Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
899/12.8TTVFX.L1-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
ACÇÃO DECLARATIVA
ACÇÃO PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS CONTRA O DEVEDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Para efeitos do disposto no nº 1º do artigo 17.º-E do CIRE na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril deve considerar-se que as acções declarativas consubstanciam acções para cobrança de dívidas contra o devedor.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

    AA intentou em 14/12/2012 contra “BB, S.A.” a presente acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, na qual pede que
I- seja declarado que entre o A. e a R. existiu um único contrato individual de trabalho que se iniciou no dia 7 de Julho de 2003 e cessou no dia 31 de Dezembro de 2011;
II- seja declarado que durante a vigência de tal contrato e nos anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 a retribuição mensal do A. ascendeu e respectivamente, aos montantes de € 2.467,78; € 2.625,68; € 2.677,75; € 2.784,67; € 3.037,76 e € 3.039,86.
III- seja a R. condenada a pagar ao A. as seguintes quantias:
a) € 3.142, 11, referente à retribuição do mês de Dezembro de 2011 (vencimento base e subsídio de alimentação);
b) € 796,65, referente a despesas com deslocações;
c) € 7.036,92, referente a diferenças de retribuições de férias gozadas e respectivos subsídios dos anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011;
d) € 6.079,72, referente a retribuição de férias não gozadas e respectivo subsídio, proporcionais do ano de cessação do contrato;
e) € 1.721,40, referente a retribuição de férias vencidas entre os anos de 2006 e 2010 e não gozadas (17 dias);
f) € 2.250, 28, referente a diferenças ainda em dívida dos subsídios de Natal dos anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010;
g) € 3.039, referente ao subsídio de Natal de 2011.
          Alegou, em síntese, que trabalhou sob a autoridade, direcção e fiscalização da R. desde 7/7/2003 até 31/12/2011, data em que esta fez cessar o contrato, alegadamente por caducidade do contrato de trabalho a termo incerto celebrado em 8/7/2009, mas, na realidade, o A. estava vinculado à R. por contrato por tempo indeterminado desde 7/7/2006, dado o contrato celebrado em 7/7/2003 se ter sucessivamente renovado e o A. ter continuado ininterruptamente a trabalhar para a R. como engenheiro civil, apesar de em 8/7/2006 ter celebrado um outro contrato a termo certo com “CC, S.A.” sociedade do mesmo grupo, sendo que no 2º e 3º contratos referidos foi alterada a estrutura da respectiva retribuição, diminuindo a retribuição base e passando a ser-lhe pago um valor a título de isenção de horário de trabalho e outro a título de  ajudas de custo.
A R. excepcionou na contestação a pendência de causa prejudicial – um Processo Especial de Revitalização (PER) iniciado em 3/2/2013, tendente à aprovação de um plano de recuperação da R., na qualidade de devedora, por meio de homologação de acordo extrajudicial de recuperação celebrado entre esta e os seus credores DD II SGPS, SA  e Banco Popular Portugal, S.A., ao abrigo do art. 17º-I do CIRE – requerendo a suspensão da instância,  e também se defendeu por impugnação.
   O A. respondeu à excepção, opondo-se à suspensão da instância.
A instância foi suspensa e, após junção aos autos, a fls. 431/458, da certidão da sentença proferida no proc. nº  211/13.9TYLSB. do 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, - que, nos termos do art.  17º-I nºs 4 e 6 e 17º-F nº 6 do CIRE homologou o plano de revitalização da devedora BB, S.A, decretando que a decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, cfr. art. 17º-F nº 6, aplicável ex-vi art. 17º-I nº 6 do CIRE - e que transitou em julgado em 29/8/2013, foi proferida, a fls. 465, a seguinte decisão:
            “Em face do que antecede e ao abrigo do que dispõem os artigos 17º-E, n.º 1, do CIRE e 277º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, declara-se extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
             Custas a cargo do Autor e da Ré, em partes iguais…”“
O A., não conformado, apelou, formulando a final das respectivas alegações as seguintes conclusões:
(…)
A recorrida contra-alegou, pugnando pela conformação da decisão recorrida.
O M.P. neste tribunal emitiu o parecer de fls. 537/538, contrário à procedência do recurso.

          A questão suscitada no presente recurso é apenas a de saber se a homologação do acordo extra-judicial no processo especial de revitalização relativo à ora demandada extingue a instância por impossibilidade superveniente da lide.
         
          Apreciação
         Para além dos factos referidos no relatório que antecede, que nos dispensamos de repetir, importa ter em atenção o seguinte:
1- O A. declarou nos autos (a fls. 407) ter recebido entretanto parte dos créditos reclamados nesta acção, mais precisamente no valor de € 22.142,38;
2- No ponto 6 do Acordo Extrajudicial de Recuperação relativo à sociedade BB, S.A., judicialmente homologado no processo nº 211/13.9TYLSB, ficou estabelecido:
“6.1. Com a homologação do presente acordo:
(…)
6.1.2. extinguir-se-ão, no que à Sociedade diga respeito, todas as acções de cobrança de dívida, de natureza declarativa ou executiva, em que esta seja parte demandada.”

          Da questão de direito
  A lei 16/2012, de 20/4, na sequência do compromisso assumido no memorando de entendimento no sentido de “definir princípios gerais de reestruturação voluntária extra-judicial em conformidade com as boas práticas internacionais”, aditou ao CIRE um conjunto de artigos - 17º-A a 17º-I - que regulam uma nova forma de processo, o Processo Especial de Revitalização (PER), destinado a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil[1] ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
O art. 17º-I, que dispõe sobre homologação de acordos extrajudiciais de recuperação de devedor, estabelece no respectivo nº 6 que se lhe lhe aplica, com as respectivas adaptações, o disposto no art. 17º-E, nos 6 e 7 do art. 17º-F e no art. 17º-H.
          Ora o nº 6 do art. 17º-F determina que a decisão do juiz (de homologação do plano de recuperação ou de recusa de homologação) vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações.
          Por sua vez o art. 17º-E, sob a epígrafe “efeitos”, dispõe no respectivo nº 1 “A decisão a que se refere a al. a) do nº 3 do art. 17º-C[2] obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado  e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
          Como se vê do acordo extrajudicial ora em causa, junto por cópia a fls. 441/458, que foi homologado pela Srª Juíza do 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, nele não se prevê a continuação das acções para cobrança de dívidas, declarativas ou executivas, pendentes à data do início do PER, pelo contrário, prevê-se a respectiva extinção.
   Foi com base neste preceito que a Srª Juíza recorrida decretou a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, assim considerando, implicitamente que a presente acção é uma acção para cobrança de dívidas.
          É precisamente esse entendimento que o recorrente vem pôr em causa, sustentando, com os argumentos que constam do ac. deste tribunal de 11/7/2013, proferido no processo 1190/12.5TTLSB.L1, que a presente acção não é uma acção para cobrança de dívidas e que a interpretação efectuada do disposto no art. 17º-E nº 1 do CIRE viola o princípio constitucional de acesso ao direito a tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP). Com efeito, aí se entendeu que a expressão “para cobrança de dívida” não abrange as acções declarativas, mesmo que estas visem o cumprimento de uma obrigação pecuniária, porque nessa acção a dívida ainda não foi declarada. À data em que a acção declarativa é intentada o que existe é um crédito potencial, não um crédito declarado. Essa acção visa proporcionar ao A. um título executivo, que possa executar em sede própria. A acção executiva é que, indubitavelmente, é uma acção para cobrança de dívida. A existência e decurso de uma acção declarativa de condenação em nada prejudica as negociações referidas na lei[3]. Com o prosseguimento da acção ficava assegurada celeridade na definição dos efectivos direitos e o direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional
Salvo o devido respeito, não corroboramos este entendimento. Embora seja indiscutível que a execução, em especial a execução para pagamento de quantia certa é a típica acção para cobrança de dívida, isso não significa que a acção declarativa em que, como sucede no caso dos autos, se pede a condenação no cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de trabalho, da respectiva violação e cessação, não integre também o conceito de acção para cobrança de dívidas.  É certo que as dívidas aí em causa ou, na perspectiva do demandante, os créditos aí peticionados não estão ainda reconhecidos e só o serão se se provaram os pressupostos em que assentam, isto é, a causa de pedir da acção, portanto se a acção proceder. Mas, ainda que a acção possa improceder, obviamente que é apenas na perspectiva da respectiva procedência que há que analisar se há ou não compatibilidade entre ela e o PER. Não faz qualquer sentido argumentar que a acção pode não proceder para justificar que deva prosseguir termos, apesar da existência de um PER.
          Afigura-se-nos indesmentível que, em última análise, o que com a presente acção se pretende é o reconhecimento dos créditos peticionados (portanto, da concomitante dívida) e consequentemente o pagamento/cobrança desses créditos / dívida. Assim, a nosso ver, a acção objecto destes autos constitui, inequivocamente uma acção de cobrança de dívidas ou com idêntica finalidade, preenchendo pois a previsão do nº 1 do art. 17º-E, aplicável ex vi do art. 17º-I nº 6 do CIRE.
   Neste sentido se pronunciaram autores como Ana Prata, Jorge Morais de Carvalho  e Rui Simões[4] em anotação ao art. 17º-E, onde escrevem “cabem neste conceito quer acções declarativas de condenação, quer acções executivas”; Carvalho Fernandes e João Labareda[5], que a propósito do n.º 1 do artigo 17.º-E, referem “(…) a paralisação aqui determinada abrange todas as acções para a cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as acções declarativas condenatórias (…e) também acções com processo especial e procedimentos cautelares” e João Aveiro Pereira[6], que escreve “embora não exista na lei adjectiva nenhuma espécie de acções de cobrança de dívidas, deve entender-se que esta expressão se reporta a acções declarativas para cumprimento de obrigações pecuniárias e a acções executivas para pagamento de quantia certa (…)”.
          E, na jurisprudência, os ac. da Relação do Porto de 30/9/2013 (P. nº 516/12.6TTBRG.P1) e de 18/12/2013 (P.nº 407/12.0TTBRG.P1) e da Relação de  Évora, de 16/1/2014 (P.nº 358/13.1TTPTM.E1).
          Ora, a lei determina não só que as acções para cobrança de dívidas ou com idêntica finalidade que estejam em curso contra o devedor, quando se inicia o PER, se suspendam após o despacho que nomeia administrador judicial provisório e pelo tempo que perdurarem as negociações, mas também que tal despacho obsta à instauração de tal tipo de acções e ainda que, as que estavam em curso e se suspenderam – como é o caso - se extinguem logo que aprovado e homologado o plano de recuperação, a não ser que este preveja a sua continuação.
          Verifica-se, pois, face ao preceituado pelo art. 17º-E nº 1 in fine, aplicável ex vi do art. 17º-I nº 6 do CIRE a impossibilidade superveniente da lide, o que importa nos termos do art. 277º al.d) a extinção da instância, pelo que bem andou a Srª Juíza ao assim decidir.
         E não se diga que a interpretação efectuada dos mencionados preceitos viola o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP).
  Embora a negociação do acordo de recuperação não tenha tido lugar no âmbito do PER,  por este se ter iniciado com a apresentação pelo devedor de acordo extra-judicial de recuperação assinando por ele e por credores que representem a maioria de votos prevista no nº 1 do art. 212º, acompanhado dos documentos previstos no nº 2 do art. 17º-A e no nº 1 do art. 24º, a lei entende que também neste caso se aplica “o processo previsto no presente capítulo” (cfr. art. 17º-I nº 1). Assim, em termos gerais, após a nomeação pelo juiz de administrador judicial provisório, com as competências definidas nos art. 32º e segs. (art. 17º-C nº 3), os credores que não participaram na negociação são notificados e a lista provisória de créditos é publicada. Qualquer credor que não tenha participado nas negociações pode então reclamar créditos, sendo apresentada depois lista provisória de créditos, que se transforma em lista definitiva após cinco dias úteis, se não houver qualquer impugnação ou após decisão sobre as impugnações se as houver (art. 17º-D).
   Através deste procedimento ficou assegurado o direito de acesso do A. ao direito e à tutela jurisdicional.
          O A. viu reconhecido e pagos no âmbito do PER créditos no valor de € 22.142,38.
         Como bem refere a digna PGA no seu parecer “Sendo o PER um processo em que a empresa (no caso, a ora R.) se apresenta ao tribunal como estando em situação económica difícil, impossibilitada de cumprir integralmente os compromissos para com os seus credores, é óbvio que estes (sob pena de inutilidade do próprio processo) serão parcialmente sacrificados no cumprimento dos seus créditos, mas, pelo menos, têm possibilidade de os reclamar, em pé de igualdade com os restantes credores”
Com efeito, o pretendido prosseguimento dos termos subsequentes da presente acção até julgamento e eventual procedência iria pôr em causa a ratio do procedimento especial de revitalização.
  Em suma, improcedem os fundamentos do recurso, sendo pois de confirmar a decisão recorrida.

          Decisão
          Pelo exposto se acorda em julgar improcedente o recurso e confirmar o despacho recorrido.
          Custas pelo recorrente.
          Lisboa, 18 de Junho de 2014

          Maria João Romba
          Paula Sá Fernandes
            Filomena Manso

[1] Definido no art. 17º-B como a situação em que se encontra o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou não conseguir obter crédito
[2] A nomeação de administrador judicial provisório.
[3] O despacho recorrido era, no caso, o que determinou a suspensão da instância nos termos do art. 17º-E nº 1 do CIRE, ao passo que no caso em apreço é o que julgou extinta a instância.
[4] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pag. 64.
[5] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid ju ris , 2013, págs.164-165.
[6] In “A revitalização económica dos devedores”,  O Direito, ano 145º, 2013, I/II, página 37.

Decisão Texto Integral: