Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1846/07.4TBFUN-AN.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: LEIS TEMPORÁRIAS
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO À HABITAÇÃO
CONFLITO DE DIREITOS
PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–Os vícios da decisão de facto suscetíveis de gerar a nulidade da sentença nos termos do art. 615º do CPC serão ‘apenas’ o da prolação de decisão de direito sem fundamentos de facto que suportem ou integrem os respetivos pressupostos legais, e o da omissão de pronúncia sobre questão de facto suscitada pelas partes.

II–Apesar de o conceito de casa de morada de família corresponder a facto jurídico complexo que surge legalmente definido no art. 10º, nº 3 da Lei de Bases da Habitação, não deixa por isso de consubstanciar facto ou fenómeno empiricamente apreendido e social e leigamente entendido com o sentido com que é juridicamente entendido, em síntese, como o espaço físico onde os elementos de um agregado familiar residem de forma habitual e com caráter de permanência, aí detendo o centro da sua organização pessoal, doméstica, familiar e social, em condições de continuidade e de preservação da intimidade e privacidade familiar.

III–A omissão de motivação do resultado do julgamento de facto não constitui fundamento nem dá causa à nulidade da sentença posto que aquela (omissão) é resolvida/sanada nos termos do art. 662º do CPC.

IV–A baixa dos autos ao tribunal recorrido (a título devolutivo) para suprimento da motivação (total ou parcial) da decisão de facto só deve ser determinada quando os factos nela descritos (e não motivados) se revelam necessários à apreciação de mérito do recurso e não se descortinam nos autos os meios probatórios que os suportam.

V–As normas previstas pelo art. 6º-E, nº 7, als. b) e c) da Lei nº 1-A/2020 de 19.03 consubstanciam um regime excecional e temporário de tutela do direito à habitação que teve e tem como finalidade evitar que as pessoas por ele tutelados fiquem privados da sua habitação durante a pandemia e numa fase subsequente em que para muitos agregados familiares persistem os efeitos económicos e financeiros por aquela criados ou agravados.

VI–A compressão do direito do proprietário que, por força do referido regime excecional e transitório de tutela do direito à habitação, se vê impedido de exercer em pleno o seu direito sobre o imóvel dele objeto, pressupõe no mínimo que esse terceiro seja detentor de título sobre o imóvel oponível ao seu proprietário e que juridicamente legitime a ocupação que até aí dele vinha fazendo: ou a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel até à sua venda na execução ou na insolvência, ou o contrato de arrendamento celebrado com proprietário do imóvel.

VII–O conceito juridicamente relevante de casa de morada de família enquanto realidade sócio-familiar objeto de reconhecimento e tutela legal exclui do âmbito do próprio conceito habitações indevida ou ilegalmente ocupadas.

VIII–Numa lógica de recíproca exclusão do âmbito objetivo e subjetivo de cada norma, do teor da al. b) do nº 7 do art. 6º-E da Lei nº 1-A/2020 de 19.03 resulta que o seu âmbito de proteção corresponde a imóvel ocupado e fruído como casa de morada de família do próprio executado ou do insolvente; do teor da al. c) do nº 7 do art. 6º-E resulta expressa e literalmente que visa tutelar o arrendatário que é sujeito passivo da ação de despejo; do teor literal do nº 8 do art. 6º-E resulta que se destina a prevenir a subsistência do executado ou do declarado insolvente.

IX–A entrega de imóvel vendido em sede de execução ou de insolvência deve ser suspensa ipso facto independentemente de requerimento nesse sentido e de despacho que o declare se e logo que o executor da entrega empiricamente se aperceba que aquele constitui casa de morada de família do executado ou do insolvente.
X–A suspensão da entrega de imóvel só constitui efeito automático ou ope legis depois de, cumprido o contraditório, resultar assente ou comprovado que aquele corresponde a casa de morada de família do executado ou do insolvente.

XI–Diversamente, a situação tutelada pelo nº 8 do art. 6º-E reporta a imóvel que não constitui a casa de morada de família do executado ou do insolvente, pressupõe que por estes seja requerida a sustação da entrega, e exige a alegação e verificação de pressuposto de apreciação casuística (que a entrega do imóvel a quem o adquiriu no âmbito do processo de execução ou de insolvência causa prejuízo à subsistência do executado ou do insolvente).

XII–Por qualquer forma, decorridos mais de dez anos sobre a apreensão e venda do imóvel no âmbito do cumprimento da liquidação da massa insolvente, no atual estado da situação subjacente à previsão do regime legal excecional e transitório de suspensão de entrega de casa de morada de família/de imóvel afrontaria o princípio constitucional da proporcionalidade resolver o conflito entre o direito de propriedade e o direito à habitação em detrimento do exercício do primeiro, que dele já esteve privado por período superior a dez anos em benefício de quem durante esse mesmo período e sem título ocupou o imóvel.

Decisão Texto Parcial:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


Recurso próprio, tempestivo e admitido com o modo de subida e efeito adequados.
         
Atendendo à ausência de contra-alegações e simplicidade da questão objeto do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 656º do Código de Processo Civil profere-se decisão singular por, no referido contexto, se nos afigurar dispensável a intervenção da conferência.

I–Relatório

1.No âmbito do processo de insolvência da sociedade P…, concluída a liquidação da massa insolvente e julgadas as contas finais da liquidação por sentença de 07.06.2019, já transitada em julgado, por requerimento que em 21.05.2021 dirigiu aos autos principais, O…, SA requereu ao tribunal que autorize o recurso à força policial com vista à desocupação das frações pertencentes ao prédio urbano sito em …, adquirido no âmbito da liquidação pelo credor Banco…, SA e inscritas no registo em benefício deste por ap. 2268 de 2011/02/14, e do qual a requerente O…, SA foi investida na posição de titular por força da Resolução do Banco de Portugal de …. Pedido que reiterou em 07.10.2021.
2.Notificado do aludido requerimento por expediente de 27.05.2021, o sr. administrador da insolvência (AI) nada ofereceu ou requereu a respeito.
3.Por despacho de 01.12.2021, notificado ao AI por expediente de 02.12.2021, foi ordenada a notificação deste para diligenciar pela entrega efetiva do imóvel à credora O…, SA.
4.–Em 22.12.2021 o AI pronunciou-se sobre o pedido da O…, SA alegando que, conforme consta da ata e é do conhecimento do tribunal, o imóvel foi adjudicado ao credor Banco…, SA no dia 08.10.2010, que desde essa data este tomou posse do imóvel e a massa insolvente não a tem, que não pode entregar duas vezes o mesmo bem, e concluiu que não tem legitimidade para proceder à entrega do prédio e que não é nesta sede que aquela terá de pedir a desocupação das frações ocupadas pelos promitentes compradores.
5.–Em 25.01.2022 a requerente O…, SA respondeu ao requerimento do AI alegando que este se limitou a proceder à adjudicação do imóvel e à emissão do título de transmissão e nada fez para proceder à entrega do imóvel, quer a si quer ao Banco…. Requereu ser investida na posse do imóvel nos termos do art. 861º do CPC, e reiterou o pedido de autorização do recurso às forças policiais para o efeito.
6.–Em 16.02.2022 foi proferido o seguinte despacho, notificado ao AI e à O… SA por expediente de 17.02.2022:
O Tribunal decide autorizar a requisição do auxílio da força pública por parte do Sr. Administrador da Insolvência, com vista a acompanhar a entrega efectiva das fracções pertencentes ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …e inscrito na matriz sob o n.º ….
Notifique o Sr. Administrador da Insolvência para, no prazo máximo de 20 (vinte) dias, concretizar a entrega.
7.–Em 18.02.2022 o AI requereu clarificação do sobredito despacho alegando que o imóvel foi transmitido ao Banco… em 31.10.2010, que desde essa data deixou de assegurar a sua administração, e que as diligências para a sua desocupação não devem nem podem ser por ele empreendidas mas sim pelo atual proprietário, ao que a requerente O… SA reagiu com requerimento de 23.02.2022, reiterando o já por si alegado e requerido.

8.–Sobre o pedido de clarificação recaiu despacho de 23.02.2022 com o seguinte dispositivo:

Termos em que, o Tribunal decide:
1.-Notificar novamente o Sr. Administrador da Insolvência para, no prazo de 20 (vinte) dias, desencadear as diligências necessárias com vista a assegurar a entrega efectiva do imóvel ao adquirente;
2.-Autorizar a requisição do auxílio da força pública por parte do Sr. Administrador da Insolvência, com vista a acompanhar a entrega efectiva das fracções pertencentes ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … e inscrito na matriz sob o n.º …, caso o mesmo se depare com oposição ou resistência à entrega.

9.–Em 13.05.2022 o AI informou nos autos que as notificações que remeteu aos ocupantes do prédio foram todas devolvidas com a menção deendereço insuficiente e que no dia 12.05.2022 colocou um edital na porta principal do edifício e em todos os andares do mesmo para todos os ocupantes tomarem conhecimento do despacho de 23.03.2022 e para entregarem as chaves de forma voluntária até ao dia 31.05.2022 sob pena de no dia 01.06.2022 proceder à efetiva desocupação com auxílio da força pública e arrombamento de porta.
10.–Em 26.05.2022 o AI relatou nos autos que a ilustre mandatária da O… SA informou que esta vendeu o prédio em crise no decorrer da passada semana e requereu a notificação daquela para informar a entidade compradora a quem poderá entregar as chaves do prédio, e indicação sobre quem assumirá as despesas do serralheiro, com a substituições das fechaduras, ou outras despesas que venham a ser necessárias à entrega do imóvel.
11.–Em 26.05.2022 foi proferido despacho a ordenar a notificação da O…, SA para prestar as informações solicitadas pelo Sr. Administrador da Insolvência, e a determinar que o encargo com a substituição das várias fechaduras do imóvel deve ser suportado pelo respetivo atual proprietário.
12.–Em 31.05.2022 O…, SA informou que em 17.05.2022 procedeu à venda da totalidade do prédio à sociedade P… Imobiliários, Lda. e que as chaves do imóvel devem ser entregues a esta.
13.–Em 02.06.2022 o AI juntou Auto de entrega com assinatura imputada a sócio gerente do proprietário, dele constando que em 01.06.2022 procedeu à mudança de fechaduras das frações C, D, F, e G e das zonas comuns (portas de acesso às traseiras do prédio e de acesso às varandas do 1º, 2º e3º piso) e à entrega das chaves ao sócio gerente da P… Imobiliários, Ldª, procedendo à entrega parcial do prédio em crise.
14.–Por requerimento de 09.06.2022, os intervenientes R… e mulher M… (3º I), C… (1ºE), L… (r/c B), J… e mulher M… (4.ºM), A… e marido J… (4.ºL), M… (3.ºK), MA… (2.ºH), e I… e mulher M… (2º F) alegaram residirem com os respetivos agregados familiares nas frações do prédio urbano, situado em …, destinado a habitação, em regime de propriedade horizontal, denominado …, inscrito na matriz sob o artigo rústico …da seção BK e sob o artigo urbano …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º…, daquela freguesia e, invocando o disposto no art. 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 de 19.03, na redação dada pela Lei nº 13-B/2021 de 05.04 e alegando que o AI designou o dia 13.06.2022 para diligenciar pela entrega das frações, requereram seja comunicada a possibilidade de continuarem a habitar a fração que naquele prédio constitui a respetiva casa de morada de família até que aquela norma cesse a respetiva vigência.
15.–Sobre aquele requerimento, que não foi objeto de qualquer notificação, recaiu o seguinte despacho, proferido em 13.06.2022 (pelas 11h14):
Requerimento datado de 09 de Junho de 2022:
1.R… (…), vieram requerer que seja comunicado aos respectivos moradores a possibilidade de continuarem a habitar a fracção que constitui a sua casa de morada de família, até que o disposto no artigo 6.-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021 de 05 de Abril cesse a respectiva vigência, por o Sr. Administrador da Insolvência ter as diligências de entrega designadas para o dia 13 de Junho de 2022.
Cumpre decidir.
Nos termos do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na versão introduzida pela Lei n.º 91/2021, de 17 de Dezembro, ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo, os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Por sua vez, nos termos do n.º 8 do artigo 6.º-E, da mesma Lei, “[n]os casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária”.
Ao conjugar as duas normas em apreço, verifica-se que o legislador estatuiu dois níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis:
a)- Se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma;
b)- Se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável.
In casu, estamos perante casas de morada de família.
Assim sendo, a entrega encontra-se suspensa.

DECISÃO
Termos em que, o Tribunal decide:
1.- Declarar a diligência de entrega em curso suspensa durante a vigência do disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na versão introduzida pela Lei n.º 91/2021, de 17 de Dezembro;
2.- Declarar que as diligências de entrega devem ser retomadas após a cessação do referido regime jurídico.
16.–Na mesma data, 13.06.2022, o AI dirigiu requerimento aos autos com o seguinte relato:
-Desde o dia 01/06/2022, o ora signatário encontra-se a diligenciar no cumprimento do despacho de 23/03/2022, com Referência: 51510605;
-Após negociações existentes entre os moradores e o atual proprietário do prédio, e tendo as mesmas sido frustradas, o ora signatário deu início ao arrombamento de portas, no dia 08/06/2022, com o auxílio da força pública;
-No final do dia 09/06/2022, verificou-se que restaram cinco frações por entregar:
-Fração autónoma identificada pela Letra A, localizada no rés-do-chão, onde existe uma ação de usucapião pendente;
-Fração autónoma identificada pela Letra E, localizada no 1º andar, onde o titular de um suposto contrato promessa de compra e venda (por cessão de posição contratual) é C…, encontra-se ocupada, por arrendamento, a uma professora e o seu pai;
-Fração autónoma identificada pela Letra F, localizada no 2º andar, onde os moradores originais seriam I… e M…, encontra-se ocupada, “por empréstimo” a uma família de emigrantes;
-Fração autónoma identificada pela Letra I, localizada no 3º andar, onde os moradores originais são R… e M…, encontra-se ocupada pelos mesmos;
-Fração autónoma identificada pela Letra M, localizada no 4º andar, onde os moradores originais são J… e M…, encontra-se ocupada pelos mesmos;
-No decorrer do dia 09/06/2022, e após o ora signatário ter contactado a linha de emergência social nº 144, o Instituto da Habitação da Madeira, e área social do Município da …, foram encontradas soluções de garantia de alojamento provisório a todos os ocupantes das referidas frações;
-No decorrer do dia 09/06/2022, e após o ora signatário ter contactado a linha de emergência social nº 144, o Instituto da Habitação da Madeira, e área social do Município da …, foram encontradas soluções de garantia de alojamento provisório a todos os ocupantes das referidas frações ;
-(…)
-No dia 09/06/2022, por todos foi acordado que os moradores que ainda permaneciam nas referidas frações, teriam o fim de semana para remover os bens pessoais, para a entrega efetiva das frações autónomas, livre de pessoas e bens, sem a necessidade do ora signatário proceder à inventariação, remoção e depósito de bens para armazém, cujas despesas seriam suportadas por aqueles;
-Contudo, no dia de hoje, o ora signatário foi surpreendido com um requerimento apresentado pela mandatária dos moradores pedindo a suspensão da diligência, alegando a Lei do Covid, correspondendo a mais uma diligência dilatória para atrasar a entrega das referidas frações;
-Apesar de não existir qualquer despacho sobre o requerimento apresentado pelos moradores, vigorando ainda o despacho de 23/03/2022, com Referência: 51510605, já transitado em julgado, o ora signatário suspendeu a diligência até obter o despacho de V. Exa. quanto aos requerimentos apresentados;
Pelo exposto, perante os requerimentos apresentados pelos moradores e pelo proprietário, requer a V. Exa. a clarificação da manutenção do cumprimento do despacho de 23/03/2022, com referência nº 51510605, ou a sua suspensão.

17.–Por requerimento que na mesma data foi junto aos autos, os requerentes identificados em 15, alegando a qualidade de moradores em frações do prédio em questão, alegaram que (com subl. nosso):
O Administrador da Insolvência deu início à diligência de despejo dos moradores no passado dia 7, apesar do disposto no artigo 6.ºE, n.º7 b) da lei n.º1-A/2020 e 19/03, na redação dada pela Lei n.º13-B/2021 de 05 de abril, que imponha a suspensão daquela diligência.
Todavia, permaneceram no imóvel quatro famílias, as quais não dispõem de alojamento alternativo.
Após contacto com o Vice-Presidente da Câmara Municipal da …, que está a articular o processo de realojamento com a Segurança Social, foi-me dado a conhecer, hoje, que esta entidade não tem qualquer oferta para alojamento nem para armazenamento dos bens móveis destas famílias. Pelo que estas quatro famílias, que não deviam ser sujeitas a despejo pelos motivos acima expostos, estão, ainda, a ser confrontadas com a falta de alternativa à residência, facto que colide com o direito à habitação que assiste a qualquer cidadão.
O Administrador de Insolvência tem conhecimento deste facto, que lhe foi pessoalmente transmitido pelo Vice-Presidente daquela edilidade, e deveria ter diligenciado com antecedência razoável no sentido de o processo de realojamento ser feito atempadamente e com dignidade e respeito pelas famílias. Todavia, insiste na continuação e efetivação da diligência, mesmo perante as vicissitudes ora mencionadas.
Pelo que, peço a V.Ex.ª que considere justificada a incorreção processual a que se aludiu no e-mail anterior e/ou que seja ordenada a suspensão da diligência em causa, pelos motivos expostos e que são e sempre foram do conhecimento do AI e da nova proprietária do imóvel.

18.–Por requerimento de 13.06.2022, a interveniente P… Imobiliários, Ldª arguiu a nulidade do despacho proferido no mesmo dia (13.06.2022) e requereu seja mantida a decisão de 24.03.2022 e ordenada a entrega imediata ao imóvel ao adquirente.

Alegou que em 17.05.2022 adquiriu as frações que foram adjudicadas à credora O… SA no âmbito deste processo, designadas pelas letras A, B, E, F, H, I, K, L e M, que em cumprimento do despacho de 23.03.2022 o AI procedeu à entrega das frações designadas pelas letras C, D, F e G no dia 01.06.2022 e, nos dias 8 e 9, das frações I, E, M e F; que, sem distinção de quem já foi despejado e de quem ainda se mantém no imóvel, os ocupantes requereram a suspensão da entrega das frações ocupadas ilegitimamente alegando tratar-se de casa de morada de família e ausência de habitação alternativa viável, o que não corresponde à realidade, que o tribunal ordenou a suspensão das diligências de entrega com fundamento no art. 6ºE, nº 7, al. b) da Lei 1-A/2020 de 19.03 sem que tenha dado oportunidade ao exercício do contraditório exigido pelo nº 8 daquela norma, o que consubstancia nulidade formal. Mais alegou que com o despacho de 24.03.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional nos termos do art. 613º, nº 1 e 2 do CPC pelo que aquele é de manter, e que estes autos não são a instância própria para os ocupantes requererem a suspensão da entrega judicial.

Por requerimento de 04.07.2022 a interveniente P… Imobiliários, Ldª alegou que foi informada que as frações 4M e 2F se encontram vazias e que a ausência de habitação alternativa viável não corresponde à verdade dos factos, e que quem assim alega faz um uso reprovável do processo e dos tribunais e litiga de má fé.

19.–Em resposta aos requerimentos de 13.06 e 04.07.2022 da interveniente P… Imobiliários, Ldª, os requerentes identificados em 14. rejeitaram a nulidade arguida e pugnaram pela manutenção do despacho de 13.06.2022 alegando que, tratando-se da sua casa de morada, a suspensão é automaticamente decretada sem contraditório, que nos termos do art. 613º, nº 2 do CPC o juiz pode retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, conforme aconteceu no caso, e que a decisão de suspensão das diligências de entrega do imóvel peca por tardia porque nunca deveria ter sido ordenada.
Mais alegaram que apesar das tentativas de realojamento encetadas pela autarquia da … a única alternativa de habitação possível não se aplicava a todos os requerentes e estaria disponível por poucos dias e que, na sequência das diligências encetadas pelo AI, já após o pedido de suspensão foram desocupadas as frações B (L…) H (E…) K (A…), L (A…) e M (Á…), mantendo-se ocupadas as frações I (R…), E (C…), e F (A…), requerendo que relativamente a estes seja mantida a suspensão decretada por tratar-se de casa de morada de família.

20.–Por requerimento de 11.07 (12h30), a interveniente P… Imobiliários, Ldª alegou que as frações E e F não se encontram abrangidas pela Lei nº 91/2021 de 17.12 por não consubstanciarem casa de morada de família dos requerentes, e que apesar de afirmado que a fração M se encontra desocupada, não lhe foi entregue, e concluiu requerendo a entrega das frações ainda ocupadas e da fração M.

21.–Por despacho de 11.07 (14h48), notificado por expediente de 12.07 apenas ao AI e à interveniente P…, Imobiliários, Ldª , foi apreciada e rejeitada a nulidade do despacho de 13.06 arguida pela interveniente, consignado lapso na atribuição de eficácia ao despacho de 23.03.2022 por a sua execução depender da revogação do art. 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 de 19.03, e reiterado que as diligências de entrega ordenadas devem ser executadas após a cessação do referido regime jurídico.

22.–Inconformada, a interveniente P… Imobiliários, Ldª apresentou recurso do despacho de 11.07.2022 requerendo a sua revogação e prolação de outro que considere não aplicar o regime excecional previsto pela Lei nº 1-A/2020 de 19.03 e ordene a desocupação das frações ilegalmente. Formulou as seguintes conclusões:
Vem o presente recurso interposto do douto despacho que ordena suspensão da entrega das frações sitas à Rua n... de ....., Ed. …, ocupadas ilegalmente até a cessação do artigo 6.º- E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Data venia, salvo o devido respeito por opinião em contrário, o douto despacho deve ser revogado, quer por violar a lei substantiva, quer por atentar contra lei adjectiva.

No que tange à matéria em crise nos autos, o douto despacho apenas refere o seguinte:
Conforme enunciado no despacho datado de 13 de junho de 2022, nos termos do art.º6.-E, n.º 7, alínea b), da lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na versão introduzida pela Lei n.º 91/2021, de 17 de Dezembro, ficam suspensas no decurso do período de vigência do regime execepcional e transitório previsto no presente artigo, os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Por sua vez, nos termos do n.º 8 do artigo 6.º-E, da mesma lei,”(n) os casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judicias de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.(…)
In casu, estamos perante casas de morada de família.
Assim sendo, a entrega encontra-se suspensa. (…)
Por conseguinte, por a referida Lei ainda se encontrar em vigor, consigna-se novamente que as diligências de entrega ordenadas por despacho datado de 13 de Junho de 2022 devem apenas ser executadas após a cessação do referido regime jurídico.”
Ou seja, o tribunal a quo, entendeu que por se tratar de casas de morada de família, bastava para fazer cumprir o regime excecional e transitório, sem fazer a análise crítica da situação em crise.
E escudou-se no vertido no n.º 7, al. b) e no n.º 8 do artigo 6.º da Lei n.º 1- A/2020, de 19 de março.
O regime execional previsto pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, tem como escopo a intenção de proteger arrendatários, insolventes ou executados de ficarem sem habitação durante a pandemia.
Na verdade, o objectivo do disposto no artigo 6.º E, n.º 7, alínea b) da Lei 1- A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, é a proteção dos arrendatários, insolventes ou executados, que, face à situação de pandemia, que não apenas coloca em risco a saúde pública, como resultou, em muitos casos, numa quebra inesperada de rendimentos, e sendo surpreendidos por decisão judicial que decrete o despejo, fiquem numa situação de fragilidade.
A medida é comum aos processos executivos e tem utilidade limitada aos processos de insolvência de pessoas singulares.
O que não se verifica nos presentes autos, pois, para além dos ocupantes não possuírem qualquer título que legitime/sustente a sua qualidade de arrendatários/insolventes e/ou executados, estamos perante um processo de insolvência de pessoa colectiva.
Daí que, atento o escopo da lei invocada para suspender entrega das fracções ocupadas ilegalmente, o Tribunal a quo andou mal.
Daí que, nos termos da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, se possa dizer que o tribunal proferiu uma decisão quanto à matéria de facto desajustada, tendo feito uma errada aplicação e interpretação do direito ao caso sub juditio.
Pelo exposto, salvo o devido respeito por opinião em contrário, o douto despacho proferida nos autos, do qual vem interposto o presente recurso, que julgou totalmente suspensa a entrega das frações ocupadas ilegalmente, por não ter realizado a análise crítica da matéria de facto, sem a confrontar com qualquer documento que sustente a qualidade de arrendatário, insolvente e/ou executado, é nula e dela nenhum efeito se retira.
Pelo que, deve ser revogado na totalidade o douto despacho ora em dissídio, devendo ser admitido e declarado procedente o presente recurso, determinando-se assim o prosseguimento dos Autos, com as demais consequências legais.
Ocorreu pois errada interpretação e aplicação do direito em causa.
Violaram-se assim os corolários dos princípios do dispositivo, da legalidade, do contraditório, inquisitório, do acesso aos Tribunais, da cooperação, da oficiosidade, da gestão processual, entre outros – cfr. artigos 2.º, 3.º n.º 3, 5.º, 6.º, 7.º, 154.; 411.º.; todos do CPC e ainda n.º 7, al. b) e no n.º 8 do artigo 6.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, ainda por violação dos princípios da igualdade e do acesso ao direito e à justiça plasmados nos art.º 13.º; 20.º e 205. da Constituição da República Portuguesa.

23.–Por requerimento de 27.07 a interveniente P…, Imobiliários, Ldª requereu seja ordenada buscas nas bases de dados e, verificando a veracidade do que alegou em 11.07.2022 relativamente às frações F e M, ordenar entrega imediata de tais frações.

24.–Não foram apresentadas contra-alegações e o recurso foi admitido por despacho de 13.09.

II–Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas oportunamente suscitadas, e definido pelas conclusões das alegações, que delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do art. 662º nº 2 e 608º, nº 2, este, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC, e sem que o tribunal de recurso esteja adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5º, nº3 do mesmo diploma).

Com estas premissas, considerando o teor da sentença recorrida e das conclusões enunciadas pela recorrente, sem prejuízo das questões que ex officio se imponha conhecer e/ou das que resultem prejudicadas pela solução dada a outras, pela ordem lógica das questões por aquelas suscitadas, cumpre apreciar:
1–Da invocada nulidade da sentença.
2–Erro de julgamento de direito na aplicação ao caso da medida temporária e excecional de suspensão da entrega de casa de morada de família prevista pela Lei nº 1-A/2020 de 19.03, na redação introduzida pela Lei nº 13/2021 de 05.04.

III–Fundamentação

A)-De Facto
Com relevo para apreciação do recurso outros não existem outros factos para além da atividade processual acima relatada e da seguinte:
Por sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 04.09.2012 foi verificado crédito do Banco… no valor de €1.118.133,68 garantido por hipoteca sobre o Prédio Urbano correspondendo a um terreno destinado à construção, localizado no …, freguesia e concelho da …, inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo …° daquela freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial da …, sob o n°…, incluindo as construções e/ou benfeitorias nele implantadas.

B)-De Direito

1–Da nulidade da decisão
1.–Na sequência das diligências encetadas pelo administrador da insolvência no ano de 2021 para cumprimento da requerida e ordenada entrega de frações de imóvel adquirido no ano de 2010 no âmbito da liquidação da massa insolvente, foi deduzida intervenção acidental nos autos por três casais e mais cinco pessoas singulares que, por requerimento conjunto, invocaram o disposto no art. 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 de 19.03 e requereram a possibilidade de continuarem a habitar a fração que naquele prédio constitui a casa de morada de família de cada um deles até que a dita norma cesse a respetiva vigência. O que equivale a dizer que requereram a suspensão temporária daquela entrega. Em fundamento do pedido alegaram apenas que residem com os respetivos agregados familiares nas frações do prédio objeto de entrega. Não juntaram nem requereram qualquer elemento probatório.
Sem prévia submissão do pedido a contraditório, o tribunal recorrido decidiu declarar suspensa a diligência de entrega em curso pelo AI com fundamento legal na norma citada invocada pelos requerentes e até à cessação da sua vigência. Decisão que fundamentou no facto de tratarem-se de casas de morada de família e de esse facto determinar a suspensão automática da entrega judicial. Decisão que veio a reproduzir/reiterar na sequência e em apreciação da oposição que ao pedido de suspensão foi deduzida pela recorrente arguindo, além do mais, a nulidade daquele despacho por preterição do contraditório - que o tribunal recorrido julgou não verificada com fundamento no efeito automático da suspensão -, e alegando que as frações são ocupadas ilegitimamente pelos requerentes da suspensão da entrega, que entretanto algumas frações foram desocupadas, e que das três que se mantêm ocupadas (E, F, e I) duas delas (frações E e F) não se encontram abrangidas pela dita Lei por não corresponderem a casa de morada de família dos requerentes.
Em sede de recurso a recorrente arguiu a nulidade da decisão.
Alegou em fundamento que o tribunal recorrido considerou tratar-se de casa de morada de família sem curar da qualidade de arrendatários, insolventes ou executados exigida pelo regime temporário e excecional previsto pelo art. 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 de 19.03, qualidade que os ocupantes das frações não detêm por não possuírem título ou qualquer documento que a sustente, e com este fundamento concluiu que o tribunal fez errada aplicação e interpretação do direito. Num outro passo alegou que a decisão carece de fundamentação quanto à matéria de facto, que se desconhece decisão da matéria de facto, e que tal omissão constitui nulidade nos termos dos arts. 154º, 195º e 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC[1].
2.–Relembra-se antes de mais que as nulidades da sentença taxativamente previstas pelo art. 615º, nº 1 do CPC não se confundem nem com as nulidades processuais previstas pelo art. 195º do CPC[2], nem com um qualquer erro de julgamento, quer na apreciação da matéria de facto, quer na atividade silogística de aplicação do direito[3]. Antes reportam a regras de estrutura, de conteúdo ou dos limites do conhecimento do tribunal, consubstanciando defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, vícios de caráter formal da sentença ou vícios relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido a apreciação.
Daqui desde já decorre que o erro na interpretação e aplicação do direito que a recorrente imputa à decisão recorrida e que, como literalmente decorre, consubstancia erro de julgamento de direito (atinente com a alegada indevida desconsideração de títulos ou qualidades que os ocupantes dos imóveis não possuem), contende exclusivamente com o mérito ou bondade material da interpretação e ponderação dos elementos normativos do fundamento legal em que se estriba a decisão recorrida e que, por isso, não é suscetível de fundamentar a anulação da decisão mas ‘apenas’ a sua revogação ou alteração.
3.–Querendo reagir contra a nulidade cometida a parte interessada tem de a suscitar em sede de recurso como fundamento autónomo da impugnação recursiva e, resultando procedente, suscita a função de substituição do tribunal recorrido pela Relação que, nos termos do art. 665º do CPC, impõe o suprimento ou correção do vício da sentença e a apreciação integral do objeto do recurso ou das questões que o tribunal recorrido considerou prejudicadas e que, afinal, se imponham apreciar - Se o juiz ‘a quo’ desatendeu a arguição, (…). A Relação, se entender que o apelante tem razão, corrigirá então a nulidade existente na sentença.[4] Só assim não sucederá se os autos não contiverem elementos que o permitam, caso em que a decisão a proferir pela Relação será de cassação (e já não de substituição da decisão recorrida), devolvendo ao tribunal recorrido o suprimento dos atos ou elementos em falta e a prolação de nova e subsequente decisão.
4.–No caso a recorrente fundamenta a nulidade da sentença em vícios atinentes com a decisão de facto.
Conforme se extrai dos nº 3 e 4 do art. 607º[5] do CPC, a fundamentação da sentença passou a incluir duas decisões[6]: a de facto e a de direito. Desta circunstância resulta que, correspondendo a decisão de facto ao resultado da convicção motivada e formada na prova produzida, a sentença inclui não só o elenco dos factos objeto da apreciação de direito, mas também a identificação e exposição da apreciação crítica e analítica dos meios de prova concretamente produzidos sobre os factos essenciais à decisão da causa (e que não sejam objeto de prova vinculada), e raciocínios lógico-indutivos e dedutivos subjacentes ao julgamento de cada facto ou conjunto de factos. Por outro, que os vícios da sentença, previstos pelo art. 615º do CPC, não se autonomizam dos vícios da decisão sobre a matéria de facto. Não obstante, as especificidades desta, nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, se não justifica a aplicação, sem mais, do regime do art. 615º à parte da sentença relativa à decisão sobre a matéria de facto – desde logo porque a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640º e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.º’ 2 e 3 do art. 662º) -, obriga, menos, a ponderar, caso a caso, a possibilidade dessa aplicação.[7] Assim, os vícios da decisão de facto suscetíveis de gerar nulidade da sentença serão ‘apenas’ os de prolação de decisão de direito sem fundamentos de facto que suportem ou integrem os respetivos pressupostos legais, e de omissão de pronúncia sobre questão de facto suscitada pelas partes, conforme arts. 607º nº3 e 608º nº2 do CPC.
5.–Sob a epígrafe Causas de nulidade da sentença prevê o art. 615º do CPC, na al. b), que É nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. e, na al. d), que é nula quando (…) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).
Nas palavras do Prof. João de Castro Mendes[8], o vício de omissão de pronúncia corresponde a vício de limite da sentença por não conter o que devia conter por referência à instância e ao caso delineado na ação ou respetivo incidente. Vício que encontra fundamento legal positivo no art. 608º do CPC, cujo nº 2 estabelece que O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…). A referência a questões assume aqui um sentido amplo, no sentido de abranger a resolução, conclusão ou solução do concreto pedido deduzido pelas partes por referência à causa de pedir que o suporta, no sentido de o objeto da decisão coincidir com o objeto do processo ou do incidente, correspondendo este ao efeito prático-jurídico tal qual como surge configurado pelas pretensões deduzidas pelas partes. Não correspondem nem se confundem com os argumentos aduzidos pelas partes para convencerem e fazerem valer a sua razão sobre as questões submetidas a apreciação.
O vício da falta de fundamentação, de facto ou de direito, estriba-se no princípio geral do dever de fundamentação previsto pelo art. 154º, nº 1 do CPC, nos termos do qual As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma duvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. Princípio que a lei concretiza e apura em sede de elaboração de sentença, prevendo desde logo o nº 2 e 3 do art. 607º do CPC que, após a identificação das partes, do objeto do litígio e das questões que cumpre solucionar, o juiz deve fundamentar a sentença através da discriminação dos factos que considera provados e da indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis, concluindo pela decisão final. O conteúdo ou intensidade da fundamentação, que não se mede pela sua extensão métrica, será a ajustada à maior ou menor complexidade das questões objeto de apreciação e decisão, ou da sua maior ou menor discussão na doutrina ou na jurisprudência[9]. Conforme doutrina e jurisprudência que pode dizer-se unânime, cabe ainda distinguir entre a falta de fundamentação e a fundamentação deficiente, insuficiente ou errada posto que o que a lei sanciona com o vício da nulidade é tão só a falta absoluta de motivação a ausência total de fundamentos de facto e/ou de direito relativamente a cada uma das questões objeto de apreciação. A deficiente ou medíocre motivação afeta apenas o valor doutrinal ou de capacidade de convencimento da decisão, tornando-a ‘defeituosa’ mas não nula, com o risco de em recurso vir a ser revogada e substituída por outra que conclua em sentido divergente.[10]
6.–Reportando ao caso, constata-se que, apesar de na decisão recorrida não constar autonomizada uma decisão de facto, a final e a preceder o dispositivo considerou e assentou que In casu, estamos perante casas de morada de família.
Não obstante a apontada falha na estruturação ou ordenação formal do conteúdo da decisão, a lei não a prevê como fundamento de anulação e a primeira conclusão que se extrai e impõe é que nela consta indicado o (único) fundamento de facto que o tribunal recorrido considerou relevante para, apreciando o pedido de suspensão da entrega do prédio, preencher a previsão legal em que fundamentou o seu decretamento. Daqui decorre que, independentemente do acerto jurídico na interpretação e aplicação do direito àquele facto, a decisão surge fundamentada de facto[11] e de direito e pronuncia-se sobre a questão objeto do incidente submetido a apreciação – de suspensão da entrega do prédio -, decidindo-a em favor de quem a suscitou e requereu nos autos. A ausência de ponderação ou de qualquer referência à qualidade de arrendatários, executados, ou insolventes dos requerentes da suspensão respeita à apreciação normativa, ao enquadramento jurídico operado pela decisão que, a revelar-se incorreto, apenas pode dar lugar à revogação ou alteração da decisão com fundamento em erro de julgamento, não à invocada nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia sobre questão submetida a apreciação.
7.–Não obstante, o facto que o tribunal pressupôs e considerou assente – as frações do prédio a entregar são casas de morada de família dos recorrentes - não surge justificado ou por qualquer forma motivado, conforme determina o nº 4[12] do art. 607º, sendo certo que não se vislumbram elementos probatórios produzidos nos autos nesse sentido[13], nem aquele facto resulta do acordo das partes no incidente posto que num primeiro momento o pedido de suspensão da entrega sequer foi submetido ao contraditório da parte contrária (posição que no incidente é assumida pela aqui recorrente) que, depois de notificada, no mesmo dia em que foi decretada a suspensão da entrega deduziu oposição negando às frações a qualificação de casa de morada de família dos requerentes e alegando que são por estes ilegitimamente ocupadas.
Não obstante, conforme já acima exposto, a apontada omissão não constitui fundamento nem dá causa à nulidade da decisão de facto e, assim, da sentença[14] posto que é resolvida nos termos do art. 662º do CPC, norma que, precisamente, prevê os vícios da decisão de facto e os termos em que os mesmos devem ser sanados. Prevê-se na al. d) do nº 2 que a Relação deve, mesmo oficiosamente, Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. De per si desta norma resulta, por um lado, que da falta de fundamentação da decisão de facto o legislador não faz decorrer a declaração de nulidade da sentença ou da decisão de facto proferida pois não determina a realização de novo julgamento/decisão da matéria de facto ou a prolação de nova sentença, apenas impõe seja suprida a omissão mediante o aditamento da motivação da decisão de facto para sanação do vício formal que a inquina[15]; por outro, a devolução dos autos ao tribunal recorrido para suprimento da motivação da decisão de facto que proferiu apenas deve ser determinada quando suportada em depoimentos ou quando não se descortinem nos autos quais os meios probatórios que a suportam. Tratando-se de facto que a 1ª instância assentou com suporte em documentos ou outros elementos do processado, a Relação deverá socorrer-se desses mesmos elementos e/ou processado para integração da decisão de facto ao nível da sua motivação, tal qual como sucede nos termos e para os efeitos previstos pelo nº 1 do art. 662º (aqui, para efeitos de alteração da decisão sobre a matéria de facto considerada assente, provada ou não provada) e pela al. c) do nº 2 (aqui para efeitos de esclarecimento ou precisão da decisão sobre determinados pontos da matéria de facto ou para ampliação da mesma), sendo patente a intenção do legislador em reservar a devolução do processo para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.”[16] No caso, conforme já adiantamos, não se descortinam os meios probatórios que suportam o julgamento positivo do facto fundamento da decisão recorrida – que as frações do prédio objeto da entrega por ela suspendida correspondem às casas de morada dos autores do requerimento de 09.06.2022 e sobre o qual incidiu a decisão recorrida.
Em qualquer caso a devolução dos autos à 1ª instância para suprimento da ausência de motivação do único facto que assentou (e determinou o sentido da decisão) perde aqui pertinência, por inútil, face ao resultado do julgamento de mérito do recurso que a atividade processual descrita no relatório permite cumprir por referência à causa de pedir alegada pelos requerentes e aos pressupostos legais da aplicação da medida temporária e excecional de suspensão da entrega de imóvel no âmbito de processo de insolvência previstos pela Lei nº 1-A/2020 de 19.03, o que remete para o segundo ponto do objeto do recurso.
 
2–Do Erro de Julgamento de Direito
Na sua redação atual, correspondente à introduzida pela Lei nº 13/2021 de 05.04, ao que aqui releva, sob a epígrafe Regime processual excecional e transitório o art. 6º-E da Lei nº 1-A/2020 de 19.03 estabelece que:
1- No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
(…)
7- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
a)- O prazo de apresentação do devedor à insolvência (…);
b)-Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c)-Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d)-Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e)-Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser realizadas nos termos dos n.os 2, 4 ou 8.
8Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
A par com as medidas estabelecidas no citado art. 6º-E, foi previsto e mantido um Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários nos termos do art. 8º daquele diploma, com as alterações sucessivamente introduzidas pela Lei n.º 4-A/2020 de 06.04 (1ª alteração à Lei 1-A/2020), pela Lei nº 58-A/2020 de 30.09 (6ª alteração à Lei n.º 1-A/2020), e pela Lei n.º 75-A/2020 de 30.12 (7ª alteração à Lei nº 1-A/2020) que, para além da alteração ao art. 8º em referência, alterou a Lei nº 4-C/2020 de 06.04, que estabelece um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional.

Na redação atualmente em vigor, sob a epígrafe Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários o art. 8º da Lei nº 1-A/2020 estabelece as seguintes medidas:

1- Sem prejuízo do disposto no n.º 4, ficam suspensos até 30 de junho de 2021:
a)-A produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio;
b)-A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação;
c)-A produção de efeitos da revogação, da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio;
d)-O prazo indicado no artigo 1053.º do Código Civil, se o término desse prazo ocorrer durante o período de tempo em que vigorarem as referidas medidas;
e)-A execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado.
2- O disposto no número anterior depende do regular pagamento da renda devida nesse mês, salvo se os arrendatários estiverem abrangidos pelo regime previsto nos artigos 8.º ou 8.º-B da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, na sua redação atual.
3- O disposto no número anterior aplica-se às rendas devidas nos meses de outubro a dezembro de 2020 e de janeiro a junho de 2021.
4- (…).
5- (…).
6- A suspensão de efeitos prevista no n.º 1 e a prorrogação prevista no n.º 5 cessam se, a qualquer momento, o arrendatário manifestar ao senhorio que não pretende beneficiar das mesmas ou se o arrendatário se constituir em mora quanto ao pagamento da renda vencida a partir da data da reabertura do estabelecimento, salvo se tiverem efetuado o respetivo diferimento.

É por todos sabido que as normas citadas consubstanciam um regime excecional e temporário de tutela do direito à habitação que teve e tem como finalidade evitar que os por ele tutelados fiquem privados da sua habitação durante a pandemia e numa fase subsequente em que para muitos agregados familiares persistem os efeitos económicos e financeiros por aquela criados ou agravados (designadamente, e para além da quebra de rendimentos causada pelas medidas restritivas de atividades económicas para contenção da pandemia, por força da cessação das moratórias previstas logo por ocasião do primeiro confinamento, em março de 2020, no âmbito do cumprimento das prestações do crédito para aquisição de habitação própria e permanente).

Na censura que dirige à decisão recorrida a recorrente opõe que os requerentes e ocupantes das frações não possuem qualquer título que sustente a respetiva qualidade de arrendatários, insolventes e/ou executados. Oposição que tem como pressuposto lógico o entendimento de que a tutela por aquele regime estabelecida se restringe a quem detém título válido para ocupar e fruir do imóvel, o que remete para a questão do âmbito subjetivo da tutela por aquelas normas prevista.

Numa lógica de exclusão, do teor da al. c) do nº 7 do art. 6º-E resulta expressa e literalmente que visa tutelar quem detém a qualidade de arrendatário, sendo que nada nesse sentido foi alegado nem documentado nos autos pelos requerentes, que se limitaram a invocar que as frações são (para alguns deles, eram) as respetivas casas de morada de família, sem invocar a que título as ocupam e delas vinham fruindo[17] [18]. Do teor literal do nº 8 do art. 6º-E resulta igualmente evidente que se destina a prevenir a subsistência do executado ou do declarado insolvente, qualidade que manifestamente os requerentes também não detêm nestes autos.

Resta a al. b) do nº 7 do art. 6º-E, ao qual a decisão recorrida atendeu para fundamentar a suspensão da entrega das frações por ela decretada, atendo-se única e exclusivamente à alegação dos requerentes - de aquelas corresponderem às respetivas casas de morada de família - facto (alegado mas não demonstrado[19]) que, ao que resulta do teor da decisão, o tribunal recorrido considerou como o único pressuposto exigido para a suspensão automática e temporária da execução da entrega desses mesmos imóveis a quem deles se apresenta como proprietário.

Interpretação que não encontra suporte na letra da lei e que não pode merecer colhimento, conforme se passa a justificar.

Conforme é referido no acórdão desta Relação de 22.02.2022[20] (subl. nosso), Esta norma, como dela claramente resulta, está especialmente vocacionada para os casos de alienação em sede executiva ou de processo de insolvência do imóvel que constitui a casa de morada de família, sendo que a sua previsão constitui a única disposição daquela Lei explicitamente respeitante à protecção do desapossamento daquele tipo de imóvel no âmbito daqueles processos. (…) Ao fazer uma interpretação literal das normas supra descritas, somos levados a concluir que o legislador quis determinar uma suspensão automática das diligências para a entrega judicial de imóveis sempre que estes constituam a casa de morada de família do executado (…). Ou seja, se o âmbito objetivo de proteção da norma em questão corresponde a imóvel ocupado e fruído como casa de morada de família, o âmbito subjetivo pressupõe que aquela seja a do executado ou do insolvente enquanto sujeito passivo da ação de execução ou do processo de insolvência e, nessa qualidade, titular do património em execução/liquidação e que, até à sua venda e subsequente entrega ao respetivo adquirente, ocupava o imóvel na qualidade de respetivo proprietário. Assim, a suspensão da entrega de imóvel vendido em sede de execução ou de insolvência só constitui efeito automático ou ope legis depois de assente ou comprovado que aquele corresponde a casa de morada de família do executado ou do insolvente. Afirmar-se a suspensão como efeito automático daquele facto significa apenas que, tratando-se de casa de morada de família, a suspensão da sua entrega deve ser levada a cabo ipso facto pelo executor da entrega logo que empiricamente se aperceba daquele facto e independentemente de requerimento nesse sentido e de despacho que a declare. Distinguindo-se assim da situação tutelada pelo nº 8 do art. 6º-E que, reportada a imóvel que não constitui a casa de morada de família do executado ou do insolvente, pressupõe que por estes seja requerida a sustação da entrega e exige a alegação e verificação de pressupostos de apreciação casuística (que da entrega do imóvel ao seu adquirente no âmbito do processo de insolvência ou de execução cause prejuízo à subsistência do executado ou do insolvente).

Note-se que este efeito ope legis de tutela da casa de morada de família apenas é reconhecida ao executado ou insolvente posto que, relativamente ao sujeito passivo de ação de despejo, ou seja, relativamente ao arrendatário, ainda que se trate da respetiva casa de morada de família (como sucede na maioria dos casos), a suspensão da sua entrega exige que por efeito desta aquele seja colocado em situação de fragilidade[21]. A nosso ver é essa a interpretação que o teor da al. c) do nº 7 do art 6º-E da Lei nº 1-A/2020 consente ao indicar a falta de habitação própria como causa da situação de fragilidade exigida para a suspensão da entrega do locado. Exigência acrescida que se compreende relativamente ao arrendatário posto que, contrariamente ao que ocorre relativamente ao insolvente, que vê todo o seu património apreendido e liquidado no âmbito do processo e permite presumir uma situação de fragilidade sócio-económico-financeira, o facto de alguém – que não tem os seus bens em execução coerciva - residir em casa arrendada não é sinónimo, sem mais, de ausência de imóvel próprio ou de outro disponível para habitação.

Em suma, compreende-se que a compressão do direito do proprietário que, por força do regime excecional e transitório de tutela do direito à habitação, se vê impedido de exercer em pleno o seu direito sobre o imóvel dele objeto, designadamente, reivindicando-o de terceiros ou reclamando a sua entrega para o restituir à respetiva posse ou disponibilidade fáctica, pressuponha no mínimo que esse terceiro seja detentor de título sobre o imóvel que juridicamente lhe legitime a ocupação que até aí dele vinha fazendo e seja oponível ao seu proprietário: no caso do executado ou do insolvente, a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel até à sua venda na execução ou na insolvência; no caso do arrendatário, o contrato de arrendamento celebrado com proprietário do imóvel. Nas palavras de J. H. Delgado de Carvalho (com subl. nosso), o propósito do legislador foi evitar que as famílias fiquem sem habitação (própria ou arrendada), (…). (…). Com esse objetivo, manteve-se suspensa a entrega judicial de imóvel destinado a casa de morada de família do executado, que já se encontrava prevista no art. 7.º, n.º 6, al. b), 1.ª parte, L 1-A/2020, na redação da L 4-A/2020, de 6/4 (cf. art. 6.º-A, n.º 6, al. b), L 1-A/2020, com as alterações da L 16/2020, de 29/5).[22]

Pressuposto que resulta evidente do regime excecional de proteção dos arrendatários previsto pelo art. 8º da Lei nº 1-A/2020 que, ao impedir a extinção/cessação do contrato de arrendamento, impede a extinção do título que legitima a ocupação que dele é feita pelo arrendatário mas mantém o dever contratual que sobre este recai em beneficio do proprietário, de pagamento da renda devida. Com efeito, o reconhecimento da suspensão (da caducidade e dos efeitos das denúncias, da revogação, e da oposição) que lhe permite manter a qualidade de arrendatário - e, assim, o direito de permanecer no imóvel sem o requisito da verificação da situação de fragilidade exigido para a sustação da entrega do locado (previsto pela al. c) do nº 7 do art. 6º-E)  depende do cumprimento do pagamento da renda devida no mês da suspensão e enquanto esta durar, bem como do pagamento das rendas devidas nos meses de outubro a dezembro de 2020 e de janeiro a junho de 2021 (cfr. nºs 2, 3 e 6 do citado art. 8º).

Esta é a interpretação mais consentânea com o conceito juridicamente relevante de casa de morada de família enquanto realidade sócio-familiar objeto de reconhecimento e tutela legal que a Lei de Bases da Habitação define como aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges ou unidos de facto (art. 10º, nº3) e à qual expressamente reconhece e consagra “especial proteção legal.” (nº 4), o que exclui do âmbito do próprio conceito habitações indevida ou ilegalmente ocupadas. Nesse sentido, e ainda que relativamente a recurso de decisão de condenação no pagamento de quantia a título de privação do uso e fruição da casa de morada de família no âmbito de processo de divórcio, acórdão da RC de 28.06.2016[23], de cujo sumário consta: 1.- A casa de morada de família consubstancia a sede da vida familiar em condições de habitabilidade e de continuidade, o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar. Implica que ela constitua ou tenha constituído a residência principal do agregado familiar e que um dos cônjuges seja o titular do direito que lhe confira o direito à utilização dela. A esse mesmo sentido conduzem as considerações de J. H. Delgado de Carvalho a respeito do conceito de casa de morada de família: (…) tem, em qualquer caso, o sentido que a doutrina e a jurisprudência retiram do art. 1673.º, n.º 1, do CC, ou seja, como o local onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges e dos filhos, constituindo, pois, a residência habitual principal do agregado familiar, seja comum ou própria de um dos cônjuges.//Quando o direito que confira o direito à utilização da casa de morada de família decorra de contrato de arrendamento, a proteção do executado, e do agregado familiar em que ele se insere, é concedida pela al. c) do n.º 6 do art. 6.º-A da L 1-A/2020 (na redação da L 16/2020).[24]

Finalmente, surpreende o tempo – mais de dez anos! - que decorreu desde a apreensão e venda do prédio no âmbito do cumprimento da liquidação da massa insolvente e durante o qual os requerentes da suspensão da entrega se mantiveram na fruição das frações sem que dos autos resulte disporem de título que o justifique ou simplesmente explique, sendo certo que nada nesse sentido alegaram e que não constam identificados nos autos como credores (reconhecidos ou não reconhecidos) da insolvência. Nesse contexto, e no atual contexto do estado da situação subjacente à previsão do regime legal excecional e transitório de suspensão de entrega de casa de morada de família/de imóvel, afrontaria o princípio da proporcionalidade resolver o conflito de direitos em questão – o direito à propriedade privada e o direito à habitação -, ambos com dignidade e tutela constitucional, em detrimento do exercício do primeiro, que dele já esteve privado por período superior a dez anos em benefício de quem durante esse mesmo período ocupou o imóvel.

IV–Da custas
Não obstante a ausência de decaimento da recorrente, na ausência de contra-alegações e de causa legal de isenção ou dispensa de tributação, as custas do recurso são da responsabilidade daquela por aplicação do critério subsidiário da vantagem ou do proveito processual previsto pelo art. 527º, nº 2 do CPC, e porque apenas a recorrente dele beneficiou[25].

V–Decisão

Em conformidade com o exposto, julga-se procedente a apelação, com consequente revogação da decisão recorrida, que se substitui por outra, de indeferimento da suspensão da entrega das frações peticionada por requerimento de 09.06.2022 apresentado nos autos principais (ref.ª 42544160).

Custas do recurso a cargo da recorrente.

Em 02.02.2023


Amélia Sofia Rebelo



[1]Em sede de conclusões apenas consta referência ao art. 154º do CPC; os demais constam invocados na motivação do recurso.
[2]As ditas nulidades secundárias, que respeitam a atos de tramitação ou sequência processual, e devem ser arguidas perante o tribunal onde foi cometida e por este decididas.
[3]Vd. entre muitos, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Ed., 2ª ed., p. 684 e ss.
[4]Vd. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 150.
[5]Norma que regula a elaboração ou estrutura da sentença e aplicável aos despachos ex vi art. 613º, nº 2 do CPC.
[6]Decisões que até ao CPC aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26.06 estavam cindidas em dois atos de julgamento processualmente autonomizados, o primeiro, o julgamento e decisão da matéria de facto no seguimento do encerramento da discussão em audiência de julgamento, e o segundo com o julgamento de direito em sede de prolação de sentença através do enquadramento jurídico dos factos provados (vd. art. 653º do CPC do DL n.º 329-A/95, de 12.12).
[7]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2019, 4ª edição, Almedina, pg. 734.
[8]In Direito Processual Civil, IIº vol., Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ed. da Associação Académica, 1987, p. 802).
[9]A. Geraldes, Paulo Pimenta, Luis Sousa, CPC Anotado (GPS) Vol. I, p. 199.
[10]Ob. cit., p. 140.
[11]Apesar de o conceito de casa de morada de família corresponder a facto jurídico complexo, não deixa de consubstanciar facto ou fenómeno empiricamente apreendido e comum e leigamente entendido com o sentido com que é juridicamente entendido, em síntese, como o espaço físico onde os elementos de um agregado familiar residem de forma habitual e com caráter de permanência, aí detendo o centro da sua organização pessoal, doméstica, familiar e social, em condições de continuidade e de preservação da intimidade e privacidade familiar, espaço sobre o qual pelo menos um dos elementos do agregado familiar que o ocupa detém título que legitime essa ocupação e fruição por si e pelo respetivo agregado familiar (sobre as definições do conceito na jurisprudência e na doutrina que, no essencial, se revelam comuns e manifestam os termos em que o mesmo é empiricamente apreendido, vd. Sandra Morgado Marques, A Transmissão da casa de morada da família, Dissertação, Coimbra, 2014, págs. 8 a 12, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B198b13e5-ab4f-47aa-80e3-5e9268214f88%7D.pdf
[12]Prevê que “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
[13]Para além das informações/alegações contraditórias entre si que o AI e as partes foram trazendo aos autos a respeito das frações entretanto desocupadas na pendência do incidente e das que se mantêm ocupadas (conforme ressalta do descrito nos pontos 17 a 21 do relatório), a decisão recorrida sequer se baseou nos relatos do resultado das diligências encetadas pelo AI em execução da ordenada entrega posto que foram juntos aos autos após a prolação da decisão de suspensão da entrega que o tribunal recorrido reiterou depois de exercido o contraditório pela aqui recorrente.
[14]Nesse sentido, acórdão da RG de 18.12.2017 (proc. nº 285/11.7TBPTB.G1), disponível na página da dgsi (fonte de todos os demais acórdãos aqui citados sem indicação expressa de outra), e na doutrina, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. II, 4ª ed., p. 736. No âmbito da vigência do CPC anterior, acórdão do STJ de 12.09.2006, Revista nº 1994/06, disponível na página da PGDL: III - Não há nulidade da sentença ou do acórdão quando se omite a justificação ou motivação dos fundamentos de facto em que assenta a decisão. Tão pouco se sanciona com a nulidade a deficiência ou erro de motivação da decisão de facto da sentença ou da sua reapreciação pelo acórdão da Relação.//IV - É o que resulta do regime consagrado no art. 712.º, n.º 5, do CPC. Com efeito, a falta de fundamentação da decisão de facto tem como consequência, apenas, que a Relação, a requerimento da parte, possa determinar que o julgador da 1.ª instância a fundamente, se possível for.
[15]Nesse sentido, Paulo Faria e Ana Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, Almedina 2014, p.105 e ss.
[16]CPC Anotado, A. Geraldes, P. Pimenta, e L. Sousa, vol. I, 2ª ed, p. 826.
[17]Sendo que, conforme decorre dos princípios do pedido e do dispositivo consagrados pelos arts. 3º, nº 1 e 5º, nº 1 do CPC, aplicáveis ex vi art. 17º do CIRE, na apreciação do pedido e na decisão que profere o tribunal só pode basear-se nos factos disponíveis no processo e que às partes cabe alegar, limitação que tem inteira aplicação nas questões de conhecimento oficioso, como por exemplo, inconstitucionalidades, abuso de direito, e nulidades. Como salienta Abrantes Geraldes, [a] alegação da matéria de facto pertinente constitui ónus exclusivo as partes às quais o tribunal não se pode substituir.
[18]Anota-se que dos autos não resulta que na pendência dos autos a massa insolvente tenha percebido rendas dessas mesmas frações.
[19]A este respeito surgem aqui pertinentes as considerações de Henrique Delgado, referindo que “Compete ao executado alegar e demonstrar as características e a finalidade do imóvel, mediante protesto do ato de entrega, decidindo o juiz de execução o incidente, ouvidas as partes. A garantia de contraditoriedade do processo, e a sua efetividade, impõe esta solução. No entanto, o agente de execução suspende a diligência de entrega, quando constate que o imóvel é suscetível de constituir casa de morada de família do executado, lavra certidão da ocorrência e junta documentos que eventualmente sejam exibidos pelo executado ou pelos ocupantes do imóvel.” (----
[20]Processo nº 626/19.9T8PDL.L1-7, disponível na página da dgsi.
[21]Nesse sentido, acórdão da RL de 22.02.2022 já citado: Pode-se discutir sobre se as alíneas b) e c) do n.º 7 do novo art. 6.º-E da L 1-A/2020 se aplicam ao arrendatário ou ex-arrendatário que não seja executado, o que pressupõe que o arrendamento não seja oponível à execução (cf. art. 824.º, n.º 2, CC). No entanto, quer o elemento literal (que aponta no sentido de que o demandado é o titular da habitação ou do arrendamento que é objeto de despejo), quer o elemento sistemático (a inserção daqueles incisos no âmbito de um normativo que se destina a tutelar a casa de morada de família), parecem pressupor que o arrendatário ou ex-arrendatário tenha a qualidade de executado no processo.
[22]Em “COVID-19: Impactos no processo executivo antes e após a L 16/2020, de 29/5”, p. 3 e s., disponível em no Blog do IPPC.
[23]Proc. nº 677/13.7TBACB.C1.
[24]Texto cit., p. 9 e s.
[25]Nesse sentido, acórdão da RL de 1194/14.3TVLSBL2 de 11.02.2021, disponível na página da dgsi.


Decisão Texto Integral: