Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1273/11.9TJLSB.L1-1
Relator: EURICO REIS
Descritores: CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA
Sumário: 1. É nula por omissão de pronúncia a sentença que, tendo um dos credores citados em acção especial de consignação em depósito, intentada por existirem dúvidas acerca do efectivo titular do direito, requerido que se tornasse certo o seu direito contra os demais demandados, não toma posição quanto a essa matéria.
2. Considerando que o direito do Estado Português/Fazenda Pública foi reconhecido por decisão judicial transitada em julgado proferida em acção em que o outro potencial credor da Autora foi devidamente citado e exerceu livremente, na medida em que o quis, todos os direitos reconhecidos no Ordenamento Jurídico português, que é conforme aos demais Ordenamentos Nacionais dos países que se organizam segundo o modelo do Estado de Direito, incluindo o direito ao contraditório, e que, ao invés, a decisão judicial do Reino de Espanha, que não teve em conta a existência desse direito, foi lavrada em processo no qual o Estado Português não foi citado nem teve oportunidade para intervir, tem forçosamente de considerar-se prevalecente e certo contra os demais credores, o direito titulado pela Fazenda Pública portuguesa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1.“MIM, SA” intentou contra o ESTADO PORTUGUÊS/FAZENDA PÚBLICA e “COS, SA” estes autos de acção declarativa especial de consignação em depósito que, sob o n.º …, foram tramitados pelo 2º Juízo Cível (hoje 1ª secção desse mesmo Juízo) do Tribunal da comarca de Lisboa, e nos quais foi proferida a sentença de fls 296 a 309, cujo decreto judicial tem o seguinte teor:
“Nestes termos, julgo a presente acção procedente e, em consequência, declaro válido e regularmente efectuado o depósito junto da Caixa Geral de Depósitos pela Autora, correspondente ao documento de fls. 24 dos autos e declara-se extinta a respectiva obrigação da Autora.
Custas pela Ré COS, S.A., considerando que o Estado Português das mesmas se encontra isento – art. 446º do C.P.C. ….” (sic - fls 309).
Inconformado com essa decisão, o ESTADO PORTUGUÊS/FAZENDA NACIONAL dela recorreu (fls 313 a 345), rematando as suas alegações com o pedido de que seja “Reconhecida a invocada nulidade da douta sentença apelada, por omissão de devida pronúncia sobre a pretensão formulada pelo Apelante … (e consequentemente) revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que conheça a questão omitida, declarando, quanto a esta, o direito do Apelante a receber a totalidade da prestação depositada pela Autora” (sic - fls 344 a 345), formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
(…)
Não foram apresentadas contra-alegações, tendo o Mmo Juiz a quo, pelo despacho de fls 354 a 355, negado que a decisão recorrida esteja afectada por qualquer nulidade que a invalide.
Cumprido, nesta Relação, o disposto no art.º 715º n.º 3 do CPC, o recorrente apresentou a peça processual de fls 365 a 371, e só ele o fez, aí mantendo a posição assumida na 1ª instância.
Estes são, pois, os contornos da lide a dirimir.
2. Considerando as conclusões das alegações do ora apelante (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso, impedindo esta Relação de conhecer outras matérias – n.º 3 do art.º 668º do CPC e artºs 671º a 673º, 677º, 678º e 684º, maxime nºs 3 e 4 deste último normativo, e 661º n.º 1, todos do mesmo Código) as questões a dirimir nesta instância de recurso são as seguintes:
- a decisão recorrida é ou não nula por omissão de pronúncia?
- é ou não possível, neste momento processual, conhecer de mérito quanto ao objecto da lide e, em caso afirmativo, que factos podem ser declarados provados, podendo ou não sê-lo, para além dos que o foram na decisão recorrida, os enunciados pelo apelante no ponto IV-1 das suas alegações de recurso?
- ao proferir a decisão recorrida, o Tribunal de 1ª instância violou ou não o estatuído nos artºs 1030º n.º 3 do CPC, 4º, 5.º n.º 1 e n.º 2 a), 16.º, 17.º, 20º n.º 1 e 25.º n.º 1, parágrafo segundo, do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 29.05.2000 (alterado pelos Regulamentos (CE) n.º 603/2005, de 12-04-2005, e n.º 694/2006 de 27-04-2006), 88º, 285º e 293.º do CIRE?
E sendo esta a matéria que compete julgar, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por estarem cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 700º a 720º do CPC), tendo sido oportunamente colhidos os Vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos.
3. Em 1ª instância foram declarados provados os seguintes factos:
(…)
4. Discussão jurídica da causa.
4.1. A decisão recorrida é ou não nula por omissão de pronúncia?
4.1.1. Em conformidade com o afirmado pelo apelante nas suas alegações de recurso, constata-se que o mesmo, no seu articulado de contestação, formulou os seguintes pedidos: “... (que seja) julgada improcedente a presente acção, no tocante à invocada incerteza sobre o credor, e mais deverá ter-se por certo o direito exclusivo do Réu Estado a receber por inteiro a prestação oferecida pela Autora, ficando o montante do depósito consignado à ordem da Fazenda Pública” (sic - fls 253 a 254).
Ora, como se constata pela simples leitura do decreto judicial recorrido, é manifesto que na decisão recorrida o Mmo Juiz a quo não tomou posição quanto a todas as questões suscitadas por essa parte processual, o que, efectivamente, constitui uma clara violação do estatuído no n.º 2 do art.º 660º do CPC, situação essa que consubstancia uma das nulidades previstas na alínea d) do n.º 1 do art.º 668º do mesmo Código.
Isto porque, caso aquele Julgador entendesse que não se tinha de pronunciar acerca do segundo dos pedidos formulados pelo ora recorrente, ainda assim, por força do primeiro dos normativos agora citados, sempre teria de referir expressamente essa sua posição, isto é, que o Tribunal não estava, neste caso concreto, vinculado ao dever de pronúncia quanto a tal matéria.
Não o tendo feito, incorreu em omissão de pronúncia, ou seja, deixou de pronunciar-se sobre (tomar posição quanto a) uma questão que devia (era sua obrigação) apreciar.
E tanto basta, constituindo a apresentação de mais elaborados argumentos justificativos, de modo inegável, a prática de actos inúteis, dilatórios e impertinentes, comportamento esse que é ilícito - proibido - e punível por Lei (artºs 137º e 265º n.º 1 do CPC).
4.1.2. Nesta conformidade, sendo inteiramente procedentes as conclusões 1 a 6 das alegações de recurso da apelante, impõe-se declarar nula a ora sindicada decisão proferido pelo Tribunal de 1ª instância, para que, em sua substituição e porque nesta 2ª instância foi dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do art.º 715º do CPC, seja possível exercer pronúncia quanto ao supra aludido pedido concretamente formulado pelo recorrente na sua contestação e que é perfeitamente admissível à luz do que se encontra previsto nos nºs 3 e 4 do art.º 1030º do Código agora mesmo referenciado.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
4.2. É ou não possível, neste momento processual, conhecer de mérito quanto ao objecto da lide e, em caso afirmativo, que factos podem ser declarados provados, podendo ou não sê-lo, para além dos que o foram na decisão recorrida, os enunciados pelo apelante no ponto IV-1 das suas alegações de recurso?
