Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3599/2008-6
Relator: GRAÇA ARAÚJO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - No âmbito do Regulamento44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, a regra geral de atribuição de competência judiciária apela ao domicílio do demandado.
II - Todavia, em matéria contratual, o demandante dispõe de alternativa: tratando-se de venda de bens ou de prestação de serviços, o tribunal competente é o do lugar do Estado-Membro onde foram ou devam ser entregues os bens ou prestados os serviços, qualquer que seja a prestação reclama na acção proposta; nos demais casos, o tribunal competente é o do lugar do Estado-Membro onde a obrigação que por via da acção se reclama foi ou deva ser cumprida.
III - As expressões “bens” e “serviços” constantes da alínea b) do nº 1 do artigo 5º do Regulamento respeitam a realidades corpóreas susceptíveis de serem entregues ou prestadas.
(M.G.A.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

O, S.A. propôs contra R, S.P.A. acção declarativa de condenação, sob forma comum e processo ordinário. Alegou, em síntese, que: a autora é uma sociedade anónima de direito português que tem por objecto social, entre outros, a exploração e comercialização de direitos ao espectáculo desportivo, comunicação audiovisual, publicidade, marketing, patrocínios e imagem; a 1ª ré é uma sociedade comercial de direito italiano que tem a concessão exclusiva do serviço público de rádio e televisão, incluindo os serviços de satélite e plataforma digital terrestre do Estado Italiano; no exercício da sua actividade, a 1ª ré explora diversos canais televisivos, entre os quais a RAI SPORT, que se dedica essencialmente à transmissão desportiva de eventos desportivos; a 2ª ré é uma sociedade comercial de direito italiano que integra o grupo RAI e tem por objecto social, entre outros, a aquisição de direitos desportivos para efeitos da sua exploração pelos diversos canais televisivos controlados pela 1ª ré; em 15.3.04, a autora e a 1ª ré celebraram um contrato mediante o qual aquela cedeu a esta, mediante o pagamento de 300.000€, a transmissão televisiva para os territórios de Itália, São Marino e Cidade do Vaticano de dois dados jogos de futebol, a realizar nos dias 30 e 31 de Março de 2004; tendo a autora procedido em conformidade com o acordado, permitindo que a 1ª ré emitisse os jogos de futebol em causa através da RAI SPORT, as rés não pagaram a quantia contratualmente estabelecida. Considerou a autora que as normas de conflitos aplicáveis à situação são as que constam da Convenção de Roma sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, de 19 de Junho de 1980, que o ordenamento jurídico que apresenta mais estreita conexão com o contrato celebrado entre as partes é o português e que os tribunais competentes para apreciar este litígio, de acordo com o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, são os tribunais portugueses. Concluiu a autora, pedindo a condenação solidária das rés a pagar-lhe a quantia de 300.000€, acrescida de juros de mora às taxas aplicáveis aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais desde a data de vencimento da factura emitida – 19.5.04 – até integral pagamento.
As rés contestaram. Excepcionaram a incompetência internacional dos tribunais portugueses para o litígio em causa, porquanto i) as rés têm a sede, a administração central e o estabelecimento principal em Itália, não tendo qualquer delegação em Portugal, ii) não chegou a ser celebrado qualquer contrato entre as partes e, mesmo atendendo à forma como foi configurada a acção, iii) trata-se da cessão de direitos televisivos para efectivação de transmissões televisivas em Itália. À cautela, as rés impugnaram os factos articulados pela autora, invocando, em síntese, que o funcionário que estabeleceu as conversações com a autora não tinha poderes para, atendendo ao montante envolvido, as representar, que a autora não detinha os direitos televisivos que se propôs transmitir e que a 2ª ré nada tem a ver com a situação dos autos. Concluíram, pedindo a sua absolvição da instância, ou, se assim se não entender, a sua absolvição do pedido.
A autora replicou, acusando irregularidades na junção de alguns documentos, refutando as excepções invocadas e pedindo a condenação das rés como litigantes de má fé.
