Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1211/18.8T9TVD.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
COMISSÃO POR OMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - A falta de prestação de cuidados de higiene e limpeza a que o ofendido foi votado, mantido na situação degradante de caído no chão durante pelo menos dois dias, sem que a arguida, sua mulher, sobre quem recaiam os deveres de respeito, cooperação e assistência ao seu cônjuge, lhe tenha prestado a devida assistência, tentando levantá-lo ou solicitando para esse efeito o auxílio de outras pessoas, situação aliada à pré-existente condição de vulnerabilidade do ofendido, sem que tivesse sido avançada nenhuma razão justificativa para que tal tenha ocorrido, traduz uma situação de maus tratos.
- Ao proceder como apurado, a arguida omitiu as acções adequadas à prestação da assistência devida ao seu cônjuge e de que ele carecia, sendo que o podia fazer, não tendo agido em conformidade com o que é esperado e socialmente aceitável, face ao conhecimento e verificação da situação de perigo, que lhe impunha a sua acção uma vez que a situação era do conhecimento da arguida, conhecedora do estado em que o seu marido se encontrava e dos cuidados de que necessitava e se impunha providenciasse, quer directamente, quer promovendo-os através de terceiras pessoas, em face dos deveres jurídicos emergentes da relação entre cônjuges.
- Sendo o resultado (maus tratos) uma consequência previsível da acção/omissão, previsibilidade que “deve ser aferida de acordo com um juízo de prognose póstuma (ou juízo ex ante) colocando-se o aplicador no momento histórico da conduta do agente e impendendo sobre a arguida o dever de garante em relação ao ofendido (emergente da lei – relação conjugal) de evitar actos ofensivos da sua saúde e dignidade pessoal, conclui-se que a arguida omitiu os actos adequados a evitar tais ofensas, que podia e devia ter adoptado e, tendo ocorrido por essa via uma situação de maus tratos, tal resultado é-lhe imputável a título omissivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 1211/18.8T9TVD, C. , melhor identificada nos autos, foi julgada pela imputada prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4 e 5, do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a acusação deduzida nos presentes autos e, consequentemente decido:
a) Condenar a arguida, C. , pela prática em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo Art.º 152.º, n.º 1, al. a) e 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, absolvendo-a da aplicação das penas acessórias, a primeira suspensa na sua execução e por igual período, de acordo com o Art.º 50.º, n.ºs 1 a 5 do mesmo Código Penal, mediante regime de prova, nos termos do Art.° 53.° do Código Penal e ainda sujeita ao cumprimento de regras e deveres, segundo os Arts.° 51° e 52.° do mesmo código, e Art.° 34.ºB da Lei n° 112/2009, designadamente na obrigação de:
i. Colaborar com as autoridades judiciárias e de reinserção social sempre que contactada para o efeito;
ii. Devendo ser ainda sensibilizada para a problemática da violência doméstica;
iii. Entregar a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à APAV e disso fazendo prova nos autos e durante o período de suspensão da pena.
(…)»

2. A arguida recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I. Entende o Recorrente que há erro de apreciação da matéria de facto e da prova pelo Tribunal a quo ao considerar como provados os factos dos pontos 4, 5, 6, 11, 12, 13 e 16 da matéria de facto dada como provada e na motivação da decisão de facto quanto a esses factos dados como provados;
II. Entende o Recorrente que a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo contraria, entre outras, as normas contidas nos artigos 14.°, 15, 152.° e 200.° do Código Penal, e ainda os princípios da prova e o princípio in dúbio pro reo;
III. Os factos dos pontos 4, 5, 6, 11, 12, 13 e 16 da matéria de facto dada como provada não são verdadeiros nem resultam provados nos autos, quando confrontada a prova documental junta aos autos com os depoimentos das testemunhas, pelo que não deveria tais factos ter sido levados à matéria dada como provada;
IV. Há uma clara contradição entre os depoimentos da testemunha EA , a médica que socorreu o Ofendido, e a testemunha LC, enfermeira, relativamente ao estado do Ofendido, afirmando a primeira que o mesmo se encontrava consciente, não estando em coma ou desmaiado, e a segunda, contraditoriamente, que o Ofendido se encontrava inconsciente e em coma;
V. A anterioridade do estado de saúde do Ofendido em relação à data dos factos encontra-se devidamente comprovado nos autos, com documentação clínica e também testemunhal;
VI. Nenhuma das alegadas lesões, constantes da Douta Sentença, resulta directamente de conduta activa ou omissiva da Recorrente, inexistindo nos autos qualquer prova que permitisse ao Tribunal a quo concluir como concluiu nos pontos 11 e 12 da matéria dada como provada;
VII. O Tribunal a quo baseou a sua convicção acerca do alegado estado do Ofendido, caído no chão durante dois dias, levado à matéria provada nos pontos 4, 5 e 6, única e exclusivamente, com base nas declarações das testemunhas EA e LC, por intermédio de depoimento indirecto, já que essas testemunhas não presenciaram os factos mas apenas referiram ou que ouviram dizer, ou acham que ouviram dizer, da Recorrente que, ouvida, negou tais factos;
VIII. Contrariamente ao que consta da Douta Sentença, a testemunha LC, a minutos 03:40 e seguintes da respectiva gravação, afirma que a D. C. , aqui Recorrente, lhe transmitiu que o Ofendido "estava caído há três dias", o que entra em contradição com a Douta Sentença;
IX. A valoração do depoimento das testemunhas "de ouvir dizer' depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório nos depoimentos das testemunhas;
X. Ressalvadas as excepções previstas na parte final do n.° 1 do artigo 129.° do Código de Processo Penal, o depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer;
XI. E, ouvida a pessoa em questão, a aqui Recorrente, a mesma negou tais factos;
XII. Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no artigo 127.° do Código de Processo Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum;
XIII. Se a pessoa determinada de quem se ouviu dizer, neste caso a Recorrente, negou tais factos, e não estando os mesmos comprovados por qualquer outro meio idóneo de prova, não se mostra verificado, no caso dos autos, o pressuposto de que depende a validade do depoimento indirecto da testemunha, o que significa que o mesmo não poderia ter fundamentado a convicção do Tribunal a quo quanto ao facto provado em questão;
XIV. Mais fundamentou o Tribunal a quo a sua convicção quanto ao alegado facto de o Ofendido ter estado caído no chão da residência não apenas no dia 6 de Junho de 2018, mas durante mais tempo, nas opiniões (meras opiniões e não pareceres oficiais, técnicos e profissionais) das testemunhas EA , que, segundo o texto da fundamentação da sentença, referiu que o quadro em que se apresentava o Ofendido "não é compatível com apenas umas horas atrás", LC, que relatou que os bombeiros lhe relataram (depoimento indirecto) "que a vítima encontrava- se no corredor, com fraldas sujas, tendo ficado internado, sendo que esse quadro apresentado se mostra compatível como estando assim há alguns dias", TR  e NS , bombeiros, que referiram não parecer ser recente esse quadro, segundo referido na própria fundamentação de facto da sentença;
XV. Mas, contrariamente ao que consta da fundamentação da Douta Sentença, o que a testemunha LC afirmou, a minutos 06:30 e seguintes da respectiva gravação, foi que esse (alegado) estado de higiene e condições físicas do Ofendido, a avaliar pelo estado da pele "já estaria há umas boas horas", mas não conseguiria avaliar se estaria assim há três dias, pois não tem conhecimentos nem competência técnica para fazer essa peritagem e avaliação, admitindo que "nós, efectivamente, até quando estamos menos tempo em contacto com uma superfície húmida podemos ficar assim";
XVI. Tais factos (de que o Ofendido já se encontrava assim caído há 2 dias) só poderiam ter sido dados como provados com base em prova testemunhal dos mesmos, por depoimento directo de testemunhas que presenciaram os factos, por confissão, ou por prova pericial, o que não se verificou;
XVII. Assim sendo, nunca tais factos deveriam ter sido levados à matéria dada como provada, andando mal o Tribunal a quo ao considerar como provada essa factualidade;
XVIII.  Pelo exposto, em face da ausência de prova bastante de tais factos, e atendendo ao princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal a quo concluir pela absolvição da aqui Recorrente;
Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se admite, há que ter em consideração o seguinte:
XIX. No crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima;
XX. Neste crime não se demanda a prática habitual dos actos ou a repetitividade das condutas, exigindo-se que alguém, de modo reiterado ou não, inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento familiar e por força desse relacionamento, e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima, de tal forma a que não se enquadre na previsão de outro tipo de crime;
XXI. Inexiste qualquer prova de que a Recorrente tenha infligido maus tratos físicos ou psíquicos ao seu marido;
XXII. Não existe nos autos uma única prova de qualquer acção da Recorrente que possa ter levado o Tribunal a quo a concluir que a mesma tenha infligido maus tratos físicos e psíquicos ao seu marido, por meio de violência física, psíquica ou verbal, "incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais", como previsto no artigo 152.° do Código Penal;
XXIII.  O Tribunal a quo entendeu que os maus tratos foram infligidos de forma omissiva ou por omissão da aqui Recorrente;
XXIV.  Se o Tribunal a quo entendeu que o alegado crime se operou, não por acção, mas por omissão, não poderia, assim, concluir que está preenchida a previsão legal do artigo 152.°, n.° 1, alínea a), e n.° 2, do Código Penal, nomeadamente os elementos objectivos do crime de violência doméstica aí previsto e punido;
XXV. Seguindo essa linha de pensamento, o Tribunal a quo teria, necessariamente, que enquadrar a situação no n.° 1 do artigo 200.° do Código Penal, que prevê o crime de omissão de auxílio;
XXVI. Nos termos desse normativo, "Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias";
XXVII. Conforme sumariado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2-11-2011, CJ, 2011, t. V, pág.314, "No crime de omissão de auxílio, o facto típico deve-se por dolosamente cometido quando o agente, tendo representado a necessidade de auxílio, por o dele carenciado correr risco de vida ou de lesão grave para a saúde, se abstêm de o prestar, conformando-se ou mostrando-se indiferente perante a situação (de perigo)";
XXVIII. A linha de raciocínio do Tribunal a quo, enquadra-se, precisamente, na previsão legal do crime de omissão de auxílio, e não no crime de violência doméstica;
XXIX.  O facto de a alegada vítima ser o cônjuge da Arguida, aqui Recorrente, não permite afastar a previsão legal do artigo 200.° do Código Penal para integrar a previsão legal do artigo 152.° do Código Penal;
XXX.  O dever de cooperação entre cônjuges contempla a "obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram" (artigo 1674.° do Código Civil);
XXXI.  O próprio Tribunal a quo, na fundamentação de direito da decisão que tomou, resume a conduta da Recorrente a, na ocasião, não ter prestado "os cuidados de saúde e de higiene necessários ao marido, pessoa gravemente doente e de si dependente, deixando-o caído no chão durante dias (...)";
XXXII. O dever de auxílio previsto no artigo 200.° do Código Penal tem como fundamento a solidariedade social devida àqueles que se encontram em perigo no que toca a bens jurídicos eminentemente pessoais, a vida, a integridade física ou a liberdade;
XXXIII. Em face do critério tradicional, o crime de omissão de auxílio do artigo 200.° do Código Penal - correspondente ao artigo 219.° da versão originária do Código Penal de 1982 - é considerado como um crime de omissão própria ou pura, também designado de mera omissão ou de omissão simples;
XXXIV. Contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo, a alegada conduta omissiva da Recorrente não foi uma conduta dolosa, mas, a ter existido, uma conduta meramente negligente;
XXXV. No caso em apreço não se verifica nenhuma das situações previstas no artigo 14.° do Código Penal, pelo que o Tribunal a quo não poderia concluir como concluiu, pela existência de dolo;
XXXVI. A serem verdadeiros os factos constantes da Acusação e da matéria dada como provada na Douta Acusação, o que não se concede, os mesmos não integrariam uma situação de dolo, mas sim de mera negligência, nos termos do artigo 15.° do Código Penal;
XXXVII. Não está, assim, preenchido o elemento dolo, relativamente aos elementos objectivos do tipo legal de crime de violência doméstica;
XXXVIII. O crime de violência doméstica é um crime de resultado, isto é, a sua verificação depende de um resultado concreto - lesões físicas e/ou psíquicas na vítima;
XXXIX. Ainda que entendesse que o mesmo possa ser cometido por omissão, traduzida na não prestação dos cuidados necessários de que a vítima carece e que leva à verificação do resultado típico - infligir maus tratos, o que não se concede, sempre deveria o Tribunal a quo ter em consideração que inexiste nos autos qualquer prova inequívoca e bastante de que o estado em que o Ofendido se encontrava à data dos factos, magro e aparentemente subnutrido, era consequência directa ou indirecta de maus tratos;
XL. Pelo contrário, encontra-se suficientemente provado e demonstrado nos autos que o Ofendido era uma pessoa bastante doente, com síndrome demencial crónico e, entre outras coisas, diabetes mellitus II, carecendo de medicação com neurolépticos e antidiabéticos;
XLI. A doença do Ofendido, de diabetes, conduziu-o a esse estado de magreza e aparente subnutrição, aparente subnutrição essa que, de resta, não resulta provada;
XLII. Essa mesma doença pode ter-lhe provocado um pico de glicémia que tenha conduzido ao vómito e à queda no chão da residência;
XLIII. As lesões físicas corporais constantes do ponto 10 da matéria dada como provada foram consequência da própria queda do Ofendido;
XLIV. As demais características do Ofendido, referidas nesse ponto 10, são anteriores à data dos factos e consequências directas das doenças de que padecia o Ofendido;
XLV. A Douta Sentença é omissa relativamente à prova das concretas consequências da alegada conduta omissiva da Recorrente na saúde do Ofendido, não se encontrando devidamente comprovada qualquer consequência directa de tal conduta no Ofendido, no seu corpo e na sua saúde física e psíquica;
XLVI. Não está concretizado nem provado na Douta Sentença qual o concreto dano ou que concretas lesões que sofreu o Ofendido com a conduta omissiva da Recorrente, nem que esse dano ou lesões sejam consequência directa da conduta omissiva da Recorrente;
XLVII. Não há prova nos autos de que estado em que o Ofendido se encontrava à data dos factos e aquando da sua entrada no hospital tenha surgido naquela data ou em momento anterior, e que seja consequência de qualquer acção ou omissão da Recorrente;
XLVIII. Falta, portanto, o elemento resultado para que se verifique a prática de um crime de violência doméstica;
XLIX. Sem esse resultado, e sendo o crime de violência doméstica um crime de resultado, não está preenchida a previsão legal do artigo 152.° do Código Penal;
L. Assim, caso estivéssemos em presença de matéria susceptível de enquadrar a prática de um crime, o que não se concede, a mesma não seria enquadrável na previsão legal do artigo 152.° do Código Penal, mas sim na previsão legal do artigo 200.° do mesmo Código Penal;
Por outro lado, e caso se entenda que a alegada conduta omissiva da Recorrente é dolosa e não é enquadrável na previsão legal do artigo 200.° do Código Penal, sempre se dirá o seguinte:
LI. Não ficou de todo provado, também, que a Arguida ao agir do modo descrito na Acusação e na Sentença (de modo omissivo), quis provocar no ofendido, seu marido, mal-estar físico e psicológico;
LII. Isto é, não ficou provado que a Arguida agiu (ou se absteve de agir) com o concreto propósito de causar mal-estar físico e psicológico ao seu marido e, com isso, atentar contra a sua dignidade;
LIII. O crime de violência doméstica tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana, por isso, a acção típica, prevista no n.° 1 do artigo que prevê esse crime - a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos -, requer que a conduta seja realmente maltratante, isto é, que através dos maus tratos o agente degrade a dignidade da vítima enquanto ser humano;
LIV. O tipo objectivo integra as condutas de violência física - crime de ofensa à integridade física - violência psíquica - crimes de ameaça, coacção, injúria, difamação - e ainda as tipificadas privações de liberdade e ofensas sexuais;
LV. Mas estas condutas só serão típicas quando traduzam acções efectivamente maltratantes, quando a acção ou as acções concretas, pela sua ofensividade, conduzem à degradação da dignidade da pessoa da vítima;
LVI. No crime de violência doméstica, o conceito de maus tratos, de que fala a norma, exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações;
LVII. A norma que prevê e pune o crime de violência doméstica não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos;
LVIII. No caso dos autos não só não existe prova como o Tribunal a quo não demonstra na Sentença que a conduta da Arguido conduziu à degradação da dignidade da pessoa do seu marido e que revela desprezo, humilhação e especial desconsideração pela vítima;
LIX. Logo, a alegada conduta omissiva da Recorrente, a constituir uma conduta criminosa, o que não se concede, em nada afasta a previsão legal do crime de ofensa à integridade física simples, não cabendo na previsão do crime de violência doméstica;
LX. Assim, caso considerasse que estamos perante matéria suceptível de enquadrar a prática de um crime, o que não se concede, o Tribunal a quo deveria, ainda assim, alterar a qualificação do crime, para crime de ofensas à integridade física simples, o que não se verificou;
LXI. Tratando-se de um crime de ofensas à integridade física simples, de natureza semi-pública, em relação ao qual a titularidade do direito de queixa pertenceria ao Ofendido, teria que se registar no processo uma manifestação expressa do mesmo no sentido de dar início e continuação ao procedimento;
LXII. Sem esse juízo inicial, que não se verificou, carecia o Ministério Público de legitimidade para deduzir acusação por esses factos, pelo que, necessariamente, se impunha a absolvição da Arguida;
Ainda que assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se admite, sempre se dirá o seguinte:
LXIII. A medida da pena que foi aplicada à Arguida aqui Recorrente é excessiva;
LXIV. A Arguida não infligiu qualquer ofensa física, psíquica ou verbal ao seu marido;
LXV. É uma pessoa integrada socialmente, sem qualquer antecedente criminal;
LXVI. Sempre tratou bem o seu marido, cuidando do mesmo até à sua morte, ora directamente, ora acompanhando de perto os cuidados que o mesmo recebia nas instituições onde esteve a ser acompanhado e a residir;
LXVII. A pena que lhe foi aplicada está muito longe do limite mínimo, sem que a gravidade da situação, a intensidade do dolo e as necessidades de prevenção especial ou geral o justifiquem.

3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta a sustentar que o recurso não deverá ser provido.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu parecer em que adere à resposta do Ministério Público em 1.ª instância, no sentido de que o recurso não merece provimento
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, as questões a apreciar no recurso são:
- Impugnação da matéria de facto / erro de julgamento da matéria de facto / valoração de depoimento indirecto.
- Subsunção jurídica dos factos.
- Determinação da pena.

2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. A arguida está casada com o ofendido HB desde 06 de Agosto de 1977.
2. Até à data de 06 de Junho de 2018 o referido casal vivia na habitação sita na Rua ….
3. O ofendido HB padece de síndrome confusional/demencial crónico não esclarecido, acidente isquémico transitório, hipertensão arterial e diabetes mellitus tipo II, apresentando um quadro de desorientação com cerca de um ano de evolução, carecendo de medicação com neurolépticos e antidiabéticos (orais e insulina) e dependendo do auxílio de terceiros, designadamente da arguida, na realização das suas actividades da vida diária.
4. No dia 04 de Junho de 2018, em hora não concretamente apurada, quando se encontrava no interior da sua residência o ofendido HB caiu e ficou deitado no chão por não conseguir levantar-se sozinho.
5. Apesar de vê-lo deitado no chão a arguida nada fez, não tentou levantá-lo, nem solicitou o auxílio de outras pessoas e limitou-se a tapá-lo com um cobertor deixando-o caído no chão durante pelo menos dois dias e sem que lhe prestasse quaisquer cuidados de saúde e higiene.
6. E só no dia 06 de Junho de 2018, ao início da tarde, por verificar que o ofendido se encontrava inconsciente e com dificuldade em respirar a arguida solicitou a presença dos Bombeiros/INEM.
7. Por volta das 15h40m chegou ao local uma ambulância dos Bombeiros Voluntários de Torres Vedras e logo de seguida uma VMER do INEM.
8. Ao entrarem na residência os bombeiros e a equipa médica do INEM depararam-se com o ofendido deitado no chão, num “hall” entre a sala de estar e o quarto, com um cobertor por cima dele e com sacos de plástico e fraldas sujas em seu redor, encontrando-se as suas roupas sujas e impregnadas de urina, fezes e vómito do próprio.
9. Atendendo ao estado em que se encontrava o ofendido o mesmo foi imediatamente conduzido às urgências do Centro Hospitalar do Oeste - Torres Vedras, onde ficou internado.
10. À chegada ao hospital o ofendido apresentava-se inconsciente, dispneico, desnutrido, emagrecido, sem reactividade a estímulos externos, com a pele fria e húmida com cianose das extremidades, com abrasão na região dorsal, mais acentuada na região escapular, úlcera de grau III com cerca de 5cm de diâmetro na região sagrada (escara), tendo-lhe sido ainda diagnosticada sépsis de ponto de partida respiratório.
11. Sendo tais lesões causa directa e necessária da conduta omissiva da arguida que deixou o ofendido caído no chão durante dois dias e sem lhe prestar a devida assistência ou diligenciar por essa assistência junto de terceiros.
12. A arguida tinha consciência de que na supra referida circunstância, ao deixar o seu marido sem assistência durante dois dias e caído no chão, o tratava de forma degradante, humilhante e desumana, molestando-o fisicamente e provocando-lhe dessa forma dores e mau estar físico e psicológico.
13. Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por Lei.
Mais se provou,
14. O ofendido esteve internado em lar da IPSS Casa do Povo do M.l desde 13-9-2018.
15. A vítima e ofendido veio a falecer em 09-11-2018.
16. A arguida já se encontrava referenciada por falta de cuidados ao marido.
17. A arguida chegou a acompanhar o ofendido em consultas e no hospital, em momento anterior e posterior à situação supra descrita.
18. Nos cuidados do marido, chegou a beneficiar da ajuda de uma vizinha.
19. A arguida é considerada boa pessoa pelos amigos.
20. Trabalha como vendedora, auferindo cerca de € 700,00 mensais.
21. Tem o 6.º ano de escolaridade.
22. Vive em casa própria.
23. Tem um filho maior de idade e independente.
24. Provem de uma família numerosa e de baixa condição social, tendo protagonizado abandono escolar e iniciação laboral precoce e na adolescência.
25. A relação conjugal com a vítima, iniciado no início da adultez, manteve-se estável até à manifestação de uma doença demencial do cônjuge.
26. Apresenta um quadro de relativo isolamento familiar, apresentando emprego independente e que lhe assegura a satisfação das necessidades básicas.
27. Apresenta inserção comunitária não conotada com reacções adversas.
28. A arguida não apresenta condenações anteriores.
           
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
(…)

***
3. Apreciando
           
3.1. A recorrente discorda da decisão sobre a matéria de facto, designadamente dos pontos de facto provados 4, 5, 6, 11, 12, 12 e 16, em relação aos quais considera existir erro de apreciação da prova.
3.1.1. Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
No que concerne à modificabilidade da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, preceitua o artigo 431.º, do C.P.P., que tal decisão pode ser modificada, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º3 do artigo 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.
A situação prevista na alínea a), do artigo 431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta dos autos, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al. c) do artigo 431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento de qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do C.P.Penal.
No que concerne à impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, a reapreciação da prova faz-se dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de tríplice especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4.
Atente-se que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
No segundo caso, temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e que se têm como erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido e que imponham diversa apreciação. Quer isto dizer que, na impugnação ampla, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, de 29 de Outubro de 2008, Processo 07P1016 e de 20 de Novembro de 2008, Processo 08P3269, in www.dgsi.pt., como todos os que venham a ser indicados sem outra indicação), sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P.P., estabelecendo aquele n.º3:            
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Face a este acórdão, o ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada declaração gravada, nos seguintes termos:
- se a acta contiver essa referência, a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º (n.º 4 do artigo 412.º do C.P.P.);
– se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados  (acórdão da Relação de Évora, de 28/05/2013, processo 94/08.0GGODM.E1).
Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar.
Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do da decisão recorrida.
Resultando do recurso que se pretende sindicar a apreciação da prova, através da impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, procedeu-se à audição da prova gravada indicada, confrontando-a com a prova documental e pericial, e bem assim com a motivação da decisão de facto exposta na sentença recorrida.
Procedeu-se dessa forma tendo sempre em vista que, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações, que sintetizam o que se disse supra:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com a prova pessoal ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3].
Como se diz no acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 (processo n.º 360/08-1.ª):
«Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente
           
Assim, ouvida a gravação da prova, importa cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pela recorrente (e agora reapreciadas) impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.

3.1.2. A arguida/recorrente nega a prática dos factos, alegando, quando perguntada sobre o estado em que o seu marido tinha sido encontrado – caído no chão, tapado por cobertor, com sacos de plástico e fraldas sujas em seu redor, com as roupas sujas e impregnadas de urina, fezes e vómito do próprio -, que “é tudo mentira”, que ele estava molhado de água e não de urina, esteve caído apenas no período de “umas horas”, mais concretamente desde a hora do almoço, mas que andava a cair com frequência há dois dias.
A testemunha EA , médica, trabalhava na altura na viatura de emergência médica do INEM que se deslocou ao local, fazendo equipa com a enfermeira LC. Segundo a testemunha EA , deslocaram-se a uma residência, activados para um caso de dispneia. A vítima, do sexo masculino, aparentava estar com falta de ar, mal cuidada, já na maca dos bombeiros que transmitiram a informação de que o tinham acabado de retirar do chão. Os bombeiros transmitiram que a arguida lhes dissera que o marido estava no chão há dois dias, razão por que a testemunha a questionou sobre há quanto tempo o senhor estava assim e a arguida respondeu que ele estava no chão há dois dias e que “ela lhe tinha posto uns cobertores à volta para ele lá ficar. A arguida “respondeu-me muito claramente na altura” e “quando obtive essa resposta, que não estava à espera na altura, achei que o melhor era levar o senhor rapidamente para o hospital” e não fazer mais questões. O estado físico do senhor era “claramente desnutrido” – a testemunha até pensou que “ele tivesse alguma patologia oncológica” -, com más condições de higiene, com cheiro intenso a urina, desidratado, pouco reactivo. Numa zona de corredor/sala, a testemunha viu uns cobertores no chão.
Disse a testemunha que o estado em que se encontrava o ofendido “não era uma coisa de uma hora ou duas, com toda a certeza”.
A testemunha LC, enfermeira, estava ao serviço na viatura médica. Quando chegaram ao local, já lá se encontravam os bombeiros e um senhor que estava numa maca, na zona da sala. Havia um cheiro intenso a urina. A arguida dirigiu-se à ambulância e disse “que o senhor estava caído há três dias” – a testemunhas não tem dúvidas de que a ouviu dizer isso - e que ela telefonara porque ele, naquele dia, deixara de comer. A arguida estava em “stress” e o senhor apresentava-se com um cheiro significativo, desnutrido, desidratado, emagrecido, com a pele engelhada e as extremidades esbranquiçadas, não reactivo. O estado em que ele se encontrava aparentava ser já “algo prolongado”.
A testemunha TR , bombeiro, disse ter encontrando “um senhor caído no chão, cheio de cobertores, enrolado a esses cobertores, quando o fomos tirar estava cheio de fraldas, plásticos, vomitado e cheio de imundície”. As fraldas estavam sujas, o senhor estava inconsciente, sujo “naquela imundície toda”, com cheiro a urina.
A testemunha NS , tripulante/socorrista da ambulância, disse que “o senhor estava inconsciente, deitado no chão, numa zona entre o quarto e a sala, mas não tendo bem a certeza” quanto à zona; estava “deitado no chão, tapado com uns cobertores e estava embrulhado ali assim nuns sacos e numas fraldas” sujas, vomitado e com um cheiro forte a urina. Ele estava caído “no meio daquela sujidade toda” e a mulher disse que os tinha chamado por “não lhe conseguir dar o comer ou ele não querer comer”.
Na sinalização da situação pela assistente social do Centro Hospitalar, na sequência da entrada do ofendido no serviço de urgência do CHO – Unidade de Torres Vedras, na informação clínica relativa ao ofendido e no relatório de urgência, sinaliza-se que aquele foi encontrado em casa, onde estaria caído desde dois dias antes, assinalando-se na informação da assistente social que a arguida teria continuado a alimentá-lo mesmo caído no chão.
Nos termos do artigo 124.º constituem objecto da prova “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis” (n.º1), constituindo, igualmente, objecto da prova, se tiver lugar pedido cível, “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil” (n.º2).
O tema da prova corresponde, assim, aos factos a provar – os factos probandos - que, em princípio, são todos os factos juridicamente relevantes no processo, não consistindo exclusivamente, ou pelo menos directamente, nos factos que formam o objecto do processo, pois são também tema da prova os factos dos quais, uma vez provados, se pode inferir a existência de factos que constituem objecto do processo, ou factos que revelem a idoneidade de meios de prova (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2008, p. 118-119).
Entre os meios de prova conta-se a prova testemunhal, estabelecendo o artigo 128.º, n.º1, do C.P.P., que a testemunha “é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.
Segundo Germano Marques da Silva (ob. cit., p. 161), a prova testemunhal é essencialmente constituída pela narração de factos juridicamente relevantes de que a testemunha tem conhecimento, sendo este proveniente, em regra, da visão ou da audição, “mas é igualmente testemunho o que provenha dos demais sentidos, quando apropriado para prova dos factos”.
O testemunho é directo ou indirecto consoante se reporta imediatamente ou não ao thema probandum, aos factos a provar.
O depoimento de ouvir dizer reconduz-se à não percepção directa (sensorial) do facto objecto de prova, mas antes à recepção do que resulta percepcionado por outro meio de prova, por outra pessoa, não tendo o depoente assistido ao facto relatado, ao que foi dito. Por outras palavras: este tipo de depoimento não invoca conhecimento próprio, directo, do facto probando, limitando-se a narrar o que se ouviu dizer a tal respeito (entre muitos, acórdão da Relação de Coimbra, de 14-10-2009, Recurso 63/09-3PECBR.C1, em www.dgsi.pt, como qualquer outro que venha a ser citado sem outra indicação).
Estabelece o artigo 129.º do C.P.Penal:
1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.
3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.

Como se alcança do artigo 129.º, não está afastada a valoração do depoimento indirecto, condicionada à possibilidade de a testemunha referenciada ou “testemunha-fonte” ser chamada a depor.
O testemunho de ouvir dizer até pode ser admitido e atendido em substituição da testemunha referenciada, nos casos em que esta foi devidamente indicada, mas o depoimento originário é impossível por algum dos motivos indicados no artigo 129.º, n.º1 (morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada).
Quando a testemunha referenciada é indicada e chamada a depor, passamos a ter cumulativamente dois depoimentos, um directo e um indirecto, “existindo, então, a necessidade de, com observância do princípio da livre apreciação da prova, conjugar e cotejar o depoimento indirecto e o depoimento directo, esclarecendo, e concluindo, sobre eventuais contradições ou convergências” (Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Conselheiros do S.T.J., 2016, 2.ª edição, p. 450).
Questão que tem sido debatida é a da valoração do depoimento de testemunha que relata o que ouviu ao arguido.
Refere Carlos Adérito Teixeira (Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova, Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2005, p. 161 e seg.):
 “Acima de tudo, pesa o argumento de que a posição processual do arguido é irremediavelmente incompatível com a qualidade de “testemunha” na mesma pessoa e no mesmo processo, como decorre do confronto das normas – com interesse para o cerne deste debate – previstas no art. 61.º, n.º1, al. c), art. 140.º, n.º3 e art. 343.º, n.º1, com as normas do art. 131.º, n.ºs 1 e 2, art. 132.º, n.º1 als. b), c) e d) e art. 145.º n.º2 (com a inerente responsabilidade penal cominada nos arts. 359.º, n.º2 e 348.º do CP).
De resto, a propósito do mesmo crime no mesmo processo, o arguido nunca pode, a um só tempo, deter essa qualidade e ser também testemunha (contra si próprio ou contra outros arguidos). E se é assim, sempre, no processo em que seja arguido, também em sede de produção de depoimento indirecto não se pode ficcionar que passaria a ser testemunha (fonte).
Além disso, para efeitos da aplicação do art. 129.º, n.º1, do CPP, o arguido «transmutado» em pessoa-fonte do conhecimento, jamais poderia assegurar o procedimento, legal e dogmático, que constitui a condição de admissibilidade e valoração do depoimento indirecto”.

Conclui mais adiante o referido autor que o disposto no artigo 129.º se revela inaplicável, quer do ponto de vista jurídico, quer sob o ponto de vista operativo, à admissibilidade de o arguido funcionar como “pessoa-fonte”.
Não obstante, o mesmo autor sustenta a utilizabilidade do depoimento da testemunha que ouviu dizer ao arguido, mesmo que este, em audiência, exerça o seu direito ao silêncio, já que o arguido sempre podia, se assim quisesse, ter exercido o contraditório (no mesmo sentido, Santos Cabral, ob. cit., p. 453).
Não importa, para o caso, aprofundar o tema e as posições diversas que se perfilam sobre a matéria, havendo que salientar que a questão é particularmente sensível quando a testemunha de referência é um órgão de polícia criminal que relata o que ouviu dizer ao arguido, em conversa informal, tendo em vista o regime dos artigos 356.º e 357.º do C.P.P. (sobre a matéria, o acórdão desta Relação, de 06/06/2017, processo 224/13.0PTFUN.L1-5, do relator do presente).
No caso em apreço, não estamos perante o depoimento de órgão de polícia criminal que relata o que ouviu dizer ao arguido, em conversa informal.
Quando as testemunhas EA e LC relataram o declarado pela arguida, os seus depoimentos são directos em relação ao facto que foi directamente percepcionado – o relato efectuado pela arguida -, ou seja, os depoimentos dessas testemunhas, que em audiência relataram o que viram e ouviram, não constituem depoimentos indirectos, pois versaram sobre factos de que directamente tiveram conhecimento.
Sempre a arguida podia exercer, como exerceu, o contraditório, mantendo ao longo da audiência de julgamento o direito de se pronunciar e contradizer os depoimentos proferidos.
Mesmo no caso de depoimentos de órgãos de polícia criminal, tem-se entendido que, as informações/declarações prestadas pelo arguido a órgão de polícia criminal, logo após o crime, antes de ser suspeito e muito menos arguido, podem ser validamente consideradas pelo tribunal para a formação da sua convicção – na condição de se tratar de declarações feitas quando o arguido ainda não tinha, nem devia ter, tal qualidade.
Não há razão, por conseguinte, que impeça a valoração do que as testemunhas EA e LC ouviram dizer à arguida, parecendo-nos irrelevante a discrepância entre dois dias (depoimento de EA) e três dias (depoimento de LR), sendo certo que, atento o estado deplorável em que o ofendido foi encontrado, a situação não pode ter perdurado apenas por umas breves horas, como a arguida quis fazer crer, antes o quadro do ofendido se mostrava compatível com a duração de alguns dias – pelo menos os dois dias dados como provados -, como a arguida expressamente admitiu e foi testemunhado, não havendo razões para duvidar que tal tenha acontecido.
Manifestamente, não merece credibilidade a arguida quando afirma ser mentira o que foi claramente testemunhado – o estado lastimável em que o seu marido foi encontrado – caído no chão, tapado por cobertor, com sacos de plástico e fraldas sujas em seu redor, com as roupas sujas e impregnadas de urina, fezes e vómito do próprio.
Como não há razões para duvidar que o quadro clinico do ofendido tenha resultado da deplorável situação em que se encontrou, deixado todo aquele tempo caído no chão, envolto em “imundície”, como caracterizou a testemunha TR , embora se possa admitir que a ferida na região sagrada corresponda a um agravamento de uma lesão preexistente, por via da conduta omissiva da arguida.
A arguida não podia deixar de ter consciência de que na supra referida circunstância, ao deixar o seu marido sem assistência durante dois dias caído no chão, tapado com um cobertor e envolto em plásticos e fraldas sujas, impregnado de urina, o tratava de forma degradante e humilhante, molestando-o fisicamente e provocando-lhe dessa forma dores e mau estar físico e psicológico. É do episódio de vida “externo” comprovado na sentença que se retira a demonstração de que a arguida sabia e queria a actuação por si levada a cabo, em que o gritante desmazelo e desconsideração a que o ofendido foi votado ultrapassa a simples violação negligente de um dever de cuidado.
Perante este quadro, importa lembrar que em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica.
Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões contraditórias, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável.
A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados e não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão, certamente difícil, de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos. E contrapondo-se versões diferentes, tal não significa que o tribunal tivesse de ficar, forçosamente, numa situação de dúvida insolúvel e que não lhe fosse legítimo, no quadro da livre apreciação da prova, dentro de parâmetros de racionalidade e experiência comum, determinar como os factos se passaram.
Ouvida a gravação dos depoimentos (e não perdendo de vista que o princípio da livre apreciação da prova também se aplica ao tribunal de 2.ª instância), entendemos que, por via da prova pessoal documentada, conjugada com a prova documental e pericial, não se conclui que o tribunal recorrido tenha apreciado arbitrariamente a prova e que houvesse que decidir de forma diversa, ou seja, não vislumbramos que a prova produzida imponha decisão de facto diversa da que foi tomada pelo tribunal recorrido.
Percorrendo-se a sentença recorrida, desta não resulta que tenha ficado instalada no espírito da Mm.ª Juíza a mais pequena incerteza quanto a qualquer um dos factos que na decisão considerou provados, ou seja, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra a arguida qualquer estado de dúvida sobre a existência dos factos que são questionados no recurso, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter, em face do que decorre da própria sentença e da prova reapreciada.
Face ao exposto, nos limites da reapreciação da prova, não vislumbramos quaisquer razões para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido em sede de decisão de facto, pelo que, inexistindo vícios de conhecimento oficioso, deve manter-se a factualidade provada e não provada, nos seus precisos termos, em cada um dos pontos de facto questionados.

3.2. Dispõe o artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal:
«Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
(…)

A recorrente discute a possibilidade de o crime em causa ser cometido por omissão, argumentando, em contraposição, com o tipo de crime previsto no artigo 200.º do Código Penal.
É sabido que dentro do conceito amplo de acção, tomada como sinónimo de conduta e de comportamento humano, distingue-se a acção em sentido estrito, consistente num facere, e a omissão, consistente num non facere.
A omissão consiste na abstenção da actividade devida, da actividade que o agente devia e podia realizar, já que omitir é um verbo transitivo, pois sempre se omite “algo”.
Por conseguinte, o delito omissivo é sempre, estruturalmente, um delito que consiste na infracção de um dever – não de um dever moral ou social, mas de um dever jurídico.
Na omissão penalmente relevante distinguem-se os crimes omissivos puros (omissão pura ou própria), que se caracterizam pela simples abstenção de agir (são crimes de mera conduta), como ocorre com a omissão de auxílio prevista no artigo 200.º do Código Penal, e os crimes comissivos por omissão (omissão imprópria), em que a omissão é causa de um evento previsto na descrição típica do crime cometido, não porque seja o acto omissivo que provoca o evento, mas porque o agente não pratica o acto que deve praticar para evitar esse evento. A estes últimos (crimes de resultado) se refere directamente o artigo 10.º do Código Penal, ao dispor que quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo. Segundo Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria Geral do Crime, 1998, p. 40 e ss.), não há aqui uma relação de causalidade verdadeira e própria, mas antes um seu equivalente normativo para os fins de imputação jurídica do evento ao omitente, sobre o qual terá de recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o evento típico - dever de garante.
Só esse dever jurídico de agir fundamenta a punição, pela equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão.
O facto típico é assim a “criação de um risco de verificação de um resultado típico” e existirá sempre que o risco ocorre ou é potenciado por força da omissão, tendo de ocorrer uma ausência de acção (da acção esperada) que resultará do que segundo a situação típica é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal, sendo necessário ainda que o omitente possa levar a cabo a acção devida (ou necessária a evitar o resultado) e “a obrigação de evitar o resultado é só uma forma de referir (…) a obrigação de levar a cabo a acção adequada a evitar o resultado” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra Editora 2.ª ed. p. 927, 928, 933 e 934).
Como se assinala no acórdão da Relação do Porto, de 12-10-2016, processo 2255/15.7T9PRT.P1, 2255/15.7T9PRT.P1 (que aqui seguimos de perto, tomando de empréstimo a sua linha argumentativa), o dever jurídico «de garante de não ocorrência do resultado “pode emergir ou ter como fontes directamente a lei (dever legal especial), o contrato, situações de criação do perigo e intimas relações vitais, cabendo nos deveres especiais de garante a aceitação fáctica de deveres e as relações intimas - familiares (recíprocos deveres familiares) (cf. Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral 1976, pág. 157 e ss, ou como ensina Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, verbo, pág. 49 e ss, o dever jurídico recai sobre aquela pessoa que equilibra a relação de dependência de outrem. Esse dever jurídico constitui a posição de garante do bem jurídico protegido e resulta de uma posição de protecção ou de uma posição de controlo, traduzindo-se a posição de protecção em proteger de todos os perigos (caso dos pais), pode ser originária (pais) ou pode ser derivada - passa do titular originário para terceiros através de acto negocial (baby sitter), sendo certo que, para o mesmo professor “vai-se gerando consenso de que a lei impõe a certas pessoas, em razão de especiais qualidades, funções ou relações, determinados deveres de garante e que esses deveres resultam de uma relação fáctica de proximidade entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever especial de proteger …”- pág. 55.»         
Sustenta-se neste aresto, a propósito da violência doméstica:
«Se o crime em análise não for um crime de resultado não pode ser punido, e por essa razão, entendeu o tribunal recorrido que não tendo ocorrido nenhum resultado/ lesão imputável à conduta omissiva do arguido e imputada na acusação, não se encontravam preenchidos os elementos típicos do crime.
Vejamos.
Característica indelével do crime de violência doméstica é o seu bem jurídico, que lhe confere não apenas autonomia mas legitimidade constitucional (art.º 18º CRP) de interferência / regulação/ limitação, nas relações humanas e sociais, num âmbito específico destas (relações familiares ou análogas).
Assim fundamental na apreciação de tal ilícito é que os factos em que se desdobra (ou o facto em que se traduz - pois que tanto pode ser um como vários - de modo reiterado ou não, infligir maus tratos – art.º 152.º 1 CP) signifiquem a afetação da dignidade pessoal da vítima através do seu desrespeito como pessoa traduzida a mais das vezes no desejo de sujeição/dominação sobre a mesma e a sua manipulação.
Dos termos legais do art.º 152.º1 CP resulta a nosso ver que o conceito de violência doméstica podendo traduzir-se em actos reiterados ou não, deles têm de resultar “ maus tratos físicos ou psíquicos”, o resultado da actuação tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa.
Mau trato, traduz a nosso ver, uma ofensa à dignidade humana (em concreto da pessoa visada, e em toda a sua plenitude: física e mental), bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a proteção legal (cfr. Comentário Conimbricense do Cód Penal, I, Coimbra, 1999, pág. 232), o que tem de ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais, cf. ac RG.10/7/2014 www.dgsi.pt: “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar”), e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.
Por isso cremos dever entender que infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos, significa na economia do art.º 152.º CP, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa á integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coacção ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.) - que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora e traduzem-se num complexo de acções por parte do agente que pressupõem na maioria das vezes “ uma reiteração das respectivas condutas” – cfr. por todos, Comentário Conimbricense ao Cód Penal, tomo I, págs. 332 a 334, ou quando assim não seja - sendo uma só acção - como se expressa o STJ no Ac de 14/11/97 CJ III, 235 “… as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do art. 152.º do Código Penal” ou quando a conduta do arguido “se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para … comprometer a possibilidade devida em comum” -Ac. R. Évora 23/11/99 CJ V, 283, ou “se revelar de uma certa gravidade ou traduzir, da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança” -Ac. R. E. 25/1/05, CJ I, 260, ou ainda “O crime de maus tratos exige uma pluralidade de condutas ou, no mínimo, uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, por exemplo, crueldade ou insensibilidade” - Ac. R. Porto 12/5/04, www.dgsi.pt, proc. 0346422.
Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica.
Cremos ser este o sentido do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt, e do ac. R.P 30/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, sob pena de não revelando a conduta do agente o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (cf. Valadão e Silveira, Maria Manuela “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in APMJ, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) o crime não se mostrar fundamentado.
O que fundamenta tal ilícito são pois os actos que, como expressa o Ac. TRP 28/9/2011 www.dgsi.pt/jtrp “… pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.” e nos casos de actos singulares tem de se verificar esta especial qualidade da acção, sob pena de não se mostrar preenchido o ilícito em causa. Cfr. Ac.R.P de 30/1/2008 www.dgsi.pt/jtrp “Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo do crime de maus-tratos previsto no art. 152º do C. Penal não se baste com uma acção isolada (nem tampouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.”
Daí resulta, e em conclusão, que é à luz da ofensa do bem jurídico protegido e logo da mens legislatoris que as condutas ilícitas únicas ou reiteradas devem ser apreciadas no sentido de preencherem ou não o tipo legal, no sentido de revelarem um tratamento insensível ou degradante da condição humana da pessoa atingida. (cfr. também ac. TRP 26/5/2010 www.dgsi.pt/jtrp), e de modo a evitar uma situação de “…domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.” in Ac. TRP 9/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, ou de desprezo ou desconsideração por parte do agente (ac TRG de 1/07/2013 www.dgsi.pt), ou mais amplamente como expressa a R. Lisboa no ac. de 05/07/2016 www.dgsi.pt “ 1. O crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, do Código Penal, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.”
Estão assim em causa situações degradantes em que em face das condições e necessidades actuais não são prestados os cuidados necessários e adequados ao bem-estar de uma pessoa enquanto tal dotada de dignidade, princípio informador e suporte de toda a sociedade (artº 1º CRP)
Por isso se justifica que no tipo legal caibam as situações reais traduzidas em privações de bens essenciais, que lesam esse bem jurídico e ofendem o bem-estar necessário à vida pessoal e a que todas as pessoas têm direito como pessoas dotadas de dignidade como se expressa no ac. TRC de 16/01/2013 www.dgsi.pt: “ O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade. Tendo o arguido privado a sua esposa do acesso à água, gás, electricidade, telefone e correio, na casa onde ambos habitavam, deve interpretar-se tal conduta, segundo as regras da experiência comum, como a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana e quem assim actua não pode desconhecer esse facto (basta que se coloque mentalmente na mesma situação) ”, aceitando-se e fazendo sentido por isso que, como expende Ribeiro de Faria, M. Paula, Os crimes praticados contra idosos, UCE, Porto, 2015, pág. 15 (cf. motivação do recurso) sofre maus tratos físicos e psicológicos a pessoa de idade que não é alimentada, não beneficia de cuidados médicos necessários, o que tudo ou a nosso ver se traduz (ou pode traduzir) na omissão das acções adequadas a evitar tal resultado, fazendo sentido e aceitando-se por isso que em causa está “ a protecção de um estado de completo bem-estar físico e mental” como defende Nuno Brandão, A tutela penal especial da violência domestica, Julgar, 12 especial, Set/ Dez 2010 pág.16.
Sendo assim, cremos por outro lado, só considerando o crime de maus tratos em causa, como de resultado é que é possível imputar o “infligir” de maus tratos por via omissiva ao agente (artº 10ºCP): equiparar a omissão à acção.
Na verdade apesar de maioritariamente ser entendimento como crime de dano (cfr. Nuno Brandão, A tutela penal especial da violência domestica, cit. pág.16) outras qualificações vão sendo defendidos, incluindo pelo autor citado para quem “ o crime de violência doméstica assume não a natureza de um crime de dano, mas sim de crime de perigo, nomeadamente de perigo abstracto” ob. cit pág. 17, e no mesmo sentido o ac RE de 8/01/2013 www.dgsi.pt como de perigo abstracto, ou no ac. RP de 10/07/2013 onde é qualificado de mera actividade;
Ora temos para nós que efectivamente o crime exige a verificação do um resultado e não apenas o perigo de lesão da saúde ou integridade física e tal se traduz na ocorrência de “maus tratos” que são o resultado da conduta lesiva e não o meio de lesar a saúde física ou psíquica. Prevendo-se aqui apenas o perigo de lesão da saúde, estar-se-ia a considerar este tipo de crime com menos danosidade social que o crime de ofensa à integridade física, quando é o inverso (exigindo-se aqui uma especial gravidade face ao bem jurídico: tratamento que ofende a dignidade humana).
Cremos por isso que no crime em causa os maus tratos devem ser vistos como o resultado da conduta e não apenas como meio da ocorrência de sérios riscos para a integridade da vítima, pois não está no tipo legal em causa o modo de agir mas o efeito de uma conduta (os maus tratos infligidos)
Mas nos crimes omissivos tem de ocorrer uma ausência de acção, da acção capaz de evitar o resultado, que se traduz na omissão da acção salvadora (Maria Felino Rodrigues, A teoria Penal da Omissão e a revisão crítica de Jakobs, Almedina, 2000, pág. 27), pois no seu dizer a omissão penalmente relevante só pode ser a omissão de uma acção determinada, visto que a omissão em si mesma não existe.
Mas essa acção salvadora que devia ter sido adoptada (a acção omissiva típica) pressupõe a verificação, a existência de um perigo concreto para qualquer daqueles bens jurídicos que confira sentido à omissão do agente. Ou seja, no caso, só perante a eminencia da lesão da saúde é que se impõe o dever de agir pois antes não existe o perigo que fundamenta o dever de agir, e esse resultado fosse previsível / recognoscível no momento

Plácido Conde Fernandes (“Violência doméstica”, Jornadas CEJ, 2008, p. 306), referindo-se à factualidade típica do crime de violência doméstica, salienta que os maus tratos físicos e psíquicos podem consistir em acções e omissões.
Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, UCE, 2008, p. 406) sustenta que o tipo legal de crime de violência doméstica pode ser cometido por omissão, na medida em que sobre o agente impenda um dever de garante.
Também Américo Taipa da Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, p. 517) salienta que, embora no crime de violência doméstica a maior parte das condutas revistam a forma de acção, outras podem consistir em omissões, podendo constituir crime de violência doméstica «o comportamento dos pais que, reiteradamente, deixem sozinhos em casa o filho ou filhos pequenos, durante períodos relativamente longos. Acertada foi, portanto, a eliminação pela Reforma Penal de 1995, da referência à “não prestação dos cuidados de assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem (…). É que uma expressa referência a tal omissão podia levar a uma inaceitável redução dos comportamentos omissivos que podem, justificadamente, ser qualificados como crime de violência doméstica ou de maus tratos».
No caso em apreço, o ofendido, entretanto falecido, padecia de “síndrome confusional/demencial crónico não esclarecido, acidente isquémico transitório, hipertensão arterial e diabetes mellitus tipo II, apresentando um quadro de desorientação com cerca de um ano de evolução, carecendo de medicação com neurolépticos e antidiabéticos (orais e insulina) e dependendo do auxílio de terceiros, designadamente da arguida, na realização das suas actividades da vida diária”, o que denota a situação de dependência em que se encontrava e que o tornava particularmente indefeso em face da situação de doença e demência que o afligia.
O que sobressai da matéria de facto provada é a chocante situação de falta de prestação de cuidados de higiene e limpeza a que o ofendido foi votado, mantido na situação degradante de caído no chão durante pelo menos dois dias, sem que a arguida, sua mulher, sobre quem recaiam os deveres de respeito, cooperação e assistência ao seu cônjuge (artigos 1672.º e 1675.º do Código Civil), lhe tenha prestado a devida assistência, tentando levantá-lo ou solicitando para esse efeito o auxílio de outras pessoas, de modo que, quando assistido pelos bombeiros, encontrava-se aquele deitado no chão, num “hall” entre a sala de estar e o quarto, com um cobertor por cima dele e com sacos de plástico e fraldas sujas em seu redor, com as roupas sujas e impregnadas de urina, fezes e vómito do próprio.
Tal quadro, aliado à pré-existente condição de vulnerabilidade do ofendido, traduz, a nosso ver, uma situação de maus tratos, não sendo avançada nenhuma razão justificativa para que tal tenha ocorrido. Situação que era do conhecimento da arguida, conhecedora do estado em que o seu marido se encontrava e dos cuidados de que necessitava e se impunha providenciasse, quer directamente, quer promovendo-os através de terceiras pessoas, em face dos deveres jurídicos emergentes da relação entre cônjuges.
À chegada ao hospital o ofendido apresentava-se inconsciente, dispneico, desnutrido, emagrecido, sem reactividade a estímulos externos, com a pele fria e húmida, com cianose das extremidades, com abrasão na região dorsal, mais acentuada na região escapular, úlcera de grau III com cerca de 5cm de diâmetro na região sagrada (escara), tendo-lhe sido ainda diagnosticada sépsis de ponto de partida respiratório.
Nas circunstâncias apuradas, os factos revestem-se de gravidade, pondo em causa o tratamento digno de que o ofendido era merecedor, ofendendo a sua saúde, bem-estar e dignidade pessoal.
Tendo em vista que o resultado (maus tratos) deve ser uma consequência previsível da acção/omissão, e essa previsibilidade “deve ser aferida de acordo com um juízo de prognose póstuma (ou juízo ex ante) colocando-se o aplicador no momento histórico da conduta do agente. O aplicador deve proceder a este juízo de acordo com o conhecimento resultante da experiencia comum e os conhecimentos especiais do agente” (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit. pág. 69), tal ocorre no caso em apreço, pois a arguida tinha perfeito conhecimento da situação, da debilidade e do estado em que o ofendido, seu marido, se encontrava, das respectivas necessidades uma vez caído e deixado no chão, e em vez de providenciar pela sua satisfação com a prontidão devida, deixou-o naquele estado degradante durante pelo menos dois dias, actuando no sentido contrario ao seu dever, quando se lhe impunha a adopção de uma acção especifica para que o resultado não viesse a ocorrer, sendo este para si previsível.
Impendia sobre a arguida o dever de garante em relação ao ofendido (emergente da lei – relação conjugal) de evitar actos ofensivos da sua saúde e dignidade pessoal. A arguida omitiu os actos adequados a evitar tais ofensas, que podia e devia ter adoptado e, tendo ocorrido por essa via uma situação de maus tratos, tal resultado é-lhe imputável a título omissivo.
Em suma, ao proceder como apurado, a arguida omitiu as acções adequadas à prestação da assistência devida ao seu cônjuge e de que ele carecia, sendo que o podia fazer, não tendo agido em conformidade com o que é esperado e socialmente aceitável, face ao conhecimento e verificação da situação de perigo, que lhe impunha a sua acção (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit. pág. 72, a propósito da omissão nos crimes omissivos impróprios), agindo com conhecimento e vontade da conduta e seu resultado.
Entendemos, por conseguinte, estar efectivamente preenchido o tipo legal de crime por que a arguida foi condenada.

3.3. Lê-se na sentença recorrida, sobre a questão da determinação da pena:
«A prática do crime de violência doméstica é punida com pena de prisão de 2 a 5 anos, e com penas acessórias, de acordo com o disposto no Art.° 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4 e 5 do Código Penal, na sua redacção actual e aplicável ao caso.
Nos termos do disposto no Art.º 40.º do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal e a reintegração social do agente, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa.
A determinação da medida concreta da pena será efectuada segundo os critérios consignados no Art.º 71.º do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele.
Há assim que considerar no caso concreto:
- o grau de ilicitude do facto, que se considera médio/elevado, dada a concreta conduta omissiva assumida pela arguida e numa situação concreta e as consequências da mesma;
- a intensidade do dolo que se considera elevada, já que a arguida actuou com dolo directo;
- as condições pessoais da arguida, beneficiando de boa imagem social e detendo um percurso de vida ordenado, com suporte material e actividade profissional estável;
- a postura em audiência, não denotando ter interiorizado a gravidade da conduta;
- a inexistência de antecedentes criminais.
No que diz respeito às necessidades de prevenção geral, considero que as mesmas são muito elevadas, atenta a frequência como casos similares aos dos autos ocorrem, sobretudo no seio de relações afectivas, espaço esse que deveria ser particularmente protegido e não fonte de agressão, sendo que tais factos vêm gerando grande alarme social e igualmente dado o desrespeito revelado perante a vítima, situação que importa igualmente reprimir e acautelar.
Quanto às necessidades de prevenção especial, as mesmas são médias/altas, devendo a pena levar o arguido a interiorizar a ilicitude da sua conduta, para no futuro alterar o seu comportamento, atingindo-se desse modo a desejada socialização.
Assim, a favor da arguida militam o facto de não deter antecedentes, beneficiar de trabalho e boa imagem exterior.
Contra a mesma, constata-se o modo como os factos foram cometidos, as lesões geradas, o dolo revelado e a circunstância de não ter interiorizado o desvalor da sua conduta.
Atendendo a todas as circunstâncias atrás expendidas, e uma vez que o crime de violência doméstica é punível apenas com pena de prisão, consideramos adequado, justo e proporcional aplicar ao arguido, uma pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo cometimento do ilícito aqui em causa.
Uma vez que no caso em apreço foi aplicada uma pena de prisão, há que averiguar se se verificam os pressupostos da suspensão da execução da pena, cujos requisitos constam do Art.º 50.º do Código Penal.
Tal dispositivo prescreve no seu n.º 1 que (...) O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (...), sendo que de acordo com o n.º 2 e 3 do mesmo preceito, o tribunal pode ainda subordinar tal suspensão ao cumprimento de deveres e/ou regras de conduta, cumulativamente.
A política criminal subjacente a tal normativo legal tem como propósito finalístico o afastamento do delinquente da prática futura de novos delitos (v. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 343), traduzindo uma ideia de resocialização e prevenção da reincidência.
Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º vol., Rei dos Livros, pp. 637 e ss., referem que (...) na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, uma esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. (...) Devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo somente às razões da prevenção especial (...).
De harmonia com o preceituado no normativo legal acima aludido, atendendo às circunstâncias em que os factos ocorreram, às consequências dos actos da arguida, tratando-se de uma única situação, sendo que é primária, mostrando-se social e economicamente inserida, entendemos ser ainda possível prognosticar a possibilidade de revitalização da sua conduta com a mera censura do facto, entendendo-se que esta derradeira oportunidade, com a mera suspensão da pena a fará reflectir e ponderar os seus actos, conformando o seu comportamento às regras sociais e jurídicas, concluindo-se, pois, que a ameaça da pena é suficiente para o afastar de futuras práticas delituosas, pelo que, entendemos existir fundamento para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
De acordo com o Art.º 50.º, n.º 5 do mesmo Código, o período da suspensão tem duração fixada entre 1 e 5 anos.
Tudo visto e ponderado, entende-se que estão reunidos os pressupostos necessários para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, devendo ser a mesma pena suspensa por igual período de 3 anos.
Mais consagra o Art.º 53.º, n.º 1 do Código Penal, em conjugação com o Art.º 50.º, n.º2 a 4 do mesmo código que (...) o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade (...), assentando o mesmo na elaboração de um plano individual de reinserção social.
Assim, dada a personalidade da arguida e as suas condições pessoais e vulnerabilidades, visando conferir-lhe a derradeira oportunidade de conformar o seu comportamento com o direito e interiorizar o desvalor da sua conduta, bem como tendo como objectivo a sua ressocialização e protecção da vítima, de acordo com o disposto nos Arts.° 51.º, 52.º e 53.º, n.º 1 do Código Penal na redacção vigente, entendemos pertinente que a suspensão da execução da pena seja acompanhada de regime de prova, e bem assim do cumprimento de obrigações e deveres, a executar pela DGRSP e com a vertente da arguida colaborar com as autoridades judiciárias e de reinserção social sempre que contactada para o efeito, devendo ser ainda sensibilizada para a problemática da violência doméstica, entregando ainda a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à APAV e disso fazendo prova nos autos e durante o período de suspensão da pena.»

A sentença recorrida, que na parte da fundamentação indica a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, no dispositivo fixa a pena em 3 anos de prisão.
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cfr., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena.
O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
Nos crimes de omissão impura a lei prevê a atenuação especial da pena facultativa (artigo 10.º, n.º3, do Código Penal), na perspectiva de que, nesses crimes existirá uma diferença de ilicitude em relação aos crimes comissivos (por acção).
Não se justificando, a nosso ver, a atenuação especial – a que o recurso nem sequer se refere -, ainda assim julgamos que a pena concreta aplicada deve ser reajustada.
Dentro da moldura legal, estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 227 e segs.).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

Como refere o S.T.J., em Acórdão de 17 de Abril de 2008, «as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (proc. 08P571, disponível em www.dgsi.pt; também relativamente à questão da determinação da medida da pena, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J. de 9 de Março do 2006, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss., e o Acórdão do S.T.J., de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1145, em www.dgsi.pt).
Volvendo ao caso concreto em apreciação, a sentença recorrido considerou médio/elevado o grau de ilicitude do facto, dada a concreta conduta omissiva assumida pela arguida e numa situação concreta e as consequências da mesma.
Também considerou elevada a intensidade do dolo.
Estamos face a uma pessoa comunitariamente integrada e que não apresenta antecedentes criminais.
Se as exigências de prevenção geral são relevantes, já as de prevenção especial (prevenção da reincidência) não se mostram prementes.
Sem prejuízo da consciência e vontade que presidiu aos seus actos, certo é que foi a arguida quem acabou por chamar os bombeiros, sendo de admitir que a sua baixa instrução, quadro de relativo isolamento familiar e origem de baixa condição social não sejam circunstâncias inteiramente alheias à sua actuação.
Afigura-se-nos, assim, no quadro do binómio formado pela culpa e pela prevenção, que a pena a aplicar deve ficar abaixo do ponto médio da moldura aplicável, sendo de fixar em 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob as condições fixadas na sentença da 1.ª instância.

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III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em, no provimento parcial do recurso interposto por C. , alterar a pena que lhe foi imposta, condenando-a agora, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos, sob as condições fixadas na sentença da 1.ª instância. 

Sem tributação.

Lisboa, 11 de Julho de 2019
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

Jorge Gonçalves
Carlos Espírito Santo