Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12468/16.9T8SNT.L2-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: BANCOS
INFORMAÇÕES AO BANCO DE PORTUGAL
DEVER DE COMUNICAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 Nas ações de simples apreciação negativa é ao R. que compete o ónus de prova dos factos constitutivos do direito de crédito de que se arroga ser titular (Art. 343.º n.º 1 do C.C.). Tendo cumprido esse ónus a ação improcede.
2. Nos termos do Art. 3.º n.º 1 e n.º 2 do Dec.Lei n.º 204/2008 de 14/10 as instituições financeiras sujeitas à supervisão do Banco de Portugal estão obrigadas a fornecer a este último, nos termos da regulamentação aprovada, todos os elementos de informação respeitantes a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido em Portugal, nomeadamente em situação de incumprimento.
3. A comunicação feita à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal no quadro desta obrigação legal, corresponde ao cumprimento de um dever imposto por lei, nessa medida não é ilícito e, em consequência, não se verificando esse pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, inexiste obrigação de indemnização (Art. 483.º do C.P.C.), devendo o R. ser absolvido do pedido correspondente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A [ Joaquim ……]  e mulher, B [  Otília ……… ], vieram intentar a presente ação de simples apreciação e de condenação, em processo declarativo comum, contra C [ …..Banco,SA ], pedindo que seja declarada a inexistência de qualquer incumprimento por parte dos A.A. e a inexistência de qualquer montante em dívida, devendo o R. ser condenado a pagar-lhes, a título de indemnização por danos patrimoniais, uma quantia não inferior a €30.000,00 e, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €1.500,00.
Para tanto, alegaram que têm vindo a receber sucessivas notificações do R. referentes a uma alegada dívida, por força de um suposto contrato de crédito que os A.A. nunca terão celebrado com o R., tendo-se limitado a requerer, em meados de 1998/1999, junto da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, um regime de incentivo para microempresas (RIME), relativo a um subsídio a fundo perdido para a sua atividade profissional, sendo que a entrega dos valores correspondentes foi então feita pelo BES, por força desse incentivo, mas sem que os A.A. tivessem de o restituir, em qualquer momento.
Mais invocam que o R. comunicou ao Banco de Portugal o alegado incumprimento do contrato de crédito supostamente celebrado e que, por isso, não conseguem contrair qualquer crédito, a nível pessoal ou profissional, o que lhes tem causado prejuízos.
Computam os prejuízos em €30.000,00, decorrentes de falta de rendimentos da sua atividade, por carecerem de adquirir um veículo automóvel para o efeito e não conseguirem crédito para tal; e em €1.500,00, por verem o seu nome exposto junto do Banco de Portugal, facto que os entristece, angustia e desespera, tudo por o nome da A. ter sido comunicado à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.
O R. veio contestar por impugnação e por exceção, alegando ter sido requerido pelo A. ao BES um crédito, na sequência do alegado incentivo às microempresas, o qual veio a ser concedido a ambos os A.A., no valor de 2.360.000$00 (PTE). Os A.A. obrigaram-se a liquidar esse valor em 8 amortizações semestrais, tendo, para garantia do cumprimento dessas suas obrigações, entregue ao BES uma livrança em branco e a correspondente autorização de preenchimento. No entanto, incumpriram o contrato, mostrando-se em dívida, desde Setembro de 2002, a quantia de €9.003,30, tendo o BES e o R. interpelado os A.A. para pagamento, mas sem sucesso, e na sequência comunicado ao Banco de Portugal o referido incumprimento, por força de obrigação legal. Em conformidade, concluiu pela improcedência da ação em face da existência de um contrato de crédito outorgado entre as partes, da existência da dívida e da ausência de qualquer facto ilícito por si praticado.
Findos os articulados, após decidida oficiosamente a questão da competência territorial, foi realizada audiência prévia, na qual, não tendo sido possível a conciliação das partes, foi dada a hipótese de as mesmas se pronunciarem sobre os termos da causa, por se entender ser possível a prolação de decisão de mérito em sede do despacho saneador.
Nessa sequência, veio a ser proferido despacho saneador-sentença que, conhecendo do mérito da causa, julgou a ação improcedente por não provada, absolveu o R. dos pedidos e condenou os A.A. como litigantes de má-fé, na multa de 5 U.C.s.
Dessa decisão veio a ser interposto recurso de apelação pelos A.A., ao qual veio a ser dado provimento pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de abril de 2018, junto a fls 103 a 114, anulando o despacho saneador-sentença e a decisão sobre o ponto 12 dos factos provados, que deveria ser dado como facto controvertido, ordenando-se que o processo prosseguisse com prolação do despacho saneador que fixasse os temas de prova e o objeto do litígio, uma vez que o estado do processo não permitiria a apreciação do mérito da causa. Também se revogou a parte dessa decisão recorrida que condenou os A.A. como litigantes de má-fé.
Regressados os autos à 1.ª instância, foi aí então proferido despacho saneador nos termos ordenados e, depois de admitidos os meios de prova requeridos, veio a ser designada data para a realização da audiência final.
Finda a produção de prova, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente por provada, declarando a inexistência de qualquer incumprimento por parte dos A.A. no que à R. respeita e condenando esta a pagar aos A.A. a quantia de €1.500,00, por danos não patrimoniais ou morais, absolvendo a R. do demais pedido.
É dessa sentença que a R. vem agora recorre apresentando as seguintes conclusões:
I - O Réu, ora Recorrente não se conforma com a douta sentença sub judice, concretamente, com as alíneas A) e B) da decisão; considerando que foram incorretamente julgados os pontos enumerados nos factos dados como não provados:
1 - Que a Ré tenha concedido aos Autores o crédito referido em A), 7 -, mediante a disponibilização do respetivo valor;
2 - Que os Autores tenham utilizado/movimentado qualquer valor dos aludidos dos 2.360.000$00 (referidos em 7 - supra) e/ou que os Autores não tenham restituído à Ré quaisquer montantes pelos mesmos utilizado do referido valor.
II – No entendimento do Recorrente, a prova documental carreada para os autos foi corroborada pela prova testemunhal, produzida na audiência final, criticamente ponderada à luz das regras da prova, sendo bastante para demonstrar a existência do seu direito de crédito.
III - Por conseguinte, na modesta opinião do Recorrente, a decisão em apreço enferma de manifesto erro de apreciação da matéria de facto, quanto aos pontos mencionados, e de direito, com fundamento na inobservância do disposto no artigo 574.º, n.º 2 do CPC conjugado com o artigo 343.º, n.º 1 do CC e, ainda, em nulidade de sentença, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, motivação de facto e de direito do presente recurso.
IV- De facto, o Recorrente logrou demonstrar a celebração do contrato de financiamento (factos provados n.ºs 4, 7 e 8) bem como a existência de um saldo devedor (factos provados n.ºs 11, 12, 13, 14 e 15), em observância do disposto pelo artigo 343.º, n.º 1 do CC.
V – Resultando, assim, de uma ponderação crítica da prova, que deverá ser dado como provado que o Réu concedeu aos Autores o crédito referido em A), 7.
VI - Assim, da análise crítica da prova, quer documental, quer testemunhal produzida em audiência final, cuja reapreciação aqui se requer, ao abrigo do disposto no artigo 640.º do CPC, resulta claramente demonstrada a disponibilização do crédito no montante de €9.003,30 (nove
mil, três euros e trinta cêntimos), ao abrigo do contratualizado financiamento.
VII Com efeito, resulta, com clareza, do depoimento da testemunha Ana …… - gravada através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, com início às 10:25:38 e fim às 11:05:56 - que foi, efetivamente, concedido e disponibilizado aos Autores, a pedido destes, um financiamento até ao valor máximo de Esc. : 2.360.000$00; que os mesmos utilizaram até ao montante de €9.003,30 (nove mil, três euros e trinta cêntimos).
VIII - Pelo que, se impunha decisão diversa que desse como provados os factos indicados nos pontos 1) e 2) dos factos não provados, ou seja, considerar-se provado que o Réu concedeu aos Autores o crédito referido em A), 7 -, mediante a disponibilização do respetivo valor, que os Autores utilizaram e não restituíram ao Réu, neste sentido devendo ser alterada a douta sentença sub judice.
IX - Ao assim não se decidir, enferma a douta sentença sub judice, da nulidade prevista na alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto, ao ter dado como provado: “sendo o extrato emergente da conta empréstimo documento bastante para a prova da dívida e da sua movimentação;” - Vide alínea b), do ponto 7, dos factos provados da douta sentença em apreço – e encontrando-se tal extrato junto aos autos (documento 8 da contestação); que “Em 7 de Fevereiro de 2002 a conta bancária referida em 7 - apresentava um saldo de 9.003,30 Euros – Vide ponto 11 dos factos provados e que “Em 31.10.2002 do extrato da conta bancária referida em 7 - decorre a verificação de uma transferência, no dia 17.10.2002, sobre um saldo anterior de 9.003,30 Euros, com os seguintes dizeres: “ TRF – CDR TRSF P/Cred Venci, no mesmo montante”, tendo o saldo de tal conta ficado a “€ 0,00”. – Vide ponto 12 dos factos provados - deveria, no modesto entendimento do Recorrente, a douta sentença recorrida ter dado como provada a dívida e a sua não liquidação pelos autores ao Réu.
X – O que não sucedeu, denotando uma clara contradição lógico-factual entre os fundamentos e a decisão, não podendo o mesmo facto ser dado como provado e não provado em simultâneo sob pena de nulidade da sentença, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – Vide, neste sentido, o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 03/11/2015, (processo n.º 1774/13.4TBLLE.E1) “2. A nulidade da sentença a que se refere a 1.ª parte da alínea c), do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil, remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos. 3. A ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, e a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade. A estes vícios se refere a 2.ª parte do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil.”
XI- Nulidade que aqui se argui.
XII – Por fim, demonstrada que se encontra a dívida dos Recorridos ao Recorrente, inexiste qualquer ato ilícito gerador da responsabilidade de indemnizar, também não se verificando qualquer nexo de causalidade entre o ato imposto por lei, de comunicação à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal e os alegados danos, dois requisitos impostos pelo artigo 483.º do CC para fazer operar a responsabilidade civil; Consequentemente, não se constituiu a obrigação do Réu de indemnizar a Autora por danos não patrimoniais ou morais.
XIII - Termos em que, deve a douta sentença recorrida ser substituída por outra que considerando como provados os factos dados como não provados, julgue totalmente improcedente a ação e, em consequência, declare o incumprimento por parte dos Autores no que ao Réu respeita ou perante este e absolva o Réu do pagamento à Autora, a título de danos não patrimoniais ou morais, da quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
Pede assim que o recurso seja julgado por procedente, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, nos termos expostos.
Os A.A. responderam ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
I. Quanto aos factos discriminados na douta sentença, em 1 e 2, como não provados, a verdade é que a Ré não juntou aos autos qualquer documento comprovativo de que creditou aquele montante aos Autores no momento imediatamente subsequente à outorga do acordo, nem que os Recorridos tenham movimentado esse montante.
II. Aliás, em anterior recurso de apelação interposto no âmbito dos presentes autos, já o Tribunal da Relação de Lisboa se tinha pronunciado da mesma forma, afirmando, com razão, que não se afigurava suficiente para a prova da disponibilização efetiva do valor em causa pela Ré aos Autores o teor dos documentos de fls. 31, verso, a 32 dos autos, claramente posteriores e sem prova dos movimentos originários.
III. Por outro lado, a não prova de tais factos decorreu da circunstância de o depoimento da única testemunha pela Ré arrolada e ouvida em audiência de julgamento, não resultar a disponibilização de tal valor aos Autores pela Ré e/ou a sua movimentação por aqueles uma vez que a testemunha referiu de forma expressa que os movimentos a crédito - pela Ré - de tal montante em conta bancária e sua movimentação, pelos Autores, resultará de outros documentos bancários da demandada, que se não mostram juntos aos autos.
IV. Ora, atenta a manifesta ausência de prova, pela Ré, da efetiva disponibilização aos demandantes da quantia a que se refere o documento de fls. 28, verso, a 29 dos autos e seu uso pelos Autores, impunha-se a decisão que efetivamente foi proferida.
V. Com efeito, era ao Recorrido que incumbia o ónus da prova não apenas da outorga do contrato de financiamento em causa nos autos como ainda de que aos Autores disponibilizou o respetivo montante, mediante crédito em conta, e que estes o usaram, posteriormente, não o restituindo à Ré – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 103 a 113 dos autos.
VI. Ora, a Recorrida não logrou efetuar tal prova, por não ter junto aos autos qualquer documento comprovativo e contemporâneo da outorga do aludido contrato de financiamento e de que resulte ter creditado, na conta dos Autores, o valor aludido nem, aliás, a sua movimentação pelos demandantes.
VII. Por outro lado, também não faz qualquer sentido a alegação de nulidade da sentença recorrida, uma vez que inexiste qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, sendo que a Recorrente tenta, de forma ardilosa, iludir o Tribunal da Relação de Lisboa quanto a esta questão.
VIII. O que o Tribunal considerou provado no ponto 7 dos factos provados foi que por documento reduzido a escrito, o BES, S.A., acordou com os Autores a concessão de um empréstimo sob a forma de conta corrente, e que numa das cláusulas do respetivo contrato constava a frase “sendo o extrato emergente da conta empréstimo documento bastante para a prova da dívida e da sua movimentação”.
IX. Em nenhum momento o Tribunal a quodá como provada a prova da dívida ou sua movimentação, sendo que apenas se limitou a dar como provada a redação do acordo celebrado entre as partes.
X. Como bem sublinha a decisão recorrida, “a comunicação ao Banco de Portugal, pela Ré, de um alegado incumprimento pela Autora de um financiamento que a Ré não logrou provar ter efetivamente concedido - e ter sido utilizado pelos demandantes - implica a afetação do bom nome da demandante (uma vez que é apenas em seu nome que a comunicação se mostra efetuada), gerando o seu direito a ser, por isso, indemnizada, de per si e sem mais”.
XI. “Com efeito, o bom nome constitui um direito essencial à tutela da personalidade jurídica de cada pessoa e ou entidade e, posto em crise o mesmo por uma comunicação ao Banco de Portugal que a Ré nem sequer comprova nos autos como verídica (quanto ao incumprimento, pelos Autores, de uma alegada obrigação de restituição de um crédito pela Ré aos mesmos alegadamente concedido), é patente ter a demandante sofrido um dano não patrimonial passível de indemnização, dado a comunicação ser, consequentemente, ilícita e a gravidade dos efeitos da mesma comunicação no bom nome da demandante – artºs 483 e segs., 496 e 562 e segs. do C. Civil”.
