p.500) é a qualificação genérica dos múltiplos remédios opostos contra os actos jurídicos. Com efeito impugnar não significa outra coisa senão contrastar e atacar, pelo ataca-se a decisão judicial por ser errada ou injusta, dado que é inequívoco que uma decisão judicial pode se encontrar eivada de vícios, como o Mau procedimento, error in procedendo, violação de regras processuais, Má decisão, vício do conteúdo da própria decisão, Má apreciação da realidade, Má aplicação do direito e error in judicando, podendo, os mesmos, serem alvo de apreciação pelo Douto Tribunal do 2º grau de jurisdição;
c) Note-se que a recorribilidade das decisões judiciais é o princípio geral do nosso ordenamento jurídico sendo a irrecorribilidade considerada pela Lei como a excepção, sendo a decisão adoptada pelo Tribunal a quo injusta perante o caso concreto e prova produzida.
d) A A, fruto do negócio que realizou, foi desapropriada do bem imóvel que detinha nenhuma verba recebendo em troca, o que determinou a interposição da presente acção que culminou, face a toda a prova documental e testemunhal produzida, com a procedência do que peticionou, sendo declarada a anulabilidade da compra e venda efectuada entre A e 1º e 2º RR, e deverá ser declarada a anulabilidade da compra e venda efectuada entre 1º e 2º RR e 3º e 4º RR e reconhecida, a final, a propriedade da mesma sobre o imóvel identificado a fls dos Autos.
e) Certo é que o 3º R, como é evidente, não queria adquirir imóvel algum, o que determinou a sua compra sem o visitar…e aceita adquiri-lo com uma Hipoteca registada por dívida…da A.
f) Certo é que, ao invés do que defende o A, a testemunha B... confirmou o conhecimento de todos os RR sobre o negócio, o que determinou a venda a retro e o não pagamento total do preço.
g) Existiu, assim, aqui um erro de julgamento quanto à decisão tomada sobre a matéria.
h) Por outro lado e em face da matéria assente é inquestionável que o negócio celebrado não era o pretendido pelos intervenientes e que os Recorrentes não estavam (e não estão) de Boa Fé, em momento algum podendo ser considerados como adquirentes de Boa Fé.
i) O que ocorreu foi o uso dos RR da A para obterem um “negócio da china” e a mesma, por necessidade, confiou, sendo certo que nem sequer o valor da venda chegou a ser pago…
j) Diga-se, igualmente, que em momento algum dos Autos resulta que o 3º R haja pago o valor do imóvel tendo, ao invés, declarado que não o fez…pelo que, como o mesmo invoca, que caso vingue a pretensão deduzida pela A. estaremos perante um caso de enriquecimento ilegítimo.
k) Aliás, e como e bem refere a Sentença recorrida, é manifesto que a Escritura feita entre A e 1º R e 2º R foi efectuada aproveitando-se da situação de fraqueza daquela e o desequilíbrio ou desproporção no seio do negócio ocorre até pela ausência de pagamento de qualquer preço, sendo manifesta a exploração reprovável pelos usurários, daí que, e bem foi anulada a compra e venda entre A e 1º e 2º RR.
l) No que ao remanescente negócio importa, duvidas inexistem quanto à má fé dos 3º e 4º RR, tanto mais nunca visitaram o imóvel em momento prévio à aquisição do mesmo, não pagaram o preço, celebraram a compra e venda a retro e tinham pleno conhecimento da existência de uma hipoteca registada sobre o imóvel em causa, a favor do Banco Santander, no qual era a A devedora, e conheciam a venda anterior efectuada pela A e referida nos Autos em conformidade com o acordado com a testemunha B..., tanto mais que acabou por ser este a receber o valor da venda do bem com os 3 e 4 RR.
m) Obviamente que o R em apreço conhecia o negócio e a sua culpa tem que ser atendida para efeitos de determinação da má fé.
n) Os recorrentes na realidade não são terceiros de boa fé, sendo a anulação em apreço aos mesmos oponível.

