Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
37/21.6SXLSB.L1-3
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: A tomada de declarações para memória futura nos termos do artº 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente.  
O art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
O art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.
O art.º 356.º, não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.
Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).
As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.
Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.
As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).
O art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
O MP deduziu acusação contra EMGA________ , imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Cód. Penal.
Realizada audiência de discussão e julgamento veio a arguida a ser absolvida.
Inconformado com a sentença, veio o MP recorrer para este Tribunal da Relação, apresentando as seguintes conclusões:
1a Nos presentes autos, a arguida EMGA________  foi submetida a julgamento e absolvida da acusação contra ela formulada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Cód. Penal.
2a Esta sentença absolutória não pode, a nosso ver, colher aplauso, porquanto resulta de apreciação da prova em violação das normas legais previstas nos artigos 271°, 355°, n° 2, 356°, n.° 2, alínea a) e n.° 6, todos do Cód. de Processo Penal.
3a No caso dos autos, por douto despacho proferido em audiência de julgamento, considerou-se indispensável à descoberta da verdade que a vítima prestasse declarações em audiência de julgamento, recusando-se aquela validamente a depor (artigo 134°, n.° 1, alínea b) do Cód. de Processo Penal).
4a Tal facto não pode, contudo, levar a considerar as declarações para memória futura uma prova proibida, uma vez que, como é sabido são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, as quais são livremente valoradas, a não ser que a lei disponha diversamente (artigos 124° e 127° do Cód. de Processo Penal).
5a Com efeito, as declarações para memória futura, não tendo de ser reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, devem ser livremente valoradas pelo Tribunal, nos termos que decorrem do princípio da livre apreciação da prova
EM DEFESA DA LEGALIDADE DEMOCRÁTICA
(artigo 127° e 355°, n.° 2 do Cód. de Processo Penal e AUJ 8/2017 - Diário da República n.° 224/2017, Série I de 2017-11-21, páginas 6090 - 6113).
6a De facto, tais declarações não se mostram abrangidas por qualquer proibição de prova, enquadrando-se, aliás, nas declarações cuja leitura é permitida (artigo 356°, n.° 2, alínea a) do Cód. de Processo Penal), pelo que, ainda que não pudessem ser lidas, em virtude de a ofendida se ter recusado validamente a depor (artigo 356°, n.° 6 do Cód. de Processo Penal), não significa que se verifique, quanto às mesmas, qualquer proibição de valoração, já que se tratam de prova pré-constituída.
7a Saliente-se que, o mesmo já não sucederá com as declarações prestadas anteriormente pelo arguido, as quais, caso não sejam reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, poderão levar à inconstitucionalidade da norma extraída dos artigos 355.°, n.°s 1 e 2, e 356.°, n.° 9 do Cód. de Processo Penal, por violação do artigo 32.°, n.°s 1 e 5, conjugado com o artigo 18.°, n.° 2, ambos da Constituição (Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 770/20, de 21/12/2020, disponível em tribunalconstitucional.pt).
8a É evidente que esta diferenciação de regimes por parte dos tribunais superiores tem como explicação as cautelas relativas ao contraditório inerentes à prestação das declarações para memória futura, que se visa ser uma antecipação da prova a produzir em audiência.
9a O instituto das declarações para memória futura foi consagrado precisamente como forma de antecipar a audiência, através da produção de prova que se afigura de difícil obtenção num futuro, justificando-se uma tal antecipação pelo princípio da descoberta da verdade material (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5/03/20, proferido no processo n.° 779/19.6PARGR-A.L1-9, disponível em dgsi.pt)
10a Em situações como a dos autos, como resulta da própria sentença recorrida, a única prova existente é aquela que resulta do depoimento da ofendida, pelo que, desvalorizar este tipo de declarações, obtidas com base em todas as garantias legais, implica desrespeitar o todo o sentido e alcance do instituto, colocando em causa a própria verdade material.
11a Com efeito, não é possível concluir-se pela necessidade para a descoberta da verdade material do depoimento da ofendida, para, logo de seguida, considerar a faculdade de exercer o direito ao silêncio (artigo 134°, n.° 1, alínea b) do Cód. de Processo Penal) como forma de invalidar esse mesmo depoimento prestado validamente em sede de declarações para memória futura, depoimento esse que a presença em audiência visava apenas completar, esclarecer ou pormenorizar.
12a Efetivamente, revelando-se indispensável à descoberta da verdade a prestação de depoimento pela vítima em audiência, a presença da vítima em audiência justifica-se apenas e tão-só para completar, esclarecer, pormenorizar
EM DEFESA DA LEGALIDADE DEMOCRÁTICA
algo em relação às declarações para memória futura por si anteriormente prestadas ou até mesmo para negar o que foi por si dito anteriormente em declarações.
13a Com efeito, a prestação de depoimento em audiência deve incidir sobre todos os factos sobre que a testemunha possua conhecimento direto e constituam objeto da prova (artigo 128°, n.° 1 do Cód. de Processo Penal).
14a Contudo, esse depoimento terá de ser prestado, sem que a vítima utilize a faculdade de se remeter ao silêncio para simplesmente impedir que os factos que anteriormente relatou não sejam tidos em conta, conseguindo dessa forma a desistência de queixa que a lei não permite (artigos 241° e 262°, n.° 2 do Cód. de Processo Penal). E, dessa forma, defraudando o próprio instituto das declarações para memória futura, a verdade material e a própria realização da justiça.
15a Deste modo, não se compreende como pode o depoimento tomado mediante declarações para memória futura deixar de ser valorado por força de uma recusa de depoimento, já que, a valoração da prova não se confunde com a leitura dessa mesma prova.
16a De facto, o artigo 356°, n.° 6 do Cód. de Processo Penal não visa obter o efeito de defraudar prova validamente obtida que, aliás, não tem de ser lida em audiência para que seja valorada (AUJ n.° 8/2017 acima citado). Ora, não pode o Tribunal ignorar a valoração dessa prova que se encontra pré-constituída. Valoração essa, que, saliente-se, deverá ser livre e conjugada com a restante prova produzida em audiência, e que, no limite, até pode levar à conclusão de que os factos não resultam provados.
17a Ora, não pode suceder o Tribunal escudar-se no silêncio da ofendida para evitar valorar as declarações anteriormente prestadas de modo válido, sob pena de serem colocados em causa a descoberta da verdade material e a conservação da prova e a própria proteção da vítima visadas pelo instituto.
18a Como tal, impunha-se que o Tribunal se pronunciasse sobre aquele meio de prova, valorando-o, ainda que as declarações não pudessem ser lidas por força da recusa de depoimento.
19a Não o fazendo, ao não ouvir, não ler e dessa forma não se pronunciar sobre as declarações para memória futura, como podia e devia, incorreu na nulidade prevista no artigo 379°, n.° 1 alínea c) do Cód. de Processo Penal.
20a Deste modo, em termos que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a arguida ser sido condenada pela prática do crime de violência doméstica por que veio acusada, bem como na pena acessória e na indemnização devida à vítima (artigo 152°, n.° 1, alínea d) e n.° 2 do Cód. Penal, artigos 82°-A n°1 do Código de Processo Penal e 21° da Lei n° 112/2009 de 16 de setembro).
Nestes termos, Vossas Excelências, melhor decidindo, farão a costumada Justiça.
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Admitido o recurso por despacho de 13 de janeiro de 2022, veio a arguida responder, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
a) A Arguida entende que o Recurso apresentado é completamente desprovido de fundamento jurídico, sendo que a sentença recorrida aplica correctamente a legislação em vigor, senão vejamos.
b) A questão jurídica ora apresentada foi recentemente decidida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo nº 20/21.1SXLSB.L1-3.
c) Com o devido respeito, entendemos que a interpretação seguida na sentença recorrida é absolutamente correcta, sendo que no recurso apresentado não vislumbramos qualquer fundamento que coloque em causa tal entendimento.
d) Pelo que, sem mais delongas, entende a Arguida que o Recurso deve ser julgado improcedente e mantida a decisão recorrida.
Contudo V. Exas., Venerandos Desembargadores, apreciarão e farão como for de Justiça.
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O Sr. PGA junto desta Relação emitiu o seguinte parecer:
I. Recurso próprio e tempestivo, sendo correcto o efeito e regime de subida que lhe está atribuído, devendo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no artigo 419°, do Código de Processo Penal.
II. Nesta instância, o Ministério Público acompanha a motivação do recurso interposto pela Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1- instância.
III. Atento o exposto, emite-se parecer no sentido de que seja julgado procedente o presente recurso, com as consequências propostas nas conclusões da sua motivação.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2 do CPP, nada tendo sido apresentado.
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Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artº 419º/3 do C.P.P, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
Questões a decidir:
- Se as declarações para memória futura prestadas pela ofendida podem ser valoradas, quando em audiência a mesma, convocada, se recuse validamente a depor.
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III – Apreciação:
A Decisão de facto constante da sentença recorrida e relevante para o conhecimento do recurso é do seguinte teor:
II- FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto provada
Produzida a prova, resultaram provados os seguintes factos:
1 - A arguida é mãe de BSAB______    , nascida a _______.
2- No âmbito do Processo N.° 1545/06.4TMLSB-G, que correu termos no Tribunal de Família e de Menores de Lisboa, por sentença proferida em 0207.2013 foi homologado acordo relativo ao exercício das responsabilidades parentais de BSAB______ e, para além do mais, fixada a residência da menor com a arguida, mais se estabelecendo regime de convívios com o progenitor e mais se fixando prestação de alimentos a entregar por este àquela.
3- No âmbito do processo de promoção e protecção n.° 1545/06.4TMLSB-J, por acórdão proferido no dia 12-07-2018, foi estabelecido novo regime de exercício das responsabilidades parentais em relação à BSAB______ , fixando-se, para além do mais, a residência alternada da jovem entre os progenitores, com periocidade semanal.
4 - Por decisão proferida no dia 01-07-2020, já transitada em julgado, foi declarada cessada a intervenção de promoção e proteção e determinado o arquivamento do processo.
5- Em data não concretamente apurada do ano de 2020, a arguida soube que a menor BSAB______  tinha começado a namorar com um rapaz, e disse-lhe que que terminasse o namoro.
Mais se provou que:
6- A arguida é empregada de balcão e aufere €670,00 mensais.
7- É divorciada e vive com a mãe a filha de 15 anos de idade, em relação à qual tem guarda partilhada.
8- Ao nível de habilitações literárias completou o 12° ano da escolaridade.
9- Consta do relatório social elaborado pela DGRSP a propósito da arguida que De acordo com o que nos foi dado avaliar, o trajeto vivencial de EMGA________   veio a decorrer no agregado familiar de origem, composto atualmente pela progenitora, de quem continua a beneficiar de suporte, sendo que o pai faleceu em agosto. Ao nível profissional, providenciou desde cedo pela ocupação e autonomização económica, situação que se mantém. No seu enquadramento vivencial atual, identificam-se como preditores de risco de replicação de episódios de violência, o registo de condenação anterior, o surgimento deste processo associado a crime de natureza congénere, o défice assinalado na capacidade autocritica e o discurso com contornos de negação. Assim, e em caso de condenação, identificam-se necessidades de reflexão e alteração comportamental da arguida na gestão de situações de tensão. Adicionalmente, e ainda em caso de condenação nos presentes autos, parece-nos também benéfico uma eventual integração da mesma no programa do “Programa Gestão da Agressividade e Regulação Emocional”, promovido pelo “O Companheiro”. 
10- Consta do certificado de registo criminal da arguida que a mesma já foi julgada e condenada no âmbito do:
a. Processo n.°2780/14.7TDLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Lisboa - Juízo Local Criminal - Juiz 9, por decisão transitada em julgado na data de 18-09-2017, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de injúria, na pena única de 270 dias de multa à taxa diária de €6,00, por factos praticados em 0203-2014, pena esta já julgada extinta pelo cumprimento.
b. Processo n.°465/19.9PLLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Lisboa - Juízo Local Criminal - Juiz 2, por decisão transitada em julgado na data de 21-01-2019, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €5,00, por factos praticados em 28-06-2017, pena já julgada extinta pelo cumprimento.
c. Processo n.°7886/15.2TDLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Lisboa - Juízo Central Criminal - Juiz 18, por decisão transitada em julgado na data de 05-07-2019, pela prática de dois crimes de violência doméstica e de um crime de subtracção de menor, na pena de 4 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, sujeita a deveres e a regime de prova.
Factos não provados
1- No seguimento do facto referido em 5. e na sequência da discussão que se seguiu entre as duas, no interior da casa onde residiam, na Rua _______ lote 244, fracção 1° B , em Lisboa, a arguida deu à BSAB______  bofetadas, pontapés e puxou-lhe os cabelos, deixando-lhe marcas nas pernas.
2- BSAB______ sofreu dores.
3- De seguida retirou-lhe o telemóvel e nunca mais lho deu.
4 - Foi o seu avô materno que lhe comprou outro telemóvel.
5. Desde Outubro de 2020 até Janeiro de 2021, a arguida teve várias discussões com a menor BSAB______  por causa do seu namorado, dirigindo-se à menor e dizendo-lhe “ÉS UMA PUTA, UMA CABRA, UMA VACA, UMA VADIA, UMA VENDIDA” e ofereceu-lhe 500€ para deixar o namorado.
6. Em 21 de Janeiro de 2021, cerca das 18h30m, ao pé da Escola 2/3 Fernando Pessoa, em Lisboa, a arguida esperava à porta da escola a sua filha BSAB______  e por esta se ter demorado, começou a discutir de forma muito exaltada, acusando-a de ter estado com o namorado e já dentro do carro disse-lhe que se a visse com aquele rapaz, “IRIA LEVAR UMA COÇA”.
7. BSAB______ tentava explicar à arguida que se demorou mais em virtude de se ter esquecido do cartão da escola na sala de aula, mas a arguida cada vez mais exaltada, gritava, dizendo se a visse novamente com aquele rapaz: “VAIS VER, VAIS LEVAR UMA SOVA”,
8. BSAB______    , ficou cheia de medo de ser agredida quando chegasse a casa e fugiu do carro, dirigindo-se para parte incerta, tendo depois telefonado ao pai que lhe disse para ir a uma esquadra da PSP, tendo-se deslocado para a 34.a Olivais.
9. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de através das expressões que dirigia a BSAB______    , sua filha, lhe provocar medo e inquietude, atuando querendo isso mesmo.
10. A arguida agiu, ainda, da mesma forma, sabendo que as expressões que dirigia à menor BSAB______ a ofendiam na sua honra e consideração.
11. Do mesmo modo agiu a arguida, ao ter o propósito concretizado de molestar BSAB______ no seu corpo e na sua saúde, causando- lhes dores.
12. Visava a arguida criar permanente medo, perturbação e um clima nocivo à estabilidade emocional de BSAB______    , sabendo que é uma criança e que enquanto mãe tinha a obrigação de cuidar, proteger e contribuir para o desenvolvimento físico e emocional saudável da filha.
13. A arguida actuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde física e psíquica de BSAB______    , sua filha e, dessa forma, provocar-lhes maus tratos físicos e psíquicos, sabendo que assim lhes causaria dores e lesões.
14. Mais sabia a arguida que tinha o dever de respeitar a sua filha, pessoa particularmente indefesa em razão da idade e que ao tratá-la do modo supra descrito, no interior da residência onde habitavam, a impedia de ter um crescimento saudável e harmonioso, o que conseguiu.
15. A arguida EMGA________  agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação. 
Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal.
A arguida ao abrigo de um direito que lhe assiste, remeteu-se ao silêncio.
Os factos que em concreto estão em causa nos presentes autos não foram presenciados por nenhum das testemunhas que prestou o seu depoimento em sede de audiência de julgamento. Só a testemunha L______ , mãe da arguida, estaria no interior do carro com a arguida e a menor e nega que os factos tenham ocorrido como descrito na acusação, embora não esclareça o que motivou a saída da menor do interior do carro. Também esta testemunha nega que a arguida actue para com a sua neta da forma que lhe é imputada.
Tendo em conta que a menor BSAB______   se recusou, validamente a prestar depoimento em audiência de julgamento, não obstante o ter feito em momento anterior no âmbito de declarações para memória futura, estas não podem e não serão consideradas nesta sede.
Concluindo, após a recusa a depor em audiência, as declarações para memória futura já não podem ser consideradas meios de prova (neste sentido Ac. do TRL de 15-09-2021, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira, in www.dgis.pt).
Importa ter em conta que a prestação de depoimento/declarações por parte de pessoas que têm a posição de ofendido/a no processo não pode estar sujeita a estados de alma ou cambiantes emocionais na relação que em determinado momento têm ou não tem com o/a arguido/a num determinado processo judicial. Permitir isso, era pôr em causa, de uma forma intolerável as garantias da defesa do arguido.
E por outro lado, o que quer que a menor tenha contado a terceiros relativamente a factos em causa nos autos também não pode ser tido em conta, uma vez que a mesma se recusou validamente a prestar depoimento.
E o que o pai da menor relata sobre os factos em causa nos presentes autos, foi o que a menor lhe relatou. Menor esta que segundo o relato do seu pai, quer viver consigo e não com a mãe estando pendente à data um processo para alteração das responsabilidades parentais relativamente à menor. 
Tendo em conta o exposto, se concluiu quanto à matéria de facto provada e não provada nos termos enunciados.
Teve-se em conta a prova documental junta aos autos, designadamente a certidão de nascimento de fls.21/22, fls. 42 a 68, 69 a 101, 103 a 137e171.
No que respeita à situação pessoal da arguida atendeu-se às suas declarações e ao teor do relatório social elaborado pela DGRSP.
Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se ao teor do certificado do registo criminal da arguida.
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Para decisão do presente recurso há ainda que ter em conta, como resulta da consulta dos autos, o seguinte:
Na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 12 de novembro, pela arguida, através do seu defensor, atenta a prova produzida naquele dia, foi requerida a audição da ofendida BSAB______   em audiência, a qual havia prestado declarações para memória futura nos autos, para que a mesma prestasse esclarecimentos, como aliás consta da acta da respetiva sessão.
O MP e o assistente não se opuseram ao requerido.
Na mesma sessão da audiência, após a produção de prova. foi proferido despacho, o qual se mostra gravado no sistema de gravação, no qual se decidiu “(..) tendo em conta a prova produzida até ao momento nos termos e pelos fundamentos expressos pela Digna magistrada do MP, a prestação de declarações em audiência de julgamento por parte de BSAB______  , filha da arguida, revela-se importante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e a tal não se opõem as razões que contendam designadamente com a saúde psíquica daquela, pelo que se defere ao requerido e como tal designa-se para continuação da presente audiência de julgamento …
Perguntada sobre se queria prestar declarações pela menor BSAB______  foi afirmado que “eu não quero dizer nada, já disse tudo o que tinha a dizer, quanto mais rápido isto acaba melhor”.
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Analisando e decidindo a questão suscitadas.
Está em causa a validade das declarações para memória futura prestadas nos autos quando é chamada à audiência a pessoa que as haja prestado, e se recuse validamente a falar.
O nosso CPP regula as declarações para memória futura no seu art.º 271.º, desde a sua redação original (aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17/02) sendo patente que tal possibilidade de produção antecipada de prova era excecional, já que apenas podia ter lugar em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento (…) n.º1 da redação originária.
A Lei n.º 59/98, de 25/08 veio alterar os pressupostos da realização das declarações para memória futura alterando o n.º 1 do citado art.º 271.º, dando-lhe a seguinte redação: Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítimas de crimes sexuais (…). Ou seja, acrescentaram-se as vítimas de crimes sexuais, pelas razões que todos sabem e que por isso nos dispensamos de aflorar.
Esta norma veio novamente a ser alterada pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, a qual lhe deu a seguinte redação:
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7 - (Anterior n.º 4.)
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Finalmente, veio o referido art.º 271.º a ser alterado, mas apenas quanto à previsão legal, pela Lei n.º 102/2019, de 6 de setembro, que “Acolhe as disposições da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos, alterando o Código Penal e o Código de Processo Penal”, nos seguintes termos:
1 – Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Por sua vez, o art.º 356.º do mesmo CPP, estabelece
Artigo 356.º
(Leitura permitida de autos e declarações)
1 - Só é permitida a leitura em audiência de autos:
a) Relativos a actos processuais levados a cabo nos termos dos artigos 318.º, 319.º e 320.º; ou
b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
2 - A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida, tendo sido prestadas perante o juiz, nos casos seguintes:
a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º;
b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo no sua leitura;
c) Tratando-se de declarações obtidas mediante precatórias legalmente permitidas.
3 - É também permitida a leitura de declarações anteriormente prestadas perante o juiz:
a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou
b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outro modo.
4 - É ainda permitida a leitura de declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público, se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira.
5 - Verificando-se o pressuposto do n.º 2, alínea b), a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal.
6 - É proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.
Este normativo veio também a ser parcialmente alterado pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, mais concretamente:
Artigo 356.º
[...]
1 - ...
2 - ...
a)...
b)...
c) Tratando-se de declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas.
3 - ...
a)...
b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.
4 - ...
5 - ...
6 - ...
7 - ...
8 - A visualização ou a audição de gravações de actos processuais só é permitida quando o for a leitura do respectivo auto nos termos dos números anteriores.
9 - A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.
A Lei n.º 20/2013, de 21/02, alterou os n.ºs 3 e 4 deste art.º 356.º, que passaram a ter a seguinte redação:
Artigo 356.º
Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações
1 - ...
2 - ...
3 - É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:
a) ...
b) ...
4 - É permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.
Os n.ºs 5 a 9 não foram alterados.
A análise do n.º 6 do art.º 356.º, que se mantém inalterado desde a aprovação do CPP, impõe que se retire conclusão oposta à retirada pelo tribunal a quo. Para tanto basta termos em consideração que as declarações prestadas não são simples declarações prestadas em inquérito ou em instrução, mas sim prestadas em audiência aberta antecipadamente para esse efeito, perante o juiz e com todas as garantias de defesa próprias do julgamento, garantindo-se plenamente o exercício do contraditório, como se extrai do disposto no art.º 271.º já referido. É prova antecipada. E não prova recolhida no e para o Inquérito, na e para a Instrução. É recolhida em qualquer destas fases, podendo igualmente sê-lo já na fase de julgamento em situações de urgência ou atraso na marcação/realização da audiência, com vista a serem avaliadas pelo juiz de julgamento aquando e conjuntamente com a restante e toda a prova produzida, antecipadamente ou durante a audiência, para formação da sua convicção e decisão da causa.
Na verdade, como consta do AUJ n.º 8/17, DR 1.ª série, n.º 224, de 21 de novembro de 2017, a tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 271.º e 294.º, ambos do CPP, configura -se como uma antecipação parcial da audiência, sendo que (…) conceito de prova pré -constituída refere -se aos meios de prova antecipada, como é o caso das declarações para memória futura, previstas nos arts. 271.º e 294.º do CPP, ou dos meios de prova obtidos em inquérito com as garantias processuais adequadas.
Não há dúvida que esta prova antecipada implica alguma limitação dos princípios da imediação, oralidade e publicidade subjacentes à audiência de julgamento, mas são razões de proteção da vítima, especialmente nos casos como o presente, e de realização do bem comum administração da justiça e da verdade material, que justificam e legitimam esta limitação[2]. A proteção da vítima está bem patente e presente no normativo em análise, 271.º, como se conclui da simples leitura do seu n.º 8, assegurando-se, com a tomada de declarações no mais curto espaço de tempo a seguir à denúncia, a melhor prova, mais contemporânea com a prática do crime, e por isso mais credível e mais próxima da prova ideal. Por outro lado, na situação particular das vítimas de violência doméstica, com a prestação de declarações para memória futura procura evita-se que o agressor exerça novamente o seu poder de sedução sobre as mesmas, levando-as a não falar ou minimizar os acontecimentos entorpecendo e minando a ação da justiça.
Importa ter presente que as vítimas de violência doméstica são vítimas especialmente vulneráveis[3], como resulta da conjugação do disposto nos artigos 2.º, al. b), da Lei n.º 112/2009, de 16/09 Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência suas vítimas, art.º 1º, al. j) e 67.ºA, n.º 3 do CPP, e consequentemente prestar declarações para memória futura é um dos seus direitos, como de resto se mostra consagrado no art.º 21.º, n.º 2, al. d), do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/ 2015 de 04/09, como um dos direitos das vítimas especialmente vulneráveis, a prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.º.
Consideremos agora o que reza este art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04/09, que a propósito das declarações para memória futura dispõe:
1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
4 - A tomada de declarações é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal.
6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar[4].
Aqui chegados importa desde já frisar que, como já disse, o n.º 6 do art.º 356.º do CPP integra esse normativo desde a data da sua aprovação, ou seja 1987, e o n.º 6 do art.º 24.º do Estatuto da Vítima data de 2015. Deste modo, a interpretação a fazer não pode ser a de esta norma, mais recente, ou seja, lei nova, aplicada a situações especificas e próprias, a vítimas e não qualquer outra testemunha, ceda perante a norma do CPP referida, que é muito anterior, pensada e elaborada numa altura em que não se procedia à gravação das declarações, mas à sua exaração completa em auto ou por súmula[5], e que se aplica genericamente.
Significa assim que o art.º 24.º do Estatuto da vítima é mais recente que o art.º 356.º do CPP. Contudo, para além de uma norma ser mais recente que a outra, entre o art.º 24.º do Estatuto da Vítima e o art.º 356.º do CPP existe ainda uma relação de especialidade, pelo que não se pode considerar revogado o disposto no art.º 356.º do CPP, norma geral, atento o disposto no art.º 7.º, n.º 3 do CC.
Igual relação de especialidade se verifica entre os artigos 271.º, n.º 8 do CPP e o 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, sendo esta a norma especial, porque apenas se aplica a testemunhas que tenham a qualidade de vítima.
Ora, a norma do 24 n.º 6 do Estatuto da Vítima impõe como regra as declarações para memória futura e como exceção as declarações em audiência.
Na verdade, determina o dito artigo:
6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Enquanto que o n.º 8 do art.º 271.º dispõe:
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Ou seja, a tomada de declarações para memória futura nos termos deste último normativo, 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. Significa que a prestação de declarações para memória futura só afastam o depoimento em audiência se o depoente o não puder fazer ou tal importe risco para a sua saúde.
Ao contrário o art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, que regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Note-se que o art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.
Acresce que se bem se analisar o art.º 356.º, o mesmo não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.
Resumindo, podemos considerar assente:
Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).
2 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
Sendo audiência antecipada, como é, aberta especialmente com observância de todas as regras que regulam a audiência de julgamento adequadas a este instituto particular, deve ser observado o disposto no art.º 134.º do CPP quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas.
Estas conclusões impõem, quanto a nós, a seguinte conclusão: uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido. Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.
Note-se que nem tão pouco ao arguido é permitido excluir da valoração do tribunal as declarações que haja prestado com observância do disposto no art.º 141.º do CPP. Mesmo que em audiência exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador as apreciar, de forma conjugada com a restante prova e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica. Ora, nenhuma razão existe para que às testemunhas, que ainda por cima são vítimas, possam transformar uma prova legalmente obtida, previamente através do instituto das declarações para memória futura, em prova proibida como defende alguma jurisprudência.
As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).
Acresce que, a tese segundo a qual a vítima que tendo prestado declarações para memória futura, opte por não prestar depoimento quando chamada a audiência transformando as anteriores em prova proibida contraria a natureza pública do crime em causa, permitindo-se o mesmo efeito que uma desistência, com mais força até pois redunda as mais das vezes em decisão absolutória com efeitos de caso julgado, contrariando-se lei expressa, o espírito do legislador e os bens jurídicos que se pretendem proteger. Por outro lado, esta tese transmite uma maior vulnerabilidade às vítimas de violência doméstica perante os agentes de crimes que não hesitarão em iniciar mais um ciclo com a típica sedução para as impedir de manter a coragem de chamadas que continuam a ser para prestar depoimento em audiência, contra o seu direito a prestar declarações para memória futura e não serem mais inquiridas sobre os mesmos factos, atentos os efeitos de vitimização secundária daí decorrentes, contar os factos de que foram alvo.
Finalmente e acima de tudo, o art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.
*
No nosso caso, para além do entendimento enviesado retirado da recusa em prestar declarações por parte da menor BSAB______ , que determinou que o tribunal a quo entendesse as declarações para memória futura por ela prestada não podem e não serão consideradas nesta sede.
Concluindo, após a recusa a depor em audiência, as declarações para memória futura já não podem ser consideradas meios de prova, o tribunal a quo ignorou o seu próprio despacho, proferido em acta da sessão de audiência do dia 12 de novembro, que transitou em julgado, no qual deferiu o requerido pedido de esclarecimentos por parte da menor BSAB______ , vítima nos autos, e ao invés de avaliar o depoimento prestado em declarações para memória futura sem os esclarecimentos pretendidos, arrasou por completo um meio de prova pré-constituído, muito para além da eventuais dúvidas que justificaram o deferimento do pedido de prestação de esclarecimentos. Ao tribunal a quo competia analisar o que foi dito pela ofendida em declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, valorando a que lhe merecesse maior credibilidade e conformidade com as regras da experiência, da lógica, do conhecimento e das regras da vida, e não abster-se de as analisar e valorar.
Acresce que a menor BSAB______  não se recusou a prestar declarações tout court. A menor BSAB______  afirmou que não tinha mais nada a dizer para além do que já havia dito. Ou seja, reafirmou o que disse nas declarações para memória futura, como nos impõem as regras da experiência e da lógica que se conclua.
Deste modo, e aqui chegados verificamos que não só o entendimento do sentido e alcance de aplicação do disposto no art.º 356.º, n.º 6 do CPP por parte do Tribunal a quo se mostra desconforme com o espírito da norma interpretada em termos sistemáticos, que olvidou norma especialmente aplicável às vítimas especialmente vulneráveis, como a sua aplicação ao caso se mostra errada dado que no caso a menor BSAB______  apenas foi chamada à audiência para prestar esclarecimentos, e não repetir o que já havia dito, e não se recusou a prestar declarações sem mais, antes manteve o que já havia dito anteriormente.
Face a todo o exposto, procede o recurso do MP e em consequência revoga-se a decisão proferida, devendo ser substituída por outra que analise e valore as declarações para memória futura prestadas nos autos, em conjugação com as restantes provas produzidas de harmonia e à luz das regras da experiência comum.
*
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em:
Julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revoga-se a sentença proferida, a qual deve ser substituída por outra na qual se analisem e valorem as declarações para memória futura prestadas nos autos por BSAB______  , em conjugação com as restantes provas produzidas, de harmonia e à luz das regras da experiência comum.
*
Lisboa, 20 de abril de 2022
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Rui Miguel Teixeira
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
_______________________________________________________
[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e  na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271);  o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de  Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. 
[2] A jurisprudência do TEDH é exemplo da legitimação destes princípios sempre que a mesma seja necessária para a proteção da vítima e a descoberta da verdade material, enquanto essencial à administração da justiça e desde que o acusado possa exercer devidamente a sua defesa, garantindo-se o exercício do contraditório, não só na medida do contradizer, mas também de contrainterrogar as testemunhas (6.º, § 3.º, al. b) da CEDH) e obviamente apresentar provas. V. por ex. acórdão Vissier c. Países Baixos, de 14 -02 -2002.
[3] O que traduz e reconhece a violência extrema que sofrem.
[4] Sublinhado nosso.
[5] Na verdade, a versão originária dispunha: 5 - O conteúdo das declarações é reduzido a auto, sendo aquelas reproduzidas integralmente ou por súmula, conforme o juiz determinar, tendo em atenção os meios disponíveis de registo e transcrição, nos termos do artigo 101.º. Este n.º 5 manteve-se sem alterações só sendo suprimido em 2007.