Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6227/20.1T8LSB.L1-2
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: RECONHECIMENTO DE UNIÃO DE FACTO
LEGITIMIDADE DO ESTADO
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO O DESPACHO
Sumário: I.– Nas acções em que o pedido de reconhecimento judicial da união de facto assume natureza instrumental face a futuro pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa ao elemento estrangeiro do mesmo, a relevância que tal atribuição assume no seio do Estado Português, leva a que o mesmo seja parte legítima na acção, representado pelo Ministério Público nos termos do disposto nos artgs. 219.º, n.º 1 da CRP e 4.º, n.º 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público.

2.– Pedindo os AA. o reconhecimento de que vivem em união de facto, há mais de três anos, nos termos e para os efeitos previstos na Lei nº 7/2001, de 11/05, e do artigo 3º, nº 3, da Lei nº 37/81, de 03/10, e alegando factualidade tendente a fundamentar a sua pretensão, têm interesse em agir, o qual se traduz na necessidade de obter decisão judicial que reconheça a união de facto invocada, por forma a habilitar a A. a requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa.

3.– Não sendo uniforme a orientação jurisprudencial nos tribunais superiores quanto à admissão da revisão/confirmação das escrituras “de união estável”, tal é suficiente para que não possa o tribunal recorrido impor aos AA. que façam uso desse meio processual, coartando-lhes, dessa forma, o acesso à presente acção, em manifesta violação do disposto no n.º 2 do art. 2.º do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Os juízes desembargadores que integram este colectivo da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, acordam:


I–RELATÓRIO:


P… e S…, intentaram acção comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo que que se declare que a primeira vive em união de facto com o segundo há mais de 3 anos.

Após ter sido dado cumprimento ao disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC para que os AA. se pronunciassem sobre eventual indeferimento liminar da petição inicial por ilegitimidade e incompetência material do tribunal para apreciar o pedido formulado na acção (convite ao qual os AA. acederam, por requerimento de 24-06-2020), veio a ser proferido despacho de indeferimento liminar da petição, por ilegitimidade passiva do Estado Português e falta de interesse em agir por banda dos AA., por se entender que a pretensão destes vertida nesta acção foi já objecto de reconhecimento pela ordem jurídica brasileira, carecendo apenas de ser alvo de reconhecimento no nosso ordenamento jurídico por via de revisão de sentença estrangeira, para o que o tribunal de família é incompetente em razão da matéria para a conhecer.

Inconformados com tal decisão vieram os AA. recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteram as seguintes conclusões:

«A.A sentença sub judice determinou o indeferimento liminar da acção para reconhecimento de situação de união de facto que foi interposta pelos ora Recorrentes, porquanto, de acordo com a sentença:
(i)- o Réu Estado Português seria parte ilegítima na referida acção e
(ii)- existiria falta de interesse em agir, uma vez que o facto de a união de facto dos ora Recorrentes já ter sido reconhecida notarialmente pelo Estado brasileiro obrigaria a que se lançasse mão do processo de revisão de sentença estrangeira previsto nos artigos 978.º e seguintes do CPC.
B.Começando pela excepção de ilegitimidade passiva, a sentença refere que o Estado Português é parte ilegítima nas acções para reconhecimento de situação de união de facto para efeitos de obtenção de nacionalidade portuguesa, porquanto (i) nessas acções só seriam defendidos interesses individuais e (ii) não sendo necessária a intervenção do Estado, como réu, nas acções judiciais em que cidadãos nacionais requerem o reconhecimento da união de facto, ao abrigo da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, não haveria qualquer razão para que, perante a mesma acção, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, se distinguisse a legitimidade passiva em função da nacionalidade da parte activa.
C.Não é verdade que as acções para reconhecimento de situação de união de facto a que se refere o n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade apenas sirvam para defender interesses nacionais.
D.Sendo uma acção que antecede o processo de aquisição de nacionalidade portuguesa, a acção para reconhecimento de situação de união de facto não pode ser considerada uma acção em que apenas estão em causa interesses individuais.
E.Nos processos de atribuição de nacionalidade portuguesa a cidadãos estrangeiros estão também em causa, naturalmente, os interesses do Estado Português em atribuir nacionalidade portuguesa aos cidadãos que tenham ligações à comunidade nacional, bem como os interesses em recusar a atribuição de nacionalidade a todos os indivíduos que não se enquadrem dentro dos requisitos previstos na Lei da Nacionalidade.
F.No caso das acções para reconhecimento de situação de união de facto a que se refere o n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade, o Estado Português tem – e é a única entidade que pode ter – interesse directo em contradizer o pedido de reconhecimento da união de facto, por forma a, em certos casos, evitar, por exemplo, situações de fraude à lei.
G.É, portanto, evidente que estas acções não envolvem apenas interesses individuais, mas envolvem também interesses comunitários, que só podem ser defendidos através do chamamento do Estado Português na qualidade de Réu.
H.E quanto ao segundo argumento, também nas acções que sejam propostas por nacionais portugueses para reconhecimento de situação de união de facto, com o objectivo de reivindicar direitos ou benefícios decorrentes dessa situação, deverá ser chamado como Réu o Estado Português, por ser a única entidade com legitimidade para contestar esse tipo de acções.
I.Em qualquer caso, a comparação que é feita na sentença não tem qualquer razão de ser, uma vez que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, na falta de disposição em contrário, não é necessário interpor qualquer acção judicial para reconhecer a situação de união de facto, podendo a prova da união de facto ser feita por qualquer meio.
J.Nesses casos, a forma mais comum de prova da situação de união de facto é através da declaração emitida pela junta de freguesia competente, acompanhada por declaração dos membros da união de facto sob compromisso de honra, conforme previsto no n.º 2 do artigo 2.º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio.
K.Logo por aqui se vê que, mesmo que seja interposta uma acção para reconhecimento de situação de união de facto ao abrigo da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio – como por exemplo, em casos de fundadas dúvidas, para efeitos de acesso às prestações por morte (n.º 3 do artigo 6.º) – essa acção nada terá em comum com a presente acção.
L.Se a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio permite que a união de facto seja provada por qualquer meio – como, por exemplo, através de declaração sob compromisso de honra – verifica-se que a necessidade de intervenção do Estado Português numa eventual acção para reconhecimento da situação de união de facto ao abrigo dessa lei não será tão premente como na presente acção.
M.Com efeito, na presente acção, o n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade prevê expressamente que deve ser interposta no tribunal uma acção para reconhecimento da situação de união de facto, já que, para efeitos de atribuição de nacionalidade, não basta qualquer tipo de prova para que se reconheça a existência de uma união de facto, antes sendo necessário, pelos interesses colectivos que estão envolvidos, a intervenção de um juiz e do Estado Português para assegurar que não há dúvidas sobre a existência de uma situação de união de facto.
N.Assim, não pode ser feita, como é natural, uma comparação entre estes dois tipos de acção, porquanto os interesses envolvidos são totalmente distintos e os requisitos de prova são incomparáveis.
O.É, portanto, evidente que, nas acções para reconhecimento de situação de união de facto previstas no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade, só o Estado Português, representado pelo Ministério Público, é que pode ter interesse directo em contradizer a acção.
P.Por essa mesma razão, no presente caso, quando o processo foi submetido à apreciação do Ministério Público antes de ser concluso, foi proferida, a 10.09.2020, vista a promover que fosse o Ministério Público citado para a acção.
Q.É unânime, tanto na jurisprudência como na doutrina, que a única entidade que tem legitimidade passiva no âmbito de uma acção para reconhecimento de situação de união de facto é o Estado Português.
R.Impõe-se concluir pela inexistência, no presente caso, de ilegitimidade passiva, porquanto é pacífico que o Estado Português é a única entidade que pode ter interesse para contestar a presente acção.
S.A sentença invoca também, como segunda razão que determinaria a improcedência da presente acção, que o facto da união de facto dos ora Recorrentes já ter sido reconhecida notarialmente pelo estado brasileiro determinaria que se lançasse mão do processo de revisão a que alude o artigo 980.º do Código de Processo Civil e não, por falta de interesse de agir, de uma acção de reconhecimento de situação de união de facto.
T.Para sustentar esse argumento – e apesar de reconhecer existir “vasta divergência jurisprudencial” nesta matéria – a sentença refere que acompanha, na íntegra, o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020.
U.Sucede que já no processo os ora Recorrentes tinham invocado alguns Acórdãos – entre eles um Acórdão mais recente do que aquele que é invocado na sentença e também Acórdãos do Supremo Tribunal da Justiça – que defendiam exactamente o contrário daquilo que é referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020.
V.No entanto, o tribunal “a quo”, na sentença, não adiantou nenhuma razão para ter optado por seguir o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020 e não o entendimento dos Acórdãos que foram invocados pelos Recorrentes.
W.O n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade refere expressamente que deve ser interposta uma “ação de reconhecimento”, não se enquadrando, naturalmente, nessa categoria a escritura pública de união de facto celebrada perante notário brasileiro, ainda que revista e confirmada pelas autoridades portuguesas.
X.Verifica-se que esta acção de reconhecimento da situação de união de facto é um pressuposto essencial para a atribuição da nacionalidade portuguesa ao unido de facto.
Y.Note-se que a escritura pública de união de facto celebrada perante notário brasileiro não pode ser equiparada a uma sentença, porquanto não reconhece qualquer facto – é simplesmente um acto no qual as partes declaram, perante o notário, que vivem em união de facto.
Z.Este acto não pode ser equiparado, de maneira alguma, a uma acção de reconhecimento de união de facto, porquanto o notário não reconhece qualquer situação de união de facto, limitando-se a certificar que as partes compareceram perante ele e declararam viver em união de facto.
AA. Esta escritura pública, na verdade, assemelha-se mais à declaração que é emitida pelas juntas de freguesia portuguesas sobre a situação da união de facto do que a uma sentença de reconhecimento de situação de união de facto.
BB. Mas ainda que se considerasse que o disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade se poderia aplicar à escritura pública de união de facto celebrada perante notário brasileiro – o que não se concede e apenas se considera por cautela de patrocínio –, em qualquer caso essa escritura pública não poderia ser objecto de processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
CC.Nos termos do n.º 2 do artigo 152.º do Código de Processo Civil, o conceito de sentença está sempre associado a um processo de decisão.
DD.Sucede que a escritura pública de união de facto celebrada perante notário brasileiro não envolve nenhum processo de decisão – como já foi referido, o notário limita-se a atestar que as partes compareceram perante ele e declararam viver em união de facto.
EE.Verificamos, assim, que a escritura pública de união de facto celebrada perante notário brasileiro não pode ser equiparada a uma sentença para efeitos de aplicação do processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, porquanto aquele acto não envolve qualquer processo de decisão.
FF.Importa ainda referir que, ainda que se admitisse essa possibilidade – o que, mais uma vez, não se concede –, teríamos uma situação em que os cidadãos brasileiros teriam um tratamento especial face à lei portuguesa em relação aos outros cidadãos nacionais e estrangeiros, porquanto só o seu ordenamento jurídico é que permite celebrar tais escrituras públicas de união de facto, em clara violação do princípio da igualdade consagrado constitucionalmente.
GG.Verificamos, assim, por todos os argumentos supra invocados, que a acção de reconhecimento e confirmação de sentença estrangeira não pode ser aplicada no caso em concreto.
HH.A corrente jurisprudencial maioritária defende que a escritura pública de união de facto não pode ser submetida ao processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
II.No entanto, a sentença sub judice, por alguma razão – que se desconhece, porque não foi explicada na sentença –, optou por seguir o entendimento da corrente jurisprudencial minoritária, mais precisamente o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020.
JJ.É, portanto, evidente, que a excepção de falta de interesse em agir não pode proceder, porquanto (i) o n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade refere expressamente que o unido de facto só poderá pedir a nacionalidade portuguesa “após ação de reconhecimento dessa situação a intentar no tribunal cível” e (ii) de acordo com a corrente jurisprudencial maioritária, a escritura pública de união de facto não pode ser equiparada a uma sentença para efeitos de aplicação do processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
Nestes termos e nos demais de Direito que doutamente se suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, com as legais consequências, só assim se fazendo JUSTIÇA!»

O Digno Magistrado do Ministério Público veio apresentar contra-alegações onde exibiu as seguintes conclusões:

«1.A acção de reconhecimento judicial da união de facto surge enquanto pressuposto para a aquisição da nacionalidade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade.
2.A nacionalidade, enquanto vínculo político que se estabelece entre um determinado indivíduo e uma comunidade de cidadãos, além de abarcar uma questão identitária, releva também para a atribuição de certos direitos, civis e políticos, apenas reservados na sua plenitude, a «nacionais».
3.Atendendo aos interesses subjacentes à acção de reconhecimento das uniões de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, entende-se que o Ministério Público tem legitimidade passiva na defesa dos interesses do Estado-Colectividade, em acção judicial intentada contra o Estado Português, nos termos do disposto no art. 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e do art. 4º, nº 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019 de 27-08.
4.Já se nos afigura ajustada e conforme ao direito a decisão recorrida na parte em que a Mmº Juiz considerou inexistir interesse em agir por parte dos Autores, na instauração de acção contra o Estado Português, com vista à obtenção do reconhecimento judicial da sua situação de união de facto, em virtude de os mesmos se encontrarem já munidos de um “contrato de convivência”, reconhecido notarialmente perante as entidades brasileiras.
5.Este documento não poderá deixar de ser equiparado já a uma sentença porquanto a intervenção e controle feitos pelas entidades públicas brasileiras consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que valida o acto e que verifica a existência dos seus pressupostos, ao qual são atribuídos, pela ordem jurídica brasileira, os mesmos efeitos que a uma decisão judicial
V. Ex.as, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça.»

II–DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Sendo certo que o recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, no caso presente importa conhecer de duas questões:

A – Da ilegitimidade do Estado Português como parte na presente acção

B – Do interesse em agir por parte dos AA.

III – FUNDAMENTOS

1 – De facto

A factualidade que importa considerar na apreciação do presente recurso é a que resulta do relatório, apenas se especificando os seguintes factos que se mostram documentados:

1-Os autores referiram no inicio da sua petição inicial que visavam “nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3[[1]] do artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (doravante abreviadamente designada por “Lei da Nacionalidade”) e no n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro (doravante abreviadamente designado por “Regulamento da Nacionalidade Portuguesa”), intentar ACÇÃO COM VISTA À OBTENÇÃO DO RECONHECIMENTO JUDICIAL DA SITUAÇÃO DE UNIÃO DE FACTO contra o ESTADO PORTUGUÊS, aqui representado pelo Ministério Público …”.
2-O Autor S… tem nacionalidade portuguesa, conforme resulta da certidão de nascimento junta como documento n.º 1, com a petição inicial.
3- A Autora P … tem nacionalidade brasileira, conforme resulta da certidão de nascimento junta aos autos em 29-05-2020.
4- Os AA. celebraram um contrato que denominaram de “Contrato de Convivência”, assinado por ambos e por duas testemunhas, datado de 31-05-2015, em S. Paulo, Brasil, onde ambos declararam, designadamente, que «vivem em União Estável, de forma pública, contínua, duradoura desde 1.º de Agosto de 2012, com objectivo de constituição familiar, tendo gerado um filho comum ao casal, o menor D…, nascido em 12 de Novembro de 2013.», como melhor consta do doc. n.º 44 junto com a petição inicial que aqui se dá por reproduzido.   
5- As assinaturas apostas no contrato referido no ponto 3 mostram-se reconhecidas notarialmente e o indicado contrato foi registado num cartório notarial brasileiro. 

2.–De direito

Como se referiu supra, são duas as questões que importa conhecer no âmbito do presente recurso, pelo que passaremos à sua análise.

A–Da ilegitimidade do Estado Português como parte na presente acção

Considerou-se na sentença que o Estado Português, representado pelo Ministério Público, seria parte ilegítima nesta acção, dado ter-se entendido que «na acção de reconhecimento da união de facto só interesses individuais se defendem, quais sejam, o direito de ver publicamente reconhecida uma situação jurídica de facto que beneficia de protecção constitucional e legal, constitui efectiva relação familiar apesar de não constar do elenco das fontes jurídico familiares, e donde resultam direitos e deveres para os seus destinatários.»

Quer os apelantes, quer o Ministério Público, têm entendimento contrário, sendo certo que os secundamos.

Na realidade, a acção em causa foi intentada, como expressamente é referido no introito da petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e no n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, isto é, foi instaurada visando obter uma decisão que constituirá pressuposto necessário para que possa posteriormente ser formulado o pedido de nacionalidade portuguesa do elemento estrangeiro do casal.

A ser assim, como é, afigura-se-nos que a acção em causa foi intentada, e bem, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pois que nesta acção mostram-se também em discussão interesses de âmbito nacional, na medida em que estará em causa a eventual atribuição dum pressuposto necessário para que seja conferido a um estrangeiro a possibilidade de lhe ser conferido o estatuto de cidadão português, com os inerentes direitos e deveres que tal atribuição encerra. Não estamos, assim, perante uma acção em que apenas estejam em causa interesses individuais dos requerentes envolvidos.  

Como se refere no ac. da Relação de Lisboa de 25-10-2018[[2]]: 
«(…). E essa acção foi instaurada contra o Estado Português, como não podia deixar de ser, por ser o titular dos interesses em jogo, como réu, nessa acção.
Como é sabido, a Lei da Nacionalidade (Lei 37/81, de 03/10, com as diversas alterações, as relevantes, dadas pela Lei 25/94, de 19/08 e pela Lei Orgânica 2/2006, de 17/04) estabelece no seu artº 3º, relativo à aquisição da nacionalidade em caso de casamento ou união de facto, que:
1-O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio.
2-
3- O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
Portanto, sem necessidade de grandes considerandos, verifica-se que a acção que os autores instauraram, para que lhes seja reconhecida, no confronto com o Estado Português, que vivem em união de facto há mais de três anos, é uma exigência da lei portuguesa da Nacionalidade: a autora mulher jamais conseguirá obter, no actual quadro legislativo, a concessão de nacionalidade portuguesa se não instaurar esta acção.
Ora, também sem sombra de dúvida, essa acção para reconhecimento da situação da união de facto, só pode ter como sujeito passivo o Estado Português. (…)»

Como refere, também, o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, «A acção de reconhecimento judicial da união de facto surge enquanto pressuposto para a aquisição da nacionalidade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade. (…).
A nacionalidade, enquanto vínculo político que se estabelece entre um determinado indivíduo e uma comunidade de cidadãos, além de abarcar uma questão identitária, releva também para a atribuição de certos direitos, civis e políticos, apenas reservados na sua plenitude, a «nacionais».
A acção de reconhecimento da união de facto destina-se, assim, à declaração judicial de existência da união de facto, enquadrando-se no tipo de acção declarativa de simples apreciação, conforme o artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Civil, na medida em que, através dela, se visa “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.
Considerando os supra mencionados interesses subjacentes à acção de reconhecimento das uniões de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, sendo a acção judicial intentada contra o Estado português, entende-se que o Ministério Público tem legitimidade passiva na defesa dos interesses do Estado-Coletividade, nos termos do disposto no art. 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e do art. 4º, nº 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019 de 27-08.»

Efectivamente, tendo em consideração o que se deixa dito, designadamente a natureza instrumental da presente acção, em que se visa reconhecer judicialmente a união de facto de um casal tendo por escopo o futuro pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa ao elemento estrangeiro do mesmo e a relevância que tal atribuição assume no seio do Estado Português, representando o Ministério Público este, nos termos do disposto nos artgs. 219.º, n.º 1 da CRP e 4.º, n.º 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, entende-se que o mesmo é parte legítima na presente acção.  

B – Do interesse em agir por parte dos AA.

Na decisão recorrida entendeu-se que os AA. não teriam interesse em agir, alicerçando-se essa posição no «facto da união de facto dos autores já ter sido reconhecida notarialmente pelo Estado brasileiro, o que determina que se lance mão do processo de revisão a que alude o artigo 980º do Código de Processo Civil e não, por falta de interesse em agir, excepção dilatória inominada, de uma acção declarativa comum de reconhecimento da união marital porquanto a mesma já foi objecto de reconhecimento pela ordem jurídica brasileira.»

Discordamos de tal entendimento.

Como resultou do ponto 1 da matéria dada como provada, o fim pretendido pelos AA. com a instauração da presente acção é o de dar cumprimento ao que dispõem os artgs. n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade e no n.º 2 do artigo 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, que fazem referência expressa à necessidade de ser instaurada acção para reconhecimento judicial da situação de união de facto.
O entendimento assumido pela Exma. Juíza no despacho recorrido, no sentido de que os AA. são já detentores dum reconhecimento notarial brasileiro da sua união de facto, por via do documento que juntaram com a sua petição inicial, carecendo assim, tão-só, de ver esse documento revisto no nosso ordenamento jurídico, nos termos do que despõem os artgs 980.º e seguintes do CPC, não pode ser assumido como posição generalizada na jurisprudência dos nossos tribunais, pois que se trata de situação ainda muito discutida, onde se alinham posições antagónicas.
Com efeito, se é certo que há quem sustente essa possibilidade[[3]][[4]], não é menos verdade que outros defendem a insusceptibilidade de tais documentos serem passíveis de “revisão de sentença estrangeira”[[5]], pelo que não se poderá assumir, face às posições não consensuais e mesmo contrárias da jurisprudência, que quem pretende fazer valer um seu direito a ver reconhecida a união de facto do casal, lhe veja barrada uma das possibilidades, quiçá a legalmente menos controversa, de o fazer.
Saliente-se até, que em recente acórdão desta Relação de Lisboa[[6]], se considerou ser indevida a instauração da acção de revisão de sentença estrangeira visando precisamente a obtenção da nacionalidade, tendo-se entendido estar-se perante situação de falta de interesse em agir, posto que se defendeu que tal finalidade apenas poderia ser alcançada através da propositura de acção visando o reconhecimento da união de facto. Disse-se aí:
«1– Instaurando um cidadão português e uma cidadã brasileira, ambos residentes no Brasil, acção de revisão de sentença estrangeira, pedindo que “sejam revistas e confirmadas as Escrituras Públicas Declaratórias de União Estável, celebradas pelos Requerentes, com todas consequências legais, designadamente para os fins do art. 3º, da Lei nº 37/81, de 3/10 …”, tem de concluir-se que não têm interesse em agir.

2 E não têm interesse em agir porque:
(i)- A sentença de revisão de escritura de união estável não substitui a (necessária) acção declarativa para reconhecimento de vivência em união de facto por mais de três anos, a instaurar nos tribunais cíveis contra o Estado Português, como o exige o art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade;
(ii)- Além disso, a sentença de revisão/confirmação que viesse a reconhecer/confirmar a escritura de união estável, não teria eficácia de caso julgado em relação ao Estado Português, não produzindo, por isso, os mesmos efeitos da acção de declaração de vivência em união de facto, por mais de três anos, exigidos por aquele art. 3º nº 3 da mencionada Lei da Nacionalidade;
(iii)- Finalmente, conforme decorre do art. 978º nº 2 do CPC, se os requerentes pretendem aproveitar-se dessa escritura de união estável, que celebraram no Brasil, podem usá-la na acção a instaurar para a finalidade do art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade, nos termos dos arts. 365º nº 1 e 371º nº 1 do CC.
3– O interesse em agir apura-se, além do mais, pela necessidade de tutela judicial que é aferida, objectivamente, perante o direito subjetivo alegado pelo autor: o autor tem interesse em agir se da situação descrita e peticionada resulta que necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito.
4– Por isso, percebe-se que o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, impõe algumas restrições ao exercício do direito à jurisdição ou da garantia de acesso aos tribunais, dado que condiciona esse recurso aos tribunais à efectiva necessidade de tutela judicial e à inexistência de qualquer outro meio, processual ou extraprocessual, para obter a realização do direito subjectivo alegado/pretendido pelo autor.»

Efectivamente, resultando claro da petição inicial que o pedido formulado pelos AA. de que seja reconhecido judicialmente a sua união de facto, visa obter o pressuposto legal necessário para a obtenção da nacionalidade portuguesa, atento o disposto nos referidos artgs. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03/10 e 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, não se poderá considerar estarmos perante uma situação de falta de interesse em agir, tanto mais, quanto é insofismável que os citados preceitos legais inseridos nos respectivos diplomas, apontam para a necessidade de que seja instaurada acção de reconhecimento da união de facto entre os requerentes. 

Na realidade, os AA. não pediram o reconhecimento da validade do que consta do documento que subscreveram e intitularam de “Contrato de Convivência”, mas o reconhecimento judicial, perante o Estado Português, da sua união de facto, com o interesse expressamente manifestado na PI de tal reconhecimento judicial vir a instruir o pedido que pretendem formular para a aquisição de nacionalidade portuguesa, conforme expressamente previsto nas disposições legais invocadas.

Neste sentido, de que não nos encontramos perante um caso de falta de interesse em agir, veja-se o que foi sustentado no recente acórdão da Relação de Lisboa de 23-03-2021[[7]]:
«(…).
É inegável, face à causa de pedir e ao pedido, que os AA. têm interesse em agir, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, o qual se traduz na necessidade de obter decisão judicial que reconheça a união de facto invocada, por forma a habilitar o A. a requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa.
Conforme escrevia Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, pág. 79, o interesse em agir, ou “interesse processual”, “consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.
Os AA. não requereram o reconhecimento da validade do declarado na escritura de “pacto de união estável”, que outorgaram em Cartório Notarial no Brasil em 1.6.2001, apenas tendo alegado que, pelo menos desde aquela data, vivem em condições análogas às dos cônjuges, juntando a referida escritura como meio de prova.
(…).»

Pelo que se deixa dito há pois que concluir não se verificar a excepção de falta de interesse em agir, procedendo assim a questão suscitada pelos apelantes.
Assim, o recurso terá necessariamente de proceder.   

IV–DECISÃO

Desta forma, os juízes que integram o presente colectivo, acordam em julgar a apelação procedente, e nessa conformidade, revogam o despacho recorrido e determinam que a acção prossiga a sua normal tramitação.

Sem custas, por o Ministério Público se encontrar delas isento.


Lisboa, 13-05-2021

                                                                                         
(José Maria Sousa Pinto)                                               
(João Vaz Gomes)                                                 
(Jorge Leal)



[1]Por manifesto lapso na petição inicial faz-se referência ao n.º 1 do art.º 3.º, quando se pretenderia referir o n.º 3
[2]P.º 25835/17.1T8LSB.L1-6, em que foi relator Adeodato Brotas, disponível em www.dgsi.pt
[3]Nós próprios passámos a fazê-lo, como resulta do nosso acórdão desta Relação de 19-03-2020, P.º 190/20.6YRLSB-2, disponível em www.dgsi.pt  
[4]Vejam-se, meramente a título de exemplo, os acórdãos proferidos nos Procs.: 2403/19.8YRLSB.L1-2 (de 24-10-2019), 1072/09.8YRLSB-7 (de 10-11-2019), 1429/19.6YRLSB-2 (de 21-11-19), 1899/19.2YRLSB-6 (também de 21-11-19), 2778/19.9YRLSB (de 11-12-2019),  1807/19.0YRLSB-7 (também de 11-12-2019) e 2718/19.5YRLSB-2 (de 23-01-20), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt .
[5]Ac. deste Tribunal de 26-09-2019, proferido no P.º 1777-19.5YRLSB, e Acórdãos do STJ de 09/05/2019, (Proc.º 828/18.5YRLSB.S1), de 28 de Fevereiro de 2019 (processo n.º 106/18.0YRCBR.S1) e de 21 de Março de 2019 (Nos processos n.º 559/18.6YRLSB.S1 e 925/18.7YRLSB-A.S1), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt
[6]De 17-12-2020, no P.º 1904/20.0YRLSB-6 (Adeodato Brotas), disponível em www.dgsi.pt
[7]P.º 11440/19.1T8LSB.L1-7, Relatora Cristina Coelho, disponível em www.dgsi.pt