As rés pronunciaram-se sobre as questões atinentes aos documentos e à litigância de má fé.
Aplicando à situação o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, e entendendo que o lugar onde foram prestados os serviços em causa ou entregues as coisas em questão (dependendo da qualificação do contrato) sempre seria a Itália, o tribunal de 1ª instância julgou internacionalmente incompetentes os tribunais portugueses e absolveu as rés da instância.

De tal decisão agravou a autora, formulando as seguintes conclusões:
a) No despacho de que ora se recorre, o Tribunal a quo julgou procedente a excepção de incompetência internacional do Tribunal, absolvendo as agravadas da instância, com fundamento numa errada qualificação jurídica do contrato celebrado entre aquelas e a ora agravante. Assim é que,
b) 0 Tribunal a quo considerou — salvo o devido respeito, que muito é, sem razão — que o contrato celebrado entre a agravante e a 1ª agravada (e que se encontra junto à PI como Doc. nº 4) constitui um contrato de prestação de serviços, aplicando, em consequência, a norma de conflitos constante do 2º parágrafo da alínea b) do nº 1 do art. 50 do Regulamento. Ora,
c) O contrato celebrado entre as aqui agravante e 1ª agravada tinha por objecto a cessão onerosa dos direitos de transmissão televisiva de dois jogos disputados entre as selecções profissionais e sub-21 de Portugal e Itália, em Março de 2004, em Portugal. Ou seja,
d) O objecto do contrato firmado é constituído pela cedência de um direito ou feixe de direitos, mediante o pagamento de uma contrapartida, isto é, de um preço;
e) Nos ternos do disposto no artigo 1154° do Código Civil, a prestação de serviços é o contrato pelo qual um dos contraentes (o prestador dos serviços) se obriga a proporcionar ao outro o resultado do seu trabalho, intelectual ou manual, com ou sem retribuição;
f) No caso dos autos, a agravante não se comprometeu a entregar à 1ª agravada o resultado de qualquer actividade ou criação sua, mas apenas a ceder-lhe uma específica faculdade que integrava o seu património — faculdade essa traduzida na possibilidade de autorizar, onerosa ou gratuitamente, a transmissão televisiva de um certo evento desportivo;
g) O objecto mediato do contrato celebrado entre a autora e a 1ª ré não é, pois, constituído pela cedência de uma qualquer actividade ou resultado criativo, mas sim por um direito ou, melhor, um conjunto de direitos ou faculdades, que integram o conteúdo de um direito conexo ao direito de autor – doutrinariamente identificado como "direito ao espectáculo";
h) Note-se, aliás, que a aqui agravante – transmitente da faculdade específica de autorizar a exploração televisiva dos espectáculos desportivos em causa nos autos – não é, ela mesma, a titular primitiva desse direito ao espectáculo, tendo os direitos de exploração comercial desses espectáculos, na vertente da sua difusão pública, sido cedidos pela referida F. Ou seja,
i) A agravante obrigou-se – e cumpriu integralmente essa obrigação – a transmitir à 1ª agravada um direito que ela mesma havia adquirido do seu primitivo titular, pelo que o contrato celebrado entre autora e 1ª ré configura, afinal, uma modalidade de compra e venda de direitos. Sendo que,
j) Na medida em que o objecto da transmissão acordada é um direito e não uma coisa, a "obrigação de entrega" do mesmo (prevista no artigo 879° do Código Civil) não implica a prática de qualquer acto material por parte da cedente do direito, mas apenas e só a prática de um acto jurídico, consubstanciado na emissão de uma autorização para a difusão televisiva dos eventos desportivos a que se referem os direitos cedidos;
l) Não andou, assim, bem o Tribunal ao qualificar o contrato como contrato de prestação de serviços, tendo interpretado e aplicado incorrectamente o disposto no artigo 1154° do Código Civil aos presentes autos. Aliás,
m) Curiosamente, no mesmo despacho admite-se como possível que o contrato em causa pudesse ser qualificado como uma simples e compra venda de direitos – como defende a aqui agravante – mas o Tribunal retira dessa qualificação uma conclusão que, salvo o devido respeito, não tem qualquer razão de ser. Na verdade,
n) O Tribunal conclui que, em qualquer dos casos – ou seja, quer estejamos perante uma simples prestação de serviços, quer estejamos perante uma compra e venda de direitos – os Tribunais Italianos seriam sempre competentes para julgar a presente acção, porquanto teria sido em Itália que os serviços ou os bens deveriam ter sido prestados e/ou entregues, respectivamente. Ora,
o) A circunstância de se dever qualificar o contrato celebrado entre a agravante e a 1ª agravada como uma compra e venda de direitos não implica a imediata e necessária aplicação do artigo 5º alínea b) 1º parágrafo do Regulamento. Com efeito,
p) Apesar de, num sentido lato, a expressão "bens" incluir igualmente os direitos, designadamente os direitos de crédito, no Regulamento, a compra e venda de bens inclui apenas os bens em sentido estrito, isto é, os bens corpóreos ou mercadorias;
q) É o próprio legislador que, na Proposta de Regulamento, a respeito das competências especiais previstas no artigo 5º do Regulamento, esclarece isso mesmo, utilizando aliás a expressão "mercadorias" para se referir à compra e venda de "bens", no que não pode deixar de ser entendido como um forte elemento em defesa desta tese;
r) A específica teleologia do artigo 5º alínea b) 1º parágrafo do Regulamento (definir, com certeza, o local onde a obrigação foi ou deveria ter sido cumprida) aponta também no mesmo sentido. Assim é que,
s) Tanto no que diz respeito à prestação de serviços, como à venda de mercadorias, o "local onde a obrigação foi ou devia ter sido cumprida" — maxime, "o local onde os serviços foram ou devam ser prestados" ou o "local onde os bens foram ou devam ser entregues” – é facilmente determinável em termos empíricos, porquanto estando em causa bens de natureza corpórea (seja a obra produzida pelo prestador de serviços, seja a mercadoria objecto da venda), fácil se mostra a determinação geográfica daquele local;
t) Já no que respeita às alienações de meros direitos, não existe um bem corpóreo ou o resultado de um trabalho susceptível de ser entregue em termos factuais, tornando-se esta conexão muito difícil — senão mesmo impossível — de estabelecer e, assim, de dar cumprimento à ratio legis do nº 1 b) do artigo 5º do Regulamento, que nos dois tipos contratuais em questão determina, por razões de segurança jurídica, que o local de cumprimento da obrigação em causa seja o do exacto local onde os serviços e os bens tenham sido ou devam ser prestados e/ou entregues. Em suma,
u) O primeiro parágrafo da alínea b) do nº 1 do artigo 5° do Regulamento apenas se aplica às compras e vendas de mercadorias, excluindo-se, nomeadamente, as transmissões que tenham por objecto direitos imateriais, como é o caso da cedência de direitos televisivos e outros direitos conexos com o direito ao espectáculo;
v) Nos termos do disposto na alínea c) do n° 1 do artigo 5º do Regulamento, quando não seja aplicável ao caso o disposto na alínea b) – i.e., quando não estejamos perante um contrato de prestação de serviços ou de compra e venda de mercadorias – regerá o disposto na alínea a) do mesmo preceito, que, em matéria contratual, determina que uma pessoa com domicílio no território de um Estado-membro pode ser demandada noutro Estado-membro, perante o tribunal do local onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida;
x) Estando em causa nos presentes autos o cumprimento da obrigação de pagamento do preço devido pela cessão de direitos, deveria a mesma ter sido cumprida no domicílio do credor;
z) Nenhuma dúvida poderia, pois, subsistir no que respeita à atribuição de competência aos Tribunais portugueses e, designadamente, às Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, para o julgamento da presente acção;
a’) Ao partir do pressuposto de que (i) o contrato em causa nos autos era uma simples prestação de serviços, que (ii) seria aplicável o disposto no segundo parágrafo da alínea b) do n° 1 do artigo 5º do Regulamento e, bem assim, (iii) que mesmo que tal contrato devesse ser qualificado como uma compra e venda de direitos, regeria o primeiro parágrafo daquela disposição legal, por se aplicar esta indistintamente a bens "materiais" e "imateriais", o Mmo. Juiz — salvo o devido respeito, que muito é — interpretou e aplicou incorrectamente ao caso a alínea b) do n°1 do artigo 5° do Regulamento, tendo ainda violado o disposto nas alíneas c) e a) dessa mesma disposição, devendo, nessa medida, o despacho em crise ser revogado por este Venerando Tribunal e substituído por outro que declare a competência das Varas Cíveis de Lisboa para julgarem a presente acção;