Mas mais:

o) O Douto Tribunal deu como provados os “novos” factos 19) a 22), decorrente da ampliação da matéria de facto ordenada pelo Douto Tribunal da Relação, porém fê-lo fundamentado tal decisão com base no depoimento do Dr. J... Ora como resulta dos Autos o mesmo é Advogado e representou (e representa) o 3º R sendo nessa qualidade que conhece a matéria a que prestou depoimento. Assim sendo, e dado que não apresentou qualquer autorização do Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados para levantamento de sigilo, o seu depoimento é nulo e não pode valer em juízo, como resultado do artº 87º do EOA. O nrº 5 do referido normativo é claro. Ao violar tal normativo o seu depoimento é inválido e a prova em que assenta os referidos factos desaparece pois o depoimento da parte será menos valorado devido ao interesse que detêm na causa ao invés da testemunha B....
p) Sem prescindir, e com tal anulação, os factos provados com os nrº 19) a 22) deveriam ter sido dados como não provados.

Mas mais:

q)Analisando a prova documental junto aos Autos, designadamente, por um lado, a Escritura de Compra e venda efectuada pelo 3 R, o processo executivo que este instaurou para aceder ao imóvel, a prova testemunhal (B...) por outro e os factos provados com os nrºs 1 a 18), deveriam conduzir a ser dados como não provados os factos 19) a 22).
r) Face à ausência de registo da acção, haverá que considerar se o terceiro, ou seja o 3º réu estava ou não de boa fé, tendo por base a factualidade demonstrada e tudo o que resulta dos autos, nomeadamente o processo crime que determinou a condenação de B... e ainda a circunstância de tal réu ter sido inquirido como testemunha nesse processo, o qual data de 2006.
Ora ficou demonstrado que o réu J... tinha conhecimento da existência de uma hipoteca registada sobre o imóvel em causa, a favor do Banco ... e no qual era devedora a A., bem como da venda anterior efectuada pela A. e referida nos autos com o B..., munido de procuração. E tanto sabia que o próprio réu celebrou a escritura de compra e venda como sendo a retro (com a possibilidade de resolução pelos vendedores, e não pelo próprio, no prazo de 90 dias) datada de 30 de Junho de 2004.
Acresce que o R. J... declarou na escritura que o preço era de 80.000€, tendo apenas pago pela compra, por cheque emitido em nome e a favor de António B..., o valor de 60.000€, o que contraria o facto provado com o nrº21.
s) É certo que nos termos do nº 3 do artº 291º do CC é considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia o vício do negócio nulo ou anulável, mas este desconhecimento tem de ser isento de culpa, e na verdade ao conhecer os termos da venda e a existência de uma hipoteca que incide sobre o imóvel em que figura como devedora a A., a diligência que lhe era exigida determina a existência de culpa no eventual desconhecimento do vício concreto do negócio. E essa ausência de culpa torna-se ainda mais manifesta face ao tipo de compra e venda efectuada e ainda a circunstância de apenas ter pago parte do preço do imóvel. Assim, a anulação da primeira venda é oponível ao 3º e também 4ª ré (face à situação matrimonial e regime dos bens decorrente dessa situação), devendo o imóvel ser restituído à A. e ser tal anulabilidade extensível a esta segunda venda.
t) Há, assim, erro de julgamento da matéria de facto e má aplicação do direito.
u) Há fundamentação deficitária.
v) Assim sendo deverá ser improcedente a acção na parte ainda em discussão, condenando os 3º e 4º R no pedido de anulação da compra e venda e reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel em causa pelo que só assim se fará Justiça e não transformará tal palavra numa mera palavra vã e assim se evitando que “o crime compensa”!

Nestes termos e nos mais de Direito que V.Exas Doutamente suprirão
requer:

a) Sejam o presente Recurso e subsequentes Alegações de Recurso admitidas e em consequência;
b) Seja revogada a decisão proferida, substituída por outra que determina a nulidade do negócio em apreço, oponível ao 3º e 4ºR, com as demais consequências legais.

Os RR contra-alegaram defendendo a confirmação da sentença recorrida e juntaram um documento.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Questões a decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso pelo que as questões a decidir são estas:
- se é nulo o depoimento prestado pela testemunha Dr J...
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- se deve ser declarada a oponibilidade da anulação da compra e venda aos apelados e reconhecido o direito de propriedade da apelante sobre o imóvel em causa

Como questão prévia cabe apreciar se é admissível a junção do documento apresentado com a contra-alegação.

III - Da questão prévia.

Com a contra-alegação juntaram os apelados um documento intitulado «Contrato de arrendamento» datado de 23/07/2003, invocando os art. 651º nº 1 e 425º do CPC.
De harmonia com o art. 425º do CPC, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Assim, atenta a data do documento e visto que o encerramento da discussão ocorreu em 08/07/2013, como não está demonstrado que o documento não pudesse ter sido apresentado até àquele momento, impõe-se a sua rejeição, devendo os apelados serem condenados em multa que se fixa em 1 (uma) UC nos termos do art. 443º nº 1 do CPC e do art. 27º nº 1 do Regulamento das Custas Processuais.

IV - Fundamentação.

A) No acórdão desta Relação proferido em 13/03/2014 e no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 26/11/2014 vem dado como provado:

«1. Por escritura pública datada de 3 de Julho de 2003, celebrada no 6º Cartório Notarial de Lisboa, a A. declarou vender à ré C..., pelo preço de 78.000€, livre de ónus e encargos (excepção feita à hipoteca a favor do Banco Totta e Açores, S.A., inscrição C-um, cujo cancelamento se encontra assegurado), a fracção autónoma individualizada pela letra “G”, destinada exclusivamente a habitação, correspondente ao segundo andar esquerdo, do prédio sito na Rua R... F... nºs ... e ...-A, freguesia de São Sebastião, concelho de Lisboa, descrito na 8ª CRP de Lisboa, sob o nº ... da dita freguesia, registado a favor da vendedora, tendo a referida ré declarado aceitar a venda nos termos referidos – cf. Doc. de fls. 18 a 21 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
2. Tal aquisição foi registada a favor da ré C..., casada no regime da comunhão de adquiridos com N..., pela inscrição G-3, Ap. 07 de 31/07/2003;
3. A propriedade de tal imóvel encontra-se registada a favor do réu J..., casado com a ré I..., por compra, com registo datado de 30/06/2004, inscrição G-4, Ap. 40 – cf. Certidão de fls. 23;
4. Por documento particular, datado de 23 de Julho de 2003, e subscrito pela A., B... e a ré C..., foi estabelecido um denominado “Gentleman’s agreement”, junto a fls. 14 a 17 e cujo teor se reproduz;
5. Corre termos na 2ª vara Cível de Lisboa 1ª secção, sob o nº 2037/08.2TVLSB, uma acção intentada pela ora A., em 14/07/2008, contra os ora RR. J... e I..., na qual a A. pede que se reconheça a validade do contrato de arrendamento sobre a referida fracção, e que se reconheça por força do mesmo a posse ou detenção sobre o imóvel à A., devendo os RR. serem condenados a entregar o mesmo, invocando para tanto a sua qualidade de arrendatária, alegando a existência de um contrato de arrendamento datado de 23 de Julho de 2003 – cf. Certidão junta a fls. 157 a 209 cujo teor se reproduz;
6. Os autos supra identificados foram, por decisão proferida a 13/07/2009, declarados suspensos, por questão prejudicial (a que se discute nestes autos) nos termos constantes da certidão junta a fls. 294 e 295 cujo teor se reproduz;
7. Por Acórdão proferido na 7ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do proc. nº 8868/06.0TDLSB, o qual transitou em julgado a 2/11/2011, foi B..., arguido nesses autos, foi o mesmo condenado pela prática de um crime de abuso de confiança na pena de 4 anos e seis meses de prisão, bem como o pagamento à ora A., assistente naqueles autos, de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 15.000€, e por danos patrimoniais no valor de 460.000,00€ - cf. Certidão de fls. 311 a 349, cujo teor se reproduz;
8. A A. em Maio de 2003, por se encontrar numa situação financeira que não lhe permitia fazer face aos seus encargos e dívidas, contactou  B..., o qual angariava clientes para crédito junto do D..., cujo símbolo ostentava numa agência de Mem Martins onde a A. se dirigiu;
9. No dia 26/06/2003, B... propôs à A. conceder-lhe financiamento, desde que a A. procedesse à venda da fracção em causa a um terceiro, o qual recorreria, para a aquisição, ao crédito bancário, dando como garantia o imóvel em hipoteca;
10. E face a essa operação facultaria à A. a disposição das verbas para fazer face aos seus encargos;
11. Pelo referido B... foi, nessa altura, apresentada como compradora nesse negócio a ré C...;
12. E foi na sequência dessas negociações que foi subscrito o documento referido em 3. e realizada a escritura referida em 1.;
13. O valor da venda constante da escritura referida em 1. não foi pago pela ré à A.;
14. Foi acordado entre a A., o B... e a R. C... que caso a A. não obtivesse financiamento o imóvel deveria ser vendido a esta ou a quem a mesma indicasse;
15. Ao celebrar o contrato de compra e venda o R. J... tinha conhecimento da existência de uma hipoteca registada sobre o imóvel em causa a favor do Banco Santander para garantia de empréstimo no qual era devedora a A. e sabia que esse imóvel tinha sido comprado pela R. C... à A.
16. O Réu J... só conheceu a A. numa deslocação que fez ao imóvel posteriormente à celebração da escritura de compra e venda em que interveio.
17. A R. I... nunca conheceu B... e o R. J... só conheceu este último aquando da celebração da escritura de compra e venda do imóvel em causa datada de 30/06/2004, em que o mesmo interveio na qualidade de procurador dos vendedores C... e marido.
18. O R. J... declarou na escritura que o preço era de 80.000 €, tendo apenas pago pela compra, por cheque emitido em nome e a favor de B..., o valor de 60.000 €, tendo o mesmo R., desde 30/06/2004, pago todos os encargos da fracção, como condomínio, taxas de conservação e encargos fiscais.

