Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
44/18.6PHSXL-A.L1-3
Relator: MORAES ROCHA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2020
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECIDIDO
Sumário: Sendo remetidos para julgamento, respetivamente processos especiais nas formas sumária e abreviada, havendo o reenvio dos autos ao Ministério Público, e vindo a ser deduzida acusação em processo comum com intervenção do tribunal singular, a competência para o respetivo conhecimento mantém-se no tribunal onde tais processos tinham sido inicialmente distribuídos na forma sumária e abreviada;
Assim, não nos parece razoável defender que se trate de uma lacuna a não extensão do regime especial ao processo sumaríssimo, antes uma opção do legislador, vedando a possibilidade ao intérprete de recorrer à analogia, sob pena de fazendo-o violar o princípio da legalidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Conflito negativo de competência

Respeita o presente processo ao conflito negativo de competência entre o Juiz 3 do Juízo Local Criminal do Seixal e o Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Seixal.
Ambas as decisões não são suscetíveis de recurso.
Foi observado o disposto no art. 36.º, n.º 1, do CPP.
A Exma. PGA apõe o seu visto.
Vejamos, de forma sumária, a situação que dos autos resulta:
O Ministério Público apresentou requerimento para aplicação de sanção em processo especial sumaríssimo a C… imputando-lhe a prática de um crime de condução sem habilitação legal e propondo a aplicação ao mesmo de uma pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo o montante global de € 360,00.
Tendo os autos ido à distribuição na forma especial sumaríssima, foram distribuídos ao Juiz 3 do Juízo Local Criminal do Seixal em 15-10-2019, e tal requerimento para aplicação de pena não privativa da liberdade ao arguido, depois de ter sido proposta pelo Juiz 3 sanção diversa e o Ministério Público com tal concordar, foi recebido com tal alteração, declarando-se que o tribunal era o competente, e ante as regras da aleatoriedade que regem a distribuição, no caso em concreto, na espécie processo especial sumaríssimo.
Feitas diligências para notificar o arguido pessoalmente, desse requerimento do Ministério Público e do prazo para se opor nos termos legais, tal resultou infrutífero e determinou-se, nos termos do artigo 398.° do Código de Processo Penal, o reenvio dos autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual.
Reenviados os autos ao Ministério Público, foi decidido pela Senhora Procuradora Adjunta que os autos iriam prosseguir termos na forma comum, equivalendo o requerimento antes feito pelo Ministério Público à acusação e determinou-se a notificação do arguido da acusação e nos termos e para efeitos do disposto no artigo 287.° do Código de Processo Penal. 
Remetidos os autos à distribuição para julgamento na forma de processo comum com intervenção do tribunal singular, foram os mesmos distribuídos ao Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Seixal que se veio a declarar materialmente incompetente, invocando em suma o seguinte:
- nos artigos 390.°, n.° 2, e 391 °-D, n.° 2 do Código de Processo Penal estão previstas regras de acordo com as quais, sendo remetidos para julgamento, respetivamente processos especiais nas formas sumária e abreviada, havendo o reenvio dos autos ao Ministério Público, e vindo a ser deduzida acusação em processo comum com intervenção do tribunal singular, a competência para o respetivo conhecimento mantém-se no tribunal onde tais processos tinham sido inicialmente distribuídos na forma sumária e abreviada;
- não está prevista nenhuma idêntica a estas quanto ao processo especial sumaríssimo, mas haverá semelhança nas situações, o que leva a que se conclua que existe aqui uma lacuna, a integrar com recurso à analogia, e por isso sendo aplicável a mesma regra vertida nos artigos 390.°, n.° 2, e 391.°-D, n.° 2, do Código de Processo Penal;
- e, com base em tal, o Juiz 2 não é o tribunal competente em razão da matéria, mas sim o juiz 3, para o qual determinou que os autos fossem remetidos.
Foram os autos com base em tal declaração de incompetência remetidos ao Juiz 3.
Por seu turno, o Juiz 3 argumenta que o legislador, ao contrário do que fez nos processos especiais sumário e abreviado, não contemplou para o processo sumaríssimo, no caso de reenvio dos autos para tramitação sob outra forma processual, normas especiais aferidoras da competência, como expressamente plasmou nos artigos 390°, n.° 2, e 391 .°-D, n.° 2, do Código de Processo Penal, preceitos estes introduzidos nesse código pelo mesmo diploma: a Lei n.° 26/2010, de 30/08. 
Questionando se haverá uma lacuna a ter que ser integrada com recurso à analogia, entende que a inexistência de uma norma especial atribuidora de competência em sede de processo sumaríssimo nas situações de reenvio dos autos ao Ministério Público não corresponde a uma lacuna. O facto do legislador não ter previsto em sede de processo especial sumaríssimo nas situações de reenvio dos autos para tramitação sob outra forma processual uma norma especial, com o mesmo teor do artigo 390°, n.° 2, ou 391.°-D, n.° 2, do Código de Processo Penal, não se tratou de um esquecimento, mas algo deliberado.
Em primeiro lugar, a evidenciar que tal não se tratou de um descuido ou esquecimento do legislador, temos, desde logo, o facto do diploma onde as supra referidas normas foram introduzidas nos processos especiais sumário e abreviado - a Lei n.° 26/2010, dc 30/08 - também ter previsto alterações no processo especial sumaríssimo, mais concretamente no seu artigo 393.°, mas depois deixou intocados os seus artigos 395.° e 398.°, onde está previsto o reenvio dos autos para outra forma processual. Ora, quisesse o legislador prever que no processo sumaríssimo, nas situações de reenvio para outra forma processual, que a tramitação subsequente nos autos fosse necessariamente feita no mesmo tribunal onde tinha corrido termos na forma especial teria dito isso mesmo. Mas não o fez. Somente o previu nos processos sumário e abreviado.
Em segundo lugar, continua, o facto do legislador não ter previsto para o processo sumaríssimo norma semelhante aos artigos 390°, n.° 2 e 392.°-D, n.° 2, do Código de Processo Penal, deve-se às especificidades desta forma processual em relação à sumária e à abreviada.
Enquanto nas formas especiais sumária e abreviada o reenvio do processo para tramitação assenta apenas e só na apreciação de pressupostos de índole formal — artigo 390.°, n.° 1 e 391.°-D, n.° 1 - no processo sumaríssimo tal pode suceder em pressupostos dessa índole e ainda por duas razões:
- uma que se prende com a apreciação de mérito, de fundo, levada a cabo pelo juiz relativamente ao objeto processual, o que de todo não acontece naqueloutras formas processuais: por o juiz entender, nos termos do artigo 395.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Penal, que a sanção que o Ministério Público propôs é manifestamente insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que nesse caso específico, dita até o impedimento do juiz que assim decidiu de intervir no julgamento — artigo 40.°, alínea e), do Código de Processo Penal;
- outra que se prende com a oposição do arguido ao requerimento do Ministério Público e à sanção proposta, que o juiz já tinha aceite, ao receber esse mesmo requerimento, manifestando a sua concordância com tal.
Por conseguinte, entendemos que neste caso, o legislador o que pretendeu foi que nas situações de reenvio do processo sumaríssimo para tramitação sob outra forma processual, porque tal se podia fundar em circunstâncias em que tinha havido já uma apreciação do juiz onde os autos correram termos de discordância ou concordância com a sanção proposta, e logo de teor material, deveriam funcionar as regras gerais. E então os autos são reenviados ao Ministério Público, tudo se passando como se os actos praticados na forma especial sumaríssima não tivessem existido, e seguindo a forma comum com intervenção do tribunal singular, depois do arguido ser notificado da acusação e nos termos e para os efeitos do artigo 287.° do Código de Processo Penal, devem ir à distribuição pelos Juízes de julgamento, do Juízo Local territorialmente competente, de forma aleatória, podendo calhar àquele Juiz onde antes tinham corrido termos ou não. Desta forma, o legislador não quis prever uma norma especial de competência deliberadamente, porque tal necessariamente potenciaria as situações de impedimento de juiz.
Em razão do exposto, entendemos, com o devido respeito por opinião diversa, que no caso do processo especial sumaríssimo, as regras gerais aferidoras de competência e da distribuição de processos já dizem qual o procedimento a adoptar nas situações de reenvio do processo para outra forma processual, não havendo aqui nenhuma lacuna, nenhum vazio legal, a clamar pela aplicação analógica de normas especiais atribuidoras de competência previstas para as situações de reenvio nos processos sumário e abreviado. Passando os autos, que antes tramitaram como processo especial sumaríssimo, a correr termos noutra forma processual, a aferição do tribunal competente e a sua distribuição decorrerão como se não tivessem corrido termos naqueloutra forma.
Revertendo para o caso em apreço, tendo havido o reenvio dos autos para tramitação sob outra forma processual pelo Juiz 3 do Juízo Local Criminal do Seixal ante o facto de, apesar de ter recebido o requerimento do Ministério Público para aplicação de sanção em processo especial sumaríssimo, não ser possível notificar o arguido pessoalmente nos termos do artigo 396.° do Código de Processo Penal, tornando assim tal forma legalmente inadmissível e equiparando-se tal à sua oposição, o Ministério Público ditou que os mesmos passassem a seguir a forma de processo comum com intervenção do tribunal singular.
E tendo os autos ido à distribuição na Secção Central de forma aleatória, com respeito pelo princípio do juiz natural, pelos 3 Juízes que compõem o Juízo Local Criminal do Seixal na espécie comum singular, foram distribuídos ao Juiz 2, pelo que é esse o tribunal competente para julgar os mesmos, e não este Juiz 3 para o qual foram agora remetidos.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão a que os autos se reportam tem como núcleo central o saber se existe ou não lacuna que importe suprir por analogia no caso do processo especial sumaríssimo, tal como vem previsto nos processos sumário e abreviado ou, então, as regras gerais aferidoras de competência e da distribuição de processos já dizem qual o procedimento a adotar nas situações de reenvio do processo para outra forma processual, não havendo, portanto, nenhuma lacuna, nenhum vazio legal, a ser suprido pela aplicação analógica de normas especiais atribuidoras de competência previstas para as situações de reenvio nos processos sumário e abreviado.
Por outras palavras: cumpre saber se in casu existe uma verdadeira lacuna ou uma mera lacuna aparente, esta a ser esclarecida pela interpretação.
Ora, saber se existe ou não uma lacuna, obedece a determinada conceção do ordenamento jurídico, as teorias que mais se aproximam da compreensão jurídica nacional são as chamadas teorias da plenitude do ordenamento jurídico e entre estas temos as que advogam o espaço jurídico vazio (Bergbohm e Romano), as da norma geral exclusiva (Zitelmenn, Donati, Brunetti e Kelsen), a da indiferença da qualificação (Conte), a da obrigação de julgar perante um sistema completo (Guastini, Zimmermann, Paniagua e Pattaro) e as da interdefinibilidade (Von Wright).
Assim, porque nesta decisão não cabe a apreciação das aludidas teorias jurídicas, cumpre colocar a questão sob o prisma da obrigação de julgar perante um sistema completo, na senda dos teóricos Guastini, Zimmermann, Paniagua e Pattaro os quais foram acolhidos na formulação da legalidade do processo prevista, no caso do processo penal, no art. 2.º do CPP.
Sabemos, no entanto, da possibilidade de lacunas conforme nos adverte o art. 4 do CPP.
Vejamos então:
O legislador, ao contrário do que fez nos processos especiais sumário e abreviado, não contemplou para o processo sumaríssimo, no caso de reenvio dos autos para tramitação sob outra forma processual, normas especiais aferidoras da competência, como expressamente plasmou nos artigos 390°, n.° 2, e 391 .°-D, n.° 2, do Código de Processo Penal.
Parece, assim, uma escolha propositada do legislador a de remeter o reenvio que advenha de processo sumaríssimo para as normas gerais de competência. Atente-se que dos três processos especiais previstos, o legislador prevê para dois uma norma especial referente à competência, assim não nos parece razoável defender que se trate de uma lacuna a não extensão do regime especial ao processo sumaríssimo, antes uma opção do legislador, vedando a possibilidade ao interprete de recorrer à analogia, sob pena de fazendo-o violar o principio da legalidade.
Será possível descortinar a intenção do legislador atentando no facto de se pretender separar os termos do processo sumaríssimo, com os seus tempos e procedimentos céleres, dos termos processuais ulteriores com outro ritmo temporal.
Pelo exposto, decide-se o presente conflito negativo de competência atribuindo a competência para prosseguir os ulteriores termos processuais ao Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Seixal.
Cumpra-se o n.º 3 do art. 36.º do CPP.

Lisboa, 15-11-2020
Moraes Rocha