Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
93/19.7PTAMD.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: NULIDADE DEPENDENTE DE ARGUIÇÃO
IRREGULARIDADE
DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
FORMA DE ARGUIÇÃO
PRAZO DE ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A ausência ou deficiência da gravação da audiência constitui nulidade sanável e não irregularidade, mantendo-se actual a doutrina do A.U.J. nº 13/2014.
II – As irregularidades passíveis de conhecimento oficioso são apenas as que podem vir a constituir nulidade, sendo corrigíveis pela entidade responsável pelo acto e tendencialmente de imediato.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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Neste processo foi AT condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo nº 1 do artº 292º do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 8 euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses.
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Interpôs o arguido o presente recurso concluindo:
1. O presente recurso versa sobre matéria de facto, discordando o Recorrente da sentença proferida nestes autos e que o condena pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal.
2. O presente recurso tem como principais fundamentos o erro na apreciação da prova, no que tange à participação e responsabilidade do recorrente nos factos dados como provados, na insuficiência destes para a decisão, bem como a violação dos Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio pro reu.
3. Considera o Recorrente que os factos dados como assentes em 1.º e 2.º na sentença ora em crise não deveriam ter sido dados como provados por não ter sido produzida prova em audiência de julgamento nesse sentido, e que tais factos estão em flagrante oposição com a prova produzida.
4. O Recorrente prestou declarações em audiência de julgamento e negou a prática dos factos nas circunstâncias que vêm descritas na acusação, na medida em que referiu que efetivamente embateu no veículo do seu vizinho na Rua P. em …, pelas 19:30 e não às 21:30 conforme narrado na acusação.
5. Nessa ocasião o arguido não se encontrava etilizado, pois não havia ingerido quaisquer bebidas alcoólicas.
6. Só posteriormente já no domicílio, o arguido e o seu primo ingeriram bebidas alcoólicas, nomeadamente uísque, tal como era costume nos seus convívios quando ambos se juntavam, conforme referiu em audiência de julgamento.
7. Pelas 21:30 horas, a agente da PSP dirigiu-se ao domicílio do arguido e conduziu-o para a esquadra a fim deste ser submetido a teste qualitativo de controlo de álcool, tendo posteriormente, acusado o teor de álcool no sangue constante nos autos.
8. A declaração amigável do sinistro em causa, a qual foi preenchida e assinada unicamente pelo seu vizinho e onde está aposta como hora do sinistro “19:30”. Tal documento foi remetido ao arguido pela “Lusitânia Seguros”, seguradora de ambos os sinistrados.
9. A versão do arguido foi inteiramente corroborada pelas testemunhas CB e SV, respetivamente primo e esposa do arguido, que estiveram com ele no dia dos autos e presenciaram a chegada da agente da PSP a casa do arguido, local onde os três se encontravam.
10. CB estava com o recorrente quando ocorreu o sinistro e confirmou que o mesmo ocorreu pelas 19:00, mais confirmando que após essa ocorrência esteve a ingerir bebidas alcoólicas com o seu primo, nomeadamente uísque e que pelas 21:30 agentes da PSP bateram à porta da residência.
11. No mesmo sentido, SV narrou estar em casa quando o marido saiu para ir buscar o seu primo, CB, e que ambos chegaram passava pouco tempo das 19:30 horas, sendo que nesta altura o arguido partilhou consigo que havia embatido no carro do vizinho.
12. Mais referiu a testemunha SV que o seu marido e CB estiveram a consumir bebidas alcoólicas e que pela hora do jantar os agentes da PSP bateram à porta.
13. A testemunha NV, agente da PSP que subscreveu o auto de notícia que deu origem aos presentes autos e que se deslocou ao local, referiu não se recordar quem se encontrava no local aquando da sua chegada, isto é, se ali estava apenas um dos intervenientes ou os dois, não se recordando igualmente se o arguido estava ou não no interior da sua residência.
14. Não delimita o ora Recorrente as passagens/excertos dos depoimentos gravados na audiência de discussão e julgamento por total inaudibilidade das mesmas.
15. Neste sentido, entende o ora Recorrente que foram dados como provados factos que, salvo o respeito devido, foram incorretamente apreciados, pois não poderia o douto Tribunal a quo ter formado a sua convicção no sentido em que “Nisto, foi peremptória a agente da PSP NV, corroborando ainda que no local constatou as posições retratadas no croqui de fls. 8 v. e que ali se encontrava o arguido que até admitiu, o óbvio, que tinha ingerido bebidas alcoólicas.”
16. Sucede ainda que o arguido não foi detido em flagrante delito, nem se configura nesta situação a presunção legal de flagrante delito prevista no n.º 2 do artigo 256.º, tanto que o arguido foi submetido a julgamento sob a forma de processo comum e não sob processo especial.
17. Face ao exposto, não deveria o Tribunal a quo ter julgado como provado que o arguido às 21:30 horas conduziu o seu veículo com a taxa de alcoolemia identificada nos autos, porquanto o sinistro ocorreu pelas 19:00 horas, sendo que nesta altura o arguido não estava etilizado.
18. O Tribunal a quo baseou a sua convicção de modo genérico no teor do auto de notícia, o qual foi elaborado em 02/08/2019, isto é, cerca de três meses após a ocorrência, e do exame toxicológico, desconsiderando a demais prova, nomeadamente a versão do recorrente, os depoimentos das testemunhas em audiência de julgamento e a prova documental junta pelo recorrente.
19. Há no entender do Recorrente um evidente erro notório na apreciação da prova e insuficiência da mesma para a decisão da matéria de facto provada, vícios estes que só poderiam concluir pela absolvição do arguido.
20. Por fim, à luz dos elementos probatórios descritos na decisão, sempre seria de aplicar o Princípio in dúbio pro reu e solucionar a dúvida claramente existente a favor do arguido, pelo que o Tribunal a quo violou o princípio da presunção da inocência acolhido no artigo. 32.º, n.º 2 da CRP.”
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O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, concluindo:
O tribunal a quo não violou as normas invocadas pelo recorrente.
Resulta da decisão todo o percurso e raciocínio lógico feitos, para se concluir pela necessidade de condenar o arguido na pena de multa e pena acessória.
A decisão condenatória está amplamente fundamentada e suportada nos factos provados e pelos normativos legais mencionados.
Entendemos assim que deve a decisão recorrida ser integralmente confirmada, face ao enquadramento factual nela vertido e à realizada valoração e análise crítica da prova, fazendo o devido enquadramento jurídico e correcta aplicação do direito, assim se tendo concluído pela condenação do arguido, em pena principal e acessória, cuja escolha e medida se nos afigura como adequada e proporcional.”
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Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da não admissão do recurso, ou sua rejeição, com confirmação do julgado.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
“1º No dia 05-05-2019, cerca das 21:30, na Rua P. em (…), o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula xx-TJ-xx, com um teor de álcool no sangue de pelo menos 2,10 g/l, quando foi interveniente em acidente de viação, ao estacionar o seu veículo, embatendo num veículo que estava aparcado.
2º O arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas e que sob a sua influência conduzia na via pública, bem sabendo que essa quantidade de álcool que ingerira lhe reduzia consideravelmente as faculdades psicológicas absolutamente necessárias à condução automóvel, designadamente no que respeita à coordenação das funções da percepção e da coordenação motora, e não obstante, quis conduzir o seu veículo na via pública depois dessa ingestão.
3º O arguido actuou de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
4º (...) O arguido está desempregado, estando a tirar um curso de formação profissional pelo que aufere € 350,00 mensais. Reside com a companheira e dois filhos de 4 e 9 anos. O casal conta com os rendimentos da companheira do arguido, na ordem dos € 700,00 mensais. Com despesas fixas e para além das tidas com a normal subsistência, paga o valor de € 300,00 por mês com a renda da habitação.
5º (...) foi condenado por sentença proferida no processo nº 208/(…) do Juízo (…), transitada em julgado em 21.05.2014 pela prática em 8.04.2014, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de 3 meses de inibição de condução.”
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Cumpre apreciar.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
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Atendendo às conclusões apresentadas é apenas uma a questão a apreciar, a saber, erro de julgamento, por errada apreciação da prova.
Ainda que o recorrente se refira a erro notório na apreciação da prova e a insuficiência da mesma para a decisão da matéria de facto provada é evidente, pelo teor de todo o recurso, que não se está a referir aos motivos de reenvio a que alude o artº 410º do Código de Processo Penal, para onde se remete. Daí que conclua com a pretensão de absolvição e não com a consequência típica daquelas causas.
Também as referidas violações dos princípios da inocência e “in dubio pro reo” têm origem na mesma fonte, isto é, do teor do recurso retira-se claramente que são apenas decorrência daquela apreciação probatória.
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Erro de julgamento.
Como logo o próprio recorrente dá nota, a gravação da audiência é inaudível, daí que não tenha delimitado “passagens/excertos dos depoimentos gravados”.
E de facto assim sucede A gravação é inaudível e o recorrente não indica as passagens das gravações em que funda o seu recurso sobre a factualidade provada.
Isto porque “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”, como resulta do nº 4 do artº 412º do Código de Processo Penal, sendo aquelas especificações referentes às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e às provas que devem ser renovadas (teor daquelas duas alíneas).
Por isso que o parecer do Ministério Público junto desta Relação foi no sentido da não admissão do recurso, ou da sua rejeição.
Ultrapassada tal fase, cabe, em conferência, julgá-lo improcedente.
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Uma palavra apenas, ilustrando a discussão que conduziu à decisão, quanto à posição que fez vencimento, também no que respeita à jurisprudência ali citada (desta Relação de Lisboa, de 30.4.2019, relator Des. Cid Geraldo, processo n.º 824/11.3ECLSB.L1-5), juntando-se afinal o voto de vencido do Exmo. Desembargador relator original.
A falta da gravação (equivalente à impossibilidade de audição) é mais do que uma irregularidade - trata-se de nulidade – artº 363º e nº 1 do artº 364º do Código de Processo Penal.
Sanável nos termos do nº 1 do artº 120º do Código de Processo Penal, pois não consta do rol do artº 119º do mesmo diploma legal.
Como neste caso não foi arguida perante quem devia e no prazo devido, sanou-se.
O recorrente tem todo o direito ao recurso de facto, mas tem de cumprir todo o “iter” processual para o efeito, sob pena de inviabilizar aquele.
Ora, por não arguir aquela nulidade, para além do que se disse, ficou impossibilitado de cumprir o ónus de indicação dos pontos de facto pela forma processual legalmente exigida.
Se o recorrente tivesse arguido em tempo e no local próprio aquela falta, decerto que o tribunal mandaria repetir a gravação, se fosse impossível aproveitar a existente (há programas informáticos que o fazem, dependendo do estado da gravação original).
Por outro lado, a tomar por boa a qualificação da deficiência da gravação como uma mera irregularidade, esta nunca poderá ter o mesmo efeito, ou semelhante, a uma nulidade insanável - a tanto se opõe o princípio geral enformador do nº 1 do artº 123º do Código de Processo Penal, estabelecendo que a irregularidade deve ser arguida de imediato, ou em muito curto prazo se verificada na ausência de quem a deva notar, para que possa ser prontamente reparada.
Caso contrário, sana-se, sem consequência, justamente por se tratar de mera irregularidade, menos grave do que qualquer nulidade. Note-se que a maioria destas também se sanam se não denunciadas.
Se a irregularidade for detectada pode ser regularizada oficiosamente, mas aqui já com um requisito extra, o que bem se compreende, atendendo a que o nº 2 do artº 123º do Código de Processo Penal constitui excepção ao princípio geral da necessidade de arguição, patente no seu nº 1. Assim, para que seja reparada oficiosamente, a irregularidade tem de ter a virtualidade de puder afectar o valor do acto praticado Caso contrário, nem sequer pode ser tocada.
Ou seja, apenas pode ser reparada se tiver a aptidão de se constituir em motivo de nulidade processual, já que apenas estas têm a virtualidade de invalidar actos processuais, ou, o que dá no mesmo, afectar o correspondente valor.
Mas, como resulta da sistemática imposta nesta matéria pelo Código de Processo Penal, tal reparação oficiosa terá de ser efectuada dentro do limite do nº 1 do artº 123º, ou seja, no momento do acto, próximo, ou conexo – que é o que claramente pretende o nº 1 do seu artº 123º, pelo que de coisa diferente não falará o seu nº 2 - sob pena de já se estar a agir processualmente como se de nulidade se tratasse – neste sentido, mas ainda com maior grau de exigência quanto ao momento possível da reparação, António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, em Código de Processo Penal comentado, 2014, pág. 409, justamente em anotação ao artº 123º: “a irregularidade pode ser oficiosamente conhecida, com a reparação imediata, quando for verificada ainda no decurso do próprio acto; previne-se, deste modo, a posterior possibilidade de arguição com a consequente perturbação processual – n.º 2”.
De onde se conclui que tais irregularidades apenas são reparáveis se tiverem a potencialidade de vir a constituir nulidade, tendencialmente logo que cometidas e naturalmente pela autoridade que preside ao acto, que é claramente e nesta lógica interpretativa, o destinatário único do comando legal em causa.
Exigir a imediata correcção como condição para a utilização do poder/dever em causa se dogmaticamente se traduz numa interpretação mais pura e aproximada à lógica legislativa, é susceptível de deixar de fora situações em tudo semelhantes, sem que se consiga lobrigar razão justificativa bastante, salvo melhor entendimento.
Assim, por exemplo, a entidade que presidiu a diligência já terminada, apercebendo-se da irregularidade apenas quando está a assinar o auto, não poderá ordenar a correcção?
Cremos que sim, se tivermos em mente o pressuposto primeiro daquela faculdade: evitar ocorrência de nulidade.
Por outro lado, a proximidade temporal ainda autoriza e aconselha a que não se avance com tal deformidade à vista, susceptível de, mais tarde e com maior dano, acarretar retrocesso processual.
No caso das gravações e tendo em atenção que a integridade das mesmas não é patente e facilmente detectável, por maioria de razão, deve a solução ser idêntica.
Destarte, por exemplo, o juiz que se apercebe da deficiência quando ao elaborar a sentença daquelas se tenta socorrer, não poderá já ordenar a correcção?
Cremos, pelo contrário, que o deve fazer e ainda que não se perca de vista aquela tendencialmente imediata correcção.
Apenas assim se torna absolutamente harmónica e sem incoerências toda a interpretação sistemática dos preceitos processuais penais atinentes às nulidades e irregularidades.
A gradação de incorrecções processuais de acordo com a respectiva gravidade é muito clara no Código de Processo Penal:
Nulidades insanáveis;
Nulidades sanáveis; e
Meras irregularidades.
Ao pretender não se balizar o tempo para a reparação oficiosa de algumas irregularidades e por forma idêntica à que consta do nº 1 do artº 123º do Código de Processo Penal (tendencialmente, de imediato), está a subverter-se toda aquela arquitectura processual, tornando em insanáveis as irregularidades de conhecimento oficioso, o que manifestamente não é pretendido pela lei, salvo o devido respeito.
Ficaria sem qualquer sentido a distinção entre nulidades (e dentro destas) e irregularidades, sendo que aquelas poderiam ser passíveis de sanação e algumas destas não.
Assim e voltando ao caso, mesmo que estivéssemos perante mera irregularidade, por maioria de razão estaria sanada.
Esta apenas pelo tribunal de primeira instância poderia ter sido oficiosamente reparada, se e quando notada, justamente por poder vir a constituir nulidade, tendo assim a virtualidade de poder “afectar o valor do acto praticado” (parte final do nº 2 do artº 123º do Código de Processo Penal).
E que seguramente depois de sanada tal nulidade já não poderia aquela irregularidade ser reparada oficiosamente, ali justamente onde deixou de ter virtualidade para afectar o acto.
Menos ainda posteriormente e em fase de recurso.
A tudo acresce que a posição ali defendida, sempre salvo o elevado respeito, vai contra jurisprudência uniformizada, que estabelece como nulidade a falta ou deficiência da gravação, que, para o que aqui interessa, tem de ser arguida, sob pena de se sanar.
Como assim, o A.U.J. nº 13/2014, DR, I Série de 23.9.2014:
“A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.”
Jurisprudência com a qual se concorda e ainda constitucionalmente chancelada pelo T.Constitucional, que decidiu “não julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 363.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta ou deficiência da gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de dez dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.” (Ac. T.C. de 8.6.2017, procº 291/2017).
É certo que a jurisprudência anteriormente fixada, no domínio da versão original do artº 363º do Código de Processo Penal, estabelecia como irregularidade a falta que aqui nos ocupa, mas sujeitava-a, muito claramente, ao regime geral processual de reparação que acima se deixou explanado. Trata-se do A.U.J. nº 5/2002 de 27.2.2002, DR I Série, de 17.7.2002: “a não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer.”
Todavia, tal jurisprudência ficou desactualizada, com a redacção dada ao preceito (que se mantém na actualidade) pela Lei 48/2077 de 29.8:
As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”.
A audiência de julgamento é sempre gravada através de registo áudio ou audiovisual, sob pena de nulidade, devendo ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número seguinte.
Além das declarações prestadas oralmente em audiência, são objeto do registo áudio ou audiovisual as informações, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais”, tal como resulta dos nos 1 e 2 do artº 364º do Código de Processo Penal, com a epígrafe “forma de documentação”.
Ainda assim se manteve durante anos discussão jurisprudencial acerca do prazo para a correspondente arguição, com registo de inúmeros retrocessos processuais, causa daquele A.U.J. 13/2014.
A discussão, tendo em vista a natureza da questão e a natural dificuldade de percepção imediata sobre a efectivação integral da gravação, passava por saber a quem impor o ónus de verificação da incorruptibilidade das gravações, designadamente se, em circunstâncias normais, seria razoável impor aos recorrentes o dever acrescido de fiscalização das gravações.
Já que tal dever não deveria ter lugar em circunstâncias normais (constituídas estas pela fidelidade das gravações, que devia ser usual).
Sucede que não é isso que se passava, nem passa, na realidade.
O abundante número de decisões de tribunais superiores de todo o País sobre aquela matéria e acerca de prática que tinha sido recentemente introduzida na vida judiciária, leva a pensar que a normalidade estava muito longe de ser a desejável.
As explicações, aqui e ali, iam surgindo: má qualidade dos equipamentos fornecidos e fraca preparação dos funcionários judiciais que os operam.
E se já assim sucedia quando se utilizavam gravadores de “cassetes”, continuava com a gravação digital.
Parecer dado por empresa especialista na matéria (a MSSO, L.da – solicitado no procº comum 30/08.4AOLSB) punha a nu as causas:
“O formato áudio dos ficheiros é efectuado em 22.000 KHz quando devia estar gravado a 96.000 KHz; e os ficheiros estão gravados pelo sistema “Habilus” em formato que não permite a separação de canais (o que tornaria fácil a recuperação em caso de grande interferência de ruídos)”.
E apontava a solução:
“Investimento em equipamento e «software» que permita gravação digital multi-pistas antes de entrar no sistema «Habilus», (nomeadamente mesas de som analógicas de 8 a 12 canais, microfones dinâmicos e ligação directa ao computador/gravador, para além de programa informático da maior simplicidade possível); e
Formação básica dos operadores do sistema de gravação, que deverá ser acompanhada e controlada em tempo real”.
Traduzindo: os microfones que equipam os tribunais não servem, não há tratamento de som, a gravação não é ouvida nem controlada em tempo real, o equipamento é manuseado por pessoal sem formação e o programa informático de gravação (o “Habilus”) é inadequado.
As consequências, como é óbvio, são as por demais conhecidas e que já o eram no tempo dos gravadores de “cassetes” (à data, quem quer que pretendesse gravar fielmente qualquer evento, recorria a gravadores profissionais e mesas de mistura, pois as frágeis fitas magnéticas das “cassetes” apenas garantiam que a gravação se degradaria e perderia, fácil e rapidamente...).
Repare-se ainda que quando as declarações são prestadas por vídeo-conferência, existe um acrescentar de aparelhos pelos quais passa o som, gerando assim muito maior possibilidade de deficiência (em muitos casos, o som é tomado pelo microfone – sendo este já inadequado de origem - junto ao altifalante do televisor, o que por si só é apto a comprometer a fidelidade de qualquer gravação).
A insistência na fraca qualidade das gravações levadas a cabo nos tribunais pode até ser coincidência, mas é persistente e não se lhe vislumbra fim, pois, como vemos, continua.
Ademais e se quaisquer suspeitas existissem, é a própria lei que introduz a pioneira gravação dos depoimentos em processo civil (Dec.-Lei nº 35/95) que dá a nota da pouca fiabilidade dos meios pela mesma conhecidos para o efeito (embora se refira a fitas magnéticas, era evidente que se sabia serem os pouco seguros gravadores de “cassetes” o que, desde 1992/1993, equipava os tribunais).
O artº 563º do Código de Processo Civil, versando o registo do depoimento de parte, antes da sua modificação efectuada por aquele diploma, dispunha que aquele depoimento “... é escrito, quando não seja prestado perante tribunal colectivo”, para passar a ter a seguinte redacção, introduzida justamente por aquele decreto-lei: “o depoimento é sempre reduzido a escrito, mesmo que tenha sido gravado, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória”
Para quê reduzir a escrito depoimento gravado, senão para garantir que o mesmo não desapareça?
Obviamente pela pouca fiabilidade dos meios de gravação empregues.
Ou seja, para a própria lei, a consciência da que a gravação pelos meios que dotavam os tribunais não era fiável, força-a a tomar tal circunstância em consideração, ainda que em ponto muito concreto.
Perante este quadro, cujos factos essenciais, de tão vulgares, não podem deixar de ser tomados como notórios e do conhecimento geral, é óbvio que uma gravação de audiência sem uma qualquer deficiência será a excepção.
Pelo que aquele dever de cuidado e fiscalização é passível de ser acrescentado, sem que isso, nestas circunstâncias, se revele injusto ou desproporcional, já que quem pretende recorrer de facto (faculdade na disposição dos correspondentes sujeitos processuais), sempre terá de proceder às audições e especificação das respectivas passagens, impondo apenas um cuidado adicional com o prazo, para que, na eventualidade da necessidade de reparação ou repetição, se perca o mínimo de tempo possível.
Daí que se afigure equilibrada e actual a solução daquele A.U.J.
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Consequentemente, improcede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 24 de Janeiro de 2024
Manuel Advínculo Sequeira
Paulo Barreto (com voto de vencido junto)
Alda Tomé Casimiro (com declaração de voto)
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Voto de vencido
Conforme resulta da acta de audiência de julgamento, a documentação foi efectuada através de gravação do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal (cfr. art.º 364.º, do CPP).
Porém, querendo ouvir-se tal gravação, para efeitos de recurso, nomeadamente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, se constata que a prova produzida em julgamento é totalmente inaudível.
Portugal já foi condenado por diversas vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por não garantir um processo equitativo no recurso da matéria de facto.
No caso Moreira Ferreira c. Portugal 1, através de acórdão de 14.06.2011, por violação do art.º 6.º da Convenção, por falta de audiência pública no recurso. O Tribunal de Estrasburgo concluiu que o Tribunal da Relação não poderia decidir sem apreciar directamente o testemunho pessoal da requerente, tanto mais que a sentença do Tribunal de Matosinhos divergia da perícia psiquiátrica, sem, contudo, enunciar os motivos dessa divergência tal como exige o direito interno. A reapreciação desta matéria pelo Tribunal da Relação deveria, pois, ter incluído nova e integral audição da requerente.
Depois, no caso Pereira da Cruz e Outros c. Portugal, através de acórdão de 26.06.2018, Portugal foi de novo condenado por violar o artigo 6.º, com fundamento na recusa do Tribunal da Relação de Lisboa em admitir provas, no sentido da ilibação, no processo de recurso: ouvir o arguido e a admissão de documentos em que as testemunhas se retratavam. O TEDH considerou, em especial, que a recusa de audição do referido co-arguido, bem como da junção e análise dos documentos em que duas das testemunhas se retratavam, constituiu uma limitação dos direitos de defesa do requerente, incompatível com o direito a um processo equitativo, visto que os mesmos tinham afirmado ter acompanhado a vítima de abusos sexuais ao local (em Lisboa) onde os factos teriam ocorrido e pelos quais o requerente foi definitivamente condenado.
Finalmente, Portugal foi condenado por acórdão de 13.11.2008, no caso contra Pijevchi, também por violação do artigo 6.º, por interpretação particularmente rigorosa – e contraditória com a do tribunal a quo – feita pelas instâncias de recurso de uma norma processual, que privou o requerente do direito de acesso ao Tribunal da Relação com vista à apreciação do fundamento da sua condenação. Neste caso, constatou o Tribunal de Estrasburgo que, o requerente, ao pretender recorrer da sua condenação, solicitou, como a lei o permitia, a transcrição da gravação da audiência. O tribunal de primeira instância informou-o depois que o mesmo dispunha de um prazo de dez dias a contar da notificação da transcrição para apresentação das alegações. Todavia, quando o requerente apresentou a motivação do recurso, no prazo indicado, viu-lhe ser oposto pelo tribunal ad quem a extemporaneidade do seu recurso, em razão de diversa interpretação da legislação em causa. O requerente viu-se, assim, impossibilitado de fazer apreciar o seu recurso sobre o bem fundado da condenação. Na perspectiva do Tribunal, negar assim, nas circunstâncias particulares do caso, o direito de recurso a um arguido unicamente em razão de uma interpretação diversa seguida pelo Tribunal da Relação das normas processuais relativas aos prazos da apresentação da motivação de recurso, mesmo quando o tribunal a quo tinha fixado um prazo específico a ser observado pelo interessado, não é compatível com o princípio da segurança jurídica, que faz parte das exigências do processo equitativo.
O artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, consagra o direito a um processo equitativo, assim definido: 1 – Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça. 2 – Qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada. 3 – O acusado tem, no mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuita-mente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação; e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.
Como refere Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos dos Homem, Anotada, Almedina, Junho de 1995, pp. 164, 194 e 201-202, “ a garantia de um processo equitativo tornou-se num princípio fundamental da preeminência do Direito, por isso, numa sociedade democrática, no sentido da Convenção, o direito a um processo equitativo ocupa um lugar tão essencial que uma interpretação restritiva do artigo 6.º não corresponderia ao fim e ao objeto desta disposição”.
Também James W. Nickel, Making Sense of Human Rights, 2.ª edição, Blackwells, 2006, define direito a processo equitativo como “uma protecção conferida pela lei contra um conjunto de abusos que podem ocorrer durante a detenção, interrogatório, julgamento, sentença ou punição de suspeitos da prática de crimes”.
Para Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2005, Tomo I, p.192, “a exigência de um processo equitativo (...) se não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, impõe, antes do mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e partes entre as partes na dialéctica que elas protagonizam; um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas”.
E, finalmente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, p.415, “ o direito de acção ou o direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo (...) deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais (...) um dos princípios do processo equitativo e o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias”.
Vejamos agora a evolução do recurso da matéria de facto na nossa jurisprudência. Durante muito tempo não interessava no recurso da matéria de facto como decidiriam os juízes do tribunal da Relação se tivessem efectuado o julgamento em primeira instância, pois tal recurso tinha apenas a finalidade de proceder à apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame (controlo) dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitiam atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos (em suporte magnético) -. Por isso, ao tribunal superior cumpria verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta podia ser modificada, nos termos do artigo 431º do Código de Processo Penal.
Felizmente, na busca de um efectivo recurso da matéria de facto, hoje já não é assim. O tribunal da Relação tem que criar a sua própria convicção e não se limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias. Claro que limitado aos pontos indicados pelo recorrente.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2019, disponível em dgsi.pt., “obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma; a falta de imediação por parte do tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância; (...); o relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção”.
E ainda Ana Maria Barata de Brito, “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, Estudo de 2012, disponível em http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20%20MAT%20CRIMINAL/O%20conhec_Relacoes_materia%20de%20facto.pdf:“ Se a capacidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação sofre limitações decorrentes da falta de imediação – cumpre, então, questionar: a que falta (de imediação) nos referimos? A uma privação total, como genericamente se parece afirmar? E quais as consequências dessa privação, ou em reverso, qual o plus concretamente acrescido por via da imediação? Mesmo para além dos casos de renovação da prova (art. 430º CPP), as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na desde logo, e aqui na exacta medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na relativamente à prova gravada/escutada – por via do acesso directo à documentação da prova, potenciado com o fim das transcrições que até 2007 mediatizavam o acesso. Ou seja, mesmo relativamente à prova pessoal existe uma imediação parcial. A prova pessoal ou oral revela-se, ao que aqui interessa, em duas componentes: de voz e de imagem. O tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada). Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”.
Sabendo-se que os poderes do tribunal da Relação em matéria processual penal são muito limitados relativamente aos do processo civil - falta uma norma equivalente ao art.º 662.º, do Código de Processo Civil -, e até a renovação da prova está restringida aos vícios do art.º 410.º n.º 2, como determina o art.º 430.º, n.º 1, do CPP, a documentação da prova é o elemento fundamental para a apreciação do recurso da matéria de facto.
Tudo visto e aqui chegados, pelo actual estado da arte em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o tribunal da Relação crie a sua própria convicção, cave a fundo na prova, embora ainda limitado pelo quadro legal, a documentação da prova é a peça fundamental. E, se estivermos a pensar em prova pessoal, é de gravação da prova que se trata.
Afastada a nulidade, porque não invocada, há que encontrar a solução já defendida no acórdão desta Relação de Lisboa, de 30.04.2019, relator Cid Geraldo, processo n.º 824/11.3ECLSB.L1-5: a verificação da irregularidade do art.º 123.º, n.º 2, do CPP.
A deficiente gravação nas sessões de audiência, neste caso totalmente inaudível, impede o recurso da matéria de facto.
Acresce que, como se refere no acórdão citado, “a deficiente gravação da prova constitui erro apenas imputável à actividade do tribunal, não sendo por isso defensável que as consequências de tal erro se possam transferir para os destinatários da decisão”.
O art.º 123.º, n.º 2, do CPP, determina que se pode ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
Esta norma não é, no entanto, de fácil interpretação, em particular em saber que tribunal repara oficiosamente a irregularidade.
No CPP Comentado, 2014, António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, p. 409, em anotação ao art.º 123.º, diz-se que “a irregularidade pode ser oficiosamente conhecida, com a reparação imediata, quando for verificada ainda no decurso do próprio acto; previne-se, deste modo, a posterior possibilidade de arguição com a consequente perturbação processual – n.º 2”.
Esta doutrina aponta para que a irregularidade seja conhecida no tribunal que a cometeu, daí que se pretenda evitar a consequente perturbação processual. Porém, nem sempre será assim.
Na situação em apreço, não tendo o tribunal a quo tomado conhecimento da irregularidade verificada – falta de gravação – no momento da prática dos actos que praticou depois, não a podia ter oficiosamente suscitado porque, valha a verdade, não afectou o valor de tais actos.
Já o recorrente, não podendo suscitar qualquer irregularidade, mas a nulidade do art.º 363.º, do CPP, deixou passar o prazo para a arguir.
Resta a consequência da irregularidade para este tribunal superior.
É certo que o recorrente diz que o tribunal considerou incorrectamente provados os factos 1 e 2 e, para tanto, se funda nas suas declarações e nos depoimentos das testemunhas Cláudio Borges e Susana Vicente, só se pode concluir que está a impugnar amplamente a matéria de facto. Esta distinção é importante, na medida em que se se limitasse a invocar os vícios do art.º 410.º, n.º 2, a apreciação do recurso se bastaria com o texto da decisão recorrida conjugado com as regras da experiência, sendo despicienda a gravação da prova, salvo se se considerasse verificado qualquer dos vícios e aí, para o suprir e evitar o reenvio, seria necessário ouvir a prova documentada.
Por conseguinte, é dever deste tribunal ad quem apreciar a decisão sobre a matéria de facto por via do recurso amplo. Por isso tem que ouvir a prova gravada. Ora, face à deficiente gravação de todo a audiência, este tribunal superior está impedido de praticar o seu acto, que é, como vimos, o de apreciar o recurso da matéria de facto.
Cumpre, pois, a este tribunal ad quem, ao tomar agora conhecimento desta irregularidade que o impede de praticar o seu acto, o dever de a declarar, com as consequências processuais inerentes, ordenando a anulação da única sessão de prova (dia 13.09.2022) e, consequentemente, da sentença proferida, e determinar a repetição da prova produzida nessa sessão, agora com documentação, e prolação de nova sentença.
Só esta decisão garante um processo equitativo e leal. Este tribunal não pode cumprir o seu dever, isto é, apreciar o recurso da matéria de facto, face à deficiente gravação da prova inteiramente imputável ao tribunal a quo.
Nestes termos, ao abrigo do art.º 123.º, n.º 2, do CPP, votaria no sentido de oficiosamente se julgar verificada a irregularidade consubstanciada na deficiente gravação da prova na sessão de audiência do dia 13.09.2022, determinando-se, em sequência, a anulação de tal sessão de audiência, e, por via disso, da sentença proferida, e se ordena a repetição da prova produzida nessa sessão, agora com documentação, e prolação de nova sentença.
Paulo Barreto
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Declaração de voto.
Votei a decisão.
Nos autos cumpre afirmar que não tendo a matéria de facto fixada na sentença recorrida sido impugnada nos termos do art. 412º do Cód. Proc. Penal, não faz qualquer sentido ir verificar o estado do registo áudio da audiência. Contudo a este respeito sempre direi que não tenho qualquer dúvida de que a doutrina fixada pelo AUJ 13/2014 continua em vigor, mas se a matéria de facto tiver sido impugnada correctamente, com remissão para as passagens gravadas e posteriormente, pretendendo o Tribunal ouvir as gravações se verificar que elas estão inaudíveis, pode levantar-se a dúvida sobre se não houve um problema técnico posterior aos 10 dias aludidos no AUJ. Nesses casos, entendendo que o recorrente não poderá ser prejudicado, motivo pelo que a irregularidade oficiosamente conhecida será o caminho a seguir.
Alda Tomé Casimiro