C) Com base nos documentos juntos aos autos está também provado:

- Os RR C... e N... outorgaram procuração no dia 04/08/2003 no 6º Cartório Notarial de Lisboa onde se lê, nomeadamente:
«Que constituem seu procurador B... (…) a quem concedem os necessários poderes para, com dispensa de prestação de contas, com a faculdade de substabelecer, prometem vender e vender, hipotecar, e permutar a quem melhor entender, podendo fazer negócio consigo próprio, pelas cláusulas, preços e condições que entender convenientes, a fracção autónoma designada pela letra G, afecta exclusivamente a habitação, correspondente ao segundo andar esquerdo, do prédio urbano sito na Rua R... F..., nºs ... e ...-A, freguesia de S. Sebastião, concelho de Lisboa, descrito na Oitava Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número mil e oitenta e sete da dita freguesia, inscrito na matriz da freguesia de S. Sebastião da Pedreira, sob o artigo ..., outorgar e assinar as competentes escrituras e ou contratos promessa de compra e venda (…) outorgando e assinando tudo o que for necessário para o bom e integral cumprimento do presente mandato.
A presente procuração é conferida no interesse do mandatário, pelo que é irrevogável, nos termos do nº 2 do artigo 1170º e do artigo 1175º, ambos do Código Civil, podendo ainda o mandatário celebrar negócio consigo próprios, conforme permite o artigo 261º do Código Civil» (certidão de fls. 531 a 533).
- A presente acção foi instaurada em 28/05/2007 e foi registada em 15/10/2007 (certidão do registo predial de fls. 129 a 133).

D) No documento intitulado «Genteman’s Agreement» referido no ponto 4 da matéria de facto consta, nomeadamente:

«Entre:
A..., (…) residente na Rua ..., a seguir designada como primeira outorgante;
B..., (…) a seguir designado como segundo outorgante; e, C..., (…) a seguir designada como terceira outorgante, é celebrado o presente Gentleman’s Agreement, que se regerá pelas cláusulas seguintes:


A primeira outorgante adquiriu por compra ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, por escritura notarial outorgada no 14º Cartório Notarial de Lisboa em sete de Fevereiro de mil novecentos e noventa e seis, a Fracção autónoma designada pela letra “G” que corresponde ao segundo andar esquerdo, do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua R... F..., números ... e ...-A, freguesia de S. Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, descrito na Oitava Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número mil e oitenta e sete, inscrito na matriz da freguesia de 5. Sebastião da Pedreira sob o artigo ..., com o actual valor patrimonial de 2.277,96 Euros, tendo o prédio sido inscrito na respectiva matriz em data anterior a 7 de Agosto de 1951.