4.2.1. Face ao decretado no ponto 4.1. do presente acórdão, forçoso se torna reapreciar ex novo todo o objecto da lide, mas sendo certo que, tal como se encontra estatuído no n.º 2 do art.º 201º do CPC, quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente (sublinhado que não consta do texto legal), ou seja, só deixam de ser considerados válidos os actos, ou as partes deles, que não possam ser aproveitados/as, nomeadamente por não serem lógica e/ou ontologicamente coerentes com as razões que motivaram a anulação decretada pelo Tribunal Superior e/ou não merecem a concordância deste.
E, tendo em atenção esses critérios legais e o disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 510º daquele mesmo Código, no presente caso, face ao teor dos documentos juntos e às posições assumidas por todos os litigantes nos seus respectivos articulados, também se entende que os factos que, neste momento, podem já ser declarados provados são suficientes para que possa ser proferido julgamento de mérito quanto à totalidade do objecto da lide.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
4.2.2. A propósito da questão do que pode ser desde já declarado provado, veio o apelante apresentar algumas críticas à parte do sentenciamento agora anulado que se encontra transcrita no ponto 3. do presente acórdão (e que corresponde ao elenco dos factos que foram declarados provados em 1ª instância), o qual assentava na seguinte singela mas suficiente fundamentação: “Importa decidir, porquanto os autos já o permitem – art. 510º n.º 1, alínea b) do C.P.C. Estão provados, por documento e por acordo das partes, os seguintes factos: …” (sic).
Para justificar o seu pedido de parcial alteração do nesta parte decidido em 1ª instância, afirma o recorrente o seguinte:
“Documentada foi apenas a notificação dispensada à Autora da decisão do «Juzgado Mercantil n.º 5 de Barcelona», de …-2011, que não foi, em si, certificada nos autos ou, sequer, traduzida, tal importando que, em bom rigor, possa apenas ter-se por provado que a Autora foi notificada dessa decisão, nos termos que alegou e demonstrou documentalmente.
Por outro lado, ainda que na sua resposta às contestações a Autora tenha impugnado a matéria dos artigos 18.º a 21.º (entre outros) da contestação do ora Apelante, por desconhecimento pessoal desses factos, certo é que esses artigos não integravam “matéria de excepção” à sua pretensão e, nessa medida, não lhe era lícita a resposta que os abrangesse (art. 785.º do CPC).
Daí que não possa operar a citada impugnação e antes se devam considerar tais factos admitidos, com excepção do alegado no art 19.º da Contestação do Estado, pois só este foi directamente contraditado pelo art. 36.º da Contestação da COS.
Em todo o caso, é igualmente certo que a própria Autora veio alegar e documentar nos autos a informação que a Administração Tributária lhe prestou a coberto do Ofício datado de … de 2011 – cf. Documento 18 da Autora – onde era já mencionado o facto negativo alegado naquele art. 19.º da contestação do ora Apelante.
Assim, nada obstará a que se considere provado o teor da resposta que a própria Autora invocou.
Acresce que, em suporte da sua alegação, o Apelante também juntou à sua contestação uma informação dos Serviços de Finanças de … 3 - Documento n.º 4 do Estado - e esse documento não só não foi impugnado, como resta submetido à livre apreciação do Tribunal.”
É impossível não reconhecer razão ao apelante.
Nesta conformidade e pelas razões já expostas (ou seja, insiste-se, face ao teor dos documentos juntos e às posições assumidas por todos os litigantes nos seus respectivos articulados), podem ser (e são-no) desde já declarados provados os seguintes factos, sendo essa a enumeração que valerá para a fundamentação em matéria de facto do julgamento do pleito (e não a antes inserida no ponto 3. supra):
1 - Em … de 2005, a Autora, a sociedade “LM, S.A.”, e a Ré “COS” celebraram um contrato que designaram de promoção que tinha por objecto a construção, comercialização, a gestão e promoção de um parque logístico constituído por dois edifícios, a construir no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o número … (edifício B) e no prédio urbano descrito na mesma Conservatória sob o número … (edifício A).
2 - As partes previram que o edifício A deveria ter a área de 20.646,68 m2 e o edifício B deveria ter a área de 37.512,88 m2 (cfr. cláusula 9.1 do Contrato).
3 - A Ré COS obrigou-se a, como promotora da construção e da comercialização do parque logístico, levar a cabo a construção, a comercialização e os serviços de gestão da promoção e do projecto do referido parque (cfr cláusula 1.1 do Contrato).
4 - No que se refere à comercialização do parque logístico, a Ré “COS” obrigou-se a, com a colaboração da Autora, comercializar o referido parque, negociando os respectivos contratos de arrendamento com os potenciais interessados (cfr cláusula 4.1 do Contrato).
5 - Os contratos de arrendamento a propor pela Ré “COS” à Autora teriam que obedecer a um conjunto de condições mínimas: não poderiam ser celebrados por um prazo inicial inferior a cinco anos (cfr cláusula 4.2 do Contrato) e a renda de referência a propor não poderia ser inferior a € 3,75 por m2 (cfr ibidem).
6 - As partes previram a possibilidade de a Autora autorizar a celebração de contratos de arrendamento com rendas de valor inferior ao valor de referência.
7 - As partes estipularam um objectivo de comercialização do parque logístico dependente da concretização do arrendamento (na acepção prevista nas alíneas a) e b) da cláusula 4.4.1 do Contrato) da área locável do mesmo.
8 - A Ré “COS” obrigou-se a, no prazo de um ano a contar da verificação das condições de entrega do Edifício B (tal como definidas no mesmo Contrato) e do consequente pagamento pela Autora do preço daquele edifício, ter arrendado uma área locável equivalente a pelo menos 75% da totalidade da área locável do parque logístico (cfr cláusula 4.4.1 do Contrato).
9 - Sem prejuízo da verificação de ajustamentos, as partes previram que, como contrapartida das obrigações acima descritas, a Autora obrigava-se a pagar à Ré “COS” a quantia de € 9.267.090,87, acrescida de IVA, no que respeita ao edifício A, e a quantia de € 17.115.664,31, acrescida de IVA, relativa ao edifício B (cfr Cláusula 9.1 do Contrato).
10 - Em … de 2008, a Autora, a “LM –, S.A.”, a “IRH”, a “IRSA”, a “IRSB”, a “IRSC”, a “IRSD” e a Ré “COS” celebraram um aditamento ao Contrato.
11 - Este Aditamento foi celebrado tendo em consideração que, em … de 2006, a Ré “COS“ entregara à Autora o edifício A, tendo nessa data sido pago o respectivo preço e que, na data da celebração do Aditamento, o edifício B ainda não fora entregue pela Ré “COS” (cfr Considerando IV e V do Aditamento).
12 - As partes começaram por declarar, na cláusula 1 do Aditamento, que a área bruta de construção do edifício B era de 38.028,56 m2 e que haviam elaborado uma lista de imperfeições e defeitos que anexaram ao Aditamento;
13 - As partes alteraram o valor do preço devido pela construção, comercialização e prestação das demais obrigações previstas no Contrato relativamente ao edifício B: as partes acordaram que o preço devido à Ré COS pelo edifício B seria de € 17.520.106,06, acrescido de IVA, correspondente às seguintes parcelas: € 13.926.635,86, relativa à construção do edifício B, acrescida de IVA e € 3.593.470,20, relativa à comercialização do Edifício B, acrescida de IVA (cfr. Cláusula 1. do Aditamento).
14 - No que respeita às condições mínimas de comercialização, embora tivessem continuado a prever um prazo de duração inicial dos contratos de arrendamento do edifício B de cinco anos, previram a possibilidade de serem acordados prazos não inferiores a três anos, desde que a Ré COS garantisse à Autora um valor de renda equivalente a, pelo menos, cinco anos de duração do contrato (cfr cláusula 3. do Aditamento).
15 - As partes estipularam que caso “seja celebrado um contrato por prazo inicial inferior a 5 anos, a COS obriga-se a conseguir um inquilino para o espaço referente a tal contrato por um período adicional imediatamente seguinte ao prazo inicial que, somado ao prazo do contrato perfaça 5 anos, com renda não inferior à contratada, garantindo à ML que, no caso de não ser celebrado tal contrato, ou de ser celebrado com renda inferior à inicialmente contratada, a COS pagará à ML um valor equivalente à renda mensal devida no contrato de arrendamento inicial ou a diferença para perfazer tal montante, consoante for o caso, por um período igual ao do período em falta para completar os referidos 5 anos do contrato de arrendamento inicial.” (cfr ibidem).
16 - Como condição mínima de comercialização, as partes previram que a renda de referência dos contratos de arrendamento não poderia ser inferior a € 3,75 por m2, mas previram a possibilidade de a Autora aprovar rendas com valor inferior ao valor de referência.
17 - No que respeita ao objectivo de comercialização, as partes alteraram o teor da cláusula 4.4.1. do Contrato, tendo-se a Ré “COS” obrigado a promover o arrendamento de 100% da área locável do edifício B (cfr. cláusula 4.1. do Aditamento).
18 - Nos termos do Aditamento, o preço devido à Ré “COS” seria pago de forma faseada:
- € 1.965.385,41, até ao dia … de 2008 - sendo € 1.482.859,34 respeitante ao preço de construção (e cujo IVA de € 296.571,87 seria auto liquidado pela Autora) e € 482.526,07 respeitante ao preço de comercialização (ao qual acresceria IVA à taxa legal em vigor)-, sem prejuízo da retenção de € 700.000,00, como garantia das obrigações assumidas pela Ré COS, nos termos do Aditamento (cfr cláusula 4.2., (i) do Aditamento);
- € 9.600.000,00, até ao dia 30 de Julho de 2008 – sendo € 7.680.000 imputado ao preço de construção (e cujo IVA de € 1.536.000 seria auto liquidado pela Autora) e € 1.920.000 imputado ao preço de comercialização (ao qual acresceria IVA à taxa legal em vigor) - cfr cláusula 4.2., (ii) do Aditamento;
- € 5.954.720,65, pagos em função do cumprimento do objectivo de comercialização, dos quais € 4.763.776,52 se referem a preço de construção (e cujo IVA, no montante de € 952.755,30 seria auto liquidado pela Autora), e € 1.190.944,13 se refere a preço de comercialização (ao qual acresceria IVA à taxa legal em vigor) - cfr cláusula 4.2., (iii) do Aditamento.
19 - No que respeita a esta última parcela de € 5.954.720,65, as partes acordaram que, no prazo de 30 dias a contar da data em que entrasse em vigor um novo contrato de arrendamento, a Autora pagaria à “COS” um montante correspondente à percentagem do preço do edifício B em falta, proporcional à percentagem do objectivo de comercialização cumprido com a entrada em vigor do referido arrendamento.
20 - As partes previram a possibilidade de compensação a calcular nos termos da cláusula 4.4.2.2. do Aditamento.
21 - Em … de 2009, a Autora celebrou um contrato de arrendamento com a sociedade “L, S.A.”, de 15.478,77 m2 do edifício B.
22 - Anteriormente, fora celebrado um contrato de arrendamento com a “AID, S.A.”.
23 - Através destes contratos, passou a estar arrendada 64,58% de área locável daquele edifício.
24 - Na sequência da celebração daquele contrato, em … de 2009, a Autora e a Ré “COS“ celebraram um acordo de compensação, que designaram de OA...
25 - De acordo com o estipulado na cláusula 4.2., (iii) do Aditamento, o arrendamento da área supra alegada no âmbito do contrato celebrado com a L, S.A., constituía a Autora na obrigação de pagar à COS a quantia de € 3.183.899,13, correspondente a 64,58% (percentagem da área locada à AID, S.A. e à L, S.A., do edifício B) do preço de € 5.954.720,65 do edifício B previsto na cláusula 4.4.2.1. (iii) do Aditamento.
26 - Em virtude de a renda fixada naquele contrato de arrendamento ser inferior ao valor da renda de referência, as partes acordaram reduzir esse montante de € 3.183.899,13 para o montante de € 1.567.899,58, acrescido de IVA (cfr considerando V. do Acordo).
27 - O preço de € 1.567.899,58 compreendia uma parcela respeitante à construção de € 1.254.316,66 e uma parcela relativa à comercialização de € 313.582,92 (cfr cláusula 1.1. do Acordo).
28 - As partes estipularam ainda que ao preço acima referido seriam deduzidos os seguintes montantes, acrescidos de IVA: a título de compensação directa de créditos, € 165.568,36 e € 130.183,98 e a título de retenção para garantia de cumprimento, € 192.000,00 (como garantia de execução das tarefas incluídas na lista de imperfeições/defeitos anexa ao Aditamento), € 163.653,60 (como garantia dos Juízos Cíveis de … trabalhos de fit-out) e € 71.130,72 (a título de garantia por eventuais desvios na execução dos trabalhos de construção) – cfr cláusula 1.2. do Acordo.
29 - Ao preço de € 1.567.899,58, a Ré “COS” aceitou que fosse deduzida a importância global de € 722.536,66, pelo que aceitou que lhe fosse pago o preço de € 845.362,92, ao qual deveria acrescer ainda a importância de € 62.716,98, correspondente ao IVA devido pela comercialização, perfazendo o total de € 908.079,90 (cfr cláusula 1.5. do Acordo).
30 - A Autora assumiu a obrigação de efectuar o pagamento daquela importância até ao dia 2 de Setembro de 2009, o qual foi realizado.
31 - Sem prejuízo de a Ré “COS2 só ter recebido o valor de € 908.079,90, ao montante de € 5.954.720,65 - devido nos termos da cláusula 4.2.2.1. (iii) do Aditamento - foi deduzida a importância de € 3.183.899,13 por força do arrendamento da área de 15.478,77 m2 à “L, S.A.”.
32 - A Autora passou a ser apenas devedora à “COS” de € 2.770.731,52 (€ 5.954.720,65 - € 3.183.899,13), no pressuposto do cumprimento dos objectivos de comercialização contratualmente fixados.
33 - Em Março de 2010, a Ré “COS” permitiu que fosse celebrado um contrato de arrendamento com a “CP, S.A.” tendo por objecto 4.429,66 m2 da área locável do edifício B, correspondente a 15,30% da área locável daquele edifício.
34 - Em consequência e ao abrigo do disposto na cláusula 4.4.2.1. (iii) do Aditamento, venceu-se a obrigação de a Autora pagar à COS o valor de € 911.072,25.
35 - Em virtude de o contrato de arrendamento ter sido celebrado por uma renda de € 3,43/m2, esse direito de crédito da Ré “COS” era, no entanto, de apenas € 833.791,28: ao valor de € 911.072,25 foi deduzida a quantia de € 77.280,97, por aplicação de um desconto de 8,5%, devido à diferença da renda efectivamente contratada para a renda de referência.
36 - Por esse motivo, o preço devido ao abrigo do Aditamento foi reduzido para € 1.859.484,22 (€ 2.770.731,52 - € 911.072,25).
37 - Em … de 2011, foi celebrado com a “FP, U.., Lda” o contrato de arrendamento de 5.287,00 m2 do edifício B, correspondente a 13,90% da área locável daquele edifício.
38 - Em consequência, venceu-se o montante de € 1.087.602,93, a título de pagamento do preço de construção e comercialização do edifício B.
39 - Em virtude de o contrato de arrendamento ter sido celebrado por uma renda de € 3,50/m2, o crédito devido à Ré “COS” foi reduzido para € 1.015.821,14, traduzindo um desconto de 6,6%, no valor de € 71.780,86.
40 - O preço devido nos termos da cláusula 4.4.2.1. (iii) do Aditamento reduziu-se, assim, para € 771.881,19.
41 - Presentemente, permanecem por arrendar 3.752,23 m2, i.e., 9,87% da área locável do edifício B.
42 - A obrigação de pagamento de € 771.881,19 vence-se nos termos da cláusula 4.4.2.1. (iii) do Aditamento.
43 - Em … de 2010, a Autora foi notificada da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do …, no âmbito do processo nº…., pela qual se determinou o arresto de um crédito da Ré “COS” sobre a Autora, no valor de € 4.386.821,07, para garantia do pagamento dos tributos em dívida pela Ré “COS” à Fazenda Pública no valor de € 2.550.281,12, acrescidos dos respectivos juros compensatórios, juros de mora e custas (documento n.º 7 apresentado pela Autora).
44 - Em 28 de Julho de 2010, a Autora apresentou um requerimento junto do processo referido em 43, no qual declarou que o crédito da Ré “COS” tinha, naquela data, o valor de € 2.722.431,92, dos quais apenas € 640.334,83 se encontravam vencidos, dependendo o vencimento do valor remanescente do crédito (€ 2.082.097,09) de prestações a executar pela Ré “COS” no âmbito dos contratos entre ambas firmados (documento n.º 8 apresentado pela Autora).
45 - Em 13.10.2010, foi instaurado no Serviço de Finanças do … o processo de execução fiscal n.º … (processo principal), contra a sociedade COS, NIPC. …, com domicílio fiscal registado na R. …, …, por dívida de IRC atinente ao exercício de 2006, no valor de € 1.421.157,25, ao qual foram apensados os processos de execução fiscal da mesma sociedade n.º … e n.º …, por dívidas de IRC de 2007, no valor de € 1.270.011,70, e de IRC de 2008, no valor de € 329.044,86, respectivamente (certidões de dívida, juntas à Contestação como documentos nºs 1, 2 e 3 apresentados pelo Réu Estado).
46 - Em …-2010, a Autora foi notificada pelos Serviços de Finanças de …o 3 de que, por decisão do Sr. Juiz do processo n.º …, foi convertido em penhora o arresto referido em 43, ficando assim penhorado à ordem desse Serviço de Finanças o saldo credor até ao montante de € 4.386.821,07, com menção de que deveria efectuar o depósito do valor penhorado à ordem dos processos de execução fiscal indicados nessa notificação e antes referidos (documento nº 9 apresentado pela Autora).
47 - Em cumprimento das notificações recebidas, a Autora pagou à Fazenda Pública as seguintes importâncias:
i) € 640.334,83, em …-2010, correspondente à parte do preço de € 833.791,28, devidos em virtude do contrato de arrendamento celebrado com a CP, que se encontrava ainda em dívida no na data do arresto (documento nº 10 apresentado pela Autora);
ii) € 35.091,34, em …-2011, correspondente ao IVA devido pelo pagamento efectuado em …-2010, na sequência da emissão da respectiva factura pela “COS” (documento n.º 11 apresentado pela Autora);
iii) € 175.653,67, em …-2011, correspondentes à devolução do valor da retenção respeitante à lista de defeitos/imperfeições e aos trabalhos de acabamentos decorrentes do arrendamento à “L, S.A.” (documento nº 12 apresentado pela Autora);
iv) € 1.015.854,14, em …-2011, correspondente ao valor devido em virtude do contrato de arrendamento celebrado com a F..., não incluindo o IVA no valor de € 48.676,47 (documento nº 13 apresentado pela Autora).
48 - Em … de 2011, a Ré “COS” foi objecto de declaração de insolvência pelo J...nº 5 de B..., no âmbito do processo de insolvência n.º … - 4ª.
49 - Por carta datada de …-2011, dirigida à Autora, os «Administradores C...» da R. “COS” comunicaram-lhe que esta “encontra-se num concurso de ...” e, por essa mesma carta, pediram à Autora para proceder ao pagamento imediato da dívida de € 1.058.000, acrescida de € 175.000 relativos a retenções efectuadas, à ordem da massa insolvente (documento nº 14 apresentado pela Autora).
50 - Em … de 2011, a Autora enviou uma carta aos Administradores C...a Ré COS, na qual os informava da existência do arresto posteriormente convertido em penhora a favor da Fazenda Pública, ordenado em … de 2010, indicava que, nos termos do art. 55. 1 da Ley Concursal (Lei n.º 22/2003, de 9 de Julho, que regula a insolvência no direito espanhol), os procedimentos administrativos de execução iniciados antes da declaração de insolvência não são por esta afectados, e finalizava referindo que, sendo esse o caso da penhora do crédito da “COS” sobre a Autora, estava obrigada a efectuar o pagamento de qualquer crédito vencido perante a Fazenda Pública, salvo decisão judicial que determinasse a suspensão do processo tributário ou levantamento do mesmo (documento n.º 15 apresentado pela Autora).
51 - Em … de 2011, a Autora foi notificada da decisão proferida em …-2011 pelo J..., a requerimento dos Administradores Concursales da Ré “COS”, na qual foi declarado que o procedimento de penhora e arresto ordenado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do … não pode prosseguir no crédito da “COS, tido por necessário à continuação da sua actividade empresarial, e mais ordenando à Autora que se abstivesse de cumprir a penhora e efectuasse os pagamentos devidos a favor da massa insolvente da COS, tudo conforme o teor da cópia não traduzida que consta do documento nº 16 apresentado pela Autora, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
52 - Em …/2011, a Autora comunicou à Administração Tributária que recebera essa notificação e solicitou esclarecimento sobre a manutenção da penhora.
53 - O Juzgado ... considerou que, nos termos do artigo 3º do Regulamento (CE) 1346/2000, o procedimento de insolvência da Ré “COS” deveria ser qualificado como principal, encontrando-se todos os activos do património daquela Ré sujeitos a esse procedimento, ainda que situados fora de Espanha; de acordo com este Tribunal, decorre do artigo 4º do mesmo Regulamento que a lei aplicável à insolvência é a legislação espanhola, nos termos da qual se determinarão todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do procedimento de insolvência, bem como os seus efeitos, tanto processuais como materiais.
54 - Para o Juzgado ... e de acordo com o artigo 4º 2º f) do Regulamento, encontrando-se pendente noutra jurisdição uma execução tendo por objecto um bem ou direito do insolvente, caberá à lex concursus (a lei espanhola) determinar em que medida se suspende essa acção; nos termos do artigo 55. 1. da Ley Concursal, uma vez declarada a insolvência não poderão iniciar-se execuções singulares, judiciais ou extrajudiciais, nem poderão ocorrer penhoras administrativas ou tributárias contra o património do devedor (“Declarado el concurso, no podrán iniciarse ejecuciones singulares, judiciales o extrajudiciales, ni seguirse apremios administrativos o tributarios contra el patrimonio del deudor”).
55 - O Juzgado ... considerou que, nos termos do mesmo preceito, poderiam prosseguir os procedimentos administrativos de execução em que se tiver determinado a penhora e as execuções laborais em que se tenham penhorado bens do insolvente, desde que estes procedimentos sejam anteriores à data da declaração de insolvência, sempre que os bens objecto de penhora não sejam considerados necessários para a continuidade da actividade profissional ou empresarial do devedor (“Podrán continuarse aquellos procedimientos administrativos de ejecución en los que se hubiera dictado providencia de apremio y las ejecuciones laborales en las que se hubieran embargado bienes del concursado, todo ello com anterioridad a la fecha de declaración del concurso, siempre que los bienes objecto de embargo no resulten necesarios para la continuidad de la actividad profesional o empresarial del deudor”).
56 - O Juzgado ...considerou que o direito de crédito de € 4.386.821,07, penhorado a favor do Serviço de Finanças do …, é necessário para possibilitar a continuidade da actividade empresarial da Ré “COS” e, em consequência, declarou que o procedimento de execução fiscal não pode prosseguir.
57 - Em …/2011, a Autora comunicou à Administração Tributária que recebera esta notificação e solicitou esclarecimento sobre a manutenção da penhora.
58 - Por Ofício datado de … de 2011, a Administração Tributária informou a Autora da sua posição de que a penhora se mantinha e, como tal, de que se mantinha o dever da Autora de entregar ao órgão de execução fiscal todos os créditos da Executada COS, objecto dessa penhora, conforme os termos e fundamentos exarados na informação incluída nessa comunicação, com despacho de concordância da Exma. Sr.ª Directora de Finanças Adjunta proferido na mesma data (documento nº 18 apresentado pela Autora).
59 - No ponto 10 dessa informação era mencionado não constar verificada a notificação oficial da declaração de insolvência da COS, pois nenhuma comunicação dessa decisão foi recebida na Direcção de Finanças do …, no Serviço de Finanças do … (órgão de execução fiscal), nem consta que tal notificação tenha sido efectuada a qualquer outro órgão da Administração Fiscal Portuguesa (idem).
60 - A abertura do processo de insolvência contra a Ré “COS” não foi publicada e inscrita em registo público em Portugal.
61 – Ao abrigo do artigo 4.º da Directiva 2008/55/CE, o Serviço de Finanças de … 3 solicitou à DSGCT – Comissão Interministerial de Assistência Mútua informação sobre a apresentação da “COS” a processo de insolvência, em Espanha, bem como do procedimento para eventual reclamação de créditos, sem que tenha sido obtido resposta a esse pedido (ponto 5 da Informação junta como documento nº 4 do Estado).
4.2.3. Deste modo e por serem procedentes as conclusões 7 e 8 das alegações de recurso da apelante, declaram-se provados nos autos os factos descritos no ponto 4.2.2. supra, e que aqui se dão por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
4.3. Ao proferir a decisão recorrida, o Tribunal de 1ª instância violou ou não o estatuído nos artºs 1030º n.º 3 do CPC, 4º, 5.º n.º 1 e n.º 2 a), 16.º, 17.º, 20º n.º 1 e 25.º n.º 1, parágrafo segundo, do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 29.05.2000 (alterado pelos Regulamentos (CE) n.º 603/2005, de 12-04-2005, e n.º 694/2006 de 27-04-2006), 88º, 285º e 293.º do CIRE?
4.3.1. Ao iniciar a análise crítica da matéria que constitui o objecto do presente recurso, é indispensável recordar que, por mandato impositivo do Legislador, a interpretação de uma qualquer norma jurídica, mesmo as de Direito Internacional, sempre que haja que tê-las em conta num qualquer julgamento a realizar pelos Tribunais Nacionais portugueses, tem forçosamente que obedecer aos critérios consubstanciados nos três números do art.º 9º do Código Civil, aos quais acrescem, para a construção do conceito “solução mais acertada”, as exigências inscritas nos artºs 335º (proporcionalidade assente na posição que o valor ético que valida a norma e a torna em verdadeiro Direito ocupa na Hierarquia de Valores que enforma e dá consistência ao tecido social comunitário) e 334º do mesmo Código, destacando-se neste último a atenção que é dada, em primeira linha, à boa fé e aos bons costumes (isto é, novamente e sempre aos valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade) - sem prejuízo de haver de atender também às finalidades económicas e sociais dos direitos em causa.
E será à luz de tais princípios que se irá aquilatar qual é essa solução legal mais acertada para o litígio espelhado nestes autos.
4.3.2. Não obstante o decretado em 4.1., a verdade é que, tendo em conta a matéria de facto declarada provada neste processo (ponto 4.2.) e face ao estatuído nos artºs 1027º a 1030º do CPC, quanto à primeira das questões jurídicas que constitui o objecto do poder de cognição do Tribunal nestes autos, tem forçosamente esta Relação que considerar válida e regularmente realizado o depósito efectuado pela Autora junto da Caixa Geral de Depósitos, correspondente ao documento de fls. 24 dos autos e, por via disso, declarar extinta a respectiva obrigação da Autora.
De facto, o Mmo Juiz a quo tem razão quando afirma que:
“Com fundamento na incerteza quanto à pessoa do credor, a Autora, devedora, pediu que se admita o depósito judicial da quantia de € 771.881,19, julgando-se extinta a obrigação de pagamento da Autora, com todas as consequências legais.
A consignação em depósito é um meio de que pode servir-se o devedor (ou qualquer terceiro a quem seja lícito cumprir a obrigação) para forçar o credor a receber a prestação.
Nos termos do artigo 841.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil, o devedor poderá exonerar-se da obrigação a que se encontra vinculado através do depósito da coisa devida, quando, sem culpa sua, não puder efectuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança por qualquer motivo relativo à pessoa do credor.
Essa situação de incerteza verifica-se, nomeadamente, “quando há incerteza quanto à pessoa do credor” – Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, pág. 125.
A consignação em depósito, no fundo é um contrato de depósito (celebrado entre o devedor ou terceiro, como depositante, e a Caixa Geral de Depósitos, como depositário) que, no entanto, se realiza sob a veste de um processo especial – Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, pág. 129.
O principal efeito da consignação em depósito é o de liberar o devedor como se ele tivesse feito a prestação na data do depósito: a coisa depositada passa a pertencer, desde esse momento ao credor, não sendo devidos mais juros de mora nem indemnizações, e o risco pela perda da coisa corre, a partir da mesma data, por conta do credor, dono dela – Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit., pág. 134.
Mas embora tais efeitos se verifiquem desde o depósito, eles só se tornam efectivos pela aceitação do credor ou pela declaração judicial da validade da consignação. Estatui o art. 846º do Código Civil que “A consignação aceita pelo credor ou declarada válida por decisão judicial libera o devedor como se ele tivesse feito a prestação ao credor na data do depósito”.
Por seu turno, prescreve o art. 1024º do Código de Processo Civil:
“1. Quem pretender a consignação em depósito requererá, no tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, que seja depositada judicialmente a quantia ou coisa devida, declarando o motivo por que pede o depósito.
2. O depósito é feito na Caixa Geral de Depósitos, salvo se a coisa não puder ser aí depositada, pois nesse caso é nomeado depositário a quem se fará a entrega…”.
Na base da consignação em depósito está a seguinte ocorrência: o devedor quer libertar-se da dívida, quer exonerar-se da obrigação, e não tem um meio para o fazer particularmente. Logo, o processo judicial da consignação em depósito surge como um meio extremo para o devedor efectuar o pagamento, salientando-se que o devedor não tem só o dever jurídico, mas até o direito de pagar a dívida (e este processo judicial destina-se precisamente a permitir ao devedor que exerça o direito de se libertar da dívida mediante o pagamento, quando encontre obstáculos para se exonerar extrajudicialmente – Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I., pág. 341.
No caso dos autos, existe uma incerteza quanto à pessoa jurídica que é titular do direito a receber a quantia de € 771.881,19, tanto mais que há duas entidades jurisdicionais de países diferentes a reclamar da Autora o pagamento daquela mesma quantia. E a existência desta questão controvertida não procede, manifestamente, de culpa da Autora.
Opuseram-se o Ministério Público, em representação do Estado Português e a COS ao pedido formulado pela Autora, por considerarem não estar verificada a incerteza sobre a pessoa do credor e pugnando pelo reconhecimento do respectivo direito. Ora as posições assumidas pelos Réus apenas reforçam a referida incerteza sobre a pessoa perante a qual a obrigação da Autora deve ser cumprida – ambos reclamam o direito ao recebimento da mesma. Atenta a factualidade provada, verifica-se que a Autora é devedora do montante de € 771.881,19. Em face da declaração de insolvência da sociedade COS, por um Tribunal estrangeiro, verifica-se, actualmente, uma incerteza quanto à pessoa do credor. E a solução para tal litígio não cabe no âmbito da presente acção especial de consignação em depósito, a qual tem por fim e objecto os supra referidos, tendo, pois, que ser encontrada noutra sede.
Mais está demonstrado que em …-2011, a Autora procedeu junto da Caixa Geral de Depósitos ao depósito daquela quantia (vd. fls. 24). Estando depositada a quantia devida, cujo montante não foi impugnado, conclui-se que o mesmo deve ser declarado válido e deve ser declarada extinta a respectiva obrigação da Autora.” (sic - fls 307 a 309).
Nesta conformidade, a incerteza quanto à identidade do credor suscita-se porque são duas as entidades que se arrogam possuir essa qualidade.
Mas isso apenas significa que o Tribunal tem a obrigação de tomar uma posição clara acerca desse litígio - ou mais exactamente, que tal incerteza é apenas aparente e temporária.
Em todo o caso, face aos argumentos expostos na transcrição agora feita, que esta Relação subscreve e faz seus (insiste-se, a prática de actos inúteis é proibida e punida por Lei), é inegável que a Autora, com o depósito em causa, ficou completamente desonerada da obrigação de pagamento a que estava vinculada.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
4.3.3. Resta, então, apurar quem é, in casu, o verdadeiro credor, isto é, quem tem o direito de fazer seu o montante depositado nos autos.
Considerando que o direito do Estado Português/Fazenda Pública foi reconhecido por decisão judicial transitada em julgado proferida em acção em que o outro potencial credor da Autora foi devidamente citado e exerceu livremente, na medida em que o quis, todos os direitos reconhecidos no Ordenamento Jurídico português, que é conforme aos demais Ordenamentos Nacionais dos países que se organizam segundo o modelo do Estado de Direito, incluindo o direito ao contraditório, e que, ao invés, a decisão judicial do Reino de Espanha, que não teve em conta a existência desse direito, foi lavrada em processo no qual o Estado Português não foi citado nem teve oportunidade para intervir, tem forçosamente de considerar-se prevalecente e certo contra os demais credores, o direito titulado pela Fazenda Pública portuguesa.
O que significa que, à luz de todos os Ordenamentos Jurídicos típicos dos Estados de Direito e de todas as Declarações e Convenções Internacionais relativas aos direitos humanos (que podem e devem aplicar-se mutatis mutandis a organizações, incluindo os Estados) - destacando-se a incontornável e justamente assinada relevância que é dada pelas nações civilizadas ao chamado right to be heard (que, ontologicamente, é bem mais do que o já muitíssimo relevante direito ao contraditório), o ESTADO PORTUGUÊS não está vinculado ao caso julgado que eventualmente se possa ter formado no processo a correr termos pelo Juzgado Mercantil n.º 5 de Barcelona.
O que por si só seria, desde logo, suficiente para julgar procedente a pretensão deduzida em Juízo pelo Réu apelante – o Estado Português está, neste caso, investido da qualidade de credor da Ré “COS, SA” e isso não pode também ser ignorado.
4.3.4. Todavia, não obstante essa constatação, importa adiantar que este Tribunal Superior sufraga, acolhe e subscreve integralmente os argumentos esgrimidos por esse apelante nas suas alegações de recurso, na parte que, por comodidade, a seguir se transcreve:
“Por outro lado, a argumentação contrária da R. COS olvida que o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 29.05.2000, alterado pelos Regulamentos (CE) n.º 603/2005, de 12-04-2005, e n.º 694/2006 de 27-04-2006, estabelece regimes diferentes para o “reconhecimento” comunitário “dos efeitos da abertura do processo de insolvência” e para o reconhecimento da “executoriedade” das demais decisões nele firmadas.
Com efeito, dita o artigo 16.º n.º 1 do Regulamento que: «Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.º, é reconhecida em todos os outros Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo».
Complementarmente, estabelece o artigo 17.º n.º 1 desse Regulamento que: «A decisão de abertura de abertura de um processo referido no n.º 1 do art. 3.º produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do presente regulamento e enquanto não tiver sido aberto nesse outro Estado-Membro um processo referido no n.º 2 do art. 3.º».
Ora, o que assim se preceitua é a dispensa das formalidades de revisão e confirmação da decisão judicial estrangeira de abertura do processo de insolvência ou, segundo o nosso Direito, de declaração de insolvência, de molde a que os seus “efeitos”, segundo a lei do Estado onde corre o processo, sejam imediatamente reconhecidos pelos demais Estados-Membros. (…)
Nota-se, porém, que esse “reconhecimento” opera somente quanto aos “efeitos gerais” da abertura do processo de insolvência e, ainda assim, sem prejuízo das regras de publicidade e registo aplicáveis, segundo a lei do Estado onde o processo foi aberto, quer segundo as leis dos Estados-Membros onde a decisão deva produzir efeitos – artigos 21.º e 22.º do Regulamento.
Assim se justifica que o reconhecimento da abertura de um processo de insolvência no estrangeiro não seja totalmente “automático” na ordem jurídica Portuguesa, antes demandando a sua “publicação” e “inscrição em registo público” dessa decisão, como dispõe e regula o art. 274.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Discutível será a questão de saber se esse requisito opera quanto aos processos abrangidos pelo Regulamento (CE) n.º 1346/2000, uma vez que as medidas de publicidade e registo da abertura do processo de insolvência nos demais Estados-Membros são ali previstas como mera “faculdade” e não como requisito do “reconhecimento”.
Mas essa discussão nada releva ao presente caso, uma vez que o artigo 5.º n.º 1 do Regulamento dispõe: «A abertura do processo de insolvência não afecta os direitos reais de credores ou de terceiros sobre os bens corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis (…), pertencentes ao devedor e que, no momento da abertura do processo, se encontrem no território de outro Estado-Membro.».
Por força dessa disposição, a abertura do processo de insolvência da COS em Espanha não poderia produzir qualquer efeito sobre a penhora do seu crédito anteriormente realizada na execução fiscal Portuguesa. E, por isso, mesmo quando se entenda considerar que os “efeitos” da abertura desse processo deveriam ser “reconhecidos” pelo Estado Português, certo seria que tal reconhecimento não poderia nunca abranger um “efeito” que a abertura do processo não comportava.
Deste modo, a abertura do processo de insolvência da COS, entendida como a respectiva declaração de insolvência, não poderá relevar contra o seguimento da execução fiscal Portuguesa e normal efeito da penhora nele realizada.
Aliás, só assim se compreende a necessidade que os Administradores da Insolvência da COS tiveram de suscitar ao «Juzgado ...» de ... uma decisão sobre o assunto, que doutro modo seria inútil e dispensável no quadro dos poderes que lhes eram conferidos pelo art. 18.º n.º 1 do Regulamento em referência.
Aqui chegados, cabe agora considerar a decisão proferida pelo «Juzgado ..., tal como notificada foi à Autora – Facto n.º 51, supra.
Ressalta à evidência, nos termos antes apontados, que essa decisão não quadra os “efeitos” normais da abertura do processo de insolvência.
Outrossim, terá de ser entendida como uma “decisão executória” desse processo, tal como referida no parágrafo segundo do n.º 1 do art. 25.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000.
Ora, ainda que o Regulamento disponha também pelo reconhecimento das “decisões executórias” proferidas no processo de insolvência principal de um Estado-Membro em todos os demais Estados-Membros, exige, porém e por referência expressa do seu artigo 25.° n.° 1, que essas decisões sejam executadas segundo o sistema de exequatur previsto nos artigos 31.° a 51.° da Convenção de Bruxelas.
Assim, é líquido que o reconhecimento da executoriedade das decisões proferidas em matéria de insolvência num Estado-Membro por outro Estado Membro não é “automático” e, ao invés, depende da verificação do conjunto de procedimentos e requisitos estabelecidos na Convenção de Bruxelas, entre os quais se destaca:
a) As decisões proferidas num Estado Contratante e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas em outro Estado Contratante depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada - artigo 31.º da Convenção;
b) Sendo o requerimento apresentado em Portugal no Tribunal Judicial de Círculo – artigo 32.º,
c) A forma de apresentação do requerimento regula-se pela lei do Estado requerido – artigo 33.º;
d) O tribunal em que for apresentado o requerimento decidirá em curto prazo, não podendo a parte contra a qual a execução é promovida apresentar observações nesta fase do processo – artigo 34.º;
e) Os actos autênticos exarados num Estado Contratante e que nesse Estado tenham força executiva são declarados executórios, mediante requerimento, noutro Estado Contratante, segundo o processo previsto nos artigos 31.° e seguintes.
O requerimento só pode ser indeferido se a execução do acto autêntico for contrária à ordem pública do Estado requerido – artigo 50.º.
Deste modo, por aplicação prevalente das mencionadas normas de Direito Comunitário resulta claro que a decisão do «Juzgado Mercantil n.º 5 de Barcelona» só obteria reconhecimento e executoriedade na ordem jurídica Portuguesa se observados fossem os requisitos do exequatur.
Mas, não sendo assim, pois nenhum desses requisitos foi observado, resulta evidente que a citada decisão não reveste executoriedade na ordem jurídica Portuguesa, por manifesta inobservância dos requisitos fixados no art. 25.º n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1346/2000.
Ademais, para completo esclarecimento, diga-se ainda que o ordenamento jurídico Nacional impõe a revisão e confirmação das sentenças e decisões de insolvência proferidas no estrangeiro como requisito da sua executoriedade em Portugal, como prescrevem os artigos 288.º e 293.º do CIRE.
(…)
Precisamente, dispõe o artigo 293.º do CIRE, sob epígrafe de “Exequibilidade”: As decisões tomadas em processo de insolvência estrangeiro só se podem executar em Portugal depois de revistas e confirmadas, não sendo, porém, requisito da confirmação o respectivo trânsito em julgado.
(…)
Nem em contrário se diga que o procedimento de revisão de sentença resulte afastado no presente caso por força do art. 25.º n.º 1 do Regulamento, visto que, como antes se demonstrou, ali se remete para o sistema de exequatur da Convenção de Bruxelas e este, nos seus artigos 31.º e 33.º, determina aplicável ao procedimento a lei do Estado requerido, que no caso Português é exactamente a estabelecida nos artigos 1094.º a 1102.º do CPC, que regulamentam o processo de revisão de sentença estrangeira.
Deste modo, também pela perspectiva do direito Nacional, confirma-se que a executoriedade da decisão proferida pelo Juzgado ... em território Português dependeria do procedimento de revisão e confirmação de sentença estrangeira, que tão pouco foi observado.
Daí que a decisão em referência seja manifesta e absolutamente ineficaz em Portugal, onde não pode produzir qualquer efeito directo.
Pelo exposto, cabe concluir:
Não tendo a decisão proferida pelo Juzgado ...obtido força executória em Portugal, não poderá ela obstar a que o Apelante – que nem sequer foi notificado dessa decisão – receba a prestação depositada pela Autora, outrossim devida em função da penhora do correspondente crédito no âmbito da execução fiscal.
Acresce que, se assim não se entendesse, seria afectada a própria soberania Nacional, justamente ressalvada pelo quadro legal apontado, na medida em que então mais não se faria do que admitir que um Tribunal estrangeiro pudesse, sem mais, determinar o procedimento de uma sociedade portuguesa, em Portugal, impondo-lhe a abstenção de cumprir, perante a Fazenda Pública, a prestação decorrente da medida de “arresto”, depois convertido em “penhora”, validamente fixada por um Tribunal Nacional.
C) A invalidade da decisão, por violação do direito comunitário:
A decisão do «Juzgado ...», tal como notificada à Autora e por ela documentada nos autos (com a reserva de não se encontrar certificada, nem traduzida) determina que o «embargo» – no sentido de “penhora”, ao que se depreende – decretado pela autoridade portuguesa no processo n.º … e execução fiscal n.º …, não possa prosseguir sobre o direito de crédito da insolvente COS, em que recai, tido por necessário para a continuidade da actividade empresarial do devedor insolvente, mais impondo que a correspondente quantia seja prestada à massa insolvente.
Para tanto, assumiu-se que, nos termos do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, o procedimento de insolvência da COS deveria ser qualificado como “principal”, com a decorrente abrangência de todos os activos do seu património, ainda que situados fora de Espanha, e que, por força do artigo 4.º do desse Regulamento, a lei aplicável à insolvência era a lei espanhola, extensiva à regulamentação dos efeitos da insolvência sobre todas as acções executivas pendentes, incluindo a execução fiscal Portuguesa.
Ora, ainda que não caiba aqui questionar essa decisão, não poderá o Apelante deixar de notar que a aplicação da lei espanhola, enquanto «lei nacional», está subordinada à observância do prevalente «direito comunitário».
Sucede que o «direito comunitário», no caso o artigo 5.º n.º 1 do citado Regulamento (CE) n.º 1346/2000, supra transcrito, dita que a abertura do processo de insolvência não possa afectar os direitos reais de credores ou de terceiros sobre os bens corpóreos ou incorpóreos pertencentes ao devedor, que nesse momento se encontrem no território de outro Estado Membro.»
Ora, essa é, precisamente, a situação do crédito da R. COS sobre a Autora, primeiramente «arrestado», por sentença de …-2010, proferida no âmbito de um processo cautelar, e depois ali convertido em penhora, notificada à Autora/devedora em ….2010, pois é evidente que:
a) A «penhora» configura um «direito real de garantia», relevante ao caso na acepção do art. 5.º n.º 2 a) do Regulamento (CE) n.º 1346/2000;
b) Esse direito foi constituído em momento anterior ao da abertura e declaração de insolvência, que só terá ocorrido em …/2011,
c) E incidiu sobre um crédito vincendo que, por força da situação dos bens a que respeitava, do contrato, e da localização das sociedades devedora e credora – recordando-se, a propósito, que a COS tinha domicílio fiscal registado no … – se encontrava e encontra ainda em território Nacional, ou seja, noutro Estado-Membro.
Acresce salientar que a razão de ser da norma citada resulta explicitada no Considerando n.º 11 do próprio Regulamento - “O presente regulamento reconhece que não é praticável instituir um processo de insolvência de alcance universal em toda a Comunidade, tendo em conta a grande variedade de legislações de natureza substantiva existentes. Nestas circunstâncias, a aplicabilidade exclusiva do direito do estado de abertura do processo levantaria frequentemente dificuldades (…)» – e justificada na exacta solução legal encontrada pelos subsequentes Considerandos n.º 16 e n.º 24 e n.º 25, que passam pela adopção de uma “regra geral” (princípio) de conteúdo amplo, seguida de uma “série de derrogações” a essa mesma regra.
Compreende-se assim que o artigo 5.º do Regulamento em referência constitua relevante excepção aos efeitos da insolvência sobre bens do devedor situados no estrangeiro, seja quanto à sua subtracção ao âmbito falimentar, seja como limite ao princípio da aplicação da lei do Estado Membro de abertura do processo (lex concursus).
Diga-se, também, que a aplicação e efeitos dessa norma valem e perduram durante todo o processo de insolvência, como claramente decorre do preceituado no artigo 20.º n.º 1, parte final, do mesmo Regulamento, onde justamente se ressalva do dever de restituição o pagamento obtido no quadro de excepção previsto no seu artigo 5.º.
É pois inequívoco que o direito sobre bens corpóreos – direito de crédito – que o Réu Estado detêm sobre a Autora, alicerçado na providencia cautelar de arresto, convertido em penhora, anterior à data da abertura do processo de insolvência, fica salvaguardado dos efeitos desse processo, nos termos do citado artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, tal como certo e inequívoco é que, obtendo o Estado o devido pagamento da Autora, não ficará sequer obrigado a restituí-lo ao síndico/insolvência, atento o preceituado no artigo 20.º n.º 1 do mesmo Regulamento.
Consequentemente, cabe concluir, a citada decisão do «Juzgado ...», ao declarar que a execução fiscal portuguesa não pode prosseguir no penhorado crédito da R. COS e ao determinar à devedora, ora Autora, que o preste à insolvência, desrespeitou a mencionada norma de «direito comunitário» – o artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 – que a tanto impedia e que, pela sua prevalência sobre o direito espanhol aplicado, deveria ter observado.
Termos em que, também por isso, deverá ter-se por ilegal e ineficaz a decisão do «Juzgado ...» e, e em última análise, considerar-se que a Autora e o R. Estado não estão adstritos a cumpri-la.
Ademais e pelas razões apontadas, afigura-se que essa decisão do «Juzgado Mercantil n.º 5 de Barcelona não poderia ser confirmada, caso fosse submetida ao procedimento de revisão de sentença estrangeira.
Em todo o caso, salienta-se ainda que a aplicação directa e prevalente do mencionado artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, autoriza e justifica o prosseguimento da execução fiscal baseada no arresto, convertido em penhora, do crédito da Ré COS, legitimando, portanto, que o Estado, ora Apelante, receba a quantia depositada nos presentes autos.
D) A questão da Lei Nacional:
Na contestação apresentada defendeu ainda a R. COS que a sua pretensão sempre haveria de ser reconhecida por eventual e alternativa aplicação da lei Nacional, citando a propósito o art. 88.º do CIRE.
Porém, salvo melhor opinião de V. Exas., Venerandos Desembargadores, não parece que o argumento deva colher.
Desde logo, não haverá sequer razão para aplicar o regime Nacional ao caso, posto que o processo de insolvência da COS decorre em ..., Espanha, e a lei que rege a sua tramitação e efeitos é a do Estado onde o processo foi aberto, como convergentemente preceituam os artigos 4.º n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 e 276.º do CIRE.
Em todo o caso e mesmo que assim não fosse, certo é que o regime Nacional teria então de ser aplicado em bloco, na sua totalidade, e não apenas numa sua norma isolada. E, assim, não só teria de haver prévio “reconhecimento” da abertura do processo de insolvência espanhol da COS, segundo o disposto nos artigos 288.º e 290.º do CIRE, como também teria de ser reconhecido que a insolvência produzisse “efeitos” sobre o bem em causa – o crédito penhorado na execução fiscal portuguesa.
Ora, como antes se demonstrou, a abertura do processo de insolvência de Barcelona não afectava a subsistência da anterior penhora desse crédito, por força do disposto no art. 5.º n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 e, nessa medida, não produzia quaisquer “efeitos” sobre ele.
Assim sendo, não faria o menor sentido a aplicação ao caso o disposto no art. 88.º do CIRE, pois este preceito dita apenas a suspensão das providências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e, por isso, só poderia ser aplicado se o crédito penhorado à COS na execução fiscal estivesse abrangido ou sujeito ao processo de insolvência de Barcelona.
Nesta perspectiva, absurdo seria que a prevalente norma de direito comunitário viesse a ser contraditada na prática pela aplicação de uma norma de direito Nacional, já que desta resultaria o resultado inverso ao ditado por aquela.
Acresce que só mediante a ulterior decisão do «Juzgado ...» haveria o crédito penhorado de se considerar afecto à massa insolvente e, como também se viu, essa decisão é ineficaz e inexequível em Portugal.
Pelo exposto, não parece que tenha cabimento a aplicação ao caso do mencionado art. 88.º do CIRE.” (sic).
4.3.4. Nesta conformidade, sendo globalmente procedentes as conclusões 9 a 17 das alegações de recurso da apelante, impõe-se decretar quanto ao objecto do processo que:
a) a Autora, com o depósito de € 771.881,19 que realizou em 4-08-2011, junto da Caixa Geral de Depósitos (fls 24), ficou completamente desonerada da obrigação de pagamento a que estava vinculada,
b) o credor com direito a perceber e fazer sua a quantia referida em a) é o ESTADO PORTUGUÊS/FAZENDA PÚBLICA.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
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5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados no ponto 4 do presente acórdão, julga-se globalmente procedente a apelação e, em consequência:
a) declara-se nula, por omissão de pronúncia, a ora sindicada decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, e
b) substituindo-se esta Relação ao Tribunal recorrido, declara-se e decreta-se que:
i) os factos provados no presente processo são os descritos nos pontos 4.2.2. e 4.2.3. supra e eu aqui se dão por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais
ii) a Autora, com o depósito de € 771.881,19 que realizou em …-2011, junto da Caixa Geral de Depósitos (fls 24), ficou completamente desonerada da obrigação de pagamento a que estava vinculada,
iii) o credor com direito a perceber e fazer sua a quantia referida em a) é o ESTADO PORTUGUÊS/FAZENDA PÚBLICA.
Custas pela apelada “COS, SA”.
Lisboa, 25/06/2013
(Eurico José Marques dos Reis)
(Ana Maria Fernandes Grácio)
(Afonso Henrique Cabral Ferreira)