Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
565/20.0T9ALM.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O juiz, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.

Perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual, não tendo a alternativa de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


1.No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal de Almada – Juiz 2, NUIPC 565/20.0T9ALM, foi proferido despacho, aos 03/11/2021, que rejeitou por manifestamente infundada, nos termos dos artigos 311º, nºs 1, 2, alínea a) e 3, alínea a) e 283º, nº 3, alínea b), do CPP, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos HC e CN, em que lhes é imputada a prática, em co-autoria, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal e determinou o arquivamento dos autos.


2.Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

1.-Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pela Mma Juiz “a quo” em 03.11.2021 que declarou a nulidade da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 283º, n. 3, alínea b), do C.P.P. e determinou o arquivamento dos autos.
2.-Se é certo que o Ministério Público não discorda do douto despacho proferido no que concerne á nulidade da acusação, já o mesmo não se dirá na parte do despacho que determinou o arquivamento dos autos.
3.-Com efeito, salvo melhor opinião, concluindo pela nulidade da acusação em conformidade com a supra referida disposição legal, cumpria à Ma Juiz “a quo” devolver os autos à fase imediatamente anterior à acusação, ou seja, à fase de inquérito, e não arquivar os mesmos.
4.-Ao não fazê-lo e ao determinar o arquivamento dos autos, salvo melhor entendimento, afigura-se que o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 122º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal,
5.-Quando se impunha a devolução dos autos ao Ministério Público, mais concretamente á fase de inquérito.
Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência revogado o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, declarando a nulidade da acusação, determine a devolução dos autos ao Ministério Público, fazendo Vª. Exa. Venerandos Juízes Desembargadores, como sempre, a habitual JUSTIÇA !

3.–O recurso foi admitido por despacho de 24/01/2022, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4.Os arguidos apresentaram resposta à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão revidenda.

5.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

6.–Responderam os arguidos ao douto parecer, concluindo por o recurso não dever merecer provimento.

7.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO

1.–Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se, rejeitada a acusação pública por manifestamente infundada, deveria ter sido ordenada a remessa dos autos ao Ministério Público.

2.–Elementos relevantes para a apreciação deste recurso

2.1-Aos 14/06/2021, o Ministério Público proferiu libelo acusatório contra os arguidos HC e CN, imputando-lhes factos, em seu entender, integradores da prática, em co-autoria, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal.

2.2-Em 03/11/2021, foi proferida a decisão objecto do recurso (transcrição):

O Tribunal é competente.
Inexistem nulidades, que obstem à apreciação do mérito da causa e que se possa, neste momento, conhecer.
Compulsada a acusação pública deduzida resulta que na descrição factual tal peça processual é omissa quanto à descrição dos elementos objectivos do crime de furto imputado aos arguidos.
Apenas alega o Digno Magistrado do Ministério Público que entre determinadas datas os arguidos agindo em execução de uma plano por ambos previamente engendrado, em comunhão de esforços e intentos (plano esse que não descreve) consumiram energia eléctrica na habitação onde residiam (que identifica) pertencente à EDP, sem pagara o respectivo preço.
Importa ter presente a respeito o disposto no artigo no n.º 1 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, do qual resulta que se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
Acrescenta, depois, o n.º 3 deste dispositivo legal que a acusação contém, sob pena de nulidade: a)- as indicações tendentes à identificação do arguido; b)- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c)- a indicação das disposições legais aplicáveis; d)- o rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no artigo 128.º, n.º 2, as quais não podem exceder o número de cinco; e)- a indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação; f)- a indicação de outras provas a produzir ou a requerer; g) a data e assinatura.
No dizer de Germano Marques da Silva, a acusação é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado com a pena prevista na lei ou requerida pelo Ministério Público.
Elemento essencial da acusação é a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. É que são estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que serão objecto do julgamento.
A descrição dos factos e de todas as circunstâncias pertinentes deve ser muito cuidada, pois se é certo que na fase de julgamento podem ser ainda consideradas as circunstâncias que não impliquem alteração substancial dos factos, é de todo o interesse que todas as circunstâncias conhecidas no momento da acusação sejam nela descritas para serem objecto de defesa, de apreciação no julgamento e consideradas na decisão.
A referência à necessidade de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e de indicação das disposições legais aplicáveis, deve ser entendida nos termos supra referidos.
Isto é, a acusação deve conter todos os factos necessários para uma eventual solução de direito adequada e permitir ao arguido um efectivo e cabal exercício do direito de defesa, só assim se podendo respeitar o princípio do acusatório.
Na verdade, a estrutura acusatória do processo penal - a consubstanciar, de par com a garantia do direito de defesa, a concretização da axiologia inerente a um Estado de direito democrático - obriga a que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura de instrução equivalente a acusação, sendo tal delimitação factual que irá vincular o juiz de julgamento impedindo-o de aditar factos que consubstanciem uma alteração substancial dos descritos na acusação.
Da consagração da estrutura acusatória e da estabilidade do objecto do processo resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular a acusação. Por maioria de razão, não pode também o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça, sob pena de alteração substancial dos descritos, como seria o caso, na eventualidade de aditar os factos que determinam a prática do crime de furto imputado dado que a descrição ali contida se trata de um mero incumprimento contratual, pois todos sabemos que a energia eléctrica não nos pertence e que se a consumirmos na nossa habitação existe a obrigação de pagamento, sem que apenas actuando dessa forma se possa afirmar que existe um furto.
Na verdade, a aceitar-se esta descrição factual como integradora do crime de furto, qualquer situação de consumo sem pagamento integraria a prática de um crime de furto, o que manifestamente não se concede, pois que existe forma por parte da EDP de se ver ressarcida sem que exista por parte dos arguidos necessariamente intenção de furtar.
Pelo exposto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e 3 alínea b) e 283.º, n.º 3, alínea b) ambos do C.P.P. declaro nula a acusação pelo que a não recebo.
Notifique. Oportunamente, arquive.

Apreciemos.

O recorrente Ministério Público não censura o despacho recorrido no segmento em que rejeita a acusação deduzida, por manifestamente infundada, mas sustenta que não deveria ter sido determinado o arquivamento dos autos, antes se impunha “devolver os autos à fase imediatamente anterior à acusação, ou seja, à fase de inquérito”.

Ora, a propósito diz-se no Ac. R. de Lisboa de 30/01/2007, Proc. nº 10221/2006-5, consultável em www.dgsi.pt, que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito.”

Entendimento subscrito igualmente pelo Ac. R. do Porto de 27/06/2012, Proc. nº 581/10.0GDSTS.P1, a ler no mesmo sítio, de acordo com o qual “se não tivesse sido requerida a instrução, a circunstância de os factos descritos na acusação não constituírem crime levaria à rejeição desta, nos termos do artigo 312º, nº 2, a), e 313º, nº 3, d), do mesmo Código (com o consequente arquivamento dos autos). E se, mesmo assim, a acusação não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do arguido (com o consequente arquivamento dos autos).”

Aduzindo-se ainda que “em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo, em vez do seu arquivamento. Tal possibilidade de modo algum se harmonizaria com o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de proteção das expetativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações”.

Ou seja, os autos, vindos do Ministério Público, deram entrada em juízo e foram distribuídos ao juiz competente para o julgamento, sendo que este, quando se pronunciou, fê-lo já num processo judicial e não em sede de inquérito. Verificando-se que esse processo judicial não pode prosseguir, deverá ser arquivado no tribunal, porquanto já não é um inquérito – cfr. Ac. R. de Évora de 22/06/2021, Proc. nº 1207/18.0PBFAR.E1, também em www.dgsi.pt.

Este é também, embora não se desconheça a posição jurisprudencial divergente (vertida, mormente, nos Acs. da R. de Évora de 10/04/2018, Proc. nº 1559/16.6GBABF.E1; da Relação de Coimbra de 03/01/2021, Proc. nº 99/19.6GASAT.C1 e da R. de Guimarães de 08/03/2021, Proc. nº 96/16.3T9MGD.G1, todos disponíveis no mencionado sítio e referenciados pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer), o entendimento por nós prosseguido, pelo que não merece crítica o tribunal recorrido ao determinar o arquivamento dos autos.

Destarte, cumpre negar provimento ao recurso.

III–DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação.


Lisboa, 24 de Maio de 2022

                                  
(Artur Vargues)                                  
(Jorge Gonçalves)


(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)