Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10130/2004-1
Relator: ANDRÉ DOS SANTOS
Descritores: PENHORA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2004
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário:
Decisão Texto Integral:
Banco Mais, S. A. nos autos de execução de sentença que intentou contra (J) e (M), nomeou à penhora, para além de outros bens móveis, o veículo da marca Renault e matrícula (79-...-FB).
Efectuada e registada a penhora e junta aos autos a certidão dos ónus e encargos incidentes sobre o veículo, o Sr. Juiz, constatando que sobre o referido veículo incidia reserva de propriedade a favor da exequente, proferiu o despacho de fls. 93 ordenado à exequente que esclarecesse se pretendia renunciar à reserva de propriedade.
A fls. 95 a exequente veio dizer que renunciava à reserva de propriedade.
Tendo-se procedido à convocação de credores e à venda do veículo penhorado, veio o comprador a fls. 129 requerer o levantamento dos encargos que incidiam sobre o veículo penhorado (penhora e reserva de propriedade) e a entrega de documentos.
A fls. 168, o Sr. Juiz determinou que a exequente procedesse ao cancelamento da reserva de propriedade inscrita a seu favor.
Notificada a exequente do despacho, a fls. 174 veio interpor recurso que foi admitido como agravo e subida imediata.
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A agravada alegou a fls. 182, tendo concluído:
1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula (79-...-FB), penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo
2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente
3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada
5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao “domínio” sobre o bem - pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e, não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6. Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que deveria a exequente - titular da reserva de propriedade - ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.
7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao
claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5º, nº 1, alínea b) e 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do registo Predial e artigos 408º, 409º, nº 1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil.
Termos em que, se deve julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos.

Não houve contra-alegações.
Remetidos os autos ao tribunal da Relação, nada obstando cumpre apreciar e decidir.
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A questão a decidir, considerando o teor da decisão e as alegações da agravante consiste em saber a quem cabe o ónus de promover o cancelamento do registo da renúncia à reserva de propriedade reservada a favor do exequente (se ao exequente se ao tribunal).
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Fundamentos de facto e de direito.
Os fundamentos de facto são os, acima, explanados no relatório.
Quanto aos fundamentos de direito, dispunha o artigo 888º do C. P. Civil na redacção anterior que, após o pagamento do preço e imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do disposto no nº 2 do art. 824º do Código Civil, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.
Na redacção actual do artigo 888º, compete ao agente da execução promover o cancelamento dos registos que caducam nos termos do nº 2 do art. 824º do Código Civil e não sejam de cancelamento oficioso pela conservatória.
Dispõe o nº 2 do artigo 824º do Cod. Civil que os bens são transmitidos livres de direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia , com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
Em face do que dispõem as normas referidas, atenta a redacção anterior do artigo 888º do C. P. Civil competia, na data em que foi proferido o despacho de fls. 168, ao juiz do processo mandar cancelar todos os registos dos direitos reais que devam caducar.
O registo da propriedade automóvel encontra-se regulado no D. L. nº 54/75, de 12 de Fevereiro, cujo artigo 29 determina que são aplicáveis àquele registo, com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao registo predial, com vista ao suprimento das lacunas de regulamentação.
O artigo 409º do C. Civil permite a constituição reserva de propriedade a favor do alienante até ao cumprimento total ou parcial das obrigações do comprador ou até à verificação de qualquer evento.
Para produzir efeitos em relação a terceiros a reserva de propriedade deve ser registada se incidir sobre coisa imóvel ou imóvel ou coisa móvel sujeita a registo – artigo 409º nº 2 do C. Civil. No caso de a reserva de propriedade incidir sobre automóveis, o seu registo é prescrito pelo nº1, al. b) do artigo 5º do Dec. Lei 54/75, acima referido.
Face ao disposto no art. 5º do Código de Registo Predial terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Ora, conforme refere Mota Pinto , em Direitos Reais , 1976, pag. 67, a reserva de propriedade, surge no comércio jurídico, funcionalmente, como uma garantia de que o contrato vai ser cumprido. Trata-se de cláusula atípica, determinação acessória que, funcionando como garantia do alienante, se destina a regular os efeitos do contrato, restringindo-os – Cfr. Ac. Rel. Porto de 4 de Fevereiro de 1971,BMJ 204, pag. 196.
É uma convenção de garantia autónoma – Cfr. Luís Lima Ribeiro in Cláusula de reserva de Propriedade, 1988, pag. 115 e Ana Maria Peralta, a Posição do Comprador na Compra e venda de Propriedade, 1990, pag. 116.
Em face do exposto, não se acompanha a jurisprudência que, por considerar a reserva de propriedade como um direito real de gozo sobre o automóvel penhorado e atendendo que esse registo tem inscrição anterior à da penhora, defende que tal registo não pode caducar, atento o disposto no nº 2 do art. 824º do C. P. C..
Com efeito, na venda com reserva de propriedade, o alienante continua a ser o proprietário da coisa até ao integral pagamento do preço. Havendo renúncia à reserva de propriedade deixam de operar os efeitos de natureza obrigacional obstativos da transmissão da propriedade. A renúncia determina a transferência da propriedade para o executado, sem necessidade prévia do seu cancelamento, por mero efeito do contrato de compra e venda, nos termos do disposto no artigo 879º al. a) do C. Civil, a extinção da reserva de propriedade e a perda da situação privilegiada do credor que a reserva lhe concede, ficando este na situação de credor comum sujeito, na execução, ao concurso de outros credores do executado.
Em todo o caso, mesmo que se opte pela doutrina seguida por esta corrente de jurisprudência, havendo, como no caso em apreço, renúncia expressa à reserva de propriedade, nada obsta, que qualquer interessado, designadamente o adquirente do veículo, promova o cancelamento de tal registo, desde que munido de certidão que contenha a referida declaração de renúncia – Cfr Ac. R. L. de 29.4.2004. C. J. Ano XXIX, tomo II, 2004 pag. 12.
Porém, considerando a função de garantia real que desempenha e se atribui à reserva de propriedade que incide sobre o veículo penhorado e vendido e a renúncia do beneficiário a esse direito, nada obsta que o tribunal oficiosamente ordene o cancelamento do registo de todos os direitos reais e de outros direitos a eles inerentes, incluindo o registo de reserva de propriedade, com excepção dos referidos na parte final do nº 2 do artigo 824º do C. Civil, que caducam, nos termos do disposto no nº 2 deste artigo e art. 888º do C. P.C., uma vez que nenhum prejuízo advém para o exequente ou para terceiro, conforme já se decidiu no acórdão desta Relação, 1ª secção, proferido no agravo nº 5800/03, de 28 de Outubro de 2003.
De resto, a posição defendida no despacho em apreço, no caso de renúncia ao direito de reserva de propriedade pelo seu titular, deixaria na disponibilidade deste o cancelamento de tal registo com o consequente prejuízo para o comprador, o que seria incompreensível e ilógico, atento o disposto no artigo 824º nº 1 e 3 do C. Civil.
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Decisão
Nestes termos, concede-se provimento ao agravo e, revogando-se o despacho recorrido, determina-se a sua substituição por outro que ordene o cancelamento do registo de reserva de propriedade que incide sobre o veículo penhorado e vendido.
Sem custas –artigo 2º nº 1 al. o do C. C. J.

Lisboa,21-12-2004

André dos Santos