Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
841/14.1YRLSB-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
CARTA ROGATÓRIA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA NACIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2014
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - As tribunais cabe definir direitos em concreto, decidindo sobre um direito subjectivo ou um interesse concreto juridicamente relevante, não estando nas suas atribuições decidir sobre questões hipotéticas futuras (como proceder em relação a novo pedido de cooperação que venha a ser apresentado), ou enunciar em abstracto interpretação de normas.

II - Se o arguido entende ter direito a ser julgado em Portugal em vez de ser julgado em Espanha, a única coisa que tem a fazer é participar ao Ministério Público os factos ilícitos que cometeu em Espanha, dando início a um procedimento em Portugal, onde poderá defender a competência dos tribunais portugueses e a incompetência dos tribunais espanhóis.

III - Sem pender processo crime em Portugal, pelos mesmos factos que constituem objecto do processo que pende em Espanha, jamais poderá obter uma declaração de aplicabilidade da lei penal portuguesa, ao abrigo do art. 5.°, do CP, não olvidando, porém, a restrição decorrente do art. 6.°, n.° 1, do mesmo diploma.

IV - Tratando-se de um pedido de cooperação judiciária, no âmbito de inquérito pendente em Espanha, para a realização de um acto/diligência que não é da competência do Juiz de Instrução Criminal, apenas ao M.P. competia intervir e realizar a diligência.

V - se o recorrente entende que a diligência realizada em Portugal a pedido das autoridades espanholas padece de algum vício esse terá de ser arguido no processo principal, ou seja, no processo que corre termos em Espanha.

VI - Tal posição não viola quaisquer direitos de defesa do arguido nem é inconstitucional, já que este pode e deve defender-se no processo principal e tal direito não lhe foi negado.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO:

Por carta rogatória dirigida aos serviços do MP de Torres Vedras (1.ª Delegação), pelo Juzgado de Instruccion n.° 13 de Valência foi solicitada a constituição  de arguido e a realização de interrogatório, nessa qualidade, do cidadão português PL....

Realizado o interrogatório, o arguido questionou a validade de tal  solicitação/pedido de cooperação, tendo o MP titular do processo entendido que "tal questão apenas poderá ser colocada junto do processo principal, no âmbito do qual foi solicitada a realização de tal diligência, uma vez que apenas naquele terá relevância", devolvendo de seguida a carta rogatória, porque já cumprida (cfr. despacho de 27/09/2012 a fls. 30).

Não se conformando, o arguido apresentou reclamação dirigida ao Sr. Juiz Presidente do Tribunal de Torres Vedras, com o teor de fls. 24 a 27 destes autos ­constituídos com base no expediente avulso apresentado pelo arguido, dado que a carta rogatória subjacente já havia sido devolvida à entidade rogante -, requerendo que seja ordenado ao MP, oficiais de justiça e autoridades policiais que "devem recusar o auxílio judiciário solicitado pelas autoridades espanholas", ou então "suspender o auxílio" a estas autoridades, devendo ainda "omitir, em todas as comunicações" com as mesmas autoridades "se o presumível autor tomou ou não conhecimento da existência de qualquer processo concreto em Espanha, bem como "informar as autoridades espanholas que os delitos alegadamente praticados em Espanha" pelo ora recorrente e as presumíveis ofendidas — ex-mulher e filha menor de ambos — são puníveis em Portugal nos termos dos arts. 5.°, do Código Penal Português e 22.°, do Código de Processo Penal Português".
Reclamação que teve como resposta da Srª Juiza Presidente do Tribunal o despacho de 19/10/2012 (fls. 39 e v.°), com o seguinte teor:

«Conforme anteriormente esclarecido, não cabe ao Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Torres Vedras dar qualquer indicação ao Ministério Público, oficiais de

justiça e demais autoridades nacionais, em primeiro lugar, porque não tem competência para o efeito e em segundo lugar, a existir qualquer discordância, a mesma deverá ser suscitada no processo respectivo.

Assim, e porque das funções de Juiz Presidente do Tribunal de Comarca não se enquadra o agora solicitado, nada cumpre determinar quanto a tal matéria — v. os arts. 75.° da LOFTJ e ss.

O presente despacho deverá ser notificado ao reclamante, bem como ser arquivado em pasta própria da presidência.

Devolva ao MP»

Na sequência do decidido, veio o arguido requerer que se considerasse o seu requerimento endereçado ao Exm.° Juiz de Instrução Criminal competente e se ordenasse a sua remessa a esse Tribunal.

Apresentado o expediente ao JIC, foi proferido o seguinte despacho, de 7/12/2012 (fls 60):

«Salvo o devido respeito, que é muito, por diferente opinião, não cabe a este JIC conhecer das questões levantadas no requerimento datado de 17/10/2012. Assim, notifique e devolva ao MP»

O arguido suscitou a nulidade deste despacho por falta de fundamentação, obrigando à prolação de novo despacho, em 9/01/2013 (fls. 71 e v.°), que se transcreve:

«Pese embora o constante de fls, 65 nos pareça não assistir razão ao arguido, uma vez que
o nosso despacho de fls. 60 está devidamente fundamentado, sempre diremos o seguinte: As competências do Juiz de Instrução Criminal estão fixadas quer no Código de Processo Penal, quer na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais quer ainda dispersos por diversos diplomas legais que lhe atribuem competência para diversos actos. Ademais, a intervenção do JIC faz-se sempre no âmbito de processos para a qual a lei lhe atribua competência territorial.

Não é manifestamente o caso do presente expediente avulso relativo a uma carta

rogatória.

Diga-se, desde já, que no âmbito de tal carta o JIC não teve qualquer intervenção, nem neste momento a pode ter, para além de mandados de condução e multa.

De qualquer modo o nosso despacho posto em crise é de manter-se.

Notifique e devolva.»

Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões da respectiva motivação:

a) O douto Despacho prolatado em 07/12/2012 pelo Mm Juiz de Instrução Criminal de Torres Vedras, a folhas ... dos autos, que indeferiu liminarmente o seu requerimento de 15/10/2012, de folhas ... dos autos, por entender que «não cabe a esse JIC conhecer das questões levantadas», sob recurso, padece de nulidade por ser completamente omisso quanto aos fundamentos de facto e/ou de direito em que se estriba para assim entender e decidir;

b) A interpretação contida nos Despachos de 19/10/2012 e de 16/11/2012, de folhas ... dos autos, às normas julgadas aplicáveis in casa, na parte em que entendem ser as autoridades espanholas rogantes a conhecer e a decidir as questões controvertidas que suscitou no seu requerimento / reclamação de 15/10/2012, de folhas dos autos, e não os tribunais portugueses, revela-se materialmente inconstitucional por violar injustificada e desproporcionadamente os seus direitos fundamentais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, incluído o direito de recurso jurisdicional em procedimento penal contra qualquer ato que, no seu entender, ofende os seus direitos, liberdades e garantias constitucionais, contidos nos artigos 1.°, 2.°, 3.°, n.°5 2 e 3, 4.°, 8.° n.° 4, 18.° n.° 1, 20.° n.°s 1 e 2, 2 1 .°, 32.° n.ºs 1 e 9, 33.° n.°s 1 e 3 in fine e 204.° da CRP, colocando-o uma situação de manifesta indefesa, designadamente perante as autoridades espanholas, para além de denegar ao interessado, cidadão português, o seu direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, o que renova;

c) Mutatis mutandis, o douto Despacho prolatado em 07/12/2012 pelo Mm° Juiz de Instrução Criminal de Torres Vedras, a folhas ... dos autos, e sob recurso, padece dos mesmos vícios de inconstitucionalidade, ainda que de forma implícita;

d) As decisões sob recurso violaram as normas legais contidas nos artigos 1.°, 2.°, 3.°, n.°s 2 e 3, 4.0, 8.° n.° 4, 18.° n.° 1, 20.° n.°s 1 e 2, 2 1 . °, 32.° n.ºs 1 e 9, 33.° n.°s 1 e 3 in fine e 204.° da CRP.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o douto suprimento de V. Exas, requer se dignem dar provimento ao presente recurso, revogando o douto Despacho sob recurso e ordenando a baixa dos presentes autos pata que o JIC conheça do seu requerimento de 15/10/2012, de folhas .., dos autos, como é de Justiça

Admitido o recurso, respondeu ao mesmo o Ministério Público, da seguinte

forma:

Uma vez analisada a questão suscitada o presente recurso entendemos que não assiste qualquer razão ao recorrente.

Na verdade, as questões que o recorrente sistematicamente tem vindo a levantar neste expediente avulso [recorde-se que não estamos sequer na presença de um processo de carta rogatória pois esta já foi devolvida às autoridades espanholas após o seu cumprimento] não podem, nem devem ser aqui apreciadas.

Tratando-se de um pedido de cooperação judiciária, no âmbito de inquérito pendente em Espanha, para a realização de um acto/diligência que não é da competência do Juiz de Instrução Criminal, apenas ao M.P. competia intervir e realizar a diligência.

Ora, uma vez praticado o acto pelo M.P. a carta rogatória foi devolvida às autoridades espanholas — recorde-se que, por não se tratar de despacho/decisão judicial, a carta rogatória não tinha de aguardar o decurso de qualquer prazo para impugnação já que às decisões/actos do M.P. não é aplicável a "figura" do trânsito em julgado.

Assim, se o recorrente entende que a diligência realizada em Portugal a pedido das autoridades espanholas padece de algum vício esse terá de ser arguido no processo principal, ou seja, no processo que corre termos em Espanha.

E tal posição não viola quaisquer direitos de defesa do arguido nem é inconstitucional, já que este pode e deve defender-se no processo principal e tal direito não lhe foi negado.

Por outro lado nem sequer conseguimos perceber a estratégia do recorrente!

De que lhe serviria (ainda que tal fosse possível) impugnar o acto praticado em Portugal no âmbito de uma Carta Rogatória que já foi devolvida sem impugnar esse mesmo acto no processo principal?

Além disso, como já foi referido supra, a diligência solicitada pelas autoridades espanholas não carecia de qualquer intervenção do Juiz de Instrução Criminal.

Assim, não tinha o Mm.° Juiz de Instrução Criminal (nem o têm agora os Ermos Srs. Venerandos Desembargadores) quaisquer poderes para ordenar a realização de actos pelo Ministério Público, sendo tal ordem ilegal e inconstitucional por violar os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público consagrados nos arts. 32.° e 219.° da Constituição da República Portuguesa.

Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto por PL... confirmando-se, na íntegra, a decisão do Mm.° Juiz de Instrução Criminal que entendeu não ser competente para apreciar as questões suscitadas pelo recorrente.»

Subidos os autos, neste Tribunal da Relação o Ministério Público apôs "visto", ao abrigo do art. 416.°, do CPP.

Realizado o exame preliminar, conclui-se que o recurso é de rejeitar, por ser

manifesta a sua improcedência, nos termos do art. 420.°, n.° 1 al. a), do CPP, proferindo-se decisão sumária em conformidade, ao abrigo do disposto no art. 417.°, n.° 6, al. b), do mesmo Código.

***

II. FUNDAMENTAÇÃO:

Após cumprimento da respectiva carta rogatória, o arguido questionou a validade do pedido de cooperação judiciária formulado pelas autoridades judiciárias espanholas e dirigido ao MP de Torres Vedras, para constituição do ora recorrente como arguido e subsequente interrogatório nessa qualidade.

Entendeu o MP que as questões suscitadas pelo arguido deveriam ser colocadas no processo de inquérito que pende em Espanha, do qual emergiu a carta rogatória, devolvendo de seguida esta, porque já cumprida.

Com o seu requerimento de oposição ao procedimento, pretende o arguido que seja ordenado ao MP, oficiais de justiça e autoridades policiais que "devem recusar o auxílio judiciário solicitado pelas autoridades espanholas", ou então "suspender o auxílio" a estas autoridades, devendo ainda "omitir, em todas as comunicações" com as mesmas autoridades "se o presumível autor tomou ou não conhecimento da existência de qualquer processo concreto em Espanha, bem como "informar as autoridades espanholas que os delitos alegadamente praticados em Espanha" pelo ora recorrente e as presumíveis ofendidas — ex-mulher e filha menor de ambos — são puníveis em Portugal nos termos dos arts. 5.°, do Código Penal Português e 22.°, do Código de Processo Penal Português".

Estando já cumprida e devolvida a carta rogatória, aquelas duas primeiras pretensões, relativas à recusa do auxílio judiciário solicitado e à suspensão do auxílio a prestar às autoridades espanholas, estão manifestamente prejudicadas, não sendo possível dar-lhe concretização, uma vez que o auxílio já foi prestado.

Na parte restante, só pode referir-se o arguido a futuros pedidos de cooperação que eventualmente venham a ser formulados pelas mesmas autoridades junto das autoridades portuguesas.

        Ora, aos tribunais cabe definir direitos em concreto, decidindo sobre um direito subjectivo ou um interesse concreto juridicamente relevante, não estando nas suas atribuições decidir sobre questões hipotéticas futuras (como proceder em relação a novo pedido de cooperação que venha a ser apresentado), ou enunciar em abstracto interpretação de normas.

         Por outro lado, os direitos só podem ser exercidos através de um processo concreto (art. 2.°, n° 2, do CPC).

         Se o arguido entende ter direito a ser julgado em Portugal em vez de ser julgado em Espanha, a única coisa que tem a fazer é participar ao Ministério Público os factos ilícitos que cometeu em Espanha, dando início a um procedimento em Portugal, onde poderá defender a competência dos tribunais portugueses e a incompetência dos tribunais espanhóis.

Não pode, porém, no âmbito de um simples pedido de cooperação judiciária, fazer vingar a opinião de que os tribunais portugueses é que são os competentes para o julgar, em prejuízo da competência dos tribunais espanhóis.

Sem pender processo crime em Portugal, pelos mesmos factos que constituem objecto do processo que pende em Espanha, jamais poderá obter uma declaração de aplicabilidade da lei penal portuguesa, ao abrigo do art. 5.°, do CP, não olvidando, porém, a restrição decorrente do art. 6.°, n.° 1, do mesmo diploma.

Consequentemente, a decisão do JIC ora impugnada - que não sofre de

qualquer invalidade, nomeadamente por falta de fundamentação, porquanto, especifica, de forma suficiente e adequada, os motivos de facto e de direito da decisão (art. 97.°, n.° 5, do CPP) - não consubstancia qualquer violação dos "direitos fundamentais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, incluído o direito de recurso jurisdicional em procedimento penal", uma vez que não existe qualquer acto dos tribunais portugueses susceptível de ofender os direitos, liberdades e garantias do recorrente. O MP limitou-se a dar concretização a um pedido de cooperação formulado pelos tribunais espanhóis ­procedendo á constituição de arguido e interrogatório deste -, no âmbito de um inquérito que pende em Espanha, contra o mesmo.

É nesse processo de inquérito que o arguido terá de fazer valer os seus direitos, como arguido, tal como foi dito em várias ocasiões pelas diversas autoridades judiciárias que foram chamadas a pronunciar-se sobre a reclamação por aquele apresentada.

Consequentemente, sobre as questões suscitadas pelo arguido não podia pronunciar-se o Juiz de Instrução Criminal, porque para tal carecia de competência, tal como foi declarado pelo despacho recorrido, que terá, necessariamente, de ser confirmado.

Por isso, é o recurso manifestamente improcedente, o que conduz à sua rejeição, nos termos supra mencionados.

***

III. Decisão:

Em conformidade com o exposto, rejeita-se o presente recurso interposto pelo requerido PL..., face à sua manifesta improcedência, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC.

Notifique.

Lisboa, 01/10/2014

(Elaborado em computador e revisto pelo signatário).

José Adriano