b’) Ainda que se considerasse ser aplicável ao caso sub judice o disposto nos referidos 1º e 2° parágrafos da alínea b) do n° 1 do art. 5° do Regulamento — no que se não concede e por mera cautela de patrocínio se equaciona — competentes seriam ainda os tribunais portugueses. É que,
c’) Contrariamente ao que é dito no despacho recorrido, nunca se poderia afirmar, fundadamente, que o contrato incumprido pelas rés tinha por objecto mediato «bens» que foram entregues em território italiano, sendo esta uma condição indispensável para a aplicação da referida alínea b) do n° 1 do artigo 5º do Regulamento;
d’) A especial natureza dos «bens» em questão — direitos televisivos, ou seja, direitos imateriais conexos ao direito ao espectáculo — não permite formular semelhante conclusão, desde logo porque, como se percebe, neste tipo de contratos não há efectivamente um «local» onde devam ser entregues tais «bens»;
e’) Aliás, o Tribunal nem sequer fundamenta a sua posição nos termos da qual os "bens" em questão – os direitos televisivos – deveriam ser entregues em Itália, partindo do mero pressuposto de que assim seria;
f’) Porém, esta premissa – que se assemelha, na prática, a uma petição de princípio – não é correcta. Na verdade,
g’) Deve ter-se presente que o objecto do contrato que foi celebrado entre a autora e a 1ª ré teve por objecto a cessão dos direitos de transmissão televisiva dos jogos de futebol disputados entre as selecções AA e sub-21 de Portugal e Itália, em 30 e 31 de Março de 2004, em Portugal, tendo, nessa medida, a recolha das imagens e transmissão de imagens via satélite ocorrido a partir de Portugal. Pelo que,
h’) Se se considerar que existe uma "entrega" do direito alienado – o direito de transmitir os jogos de futebol para território italiano – essa entrega ter-se-á necessariamente dado em Portugal, porquanto foi nesse local que teve lugar a recolha das imagens para posterior retransmissão em Itália;
i’) A retransmissão do sinal a partir de Portugal para o território italiano ocorre, na verdade, depois de "entregue" o direito cedido;
j’) As próprias circunstâncias atinentes à específica natureza dos direitos transmitidos apontam claramente no sentido do "lugar da entrega dos bens" ser o território português;
l’) O que, de resto, é corroborado pelo teor dos Docs. n° 1 e 2 juntos com a presente alegação – junção essa que é feita ao abrigo do regime predisposto nos artigos 743º n° 2 e 706° nº 1 2ª parte do Cód. Proc. Civil;
m’) Ainda que não fosse possível concluir pela existência de uma "vontade tácita" nesse sentido — o que apenas se admite por mera cautela no patrocínio, e sem conceder — sempre teria de considerar-se ser o território nacional o "lugar do cumprimento da obrigação de entrega", porquanto a tal conclusão chegaríamos pela intervenção em causa das regras de conflito do Estado do Foro;
n’) A doutrina portuguesa tem salientado que se os "termos do contrato" forem omissos quanto ao "lugar do cumprimento da obrigação de entrega" e, bem assim, não for possível inferir, das circunstâncias do caso, uma vontade tácita a este respeito, resta ao Julgador apelar às regras de conflito existentes no Direito Português para resolver a questão;
o’) Se seguirmos esta posição, no presente caso, nenhuma dúvida poderá existir no que respeita à circunstância de o "lugar da entrega" ser o território português. É que,
p’) De acordo com o disposto na Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, de 18 de Junho de 1980, o direito aplicável ao caso seria o Direito Português e, consequentemente, ter-se-ia de recorrer ao disposto nos artigos 772° e 773° do Código Civil que, como é sabido, dispõem que o lugar do cumprimento da obrigação é o domicílio do devedor e, no caso de a obrigação ter por objecto uma coisa móvel, o local onde esta se encontre. Ou seja,
q’) Mesmo que se considere que a norma relevante para efeitos de determinação do foro competente para dirimir o presente litígio é a constante dos 1° ou 2° parágrafos da alínea b) do nº 1 do art. 5° do Regulamento, competentes seriam sempre os Tribunais portugueses.
As rés apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

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Para a economia do presente recurso, são de considerar provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade anónima de direito português que tem por objecto social, entre outros, a exploração e comercialização de direitos ao espectáculo desportivo, comunicação audiovisual, publicidade, marketing, patrocínios e imagem.
2. A autora tinha e tem sede em Lisboa.
3. A 1ª ré é uma sociedade comercial de direito italiano que tem a concessão exclusiva do serviço público de rádio e televisão, incluindo os serviços de satélite e plataforma digital terrestre do Estado Italiano.
4. No exercício da sua actividade, a 1ª ré explora diversos canais televisivos, entre os quais a RAI SPORT, que se dedica essencialmente à transmissão televisiva de eventos desportivos.
5. A 2ª ré é uma sociedade comercial de direito italiano que integra o grupo RAI e tem por objecto social, entre outros, a aquisição de direitos desportivos para efeitos da sua exploração pelos diversos canais televisivos controlados pela 1ª ré.
6. As rés têm a sede estatutária, a administração central e o estabelecimento principal em Itália.
7. Em 22.9.06, a autora demandou judicialmente as rés, com vista ao pagamento da quantia de 300.000€, correspondente à contrapartida – acordada e não paga – da cessão, pela autora à 1ª ré, dos direitos de exploração e transmissão televisiva e radiofónica – em directo ou em diferido, integralmente ou por partes, através de sinal digital ou analógico, por via terrestre, cabo ou satélite – para os territórios de Itália, São Marino e Cidade do Vaticano de dois jogos de futebol entre as selecções nacionais de SUB-21 e AA de Portugal e Itália, a realizar nos dias 30 e 31 de Março de 2004, sendo que a autora permitiu que a 1ª ré emitisse os jogos de futebol em causa através da RAI SPORT.

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A única questão a decidir é a de saber se, para apreciar e julgar o litígio em causa nos autos, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.

Não oferece dúvidas que ao conflito que opõe as partes (tendo em conta o respectivo domicílio, a matéria a que respeita e a data da propositura da acção) é aplicável o Regulamento44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial (que doravante designaremos simplesmente por Regulamento). E a tal afirmação não obsta a posição das rés de que não celebraram qualquer contrato com a autora (cfr. Alexis Mourre, Droit judiciaire privé européen des affaires, Bruylant, Bruxelles, 2003:76 e Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, Almedina, Coimbra, 2002:82).
Igualmente dúvidas não suscita a aplicabilidade da lei portuguesa aos aspectos substantivos da situação que constitui o objecto deste litígio, mercê do disposto nos artigos 1º nº 1, 4º nº 1, 1ª parte, e nº 2, 8º nº 1 e 10º nº 1-b) da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais e considerando que a prestação característica (individualizadora) do contrato invocado não pode deixar de ser a da autora, uma vez que a das rés representa, apenas, a contrapartida monetária daquela (cfr. Luís de Lima Pinheiro, obra citada, Vol. II, 2005:195 e 288).

A regra geral de atribuição de competência judiciária prevista no regulamento apela ao domicílio do demandado (quanto ao domicílio das sociedades, vd. artigo 60º do Regulamento). Tal regra não, assume, contudo carácter absoluto, pois que o demandante dispõe, em matéria contratual (única que nos importa neste recurso analisar), de alternativa (artigos 2º, 3º nº 1 e 5º nº 1 do Regulamento).
Estando em causa matéria contratual, o Regulamento autonomizou duas situações em especial e tratou, em conjunto e residualmente, as restantes. Ou seja: no caso de venda de bens e no caso de prestação de serviços (considerados como os mais frequentes no comércio no espaço europeu comum), o tribunal competente para o litígio é o do lugar do Estado-Membro em que, nos termos do contrato, os bens ou serviços foram ou devam ser entregues ou prestados, mesmo que não sejam essas concretas prestações as que se reclamam na acção (artigo 5º nº 1-b) do Regulamento); nos outros casos, o tribunal competente para o litígio é o do lugar do Estado-Membro onde foi ou deva ser cumprida a obrigação que, por via da acção, se reclama (artigo 5º nº 1-a) e c) do Regulamento) – cfr. Neves Ribeiro, Processo Civil da União Europeia, Coimbra Editora, Coimbra, 2002:67/69.
Se o disposto no artigo 2º do Regulamento se limita a atribuir aos tribunais de um Estado-Membro a competência para os litígios em que seja demandada uma pessoa aí domiciliada, cabendo à lei interna desse Estado definir o tribunal territorialmente competente, já no artigo 5º nº 1 se estabelece o concreto tribunal de um dado Estado-Membro competente para dirimir o litígio. Sem afastar o critério do domicílio – que melhor corresponde ao “elevado grau de certeza jurídica” que se pretende que as regras de competência apresentem (Considerando nº 11 do Regulamento) – elegeu-se, em matéria contratual, um outro critério, “em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio, ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça” (Considerando nº 12 do Regulamento). E esse critério corresponde ao lugar do cumprimento da obrigação.
A propósito das alternativas previstas no Regulamento ao foro do domicílio, escreveu Luís de Lima Pinheiro (obra citada, Vol. III:80) que “do art. 3.º/1 decorre que os critérios especiais de competência são definidos taxativamente pelo Regulamento, em caso algum se admitindo o seu alargamento por via interpretativa ou integrativa”; mas o autor discorda de que tais limitações se devam estender aos preceitos que, para matérias diversas, permitem que a acção seja proposta nos tribunais do Estado-Membro diverso do do domicílio do demandado, como defendem os que argumentam com o carácter especial desses preceitos.
Discordamos, nesse aspecto, do autor.
Em primeiro lugar, porque, se a expressão “só pode” – constante do artigo 3º nº 1 do Regulamento – aponta claramente no sentido da delimitação exacta das possibilidades de um foro alternativo ao do domicílio, não faria sentido que, no momento seguinte da análise, quando se trata de definir as situações em que essas possibilidades ocorrem, se permitisse alargar – por via interpretativa ou outra – esse leque de possibilidades.
Em segundo lugar, porque o objectivo último do Regulamento - o de simplificar e clarificar, na perspectiva dos utentes da justiça, as regras relativas à competência de cada Estado-Membro para o julgamento dos litígios que apresentem alguma conexão com mais do que um Estado – objectivo que justificou a adopção do critério do domicílio, não deve ser abalado, senão no mínimo indispensável, pelo critério do lugar do cumprimento da obrigação. Por isso, se definiu – para efeitos do Regulamento – o que deveria entender-se como lugar do cumprimento da obrigação nos casos mais frequentes do comércio, o da venda de bens e o da prestação de serviços. E também por isso se apelou, nesses casos, a um critério facilmente cognoscível pelas partes traduzido pelo local em que, de acordo com o contrato, os bens foram ou devam ser entregues e os serviços foram ou devam ser prestados. A este propósito, a Exposição de Motivos da Proposta de Regulamento (CE) do Conselho relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (apresentada pela Comissão) fala numa “designação pragmática do local de execução, repousando num critério puramente factual(…)”.
Propendemos, em consequência, para considerar que a protecção do cidadão comunitário que tem de escolher o tribunal em que propõe a acção e a daquele que tem de prever o tribunal em que será demandado impõem que às expressões “venda de bens” e “prestação de serviços” correspondam as realidades económicas que intuitivamente lhes estão associadas e cujo lugar de cumprimento (entrega/prestação) facilmente se revele em face da “corporização” dos referidos bens e serviços. Significa isto que, para que a alínea b) do artigo 5º do Regulamento seja aplicável necessário se torna que a “venda de bens” e a “prestação de serviços” impliquem realidades susceptíveis de ser entregues ou prestadas.
No sentido de que à expressão “bens” deve ser associada uma natureza corpórea (sob pena de dificilmente se poder equacionar a sua entrega) invocamos, ainda, o texto do Regulamento nas línguas espanhola e francesa, que falam, respectivamente, em mercaderías e marchandises, e a Proposta de Regulamento (CE) do Conselho relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (apresentada pela Comissão), que por mais de uma vez refere “venda de mercadorias” .

Vejamos, pois, se a situação dos autos (tal como resulta da petição inicial) configura uma venda de bens ou uma prestação de serviços, para efeitos da alínea b) do nº 1 do artigo 5º do Regulamento.
Alegou a autora que cedeu à 1ª ré, em exclusivo, os direitos de exploração e transmissão televisiva e radiofónica – em directo ou em diferido, integralmente ou por partes, através de sinal digital ou analógico, por via terrestre, cabo ou satélite – para os territórios de Itália, São Marino e Cidade do Vaticano de dois jogos de futebol entre as selecções nacionais de SUB-21 e AA de Portugal e Itália, a realizar nos dias 30 e 31 de Março de 2004, mediante o pagamento de 300.000€.

Enquanto eventos públicos, os jogos de futebol constituem um espectáculo que, para além de ser passível de assistência “ao vivo” mediante uma contrapartida monetária que permite o ingresso no recinto em que se realiza o jogo, pode ser objecto de transmissão televisiva. Esta, pela possibilidade que em si mesma comporta de demover o público de se deslocar ao estádio e comprar o bilhete de entrada, é susceptível de causar prejuízos – pela diminuição das receitas - ao organizador do espectáculo; e, por outro lado, a transmissão de um jogo de futebol por um dado canal de televisão propicia o aumento das receitas da publicidade, à custa do investimento feito pelo organizador do espectáculo (cfr. Oliveira Ascensão, “O Direito ao Espectáculo”, BMJ 366º-49/50). Justifica-se, assim, que a transmissão televisiva de um espectáculo dependa de autorização do respectivo organizador. Este é titular de um direito ao espectáculo e ao aproveitamento deste – Oliveira Ascensão, obra citada:53/54.
A tal direito se refere directamente o nº 2 do artigo 19º da Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo).
Para Oliveira Ascensão (“Titularidade de Licença de Emissor de Televisão e Direito ao Espectáculo No rescaldo do litígio S.L.Benfica/Olivedesportos”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Volume II, Almedina, Coimbra, 2002:302/303), o direito ao espectáculo é um direito intelectual (refere-se “a bens só configuráveis por um juízo”), que se exprime por faculdades; “é um direito exclusivo”, pois “permite ao empresário reservar o aproveitamento do espectáculo” “como bem incorpóreo” (traduzido nas “imagens em movimento em que o espectáculo consiste”); e é um “direito efémero”, com “um período limitado de vida, correspondente ao da difusão como actualidade do espectáculo realizado”.
“O núcleo das faculdades outorgadas está assim na transmissão televisiva, em todas as suas modalidades. É esta forma de exploração do espectáculo que é universalmente reservada, antes de mais, ao empresário” – Oliveira Ascensão, estudo citado:303.
Não havendo “nenhum obstáculo a que o empresário ceda a outrem as faculdades jurídicas de que é titular”, pode a transmissão “ser total, se o titular fica completamente despojado da posição jurídica que lhe cabia”, ou parcial, podendo, ainda, conceber-se a oneração do direito e a simples concessão de licença (Oliveira Ascensão, estudo citado:304). E “o princípio geral da disponibilidade das situações jurídicas aplica-se” a ulteriores transmissões – totais ou parciais – do direito (Oliveira Ascensão, estudo citado:305).

Do que acabámos de expor resulta que, para efeitos do Regulamento, não estamos perante um caso de “venda de bens”. Ao contrário do que as rés sustentam, a realidade que transita da esfera jurídica da autora para a da 1ª ré é o direito de exploração e transmissão televisiva de dois dados jogos de futebol, em certa parcela de território, e não a transmissão televisiva em si mesma. O objectivo último da ré é, certamente, a transmissão daqueles jogos através do seu canal de televisão, mas isso não invalida o que dissemos.
Entendem as rés que está em causa um “contrato de prestação de serviços, consubstanciado na alienação de direitos televisivos” (artigo 15º da contestação), que “a Recorrente acordou com a Recorrida prestar a esta um determinado serviço (transmissão televisiva de eventos)” – ponto 18. das contra-alegações - e que a situação alegada pela autora é aquela em que o “titular de um direito a transmitir se obriga a fazer com que essa transmissão seja possível num determinado território” (ponto 64. das contra-alegações).
Nesta tríplice (e, afigura-se-nos, dificilmente conciliável) argumentação, as rés salientam, por um lado, a transmissão de um direito, por outro, o “fornecimento” do um resultado e, por último, a execução de uma actividade.
Ora – para além de não conseguirmos conceber como pode a transmissão de um direito reconduzir-se à prestação de um serviço - da alegação da autora e do documento por ela junto com a petição inicial sob o nº 4 – que, na sua óptica, corporizaria o acordo alcançado entre as partes – não decorre que aquela se tenha obrigado a proporcionar às rés certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual ou, sequer, a realizar, em benefício das rés, qualquer actividade não subordinada. Não há na alegação da autora nem no documento por ela junto qualquer referência à obrigação daquela de proceder à captação de imagens e som e à transmissão televisiva dos jogos em benefício da ré (cremos, até, que o não poderia fazer por ausência da respectiva licença), nem se faz menção a quaisquer aspectos (que as rés igualmente não concretizam) que a autora devesse providenciar para possibilitar às rés a transmissão televisiva no território em causa.
Em questão não está, também, a prestação de um serviço por banda da autora.

Excluída a aplicação da alínea b) do artigo 5º do Regulamento, poderia a autora socorrer-se do disposto na respectiva alínea a), que atribui a competência ao tribunal do lugar em que foi ou deva ser cumprida a obrigação objecto da demanda, no caso o pagamento da contrapartida de 300.000€.
Não tendo sido expressamente convencionado onde deveria ser paga aquela quantia (nem podendo entender-se como acordo tácito a ausência de resposta das rés à factura enviada pela autora e em que esta consignou que o pagamento deveria ser feito através de transferência bancária para uma conta domiciliada em Portugal), havemos de recorrer à norma supletiva do artigo 774º do Cód. Civ..
Tendo a autora sede em Lisboa e em face do valor da acção, as Varas Cíveis de Lisboa são internacionalmente competentes para o julgamento da presente causa.

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Por todo o exposto, acordamos em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, revogamos a decisão recorrida para ser substituída por outra que, reconhecendo a competência internacional do tribunal, assegure a subsequente tramitação do processo.
Custas pelas agravadas.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2008


Maria da Graça Araújo
José Eduardo Sapateiro
Maria Teresa Soares