Sobre a referida fracção incide uma hipoteca registada a favor duma Instituição Bancária que, à data de 31 de Janeiro de 2003, tinha um saldo devedor a favor desta no valor de 38.648,13 Euros.

Por se encontrar em dificuldades económicas e não estar em condições de solicitar financiamentos à presente data, a primeira outorgante abordou o segundo outorgante no sentido deste diligenciar na obtenção dum empréstimo urgente.

Por chegarem a um acordo, a primeira outorgante vai hoje outorgar escritura de compra e venda da fracção identificada na cláusula primeira do presente contrato a favor da terceira outorgante no 6° Cartório Notarial de Lisboa.

A venda será efectuada com o ónus que incide sobre a mesma fracção, ficando a primeira outorgante com a obrigação de continuar a efectuar o pagamento das prestações que se vencerem do empréstimo bancário em questão e dos encargos que se tornarem necessários à obtenção da documentação para efeito, escritura e registo.

Esta venda justificou-se para facilitar a obtenção dum empréstimo necessário à primeira outorgante e com o acordo de todos os outorgantes.

A partir de 23 de Julho de 2003, o segundo outorgante tem um prazo máximo concedido de 120 (cento e vinte dias), que apenas poderá ser prorrogado por acordo escrito, para obtenção de um empréstimo para a primeira outorgante de cerca de Euros 50 000,00 (cinquenta mil euros), podendo para o efeito onerar a já identificada fracção no valor correspondente ao empréstimo acrescido do valor dos juros e dos encargos legais ou bancários.

Caso o segundo outorgante não consiga obter o empréstimo pretendido pela primeira outorgante no prazo máximo de 120 dias, e caso este prazo não seja prorrogado por escrito e de comum acordo entre todos os outorgantes em questão, a fracção identificada deverá tomar a ser vendida, agora pela terceira à primeira outorgante, ou a quem esta indicar até ao dia da escritura.

Esta escritura agora prometida deverá ser outorgada no prazo máximo de quinze dias a partir do termo do prazo dos cento e vinte dias já referidos, ou sua prorrogação acordada, caso se venham a verificar as mesmas condições.
10ª
Para o efeito, a terceira outorgante e respectivo marido outorgarão, no prazo máximo de oito dias a contar da data da assinatura do presente gentleman’s agreement, procuração irrevogável a favor do segundo outorgante, a fim deste outorgar a escritura prevista na cláusula nona deste acordo e nos termos do estatuído na cláusula oitava.
11ª
Caso o empréstimo venha a ser concedido, todos os outorgantes assinarão aditamento ao presente Gentleman’s Agreement a fim de acordarem e regulamentarem, nos termos do financiamento concedido, o valor certo, o prazo de pagamento e demais condições do financiamento e respectivo pagamento, bem como a data prevista para conclusão do empréstimo e retorno do imóvel para a primeira outorgante, ou para quem esta indicar.
12ª
Caso venha a ser aprovado o financiamento pretendido, caberá unicamente à primeira outorgante a decisão de aceitação ou não tanto do financiamento, como das condições acordadas.
13ª
No caso de não aceitação do financiamento/empréstimo ou suas condições pela primeira outorgante, deverá ser aplicado o regime estabelecido nas cláusulas oitava e nona do presente contrato, devendo o prazo dos oito dias ser, neste caso, contado da não aceitação agora prevista.
14ª
A ser aceite o financiamento e este venha a efectivar-se através de empréstimo à primeira outorgante, a fracção identificada na cláusula primeira ficará a garanti-lo até efectivo e integral pagamento deste também pela primeira outorgante.
15ª
Deverá ser sempre feito um aditamento ao presente gentleman’s agreement, desde que seja aprovado o financiamento e efectuado o empréstimo pretendido pela primeira outorgante e desde que aceite por esta, aditamento onde serão estabelecidas todas as condições do financiamento, empréstimo, pagamento e destino da fracção.
16ª
Se não for previsto no referido aditamento a data em que deverá ser outorgada nova escritura de compra e venda verificado que seja o pagamento da totalidade do empréstimo a contrair pela primeira outorgante, fica, desde já, acordado entre todos os contraentes que a escritura deverá ser outorgada no prazo máximo de trinta dias após o pagamento integral e efectivo do empréstimo, excepto se vier a ser requerida documentação pelas entidades oficiais, nomeadamente, IPPAR, Câmara Municipal de Lisboa, Notários, etc, que, neste caso deverão ser obtidos por conta da primeira outorgante a fim de viabilizar a outorga da escritura no menor espaço de tempo, respeitando-se, neste caso, os prazos das entidades oficiais.
17ª
Ficarão, ainda, a cargo da primeira outorgante, todos os encargos necessários à viabilização da escritura de compra e venda prevista na cláusula décima sexta, nomeadamente com a obtenção da documentação para a escritura, escritura, registo e eventual sisa, bem como de qualquer hipoteca adicional necessária e eventualmente solicitada para garantir o financiamento/ empréstimo agora necessário à primeira outorgante.
18ª
Todos os outorgantes sujeitam o presente gentleman’s agreement, no caso de incumprimento, ao regime da execução específica.
19ª
Considera-se incumprimento para efeitos do presente contrato, qualquer situação verificada e prevista no presente acordo que, depois de terem passados os prazos contemplados, tendo sido enviada com oito dias de antecedência aos outorgantes carta registada com aviso de recepção com a respectiva notificação, os mesmos não estejam presentes para o efeito.
20ª
O presente gentleman’s agreement foi acordado e assinado de boa-fé entre todos os outorgantes.
Lisboa, 23 de Julho de 2003.
Rasurei “terceira”»
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B) Na sentença ora recorrida proferida em 10/07/2015 vem agora também dado como provado (com a numeração que aqui se reproduz):

19) O R. J..., quando celebrou o contrato de compra e venda, não tinha conhecimento dos factos referidos nos pontos 4) e 8) a 14) nem do teor da escritura de compra e venda celebrada entre a A. e a R. C....
20) A oportunidade de negócio foi apresentada ao R. por um amigo seu, que lhe esclareceu existir um interessado em vender este imóvel identificado e descrito com base em plantas disponibilizadas, sendo na véspera da escritura que ficou a saber que o imóvel estaria temporariamente ocupado, tendo por isso ficado acordado que o imóvel poderia ser entregue devoluto de pessoas e bens, no prazo de 90 dias a contar da data da realização da escritura.
21) O negócio implicava a necessidade de distrate e consequente liquidação da hipoteca que incidia sobre a fracção, mas como foi acordada a possibilidade de diferimento da entrega por 90 dias, o 3º R. aceitou a compra do imóvel onerado com a hipoteca e cláusula de reversão da compra por resolução por parte dos vendedores, mas impôs o diferimento do pagamento de € 20.000,00 do preço escriturado para o momento da entrega efectiva do imóvel, o que foi aceite.
22) Após apreciação do negócio proposto, foi o mesmo concretizado, nos termos e na data referidos, tendo o amigo do R. preparado e instruído a escritura.
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C) Se é nulo o depoimento prestado pela testemunha Dr J....

Na acta da audiência de discussão e julgamento de 08/07/2015 (cfr fls. 1689) consta que esta testemunha disse ser amigo dos RR J... e I... e que o R. é padrinho de uma das suas filhas, que é advogado e «ter tido intervenção não remunerada no caso dos autos, por via do apoio e aconselhamento que terá dado ao Réu através dos seus conhecimentos profissionais». Mais consta na acta que «O Mmº Juiz perguntou ao Réu se este autorizava o levantamento do sigilo profissional relativamente aos factos de que a testemunha tenha tido acesso por força do eventual aconselhamento dado como advogado, tendo o Réu dito autorizar».

Também nessa acta consta que «Pelo Ilustre mandatário foi deduzida oposição relativamente ao levantamento do sigilo profissional autorizado, tendo o Mmº Juiz decidido que nada obsta a que o depoimento da testemunha seja prestado, uma vez que o Réu autorizou o levantamento do sigilo, prescindindo da tutela que a lei estabeleceu em seu exclusivo benefício. Nessa medida, o Mmº Juiz determinou a audição da testemunha».

Portanto, foi proferido despacho admitindo a prestação do depoimento da testemunha.

Desse despacho não foi interposto recurso nos termos do art. 644º nº 2 al d) do CPC, pelo que transitou em julgado.

Ainda assim, diremos que na verdade no art. 87º nº 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei 15/2005 de 26/01/2005 - em vigor à data em que foi prestado o depoimento - consta que «Os actos praticados pelo advogado em violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo». E de harmonia com o nº 4 desse normativo o advogado só pode revelar factos abrangidos pelo sigilo profissional mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo. Portanto, não cabe na disponibilidade das partes a dispensa do segredo profissional do advogado.
Por isso, o depoimento prestado pela testemunha Dr J... não pode fazer prova em juízo.
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D) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Sustenta a apelante que a resposta dada aos factos 19, 20 e 21 deveria ter sido dada como não provada, invocando que as declarações de parte do R. J... foram inconclusivas e que todo o depoimento da testemunha B... aponta em sentido diverso ao que consta na sentença.
Porém, as declarações deste R., contrariamente ao alegado pela apelante, não foram inconclusivas, tendo o R. explicado a razão de ter celebrado o negócio e que a oportunidade de o realizar lhe foi apresentada pela testemunha Dr J..., pessoa em quem confiava e que é seu amigo, mais tendo explicado que só conheceu a testemunha B... no dia da escritura em que interveio e que desconhecia o teor da escritura de compra e venda celebrada entre a apelante e a R. C.... Quanto ao depoimento da testemunha B..., não indica a apelante qualquer passagem do mesmo que aponte em sentido diverso do que consta nos factos dados como provados pela 1ª instância, além de que esta testemunha disse que só conheceu o R. J... no dia da escritura e nunca referiu que este R. conhecia o teor do contrato de compra e venda celebrado entre a apelante e a R. C... nem tão pouco que conhecia o denominado “Gentlemen’s Agreement”. De sublinhar ainda que decorre dos factos provados que o R. J... só conheceu a apelante numa deslocação que fez ao imóvel posteriormente à celebração da escritura de compra e venda em que interveio.
Refira-se também que a testemunha B... quis fazer crer que o R. J... não quis na realidade comprar o imóvel mas sim fazer um empréstimo e que tal não ficou provado.
Improcede, pois, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

E) O Direito.
Cumpre agora decidir se a declaração de anulação do 1º negócio é oponível aos apelados.
Dispõe o art. 291º do CC:
«1. A declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.
3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.».

O contrato de compra e venda celebrado entre a apelante e a R. C... foi outorgado em 23/07/2003.

O contrato de compra e venda em que foi comprador o apelado J... foi outorgado com os RR C... e N... em 30/06/2004 e nessa mesma data foi registada a aquisição a seu favor.

Não é pacífico se o prazo de três anos referido no nº 2 do art. 291º se reporta ao 1º negócio ou ao negócio celebrado pelo sub-adquirente (a título exemplificativo da divergência de entendimentos vejam-se os Ac do STJ de 26/10/2004 – P. 04A1054 e Ac do STJ de 21/06/2007 – P 07B1847 – in www.dgsi.pt).

Mas a verdade é que a acção apesar de instaurada em 28/05/2007 só foi registada em 15/10/2007, ou seja, o registo foi efectuado mais de três anos após a conclusão de qualquer destes negócios.
Assim, a declaração de anulação do contrato de compra e venda celebrado entre a apelante e a Ré C... não é oponível aos apelados se dos factos provados resultar que o apelado J... estava de boa fé quando outorgou no contrato de compra e venda de 30/06/2004.

O ónus da alegação e prova dos factos integrantes da boa fé prevista no art. 291º, ou seja, a ignorância do vício do 1º negócio, sem culpa, impende sobre o terceiro, por constituir matéria de excepção (neste sentido Ac do STJ de 26/10/2004 - P. 04A1054, e Ac do STJ de 27/9/2012 – P. 3375/09.2TBMTS.P1.S1 – in www.dgsi.pt).

Decorre dos factos provados que o apelado J... desconhecia, sem culpa, o vício do 1º negócio. Em consequência, a declaração de anulação do 1º negócio não é oponível aos apelados, improcedendo, por isso, a apelação.
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V. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) recusar a junção do documento apresentado com a contra-alegação, ordenando-se o seu desentranhamento e condenando-se os apelados na multa de 1 (uma) UC;
b) julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 15 de Setembro de 2016



Anabela Calafate
Maria Manuela Gomes                                  
Fátima Galante
Decisão Texto Integral: