Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7613/10.0TBOER.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: COOPERATIVA DE HABITAÇÃO
TÍTULO DE CAPITAL
DEMISSÃO DE SÓCIO
TÍTULO DE PARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: 1-De acordo com o art 1º do DL 502/99 de 19/11 - «as cooperativas de habitação e construção e as suas organizações de grau superior regem-se pelas disposições do presente diploma, e, nas suas omissões, pelo Código Cooperativo».
2-Será à luz dessa disposição que se deverá interpretar a remissão do art 9º do Código Cooperativo (emergente da L 51/96 de 7/9) para «a legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo», devendo colmatarem-se as lacunas que se encontrem nessa legislação específica – do DL 502/99 de 19/11- pelas disposições do Código Cooperativo, e as que neste se venham a encontrar, por recurso ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas, embora apenas na medida em que não desrespeitem os princípios cooperativos.
3-Pelo que se deverão encontrar os direitos referentes ao sócio que se demita da cooperativa em primeiro lugar na disciplina que para esse efeito se mostre constante do referido DL 502/99 de 19/11.
4-O valor correspondente aos títulos de capital a que se refere o art 8º dos Estatutos da R. e o art 36º do Código Cooperativo nos seus nº 3 e 4, para os quais remete o art 24º do DL 502/99, tornou-se exigível da R., pelo menos desde Dezembro de 2008, e há muito que a R. teve hipótese de conhecer o valor dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal acrescido dos juros, por há muito estar terminado o último exercício social a que se refere o nº 4 do art 36º do Código Cooperativo.
5-Cabe à R. determinar o valor dos títulos de participação devidos ao A. nos termos do nº 3 e 1 do art 20º do DL 502/99, para que remete o seu referido art 24º, não se vendo que essa determinação não se mostre desde já possível e que tenha que aguardar a rentabilização do programa no qual foram entregues essas poupanças.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I – “A”, intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra “B”, Cooperativa de Habitação Económica do Lagoal, CRL, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 56.000,00, acrescida dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento.
Alega ter-se tornado membro da R. - cooperativa de habitação económica, cujo objecto social principal é o da construção ou promoção da aquisição de fogos para habitação dos seus membros - visando a aquisição de uma casa para habitação própria, para o que pagou as quotas administrativas, o capital social e a taxa de inscrição, e realizou, entre 2005 e 2007, poupanças obrigatórias no valor global de 56.000,00 €. Como o Programa Habitacional sofreu atrasos significativos, de tal forma que ainda hoje não se sabe se alguma vez se realizará, em Dezembro de 2007, e de novo em 19/5/2008 e 17/5/10, solicitou da R. o reembolso do valor global das poupanças por si entregues e demais valores, sendo que esse reembolso lhe é garantido em termos estatutários (art 8º), sem que tivesse recebido daquela qualquer resposta, e sem que lhe haja sido liquidado o valor que lhe é devido.
A R. contestou alegando que se os cooperadores, depois de aprovarem um programa, desistem do mesmo, frustram a expectativa criada, colocando em risco a própria viabilidade desse mesmo programa. Alega que o art 8º dos seus Estatutos, em que o A. fundamenta o reembolso das poupanças por si entregues, estipula, directa e expressamente, o reembolso, em caso de demissão ou exclusão, em prazo não superior a um ano, dos títulos de capital entregues. O que significa que o objecto do reembolso aí previsto são os títulos de capital subscritos e não os títulos de poupança. De acordo com o artigo 6º desses mesmos Estatutos, o capital social é constituído por títulos nominais de € 100,00 cada um, equivalente a 20.048$00, devendo cada cooperador subscrever, no mínimo, um título, que deve ser integralmente realizado em dinheiro no acto da subscrição. As restantes quantias mensais entregues pelo A. e descriminadas na petição inicial, foram entregues a título de poupanças obrigatórias. Mais refere que uma coisa é a admissão do cooperador, que impõe a participação no capital social variável, mediante a entrada mínima de capital a subscrever, outra coisa são os títulos de poupança obrigatória definidos pela Direcção da Cooperativa. O A. quer na petição, quer nos documentos que junta, identifica as quantias cuja devolução requer como títulos de poupanças obrigatórias, não entrando na definição de títulos de capital. Assim sendo, não se aplicando a obrigatoriedade de devolução da quantia peticionada no prazo máximo de um ano, a R. não se locupletou ilegitimamente com os valores entregues, e nem sequer se constituiu em mora, pelo que a acção deverá improceder totalmente.

Entendendo-se desnecessária a prossecução da lide, o pedido foi conhecido no despacho saneador, no qual a acção foi julgada procedente, condenando-se a R. a pagar ao A. a quantia de € 56.000,00, acrescida de juros de mora.

II - Do assim decidido apelou a R., que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:
1- Foi a ora R. condenada a pagar, ao A., a quantia de € 56.000,00 acrescida de juros de mora;
2- A sentença recorrida fundamenta-se no facto de, ao abrigo do artigo 24.º dos
Estatutos da ora R., o ora A. ter exercido o seu direito de demissão;
3- Constituindo a R., na obrigação de restituir as poupanças obrigatórias entregues pelo ora A.;
4- Contudo, salvo melhor opinião, e com o devido respeito pela douta decisão recorrida, não podemos de estar de acordo com a mesma, uma vez que o artigo 24º dos Estatutos da R. refere que os cooperadores podem solicitar a sua demissão mas, sem prejuízo das responsabilidades pelo cumprimento das suas obrigações como membros e da aceitação das condições estatutárias e regulamentares relativas ao exercício deste direito, designadamente no que se refere à restituição de valores;
5- Ou seja, a circunstância de os cooperadores terem o direito de solicitarem a sua demissão, não pode significar que possam olvidar os compromissos que assumiram;
6 - A ora R. orienta a sua actividade para os seus membros, que são os destinatários principais das actividades económicas e sociais que desenvolve;
7- Pelo que, inicia os programas habitacionais porque existem membros interessados nos mesmos, e estes programas desenvolvem-se com as poupanças entregues por cada membro;
8 -Ao ter-se inscrito, o ora A. aceitou entregar, conforme resulta da douta Sentença Recorrida, a título de poupanças obrigatórias, os valores aqui em discussão;
9 - O objectivo das poupanças obrigatórias é a amortização dos fogos a atribuir, o que faz com que sejam o próprio financiamento do projecto habitacional em que o cooperador se inscreve;
10 -Sem essas entregas não existiria qualquer programa habitacional, nem mesmo Cooperativa;
11- O que quer dizer que a devolução das quantias entregues enquanto poupanças obrigatórias pode colocar em causa a viabilidade do programa habitacional;
12- Prejudicando não só a Cooperativa como todos os demais membros que permanecem inscritos no mesmo;
13- Pelo exposto, atendendo às consequências gravosas, a simples demissão do A. não pode constituir a R. na obrigação de devolução imediata das poupanças obrigatórias;
14- Principalmente nos tempos em que nos encontramos, que devido à nossa conjectura económico-financeira, a substituição de um Cooperador desistente, praticamente, não se colmata com a entrada de novos;
15- Só sendo possível a devolução do valor aquando da rentabilização do programa no qual foram entregues as poupanças obrigatórias;

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Para esse efeito, dever-se-á ter em consideração a seguinte matéria de facto:
1-O A solicitou a inscrição como membro da R. em 2005, tendo-lhe sido atribuído o número 2278.
2-De acordo com os respectivos Estatutos a R. é uma cooperativa de habitação económica, cujo objecto social principal é a construção ou promoção da aquisição de fogos para habitação dos seus membros, e a gestão, reparação, manutenção ou remodelação.
3-O A tornou-se membro da R. visando a aquisição de uma casa para habitação própria, no Programa Habitacional denominado … II.
4-Com esse objectivo e de acordo com os Estatutos, o A. pagou as quotas administrativas, o capital social e a taxa de inscrição, e realizou as poupanças obrigatórias que eram condição para lhe ser atribuída uma casa para habitação e o respectivo direito a nela habitar.
5-Entre 2005 e 2007, realizou poupanças obrigatórias no valor global de 56.000,00 €.
6-Em 30/1/2008 e 27/2/2009 a R. enviou ao A. duas cartas, correspondentes respectivamente aos escritos de fls 18 e 19, solicitando-lhe que confirmasse que o valor por si entregue e subscrito estava correcto.
7-Como o Programa Habitacional sofreu atrasos significativos, em Dezembro de 2007, em 19/5/2008 e 17/5/2010 o A. enviou à R. três cartas e um fax reclamando o reembolso do valor global das poupanças por si entregues e demais valores.

IV- Está em questão saber se a demissão do A. da qualidade de membro da Cooperativa R. não constitui a mesma na obrigação de devolução imediata dos valores entregues pelo A. a título de “poupanças obrigatórias”, só sendo possível a devolução desse valor aquando da rentabilização do programa no qual foram entregues essas poupanças.

Desconhece-se a data da constituição da R. enquanto cooperativa, sabendo-se, no entanto, que o seu objecto social implica como «objecto principal a construção ou sua promoção, a aquisição de fogos para habitação dos seus membros, e a gestão reparação, manutenção ou remodelação dos mesmos »- art 5º/1 dos estatutos da R.
Os estatutos da R. juntos aos autos – fls 7 e ss- resultaram de nova redacção dos anteriores, como se depreende do art 59º dos mesmos, desconhecendo-se, no entanto a data dessa nova redacção.
Sabe-se, não obstante, que, de acordo com o art 29º do DL 502/99 de 19/11 – que estabelece, em substituição do DL 218/82 de 2/6 que revogou, o regime jurídico especifico das cooperativas de construção e habitação - «as cláusulas estatutárias que regem as cooperativas de habitação e construção, constituídas ao abrigo de legislação anterior e contrárias ao disposto no presente diploma, consideram-se por este automaticamente substituídas, sem prejuízo das alterações que vierem a ser deliberadas pelos cooperadores».
De acordo com o art 1º desse DL – 502/99 de 19/11 - «as cooperativas de habitação e construção e as suas organizações de graus superior regem-se pelas disposições do presente diploma, e nas suas omissões, pelo Código Cooperativo».
Disposição à luz da qual se deverá interpretar a remissão do art 9º do Código Cooperativo (emergente da L 51/96 de 7/9) para «a legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo», devendo colmatarem-se as lacunas que se encontrem nessa legislação específica, pelas disposições do Código Cooperativo, e as que neste se venham a encontrar, por recurso ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas, embora apenas na medida em que não desrespeitem os princípios cooperativos.
Do que se disse, resulta que se deverão encontrar os direitos referentes aos sócios que se demitam da cooperativa na disciplina que para esse efeito se mostre constante do referido DL 505/99.

A esse respeito dispõe o respectivo art 24º (com epigrafe, ”Demissão ou exclusão”): «Em caso de demissão ou exclusão, o cooperador terá direito ao reembolso previsto nos nº 3 e 4 do art 36º do Código Cooperativo, acrescido dos títulos de participação realizados nos termos do art 20º deste diploma, com os respectivos juros». Explicita o nº2 dessa norma que «em caso algum serão reembolsadas as quantias pagas a título de preço do direito de habitação de que trata o art 19º deste diploma». E acrescenta o seu nº 3 que «os estatutos poderão prever que o reembolso previsto no nº 1 deste artigo se faça em prestações, com ou sem juros» .

Por sua vez referem, respectivamente, os nº 3 e 4 do art 36º do Código Cooperativo: «Ao cooperador que se demitir será restituído, no prazo estabelecido pelos estatutos, ou, supletivamente, no prazo máximo de um ano, o montante dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal» . «O valor nominal referido no número anterior será acrescido dos juros a que tiver direito relativamente ao último exercício social, da quota-parte dos excedentes e reservas não obrigatórias repartíveis, na proporção das sua participação, ou reduzido, se for caso disso, na proporção das perdas acusadas no balanço do exercício no decurso do qual surgiu o direito ao reembolso».

Será à luz destas disposições que haverá de se enquadrar, em primeiro lugar, o disposto nos estatutos da R – no seu art 8º, para que remete o art 24º referente à “demissão” – e o próprio pedido do A. na acção.

Aquele art 8º refere no seu nº 1 que «não podendo operar-se a transmissão por morte, os sucessíveis têm direito a receber o montante dos títulos de capital realizados, pela forma de pagamento que tenha sido previamente estabelecida pela assembleia Geral»; o nº 2 que «De igual direito e nas mesmas condições beneficiam os membros que se demitam ou sejam excluídos da cooperativa, salvo o direito de retenção pela cooperativa dos valores necessários a garantir a sua responsabilidade»; e o nº 3, que «Em caso de demissão ou exclusão, os títulos de capital deverão ser restituídos em prazo não superior a um ano.»

È na disciplina deste art 8º dos estatutos que a R. se baseia para restringir o direito do A. aos “títulos de capital realizados” e para excluir toda a sua responsabilidade, na medida em que o A. não pede o reembolso desses títulos, mas antes aquilo que designa como “poupanças obrigatórias”, que nada terão a ver com aqueles títulos de capital.

Convém referir que a expressão que o A. utiliza, de “poupanças obrigatórias” – já se está a ver, que sem saber bem a que corresponde – terá advindo do escrito constante de fls 19 dos autos, que corresponde a um oficio da R., dirigido ao A., datado de 30/1/08, que tem por assunto, “Confirmação de saldos”, e em que R. refere, entre o mais, que “estando os nossos revisores oficiais de contas, “C” e “D” (…) a proceder à auditoria das nossas demonstrações financeiras, gostariam de obter confirmações para os saldos, a seguir indicados, existentes nos nossos livros à data de 31/12/2007 - Poupanças obrigatórias – Saldo a vosso favor – 56.000,00€ (…)”.

O pedido do A. de condenação da R. a pagar-lhe esta quantia de € 56.000,00 acrescida de juros desde a citação, e o facto de a apelidar de “poupanças obrigatórias”, advém, pois, desta comunicação da R.

Esta, na sua ambígua defesa, deixa entrever que bem sabe que o A. tem direito não apenas aos títulos de capital realizados, mas a outras quantias.

E o valor dessas outras quantias corresponde, em larga medida, ao valor dos títulos de participação realizados nos termos do art 20º do DL 502/99 de 19/11 (que são, “grosso modo”, e em última análise, as entregas do A. para o Programa Habitacional que estava em causa com vista a aquisição do fogo a construir), devendo aqui reter-se, a norma do nº 3 desse art 20º, para melhor se compreender a ligação do reembolso destes títulos à situação de “demissão” que a R. não pôs em causa por parte do A.: «O valor dos títulos de participação realizados para os efeitos do nº 1 deste artigo, com excepção do valor referido na al g) do art 17º, só poderá ser exigido pelo cooperador em caso de demissão ou de exclusão».

A demissão do A. da Cooperativa remonta a Dezembro de 2007 ( cfr fls 20 dos autos).
O valor correspondente aos títulos de capital a que se refere o art 8º dos estatutos e o art 36º nos seus nº 3 e 4, para os quais remete, como acima se mencionou, o art 24º do DL 502/99, tornou-se exigível da R. pelo menos desde Dezembro de 2008 (cfr nº 3 do referido art 8º dos estatutos) e há muito que a R. teve hipótese de conhecer o valor dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal acrescido dos juros, por há muito estar terminado o último exercício social a que se refere o nº 4 do art 36º do Código Cooperativo.
Também à R cabe determinar o valor dos títulos de participação devidos ao A. nos termos do nº 3 e 1 do art 20º do DL 502/99 para que remete o seu referido art 24º, não se vendo que essa determinação não se mostre desde já possível e que tenha que aguardar a rentabilização do programa no qual foram entregues essas poupanças.

Não tem este tribunal conhecimento do valor líquido devido ao A. nos termos das disposições legais e estatutárias acima referidas.
Mas entende que nada obsta - cfr art 661º/2 CPC – a que condene a R. a pagar ao A. esse valor, cuja liquidação será oportunamente feita, sendo que o valor que venha a ser liquidado não poderá exceder o valor do pedido formulado na acção – 56.000,00 € acrescido de juros desde a citação.

V- Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação, e, revogando a sentença recorrida, condena a R. a pagar ao A., até ao limite de € 56.000,00 acrescido de juros desde a citação para a presente acção, o valor que venha ser liquidado como correspondendo aos títulos de capital realizados pelo A. segundo o seu valor nominal que será determinado, e acrescido ou reduzido, nos termos do art 36º/4 do Código Cooperativo, e aos títulos de participação realizados nos termos do art 20º do DL 502/99 de 19/11, com os respectivos juros.

Custas na 1ª instância e nesta por A. e R. na proporção de 2/3 para a R. e 1/3 para o A., sem prejuízo das alterações a nível das custas que possam decorrer da liquidação.

Lisboa, 14 de Julho de 2011

Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto