Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/16.7PTFUN.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONVICÇÃO DO JUIZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – A não realização, em fase de julgamento, de diligências consideradas essenciais para a descoberta da verdade, poderá consubstanciar uma nulidade, tal como previsto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, tratando-se, pois, de uma nulidade do procedimento, e não da sentença, tendo aquela de ser alegada pela parte interessada, no prazo de dez dias, ou até final do próprio acto [alínea a) do n.º 3, do mesmo normativo], quando a ele assista, como é o caso da audiência de julgamento, sanando-se a mesma se não for arguida nesse tempo.

– Para que se verifique o vício da alínea a) do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada» (Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 339 in fine e 340), vício que tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, e «só existe quando o tribunal de recurso se vê perante a impossibilidade da própria decisão, ou decisão justa, por insuficiência da matéria de facto provada» e tal vício só se concretizará quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação.

– Se a decisão de absolvição assenta na circunstância de ter sido declarada não provada a matéria fáctica alegada, que integrava o pressuposto fundamental do crime que era imputado ao arguido: que este perdeu o controlo do veículo e causou o acidente, por se encontrar sob influência do álcool e de estupefacientes, não se verifica esse vício tanto mais que a pretensão do recorrente se dirige à produção de novas provas sobre os factos alegados e que o tribunal apreciou, e não à investigação de novos factos cujo conhecimento o tribunal tenha omitido e que fossem imprescindíveis à decisão, nem o recorrente especificou quais seriam esses novos factos que o tribunal deveria ter investigado e não investigou.

– A censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».

– Para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1.– Em processo comum, sob acusação do Ministério Público e após pronúncia, foi submetido a julgamento, perante tribunal singular, no Juízo Local Criminal do Funchal (J1), Comarca da Madeira, o arguido X. .

No final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, o tribunal decide:
Julgar a pronúncia improcedente, por não provada e, consequentemente:
- Absolver o arguido X. , da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelo art° 291°, n° l, al. a), do CP.
- Condenar o mesmo arguido como autor material de uma contra-ordenação, p. e p. pelos arts. 81 n°s  1 e 5  b) e 146°,  al. j) e 147 n°s 1 e 2 do Código da Estrada, na coima de € 500   (quinhentos euros) e na sanção acessória da inibição da faculdade de conduzir por um período de 2  (dois)meses.
*

Por forma a cumprir a sanção acessória atrás decretada, deverá o arguido no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da presente sentença entregar a sua carta de condução na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial que a remeterá a esta Secretaria, sob pena de, não o fazendo, cometer um crime de desobediência.
*

Sem custas crime.
Custas de acordo com o disposto no art° 185°, do CE e 92°, do DL n° 433/82, de 27/10,   fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo.
…»
*

2.– Inconformado com a decisão absolutória, o Ministério Público interpôs o presente recurso, que motivou, formulando extensas conclusões (fls. 258 v.º a 263 v.º), nas quais suscita as seguintes questões:
- Nulidades da sentença;
- Vícios da sentença;
- Impugnação da matéria de facto não provada.

Termina aquelas conclusões com a formulação do seguinte pedido:
43.– Em face de todo o exposto, configuramos como principal pretensão do presente recurso a declaração dos vícios da sentença por nós invocados nos segmentos B) e C) da motivação de recurso que antecede, quer do ponto de vista da sua nulidade, quer do ponto de vista da insuficiência da matéria de facto para a decisão, com a consequente revogação da sentença e anulação do julgamento ordenando-se, assim, a sua repetição a toda a matéria ou, pelo menos, conforme explicitamos nas conclusões dos pontos C.l) e C.2) da motivação de recurso que antecede, relativamente à matéria aí circunscrita.
44.– Caso seja acolhida a nossa tese sobre a nulidade da sentença vertida nos pontos B.l), B.2) e B.3) da motivação de recurso que antecede, e como aí assinalamos, requeremos ainda que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, após ordenar a repetição do julgamento peticionada no ponto anterior destas conclusões, ordene igualmente ao Tribunal A Quo que, antes de proceder à formulação da nova sentença, determine a junção aos autos dos elementos probatórios extra processuais supra referidos de que se socorreu para a sua elaboração e conceda ao Ministério Público o competente prazo legal para exercer o respectivo contraditório e que, só após o cumprimento deste passo processual, proceda oportunamente à elaboração de uma nova sentença em sede da qual se pronuncie sobre as matérias que omitiu nos termos supra expostos nos segmentos B.1) e B.2) da motivação de recurso que antecede e onde reflicta o respeito integral pelas exigências previstas no art. 374°, n° 2, do Código de Processo Penal, também nos termos supra expostos nos mencionados segmentos.
45.– Caso se entenda pela não verificação de nenhum dos sobreditos vícios e inerentes consequências jurídico processuais supra reclamadas, e dado que dos autos constarão todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão sobre a matéria de facto, o Venerando Tribunal da Relação deverá, atendendo à impugnação ampla da matéria de facto por nós supra realizada, revogar a sentença proferida pelo Tribunal recorrido e substitui-la por outra decisão em sede da qual dê como provados os factos supra expostos nos exactos termos por nós explicitados nos segmentos D.) e F.) da motivação de recurso que antecede.
46.– Consequentemente, mais deverá o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, após proceder à fixação dos factos provados nos termos por nós atrás propostos, ordenar a devolução dos autos à 1ª Instância com vista à realização de um relatório social sobre as actuais condições de vida do arguido, atendendo a que, caso a condenação ora defendida pelo Ministério Público se confirme, já será terceira condenação pela prática de crimes desta natureza sofrida pelo arguido, o que exige, do nosso ponto de vista, uma maior e melhor ponderação, estribada num conhecimento mais aprofundado sobre a sua situação pessoal, relativamente à espécie e medida da pena a aplicar-lhe.»

3.– Admitido o recurso, respondeu o arguido, defendendo que devem ser desatendidas as pretensões do MP e confirmada a sentença recorrida.
4.– Subidos os autos, neste Tribunal de segunda instância a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta apôs “visto”, ao abrigo do art. 416.º, do CPP.
5.– Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos a que se refere o art. 418.º, n.º 1, do mencionado Código, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

II–FUNDAMENTAÇÃO:
1– Vejamos o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne à matéria de facto (transcrição):
«Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1.–  No dia 28.05.2016, pelas 17h:50m, o arguido X. conduzia um motociclo de marca Honda, modelo CBR 600, com a matrícula ...47, pertencente a MG , na Estrada Comandante Camacho de Freitas, no sentido nascente/poente, a uma velocidade não concretamente apurada.
2.– No mesmo circunstancialismo de tempo, a SP circulava em tal estrada conduzindo o veiculo automóvel, marca Nissan, modelo Micra, matricula 31... , no sentido poente/nascente, a uma velocidade não concretamente apurada, transportando como passageira a AC .
3.– A velocidade máxima permitida no local é de 40km/h.
4.– No local, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, a estrada desenvolve-se numa curva para a direita, prosseguindo, depois, em recta, tudo em piso asfaltado e em razoáveis condições de conservação.
5.– O arguido ao desfazer a curva mencionada, travou e perdendo o controle do motociclo, entrou em despiste.
6.– E foi, desgovernado, embater, sensivelmente a cerca de 38 metros depois da curva, com a parte da frente e lateral esquerda do veículo, no vértice anterior esquerdo, zona do guarda-lamas esquerdo e zona do pneu dianteiro esquerdo, no veículo 31... .
7.– Este, havia transposto o eixo da via pública, passando a circular parcialmente na faixa de rodagem destinado ao sentido de trânsito em contrário, de modo a contornar, pela esquerda, os veículos automóveis, marca Fiat, modelo Punto, matrícula 90... e o de marca Volkswagen, modelo Golf, matrícula 14... que se encontravam estacionados na faixa de rodagem destinado ao sentido de trânsito do 31... .
8.– Tendo a colisão ocorrido na hemifaixa destinada ao sentido de marcha do arguido, a cerca de 40 cm do eixo da faixa de rodagem.
9.– Com o embate, o 31...  foi projectado para a direita, indo colidir com a porta traseira direita, no vértice e lateral posterior esquerdo do veículo 14... .
10.– Por sua vez, o 14... foi projectado para a direita, indo embater com a jante do eixo anterior direito, lateral anterior direita e lateral posterior direita no muro de cimento situado no lado sul da artéria.
11.– Com o embate, o arguido e o motociclo foram projectados para a berma, lado direito da via, atento o seu sentido de marcha.
12.– No local do embate, as vias estão separadas por uma linha longitudinal contínua, sendo de 3,50m a hemifaixa destinado ao trânsito por onde o arguido circulava e de 4,50m para o sentido de trânsito do 31... .
13.– Em virtude do embate, a SP e a AC foram conduzidas ao CHF, onde foram observadas, não tendo sido detectada qualquer lesão.
14.– Nas supra-referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conduziu o aludido veículo de matrícula ...47, com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de pelo menos 1,12g/l.
15.– E com uma concentração de canabinóides de 94 ng/mL de THC-COOH, 17 ng/mL(THC)  e 15 ng/mL(II-OH-THC.
16.– O arguido actuou com falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei contra-ordenacional.

17.– O arguido foi condenado:
a)- No Processo n° 176/11.1PTFUN, por sentença transitada em julgado em 21.03.13, pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 04.02.13, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 5 meses, já extintas.
b)- No Processo n° 216/13.3PTFUN, por sentença transitada em julgado em 03.10.13, pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 02.10.13, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 6 meses, já extintas.

18.–  O arguido está correntemente desempregado. Vive com os pais que o sustentam. Tem o 12° ano de escolaridade.
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2.2.–  Factos não provados
Para além daqueles factos que já resultam logicamente excluídos pela factualidade provada, sendo certo que não há que responder a matéria meramente conclusiva, de direito ou meio de prova, nem a meros juízos de valor, não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente:
1.– O arguido, por se encontrar influenciado sob o efeito de álcool e de estupefacientes, perdeu o controlo do veículo e veio a causar o acidente.
2.– A SP sofreu dores na face do lado esquerdo e apresentava dormência, dores no peito e ombro esquerdo.
3.– A AC sofreu dores na grelha costal, hematomas e dores musculares.
4.– À data do acidente os veículos automóveis 14... e 90... tinham na RAM um valor de mercado superior a 50 UCs, cada um deles.
5.– O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que estava com as capacidades físicas e psíquicas afectadas por aquelas substâncias, e por tal facto poderia pôr em risco a vida, integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado, resultado que previu e com o qual se conformou.
6.– O arguido sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.
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2.3.–Fundamentação da matéria de facto
A convicção do tribunal, para dar como provados e não provados os factos relacionados com a conduta delituosa ajuizada, alicerçou-se na ponderada conjugação e ponderação crítica da prova produzida em audiência e da prova documental junta aos autos, aliada às regras da experiência comum e da livre apreciação, tal como permite o art. 127°, do Código de Processo Penal, tudo na precisa medida em que as deduções e induções da prova produzida, numa racionalidade aferida em função dos indícios objectivos desta resultantes, sejam uma consequência natural e lógica da dedução dos factos-base, excepto quanto aos exames periciais cujo valor probatório é o previsto no art° 163° do último diploma legal citado, em que o juízo técnico e científico constante de tais exames se presume subtraído à livre apreciação do julgador.

Antes de mais, o conhecimento do local por parte do Tribunal.

Depois, a participação do acidente dos autos, constante de fls.4 a 7, com suporte fotográfico a fls. 8 a 11 e complementada com a informação oficiosamente solicitada e instruída a fls.191 a 195, valorada na sua objectividade, patenteia as características da via e do local onde o acidente ocorreu, limite de velocidade, sentido de marcha dos veículos nele interveniente, local onde o motociclo ficou imobilizado depois da sua ocorrência e local onde ficou o arguido depois do embate.

Isto mesmo, de resto, em destaque, foi veiculado pelo depoimento da testemunha JV , Agente da PSP que elaborou e explicitou tal participação.

Já quanto à forma como se deu o acidente e o que esteve na sua origem, temos dúvidas se o mesmo ficou a dever-se à condução com falta de condições de segurança, por diminuição das capacidades do arguido, por este se encontrar sob a influência de álcool e estupefacientes, tal como vem imputado na pronúncia.

Vejamos:
O arguido não colocou em causa que conduzia o motociclo, nas circunstâncias de tempo, hora, local, sentido de trânsito e faixa de rodagem por onde circulava e a ocorrência do acidente, nos termos dados como provados, tendo ainda, confessado os factos quanto à sua condução sob o efeito do álcool, não se recordando há quanto tempo havia consumido estupefacientes.

Já quanto à forma como se deu o acidente, refere que ao descrever a curva para a direita, (curva fechada), atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade entre os 40 e 50Km/h, apercebeu-se da presença de um veículo em contra-mão, isto é, deparou-se com o veículo 31...  na faixa de rodagem destinada ao seu sentido de trânsito. Perante tal facto, travou de forma imediata, o que levou à despistagem do motociclo.

As regras da experiência dizem-nos que a condução de motociclos em estrada tem as suas especificidades e depende das características do veículo e do local por onde circula. No caso dos autos, atento a configuração da estrada - curva fechada - o condutor, só à medida que sai da curva é que vai ampliando o seu campo de visão. E, só no final da curva - que, na realidade, fica um pouco depois do que lhe parece - é que o condutor pode endireitar a mota e colocar-se na posição correcta para o trajecto seguinte, no caso, um traço recto.

Acresce que, se encontrar um obstáculo numa curva e travar, o mais provável é acabar na via de trânsito oposta. E isto porque, os travões são a parte mais poderosa num motociclo, muito mais do que o motor (no caso, o arguido conduzia uma CBR 600, de 130cc). Assim, se o condutor aplicar força nos travões de forma imediata, passa a ter menos aderência e, consequentemente, entra em derrapagem com a roda traseira, perdendo o controlo do motociclo.

Tendo em consideração do que acabamos de dizer, é possível conjecturar que o acidente se teria ficado a dever à condutora do 31... que, ao contornar pela esquerda os veículos que se encontravam estacionados na faixa de rodagem destinada ao trânsito daquela, passou a circular parcialmente na faixa destinada ao sentido de marcha do arguido, sem antes se certificar de que o podia fazer sem risco de acidente, tendo em conta a distância que a separava da curva que se lhe deparava para a esquerda. Assim, o arguido, ao descrever a curva que se lhe apresentava para a direita, depara-se com a presença inesperada de um veículo na faixa de trânsito a si destinada, travando - reacção instintiva - e ao travar perde o controlo do seu veículo, não conseguindo evitar o embate, que ocorre na hemi-faixa direita de rodagem, considerando o seu sentido de marcha.

A testemunha SP , interveniente no acidente como condutora do 31... , refere que, nas circunstâncias de tempo e lugar, conduzia o seu veículo no sentido poente/nascente quando foi surpreendida com uma mota "inclinada em despiste", que veio a embater na parte inferior do veículo, na zona do para-lamas esquerdo. Devido ao embate, o seu veículo foi projectado para a direita e foi colidir no VW que estava estacionado.

Mais referiu que, não obstante estar a contornar pela esquerda os veículos estacionados à sua direita, sempre circulou dentro da sua faixa de rodagem. Por força do embate ficou com a zona do peito dorida. Mais disse, que circula todos os dias na referida via. No que diz respeito ao valor comercial do seu veículo, à data, era de € 1 100,00.

A testemunha AC , que seguia como passageira do 31... , descreve o acidente, nos exactos termos da testemunha anterior, referindo que não ficou com qualquer lesão.

A versão factual dada por estas testemunhas, no que diz respeito por onde circulava o 31...  colide, desde logo, com o local do embate. Quer do "croquis" quer do suporte fotográfico a fls. 8, 9 e 205, resulta que o local do embate é na faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito do arguido. Também se chega à mesma conclusão, em face da largura da hemi-faixa de rodagem por onde circulava o 31... , de 3,60m e da largura dos veículos, 1660mm o Fiat Punto, 1734mm o Nissan e 1786mm o VW (consulta via internet, site autovia) e os espaços normais entre os veículos e entre os veículos e o muro, pelo que ao contornar pela esquerda a condutora daquele veículo teria necessariamente de ocupar parcialmente a faixa de rodagem de sentido contrário àquele em que circulava.

Já quanto à origem do despiste, estes depoimentos não são esclarecedores, porquanto ambas apenas referem "mota inclinada em despiste" ou "mota em despiste em alta velocidade".

A testemunha OG , pouco contribuiu para a convicção do Tribunal, porquanto como a mesma refere não viu o acidente. Estava no local, apeada, no sentido poente/nascente, na companhia do sobrinho quando se apercebeu da circulação de três motas, uma delas mais à frente e com "muita velocidade" e o condutor a inclinar-se para efectuar a curva. O acidente já ocorre nas suas costas.

A testemunha JP , conhecido do arguido, refere que no dia do acidente vinha a conduzir a sua mota, no mesmo sentido de trânsito que o arguido, imprimindo uma velocidade entre os 40 e 50Km/h, e que aquele seguia a pouco metros à sua frente e conduzia à mesma velocidade, tendo presenciando a queda do arguido. O traçado no local é uma curva fechada - sem visibilidade - em ambos os sentidos. O motociclo do arguido é uma mota de pista, pelo que tem inclinar, "deitar a mota" à entrada da curva e ao fazê-la, depara-se com o veículo e trava. Ao travar, despista-se e o embate ocorre na faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito do arguido.

O depoimento da testemunha GE , proprietário dos veículos 90...  e 14... , pouco contribuiu para a convicção do Tribunal porquanto não assistiu ao acidente. Quanto ao valor comercial dos veículos, apenas soube precisar o do VW, cerca de € 1.200,00, mas adiantou que não é superior a € 4.200,00. Mais referiu que naquele local já têm ocorrido vários acidentes.

Já no que toca à consideração da TAS e da presença de canabinóides que o arguido apresentava como causa adequada à eclosão do acidente dos autos, repete-se, temos dúvidas, tanto mais que no caso vertente, como supra se explicitou, há outra razão que justifica a verificada perda de controlo, pelo arguido, do veículo que conduzia e subsequente despiste até ao embate no outro veiculo.

É certo que estudos mais recentes sobre o tema revelam que o álcool, sendo um depressor do sistema nervoso central, afecta a capacidade de condução, e os seus efeitos são tanto mais perniciosos quanto maior é a quantidade ingerida. Os efeitos provocados pelo consumo do álcool no exercício da condução são os mais diversos e ainda que variem de condutor para condutor, assumem essencialmente as seguintes características:
- Diminuição da capacidade de reacção, nomeadamente, perante eventos inesperados; entorpecimento;
- Descoordenação psicomotora, perceptível em travagens bruscas, golpes de volante, etc;
- Redução da capacidade de análise de eventos exteriores (diminuição da capacidade de avaliar a velocidade do próprio veículo, diminuição da capacidade de avaliar a distância de obstáculos e a velocidade de aproximação de outros veículos);
- Redução da capacidade de seguir linearmente uma trajectória;
- Instala-se o excesso de confiança, indutor de comportamentos imprudentes e muitas vezes aumenta a agressividade (tanto a agressividade social como a agressividade da própria condução); sensação de bem-estar e ilusória sensação de aumento das suas capacidades, que na verdade se encontram diminuídas;
- Redução do campo de visão e da visão periférica.
Não teve o tribunal dúvidas em concluir que, aquando do embate, o arguido circulava com uma TAS de álcool no sangue de, pelo menos, 1,12 gr/l, mas a prova deste facto, não permite, por si só, estabelecer um nexo de causalidade entre o acidente ocorrido e a taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido.
Por outro lado, a presença de 94ng/mL de THC-COOH, não é de impressionar. Trata-se de um metabolito que é inactivo, não exercendo os efeitos psicoactivos dos canabinóides, não influenciando, assim, o indivíduo na sua condução. A presença desta substância no organismo é unicamente indicativa do consumo de canabinóides, não se podendo estabelecer uma relação directa entre a sua presença no sangue e eventuais alterações na aptidão física, mental ou psicológica do indivíduo.
Isto é o que objectivamente resulta da prova.
"Simplesmente, o provado, isto é, aquilo que o tribunal pode dar como assente em função da prova, não se limita a esta realidade atomisticamente considerada. A par da isolada valoração de cada um dos meios de prova produzidos, o tribunal procede à sua valoração crítica, numa perspectiva de conjugação e interacção das diversas provas". (TRC de 05/06/2013, disponível em www.dgsi.pt).
Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente, em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos.
Assim, em face da prova produzida, o tribunal ficou com dúvidas, sobre qual foi a razão concreta da eclosão do acidente: de causa imputável ao condutor, através da condução com falta de condições de segurança, por diminuição das capacidades do condutor, por se encontrar sob influência de álcool e de estupefacientes, ou, de causa externa - a via estava parcialmente impedida, levando-o a travar bruscamente e, consequentemente ao despiste e posterior embate.
Daí a factualidade não apurada, com base no princípio "in dúbio pro reo".
Foram ainda determinantes os documentos de fls. 25 e 26, o relatório final a fls. 30 e 31, quanto à taxa de alcoolemia e a concentração de canabinóides.
Foi, por fim, consultado o C.R.C. do arguido junto aos autos e foram acreditadas as suas declarações, no que diz respeito à sua condição social e económica.»
***

2– Perante as conclusões da respectiva motivação - as quais, como se sabe, delimitam e fixam o objecto do recurso -, o recorrente, discordando da absolvição do arguido, ataca a decisão recorrida acusando-a de laborar em erro e de ser equívoca, por três ordens de razões, que enuncia e desenvolve de seguida, como sendo as seguintes:
«— Primeiramente, porque a sentença proferida está ferida de nulidade [em três momentos distintos], nos termos do disposto no art. 379°, n° 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, com referência ao disposto no art. 374°, n° 2, alínea b), e n° 3, do mesmo diploma legal.
— Em segundo lugar, porque a referida sentença está ferida do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ou não provada), [em dois momentos distintos] nos termos previstos no art. 410°, n° 2, alínea a), do Código de Processo Penal, que a torna jurídico processualmente inválida.
— Em terceiro lugar, porque ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que existe um erro na apreciação da globalidade dos elementos probatórios produzidos nos autos — erro de julgamento em violação do disposto nos arts. 127° e seguintes do Código de Processo Penal — cuja cabal correcção e saneamento determina, por sua vez, o reconhecimento como provados dos factos elencados sob os pontos 1.), 2.), 3.), 5.) e 6.) da matéria de facto não provada o que nos conduz, necessariamente, ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos típicos do crime aqui imputado ao arguido.»
***

3– Apreciando os ditos fundamentos do recurso, diremos desde já que, face ao conteúdo da decisão proferida, aos argumentos do recorrente e ao teor das provas, aquela é de manter, sendo improcedente o recurso, o que, ao abrigo do disposto no art. 425.º, n.º 5, do CPP, nos permitiria, simplesmente, remeter para os fundamentos da decisão impugnada, sem necessidade de maiores explanações. Todavia, tendo em conta a alegação de nulidades e de vícios da sentença e porque se trata de matéria nova que não foi, nem podia ter sido, apreciada em primeira instância, não deixaremos de expor as razões da aludida improcedência, pelo menos nessa parte.

Assim:  
3.1.– Começamos por constatar que, contrariamente ao alegado, a sentença não padece de qualquer nulidade de entre as previstas no art. 379.º, n.º 1, do CPP, nem existem outras nulidades, do procedimento, de que cumpra neste momento conhecer.
Segundo o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, é nula a sentença «que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do art. 374.º…», que «condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia se a houver», caso não tenha sido cumprido o disposto nos artigos 358.º e 359.º, ou «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». A lei não prevê outras nulidades de sentença para além das referidas, nem o intérprete as pode criar, sob pena de violação do princípio da legalidade que decorre do artigo 118.º, n.º 1, do mesmo Código.

Diz-nos o n.º 2 daquele primeiro normativo, que:
«Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»

Ou seja, para além de ter de especificar os factos provados e não provados, enumerando-os, terá ainda o tribunal de indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e de efectuar também (no próprio texto da sentença) o exame crítico dessas mesmas provas, isto é, de explicitar o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das mesmas.

O objectivo de tais exigências é, no dizer de Germano Marques da Silva (In “Curso de Processo Penal”, 2ª ed., 2000, vol. III. pág. 294), o de permitir "a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina".

Segundo Marques Ferreira (In Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229), "estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência".

Impõe-se pois, que nesse exame crítico das provas, nas quais se alicerçou a convicção do tribunal, se indiquem as razões de ciência e demais elementos que, na perspectiva do tribunal, tenham sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da respectiva convicção. «A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» - Ac. do STJ de 30/1/2002, proc. nº 3063/01-3ª; MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 13ª ed., 2002, pp. 739-740).

Porém, «a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível» (Ac. do STJ de 30/6/1999 - proc. nº 285/99-3ª). Efectivamente, «a motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da imediação no que tange à actividade de produção da prova, transformando-a em documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intuições, etc., que fundamentam a convicção ou resultado probatório» (Ibidem.). Daí que «a fundamentação a que se reporta o art. 374º, nº 2, do CPP, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de violar o princípio da oralidade que rege o julgamento feito pelo tribunal colectivo de juízes». De modo que, «não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo» (Ac. do STJ de 12/4/2000, proc. nº 141/2000-3ª).

No presente caso, após enumerar os factos provados e os não provados, o tribunal recorrido passou a expor a motivação da sua decisão em matéria de facto, elencando, por um lado, as provas que serviram para formar a respectiva convicção - prova pericial (relatório do exame toxicológico efectuado pelo INMLCF e constante de fls. 30, cujas conclusões estão reflectidas nos factos provados 14 e 15), documental e prova pessoal que foi produzida em audiência de julgamento - e analisando, de seguida, essas provas, de cujo conteúdo deu conhecimento, sendo o das declarações e depoimentos, prestados em julgamento, por súmula, para terminar com a explicação das razões pelas quais, do seu ponto de vista, a perda de controlo do veículo conduzido pelo arguido e o subsequente acidente que daí resultou poderem ter uma causa diversa da que foi alegada na acusação, que era a de aquelas ocorrências terem resultado do facto de o arguido se encontrar, no momento, sob o efeito de álcool e estupefacientes, conduzindo, por isso, de maneira perigosa.

Note-se que o aludido exame pericial não formula quaisquer conclusões no sentido de que a aludida perda de controlo do veículo e do subsequente acidente teve a sua origem no facto de o arguido «se encontrar influenciado pelo álcool e pelos estupefacientes» detectados no seu corpo. Essa relação de causa-efeito só o tribunal a poderia estabelecer, em função do conjunto das provas a produzir. Foi ponderando essas mesmas provas que o tribunal concluiu que tal relação não ficou demonstrada, o que se traduz no facto não provado sob o n.º 1, tendo-se explicado o porquê dessa decisão.

Essa explicação constitui, precisamente, o exame crítico das provas que a lei exige. Quer se esteja de acordo, ou se discorde dela.

Desde que, do texto da fundamentação da sentença, sejam apreensíveis, de forma clara, as razões pelas quais a matéria de facto foi decidida em determinado sentido, como acontece no presente caso, é quanto basta para que se tenha por cumprida a exigência legal decorrente do artigo em análise, não podendo, nessas circunstâncias, argumentar-se que inexiste fundamentação, ou que esta é insuficiente.

Também não se verifica omissão de pronúncia.

O tribunal recorrido pronunciou-se sobre todas as questões, de facto e de direito, sobre as quais tinha de decidir, declarando, por um lado, provados ou não provados todos os factos relevantes que haviam sido alegados, e tomando posição expressa quanto à demais matéria alegada e que não se mostra contemplada em nenhuma daquelas categorias de factos, relativamente à qual se considerou que era matéria meramente conclusiva ou de direito, ou ainda meros juízos de valor, de que são exemplo as expressões «velocidade muito excessiva», «influenciado por», foi embatido «… com muita força», os veículos «ficaram danificados», etc.

A eventual discordância do recorrente quanto à solução defendida na sentença relativamente a essa matéria não pode ser resolvida pela via da exigência de melhor fundamentação, mas sim pela impugnação do mérito da decisão proferida.

Num outro momento da alegação do recorrente (que este designa com 3.º momento), suscita este o problema de o tribunal se ter socorrido das medidas - em especial, da largura - dos veículos automóveis referidos na acusação, como factos instrumentais para dar como provado o facto n.º 7, facto a partir do qual o julgador construiu a sua conjectura sobre a eventual possibilidade do acidente ser da responsabilidade do condutor do veículo 31... , ao invadir a hemi-faixa de rodagem do arguido, usando o tribunal, dessa forma, elementos de prova extraprocessuais, obtidos na internet, relativamente aos quais o MP não foi notificado para exercer o respectivo contraditório.

As medidas de cada modelo de veículo automóvel não mudam, são constantes desde que produzido e até à sua destruição. Aquelas medidas também não constituem qualquer segredo, antes pelo contrário, podem ser obtidas, facilmente, por qualquer cidadão, pelas vias mais diversas, junto da respectiva marca ou em qualquer publicação especializada na área automóvel, nomeadamente via internet. Além disso, para chegar à conclusão a que chegou, o tribunal não necessitava das medidas exactas do referido automóvel de matrícula 31...  - e dos demais que estavam estacionados na via, no mesmo sentido (facto provado n.º 7), todos eles modelos citadinos - cuja marca e modelo estão identificados na acusação (Nissan, Micra - facto provado n.º 2), cujas dimensões aproximadas, de todos eles, são do conhecimento público.

A utilização das distâncias colhidas no croquis (fls 6v.º e 7) em conjugação com a largura dos aludidos veículos e a configuração da estrada e bermas (fotos de fls 8 e 9), no local do acidente, para concluir, como se concluiu no facto provado n.º 7, que o veículo 31...  havia transposto o eixo da via e circulava parcialmente na faixa de rodagem destinada ao trânsito que vinha em sentido contrário, não constitui qualquer surpresa, é apenas o resultado de uma operação aritmética, ao alcance de qualquer um, tratando-se de hipótese que poderia e deveria ter sido colocada, desde logo, em inquérito. Aqueles ditos novos elementos respeitantes à medida dos veículos não podem ser tidos como tal, nem constituem matéria de facto provada, são apenas elementos instrumentais – como referido pelo recorrente – em que assentou o raciocínio do julgador para formar a sua convicção, quanto ao possível modo como ocorreu o embate dos veículos, sendo certo que, quanto a esse modo, ficando o tribunal na dúvida, deve decidir favoravelmente ao arguido, por força do princípio in dúbio pro reo.

Não se estando perante novas provas, nem perante novos factos que exijam o cumprimento do disposto no artigo 358.º ou 359.º, do CPP - porque, desde logo, não suportam qualquer condenação -, a exigência do recorrente no sentido de lhe ser dada a oportunidade de exercer o contraditório quanto aos aludidos elementos não se justifica, nem tem suporte legal. Pelo que, não foi cometido qualquer nulidade. 
  
Concluindo este ponto, reafirmamos que a decisão de facto proferida não padece, quanto a nós, de falta de fundamentação, nem a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia, ou por qualquer outro dos fundamentos enunciados supra.

3.2.– Os vícios da sentença são os enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

O recorrente invoca o da alínea a) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada -, sob duas vertentes.

A primeira, porque o tribunal fez “desaparecer”, do complexo de factos relevantes, os alegados na acusação pública sobre a velocidade a que circulava o arguido, superior ao limite legal aí permitido, bem como o valor dos bens colocados em perigo pelo arguido, concretamente, o valor do veículo embatido, de matrícula 31...  e do veículo de matrícula 90….

A segunda, porque o tribunal se demitiu de realizar diligências de prova que se revelaram indispensáveis à descoberta da verdade, em face da forma como o julgador interpretou a prova produzida no que concerne à responsabilidade pelo acidente, referindo o recorrente que se impunha a solicitação ao INMLCF de parecer quanto aos efeitos físicos e mentais causados pelas substâncias consumidas pelo arguido e referidas a fls. 30 e dos efeitos da sua coexistência com o álcool no sangue de que o mesmo era portador, para que fosse possível responder à questão de saber se o arguido estava ou não em condições de conduzir com segurança.

No que concerne àquela primeira vertente, o que se extrai da acusação é que nesta era alegado que o arguido procedia à condução do motociclo «com uma velocidade muito excessiva para o local», no qual era proibida a circulação a velocidade superior a 40 km/h. Quanto ao valor dos veículos, é referido na mesma acusação que o 31...  teria um custo de reparação de € 5000,00 e a proprietária foi reembolsada em € 1000,00 pela seguradora, face à declaração de perda total do veículo. Quanto aos demais automóveis, dizia-se que tinham o valor de 50 UC, cada um deles e que a respectiva reparação ascendeu a € 1500,00, suportada pela seguradora.

Obviamente que o valor do dano causado e da respectiva reparação é completamente irrelevante para o preenchimento dos requisitos do crime em causa, sendo relevante apenas o valor dos bens colocados em perigo. Assim, o valor do veículo 31...  era de € 1000,00 - valor da indemnização pela perda total, que está muito aquém do “valor elevado” a que se refere a norma incriminadora e que exige um valor superior a 50 unidades de conta (art. 202.º, alínea a), do CP) -, enquanto o valor dos demais veículos foi declarado não provado (facto 4).

No que concerne à velocidade, a menção a “velocidade excessiva” é um conceito de direito, que se traduz em circular a determinada velocidade em que, dadas as condições concretas, o condutor não consegue fazer parar o veículo em segurança, no espaço livre e visível à sua frente, ou quando é ultrapassado o limite de velocidade legalmente definido para o local.

Sabe-se que no local do acidente o limite de velocidade era 40 km/h. Segundo o acusador, o arguido circulava a velocidade “muito excessiva”, sem concretizar qual seria essa velocidade, ou que era, pelo menos, superior a determinado valor. Fica-se, por isso, sem saber qual era a verdadeira expressão dessa excessividade e sem possibilidade de se extraírem quaisquer conclusões de tal afirmação, nomeadamente para efeitos de saber se esse excesso seria suficiente para concluir que o arguido violou, por causa disso, de modo grosseiro, as regras de circulação rodoviária que são respeitantes tal matéria, sendo certo que a imputação feita na acusação é apenas pela alínea a) do n.º 1 do art. 291.º, do CP, a qual respeita exclusivamente à falta de condições para exercer a condução por efeito da embriaguez ou por influência do álcool ou de estupefacientes, sem que naquela peça processual se faça qualquer referência à alínea b) do mesmo normativo, para a qual assumiria relevância a velocidade a que seguia o veículo, se a mesma fosse alegada e demonstrada.

Consequentemente, perante a imputação feita, dizer-se que o arguido circulava a uma velocidade “muito excessiva” é, pelas razões expostas, inócuo para efeitos de procedência da acusação.
No que concerne ao segundo fundamento invocado, o aludido vício também não se verifica.

A questão da necessidade, para a descoberta da verdade, do aludido parecer do INMLCF, a solicitar pelo tribunal, foi levantada pelo MP antes de terminada a audiência de julgamento (fls. 207/208v.º) e decidida por despacho de 11/05/2018 (fls. 214/215v.º), que indeferiu tal diligência. O MP conformou-se com essa decisão, não a impugnando, pelo que a mesma transitou em julgado.

De qualquer modo, a não realização, em fase de julgamento, de diligências consideradas essenciais para a descoberta da verdade, poderá consubstanciar uma nulidade, tal como previsto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, tratando-se, pois, de uma nulidade do procedimento, e não da sentença, tendo aquela de ser alegada pela parte interessada, no prazo de dez dias, ou até final do próprio acto [alínea a) do n.º 3, do mesmo normativo], quando a ele assista, como é o caso da audiência de julgamento, em que esteve presente o MP, tendo aquela sido encerrada sem que tal nulidade tenha sido arguida. Pelo que, se existisse, estaria neste momento sanada.

De qualquer modo e tal como tem sido devidamente salientado pela doutrina e pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, para que se verifique o vício da alínea a) do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada» (Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 339 in fine e 340). Ou seja, há “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contêm, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido.
Tem o aludido vício de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, e «só existe quando o tribunal de recurso se vê perante a impossibilidade da própria decisão, ou decisão justa, por insuficiência da matéria de facto provada».

Tributário do princípio acusatório, tem aquele de ser aferido em função do objecto do processo (Ac. da Rel. do Porto de 26/5/1993, proferido no Proc. nº 9350062, consultável em htpp//www.dgsi.pt), traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia. Isto significa que aquele vício só se concretizará quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação.

Não é o caso dos presentes autos, em que a decisão de absolvição assenta na circunstância de ter sido declarada não provada a matéria fáctica alegada que integrava o pressuposto fundamental do crime que era imputado ao arguido: que este perdeu o controlo do veículo e causou o acidente, por se encontrar sob influência do álcool e de estupefacientes.

Ora, a pretensão do recorrente dirige-se à produção de novas provas sobre os factos alegados e que o tribunal apreciou, e não à investigação de novos factos cujo conhecimento o tribunal tenha omitido e que sejam imprescindíveis à decisão. Aliás, o recorrente não especifica quais seriam esses novos factos que o tribunal deveria ter investigado e não investigou, sobre eles não se pronunciando.

Consequentemente, inexiste o vício invocado, ou qualquer outro – numa apreciação oficiosa da matéria – de entre os enunciados no aludido art. 410.º, n.º 2, do CPP.

3.3.– No que concerne à impugnação da matéria de facto não provada, alega o recorrente que houve erro na apreciação da prova, em violação do artigo 127.º, do CPP, cuja correcção importa declarar como provados os factos que o tribunal recorrido considerou não provados, o que conduz ao preenchimento dos elementos do crime imputado.

Segundo dispõe o art. 127.º, do CPP, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Não se vislumbra que a apreciação da prova, no presente caso, tenha infringido as regras da experiência, pois, nenhum dos factos provados, de per si ou no conjunto da matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, viola tais regras, o mesmo acontecendo com os factos não provados.

A garantia de legalidade da "livre convicção" a que alude aquele normativo terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova.

Sendo certo que convicção livre não é, nem pode equivaler, a livre arbítrio na formação dessa convicção, antes terá de ser o reflexo de uma apreciação objectiva das provas produzidas, permitindo um controle por parte dos interessados e do tribunal de recurso, é manifesto que o presente caso não revela qualquer arbítrio ou discricionariedade na análise da prova, tendo sido respeitados os princípios e normas legais que respeitam a tal matéria.

Por outro lado, manda o princípio in dubio pro reo que, em sede de decisão da matéria de facto, em caso de dúvida se decida a favor do arguido.

Como explica o Prof. Germano Marques da Silva (obra citada supra, pág. 84): «A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência».

Se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, tiver conduzido «à subsistência no espírito do Tribunal de uma dúvida positiva e invencível», outra alternativa não é deixada ao julgador senão aplicar o aludido princípio. O in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» - Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997.

O crime aqui em causa é um crime de perigo concreto, sendo irrelevante para a respectiva consumação o dano efectivamente causado.

Por isso, as dores e demais consequências, em termos de dano corporal, referidas nos pontos 2 e 3 dos factos não provados, irrelevam, para aquele efeito, assumindo relevância apenas em sede de medida da pena e para efeitos da indemnização que eventualmente fosse arbitrada.

O valor dos veículos 14... e 90... também só interessa se se verificarem os demais pressupostos do crime, fundamentalmente, aquele que está enunciado no facto não provado sob o n.º 1, que estabelecia a causa da perda de controlo do veículo e do subsequente acidente, traduzida na falta de condições do arguido para conduzir em segurança, em consequência do álcool e estupefaciente consumido anteriormente.

O tribunal recorrido considerou que, face à prova produzida, não era possível estabelecer tal relação, havendo outra explicação possível para o despiste do motociclo conduzido pelo arguido e posterior embate no veículo automóvel que circulava em sentido contrário.

Constituindo o recurso em processo penal um verdadeiro «remédio jurídico», com vista à reparação de eventuais erros cometidos pelo tribunal a quo na apreciação da prova, ao tribunal de recurso competirá aferir da legalidade das provas que foram relevantes, bem como certificar-se que o raciocínio que conduziu à convicção que foi formada e permitiu chegar à decisão de facto proferida não se mostra viciado.

Por outro lado, deverá ter-se presente que, em matéria de apreciação da prova, intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, e que os próprios depoimentos em audiência são frequentemente condicionados pelo modo como são recebidos. Tal componente «implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação» (G. Marques da Silva, obra citada, pag. 817).

Seguindo-se de perto, nesta matéria, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 (DR - II série, de 2/6/2004), diremos que a censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».

Por isso, para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.

Ora, relativamente ao aludido facto não provado n.º 1, o recorrente foi o primeiro a reconhecer que as provas eram insuficientes para o declarar como provado, razão pela qual requereu a emissão de parecer ao INMLCF, sobre tal matéria, pretensão que foi rejeitada.

Por outro lado, a forma como decorreu o embate dos veículos e tendo em conta o concreto local desse embate na faixa de rodagem, o tribunal recorrido deu outra possível explicação para tal evento, na qual não assume importância a aludida condição do arguido como consumidor de estupefacientes e a ingestão de álcool, apesar de ter ficado demonstrado que o arguido acusou, na altura, 1,2 g/l de álcool no sangue e que aquele havia consumido estupefacientes.

Note-se que, o que está aqui em causa não é apurar se o arguido teve ou não culpa no acidente causado, ou seja, se este é ou não da sua responsabilidade. Quanto a esse ponto não temos quaisquer dúvidas em responder positivamente - independentemente da parcela de culpa que também pudesse, eventualmente, existir da parte da condutora do veículo embatido, ao circular parcialmente na faixa contrária à sua -, face ao muito espaço disponível na respectiva faixa de rodagem, para o arguido poder continuar a sua marcha, caso conduzisse com integral respeito pelas regras estradais, nomeadamente, pelo limite de velocidade existente no local.

Coisa completamente diferente é imputar o despiste e subsequente embate à falta de condições para conduzir, em consequência do álcool e estupefacientes que havia consumido.
Neste ponto em concreto, as provas produzidas e indicadas pelo recorrente - de natureza pericial, documental e pessoal - não afastam, de modo inequívoco, a hipótese colocada pelo tribunal recorrido, como causa do despiste do motociclo, nem impõem a solução pretendida pelo recorrente, nessa mesma matéria.

Nessa conformidade, improcede a impugnação da matéria de facto e, consequentemente, o recurso. 
***

III–DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o presente recurso do Ministério Público, confirmando-se a decisão absolutória recorrida.
*
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
Notifique.


Lisboa,06/11/2018


José Adriano – (Elaborado em conputador e revisto pelo relator).
Vieira Lamim