XII. Acresce que os Recorridos ficaram inibidos de contrair empréstimos junto da Banca, uma vez que tinham o seu nome na lista de devedores do Banco de Portugal, o que lhes causou inúmeros prejuízos cuja prova lograram fazer em juízo.
Pedem assim que seja rejeitado o recurso interposto pela Recorrente, por não provado, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
A Mm.ª Juíza, ao admitir o recurso, sustentou a inexistência de qualquer nulidade, tendo em atenção o teor da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa nestes autos, que entendeu não ser suficiente a prova documental junta pelo R. aos autos para prova do facto da concessão do financiamento e sua utilização pelos demandantes, sendo que em face da ponderação da demais prova produzida em sede de julgamento, o tribunal entendeu não estarem tais factos provados.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C.;
b) A impugnação da matéria de facto;
c) A inexistência de qualquer incumprimento por parte dos A.A. e de qualquer montante em dívida; e
d) A indemnização por danos não patrimoniais.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1 - Por comunicação datada de 7.9.1998 dirigida ao A. a Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo comunicou ao demandante o seguinte:
“Assunto: Candidatura RIME – Informação sobre despacho de homologação.
“Informo V. Exª que a Vossa candidatura 1324/LVT/98 foi homologada em 10.8.1998 por despacho da Sr.ª Secretária de Estado do Desenvolvimento Regional e do Sr., Secretário de Estado do Emprego e Formação, tendo sido atribuídos os seguintes incentivos:
“Incentivo ao Investimento - 4.685.977$00
“Incentivo ao Emprego - 3.032.172$00
“Prémio à criação do próprio emprego - 1.929.537$00
“O contrato de concessão de incentivos ser-lhe-á enviado oportunamente para a assinatura através da entidade avaliadora.
“Com os melhores cumprimentos,
“O Coordenador Regional
“ (Assinatura) ”
2 - Com data de 4 de Setembro de 1998 o A. outorgou com a Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo o contrato de concessão de Incentivos a que se referem fls. 19 a 27 dos autos, que se dá por reproduzido, sendo um dos incentivos de 4.685.977$00 (incentivo ao investimento) e outro de 3.032.172$00 (incentivo à criação de postos de trabalho), contrato de que foi feito constar que a conta bancária destinada à movimentação de todos os recebimentos e pagamentos previstos no projeto dele objeto era a conta com o NIB 007/0207/00387750002/15 da Agência do Estoril do BES.
3 - Com data de 25.9.1998 o Banco Espírito Santo, S.A. emitiu em nome da CCRLVT/RIME/FEDER documento, de que fez constar ter debitado na conta dessa entidade, com o nº 023/64449/000/3, a importância de 3.142.347$00, referente a pagamento de subsídios a A, processo nº 00701246010.
4 - Por carta de 19.2.1998 o Banco Espírito Santo, S.A. comunicara à Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, relativamente à candidatura ao RIME – A e além do mais, que aprovara a operação de financiamento prevista na candidatura nas seguintes condições:
Montante – 2.360.000$00
Prazo – 4 anos
Período de reembolso – 4 anos.
5 - Por comunicação datada de 29.4.1999 a Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo comunicou ao A., além do mais, que na sua reunião de 17.2.1999 apreciara a reclamação apresentada, tendo decidido aprovar a candidatura em epígrafe – nº 1324/LVT – e a alteração do investimento, nas seguintes condições:
Incentivos
Incentivo ao investimento 1.0776.140$00
Incentivo ao emprego 3.032.172$00
Prémio à criação do próprio emprego 4.000.000$00.
6 - Na comunicação aludida em 5 - a aludida entidade comunicou ainda ao Autor que a decisão fora homologada em 16.4.1999 pela Exm.ª Senhora Secretária de Estado do Desenvolvimento Regional e pelo Exm.º Sr. Secretário de Estado do Emprego e Formação e que o Autor dispunha de um prazo de 10 dias úteis contados a partir do dia seguinte ao da receção dessa comunicação para a assinatura do contrato de concessão de incentivos, sob pena de operar a caducidade do direito aos incentivos.
7 - Por documento reduzido a escrito, datado de 4 de Setembro de 1998 e assinado por Autores e Banco Espírito Santo, S. A., constante de fls. 28, verso a 29 dos autos, o BES, S. A. acordou com os Autores a concessão, a estes, de um empréstimo sob a forma de facilidade de crédito em conta corrente, nas seguintes condições:
a) Montante – 2.360.000$00
b) Forma – a funcionar na conta aberta em nome dos Autores, sob o nº 207/37883/250.6, sendo o extrato emergente da conta empréstimo documento bastante para a prova da dívida e da sua movimentação;
c) Validade do prazo – o empréstimo vigoraria por um período de 1460 dias, a contar da primeira utilização, salvo denúncia por escrito, de qualquer das partes, efetuada com uma antecedência mínima de 15 dias
d) Modo de funcionamento/utilização – o banco executava transferências dessa conta corrente, previamente ordenadas pelos Autores, por carta ou outra forma escrita, de e para a conta à ordem dos Autores nº 207/37883/000.7 desde que o saldo a favor do banco não excedesse, por virtude de tais operações, a quantia de 2.360.000$00
e) Taxa de juro – a taxa de juro acordada era de 11,75%
f) Contagem dos juros e comissão de imobilização – os juros eram contados dia a dia sobre o saldo em dívida e debitados trimestralmente na supra referida conta
g) Liquidação – amortizações semestrais de Esc. 295.000$00, com carência de capital nos primeiros seis meses
h) Garantias – A facilidade de crédito em causa era caucionada por livrança subscrita pelos Autores, com montante e data do vencimento em branco, acompanhada da respetiva autorização de preenchimento, devidamente datada, assinada e selada, conforme minuta anexa
i) Juros moratórios – no caso de incumprimento do pagamento de capital e ou juros incidiria, sobre o respetivo montante e durante o tempo em que tal situação de incumprimento se verificasse, a taxa de juro moratória.
8 - Do acordo referido em 7 - e a todo o seu clausulado decorria da devolução do duplicado anexo, subscrito, datado e assinado sobre estampilhas fiscais de Esc. 671$00, assinaturas antecedidas da expressão “Damos o nosso acordo”.
9 - Os A.A. subscreveram, em branco, a livrança de fls. 29, verso dos autos e entregaram-na ao Banco Espírito Santo, S.A..
10 - Com data de 4 de Setembro de 1998 os Autores assinaram um documento intitulado “Autorização” e entregaram-no ao Banco Espírito Santo, S. A., documento com o seguinte teor:
“Para garantia e segurança de cumprimento das obrigações decorrentes da operação de Facilidade de Crédito em Conta Corrente no valor de 2.360.000$00 (dois milhões, trezentos e sessenta mil escudos), em nome de A e B à data do seu termo inicial, ou das suas eventuais prorrogações, compreendendo o saldo que for devido, comissões e juros contratuais e de mora, junto remetemos uma livrança subscrita pelo A e B, livrança esta cujo montante e data de vencimento se encontram em branco, para que este banco os fixe, preenchendo a livrança na data que achar conveniente, assim como proceda ao seu desconto.
“Todos os restantes intervenientes dão o seu assentimento à remessa desta livrança, nos termos e condições em que ela é feita, pelo que connosco assinam a presente autorização.”
11 - Em 7 de Fevereiro de 2002 e em 31.10.2002 a conta bancária referida em 7 - apresentava um saldo a favor do R. de 9.003,30 Euros.
12 - Em 31.10.2002 do extrato da conta bancária referida em 7 - decorre a verificação de uma transferência, no dia 17.10.2002, sobre um saldo anterior de 9.003,30 Euros, com os seguintes dizeres: “TRF – CDR TRSF P/ Cred Venci, no mesmo montante”, tendo o saldo de tal conta ficado a “€0,00”.
13 - Por carta datada de 19.2.2003, dirigida para a morada indicada pelos A.A., o Banco Espírito Santo, S.A. comunicou aos mesmos que por não terem sido regularizadas as responsabilidades referidas em 7 - e segs., foram as mesmas transferidas para o Serviço de Recuperação de Créditos (situação de pré-contencioso) com vista ao seu reembolso, bem como dos respetivos juros de mora e demais encargos, pela via negocial ou, em alternativa, através do recurso aos tribunais e de que, crente de que os Autores conheceriam os inconvenientes da via judicial e de que teriam alguma proposta a apresentar a essa entidade bancária que normalizasse a situação imediatamente, o assunto manter-se-ia pendente durante os próximos 10 dias, prazo findo o qual presumiria que não estavam interessados em estudar extrajudicialmente com o banco uma plataforma de solução e entregaria o caso aos seus advogados a fim de ser reembolsado pela via judicial.
14 - Por carta datada de 23.3.2010, dirigida para a morada dos A.A. e em nome do demandante, o Banco Espírito Santo, S.A. comunicava ao A. que, por não ter sido lograda a finalidade de chegar a um acordo para a resolução da situação de incumprimento e dada a dificuldade de o contactar por telefone, informava que não lhe restava outra alternativa que não fosse a do recurso à via judicial para efetuar a cobrança do empréstimo em causa e que se mantinha ao dispor através do número de telefone 218 503 077, entre as 8.30 horas e as 19 horas.
15 - Da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal consta, com responsabilidades referentes a 28.2.2015, a comunicação, pelo R., de responsabilidades em dívida pela A., no âmbito de crédito conjunto - outros mutuários -, no valor de 9.003,00 Euros, referente a crédito em conta corrente.
16 - O A. apresentou, em data não apurada, reclamação ao Banco de Portugal, tendo esta entidade, por comunicação datada de 8.9.2015, comunicado ao demandante (para a mora pelos mesmos indicada como sua) e em resposta a essa reclamação que, depois de analisada, não encontrara indícios de infração por parte da entidade reclamada ( C ), mais comunicando que a intervenção do Banco de Portugal na apreciação de reclamações estava limitada à verificação do cumprimento das normas que regem a atividade das instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento e instituições de moeda eletrónica no âmbito da comercialização de produtos e serviços nos mercados bancários de retalho.
17 - Na comunicação aludida em 16 - o Banco de Portugal informou ainda o A. que o mesmo poderia, se assim o entendesse, submeter a situação que originou a reclamação à apreciação judicial ou a meios de resolução extrajudicial de litígios, constando a informação sobre o recurso a esses meios do Portal do Cliente Bancário e que considerava encerrado o processo de reclamação.
18 - Os A.A. apresentaram junto do R. as reclamações constantes de fls. 46, verso e 47 dos autos.
19 - Por cartas de 13.5.2015, de 15.4.2016 e de 26.8.2016, dirigidas pelo R. aos A.A. para a morada pelos mesmos indicada como sendo a sua, o R. respondeu às reclamações apresentadas pelos Autores nos termos constantes de fls. 33, 12 e 33 verso dos autos, fazendo constar que a dívida dos demandantes ascendia, nessa altura, a 29.896,03 Euros, relativa ao crédito aludido em 7 - e segs., com data de incumprimento de 11.3.2007.
20 - No dia 3 de Agosto de 2014 o Banco de Portugal deliberou o seguinte:
Ponto Um
Constituição do C
É constituído o C, ao abrigo do nº 5 do artigo 145º -G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, cujos Estatutos constam do Anexo 1 à presente deliberação.
Ponto Dois
Transferência para o C, de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco Espirito Santo, SA
São transferidos para o C, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 145º - H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, conjugado com o artigo 17º - A da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco Espirito Santo, S. A., que constam dos Anexos 2 e 2A à presente deliberação.
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O Tribunal julgou ainda por não provados os seguintes factos:
1 - Que a R. tenha concedido aos A.A. o crédito referido em A), 7 -, mediante a disponibilização do respetivo valor.
2 - Que os A.A. tenham utilizado/movimentado qualquer valor dos aludidos dos 2.360.000$00 (referidos em 7 - supra) e/ou que os A.A. não tenham restituído à R. quaisquer montantes pelos mesmos utilizado do referido valor.
3 - Que os A.A. tenham, devido a um acidente, ficado sem viatura automóvel e que esta fosse indispensável ao exercício da sua atividade.
4 - Que os A.A. estejam impossibilitados, por força da comunicação aludida em A); 15 - pela R. ao Banco de Portugal, de obtenção de qualquer crédito junto das instituições financeiras, quer a nível pessoal, quer para o exercício da sua profissão e que tal impossibilidade de obtenção de crédito se arraste há cerca de três anos (relativamente à data da entrada em juízo da p. inicial).
5 - Que os A.A. tenham, em Julho/Agosto de 2013, tentado contrair um empréstimo e que o não tenham conseguido por o nome da A. constar da denominada “ lista negra “ do Banco de Portugal.
6 - Que desde Julho de 2013 os A.A. tenham tentado, sem êxito que alguma instituição financeira lhes concedesse um crédito para aquisição de um veículo automóvel para o exercício comercial da sua atividade de turismo.
7 - Que os A.A. estejam, desde Julho de 2013, impedidos de exercer a sua atividade por não conseguirem contrair crédito para financiamento para aquisição de um veículo automóvel.
8 - Que desde Julho/Agosto de 2013 os A.A. não tenham recebido qualquer rendimento da sua atividade de turismo.
9 - Que antes de Julho/Agosto de 2013 e antes do alegado acidente aludido em 2 - e quando ainda possuíam veículo automóvel, os A.A. auferissem um rendimento anual aproximado de 10.000,00 Euros.
10 - Que, caso não se verificasse a impossibilidade de financiamento automóvel os autores, desde 2013 em diante e até à entrada em juízo da petição inicial, teriam auferido, seguramente, a quantia mensal, anual aludida em 8 -.
11 - Os factos alegados no artº 35 da petição inicial.
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões fundamentais que fazem parte do objeto do presente recurso de apelação, vejamos então da procedência dos fundamentos invocados pela sua ordem de apreciação lógica, começando inevitavelmente pela questão prévia da nulidade da sentença recorrida.
1. Da nulidade da sentença.
Invoca o apelante a nulidade da sentença recorrida, por alegada violação do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., considerando que houve erro na apreciação da matéria de facto quanto aos factos dados por não provados nos pontos 1 e 2, por aí se julgar por não demonstrado que o R. concedeu aos A.A. um crédito mediante disponibilização do respetivo valor e que o mesmo foi por estes utilizado, o que está em contradição com os factos dados provados no sentido de que foi acordado o contrato de concessão de crédito (facto 7), a conta bancária teve um saldo de €9.003,30 em 7 de fevereiro de 2002 (facto 11) e, após transferência de 37/10/2002, a conta ter ficado com saldo a zero (facto 12). Entende assim que existe contradição lógico-factual entre os fundamentos e a decisão, por não poderem ser dados por provados e não provados exatamente os mesmos factos.
Os apelados limitaram-se a sustentar que não se verifica a nulidade invocada, porque o Tribunal da Relação de Lisboa já se havia pronunciado nos autos no sentido de que a prova da disponibilização efetiva do valor em causa pelo R. aos A.A. não poderia ser feitas apenas com base nos documentos de fls 31, verso, a 32, sendo que a única testemunha ouvida sobre essa matéria não resultou a demonstração da disponibilização desses valores pelo R., nem a movimentação desses montantes pelos A.A.. Por outro lado, não haveria contradição entre os factos, porque do ponto 7 da matéria de facto provada resulta apenas que foi acordado entre as partes uma concessão de um empréstimo sob a forma de conta-corrente e não foi feita prova da existência da dívida ou da sua movimentação pelos A.A..
A Mm.ª Juíza que prolatou a sentença sustentou a inexistência da nulidade na mesma argumentação, considerando que o Tribunal da Relação entendeu não ser suficiente a prova documental junta pelo R. para demonstrar a concessão do financiamento e a sua utilização pelos demandantes, sendo que a ponderação que fez da prova não permitiu concluir pela evidenciação desses factos como verdadeiros.
Apreciando, dispõe o Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C. que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendoou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Ínsita a esta previsão está o princípio de que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição (vide: Acórdãos do TRC de 11/1/1994 – Relator: Cardoso Albuquerque, in BMJ n.º 433, pág. 633; do STJ de 13/2/1997 – Relator: Nascimento Costa, in BMJ n.º 464, pág. 524; e de 22/6/1999 – Relator: Ferreira Ramos, in C.J. 1999 – Tomo II, pág. 160. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos. A nulidade em questão ocorre quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente (Vide: Acórdão do TRP de 2/5/2016 – Relator: Correia Pinto, Proc. n.º 1556/14 – disponível em www.dgsi.pt).
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos (Cfr. Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum”, 2000, pág. 298). Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (cfr. Acórdão do STJ de 8/3/2001 – Relator: Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt.).
No caso dos autos, por um lado, o apelante impugna a matéria de facto, considerando que houve erro de julgamento ao dar-se por não provados os factos que constam dos pontos 1 e 2 da matéria de facto não provada; por outro, entende que há contradição entre esses factos dados por não provados e a matéria de facto constante dos pontos 7, 11 e 12 dos factos provados. Pelo que, a existir semelhante contradição, a solução não passaria pelo reconhecimento da nulidade da sentença, mas pela anulação da decisão sobre a matéria de facto, no quadro legal do Art. 662.º n.º 2 al. c) do C.P.C.. Em todo o caso, não existe qualquer contradição por razões que entroncam diretamente no que deixámos explicitado no acórdão de 24 de abril de 2018, junto de fls 103 a 113 verso.
Aí deixámos consignado o seguinte:
«O doc. n.º 3 (fls 28 verso a fls 29) corresponde a cópia de documento denominado: “Carta Contrato – Facilidade de crédito de Esc.: 2.360.000$00”. O n.º 4 (fls 29 verso) é uma livrança em branco. E o n.º 5 (fls 30) é uma autorização de preenchimento dessa livrança. Sendo de realçar que de todos estes constam assinaturas imputadas à autoria dos A.A., que estes efetivamente não impugnaram oportunamente. Pelo que, as assinaturas consideram-se verdadeiras (Art. 374.º n.º 1 do C.C.) e os documentos fazem prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores (Art. 376.º n.º 1 do C.C.), nomeadamente quanto aos factos contrários aos interesses dos declarantes, sendo a declaração indivisível, nos termos prescritos para a confissão (Art. 376.º n.º 2 do C.C.).
«Ora, o que resulta desses documentos, principalmente do n.º 3, é que o Banco aceitou conceder aos A.A. um empréstimo sob a forma de facilidade de crédito em conta corrente.
«Mais rigorosamente, em termos literais, é aí dito que: «comunicamos que este Banco aceita conceder a essa Empresa empréstimo sob a forma de Facilidade de crédito em Conta Corrente, nas seguintes condições: (…)» (cfr. cit. doc. a fls 28 verso supra). Sendo que no final desse documento consta ainda uma declaração de que: «O acordo a todo o clausulado referido nesta carta, decorre da devolução do duplicado anexo, subscrito, datado e assinado sobre estampilhas fiscais de Esc. 671$00, assinaturas antecedidas da expressão “Damos o nosso acordo”» (Cfr. cit. doc. a fls 29). E, se dúvidas houvesse, logo de seguida, por baixo da expressão impressa “Damos o nosso acordo”, constam efetivamente as assinaturas dos A.A., inclusive sobre as estampilhas aí apostas (cfr. cit. doc. a fls 29).
«Sucede que, por muito subtil que tal consideração possa parecer, a verdade é que os A.A. não negam que tenham celebrado este contrato, mas apenas no sentido de que aceitam que o assinaram. O que negam é que tivessem recebido do R. qualquer quantia por contrato de mútuo (v.g. artigo 7.º da petição inicial), invocando desconhecer a dívida e a sua origem (artigo 8.º da petição inicial).
«Esta alegação ganha um sentido próprio quando se sabe que é doutrinalmente muito discutível que seja admissível a existência de um contrato de mútuo meramente consensual.
«Veja-se que o Art. 1142.º do C.C. define o contrato de mútuo como aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro, ou outra coisa fungível, ficando a outra obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
«A redação do Art. 1142.º do C.C. faz assim supor que estamos perante um contrato real quoad constitutionem, o que é sustentado pela grande maioria da doutrina mais tradicional, com base não só na raiz histórica desse contrato (vide: A. Santos Justo in “Manual de Contratos Civis – Vertente Romana e Portuguesa”, pág. 357 e ss), mas também em fundadas razões de necessidade certeza e segurança jurídica (neste sentido, entre outros: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. II, pág. 761 a 762; Galvão Telles in “Manual dos Contratos”, pág.s 464 a 465; e Menezes Leitão in “Direito das Obrigações – Vol. III - Contratos em Especial”, 3.ª Ed. pág.s 388 a 394).
«Outros há, no entanto, que entendem que a entrega da coisa mutuada não teria a função de elemento constitutivo do contrato, sendo um mero ato executivo que poderia não ser contemporâneo à celebração do negócio (Vide: Castro Mendes in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. II, 1985 (1979), pág. 309 a 310). Havendo mesmo quem considere que é admissível o mútuo meramente consensual, ao lado do mútuo real e da promessa de mútuo (neste sentido: Vaz Serra in R.L.J. n.º 93, pág. 65 a 69; Mota Pinto in “Cessão da Posição Contratual”, pág. 13 e ss em nota e “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 398 a 399; e Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil I – Parte Geral, Tomo I”, 2.ª Ed., pág. 314).
«Dito isto, quando os A.A. alegam no artigo 7.º da petição inicial que «nunca receberam nenhuma quantia mutuada pela Ré», em face de quem sustente que não existe contrato de mútuo meramente consensual, tal corresponde necessariamente à alegação de que não foi efetivamente celebrado qualquer contrato de mútuo, em sentido próprio, porquanto este apenas nasce com a entrega efetiva da quantia mutuada, não bastando a mera declaração por parte do banco de que “aceita conceder o empréstimo”, conjugado com a declaração de aceitação dessa concessão por parte dos “mutuários”.
«Ora, o documento de fls 28 verso a fls 29 apenas prova esse acordo relativo à “concessão de um crédito”. Não prova que os 2.360.000$00 tivessem efetivamente entrado na esfera jurídica patrimonial dos A.A..
«Aliás, desse contrato também não consta nenhuma confissão de dívida por parte dos A.A., mas apenas o modo de funcionamento da relação contratual. Pelo que, em bom rigor, desse documento não resulta a demonstração da existência efetiva de um crédito a favor do Banco, mas apenas a intenção deste conceder um empréstimo e das condições de pagamento que assim ficaram estabelecidas, caso fosse entregue o valor mutuado.
«O mesmo se deve dizer quanto à força probatória da livrança assinada, pois a mesma ainda se encontra por preencher, ainda que exista uma autorização de preenchimento assinada pelos A.A..
«Esgotado fica assim o argumento da força probatória plena dos documentos particulares juntos aos autos que se mostram assinados pelos A.A.. (…)
«As cartas de interpelação não provam o crédito, mas apenas que o R. exige um pagamento aos A.A.. Pelo que, restam apenas os extratos bancários como alegado meio de prova de que o R. disponibilizou a quantia mutuada.
«É certo que os extratos em causa reportam-se à conta do A. marido onde deveriam ser creditados os valores a que se reporta o “Contrato – Facilidade de crédito de Esc.: 2.360.000$00” de fls 28 verso a fls 29. Mas desses extratos não resulta que tenha sido creditado a favor dos A.A. a quantia de 2.360.000$00, ou €11.771,74, ou sequer a de €9.003,30. Por outras palavras, só por si não servem de meio de prova bastante ou suficiente para o facto de que existe um “saldo devedor” ou um “crédito” emergente do contrato de fls 28 verso a fls 29.
«O que resulta do extrato de 7/2/2001 (doc. de fls 31 verso) é que existia na conta um saldo positivo de €9.003,30, sem especificação da sua origem. Já no extrato de 31/10/2002 (cfr. doc. de fls 32) verifica-se que sobre um “saldo anterior” de “€9.003,30” ocorreu uma transferência no dia 17/10/2002, com os dizeres “TFR - CDR TRSF P/CRED VENCI” no mesmo valor, tendo o saldo da conta ficado a “€0,00”.
«Sucede que o facto assente n.º 12 da sentença recorrida, pelas datas aí mencionadas, só pode ter por base esses dois mencionados extratos bancários, mas desses documentos não se consegue concluir o que aí ficou provado.
«Julgamos que o Tribunal a quo fez uma interpretação precipitada do teor desses documentos, pois do extrato de 7 de fevereiro de 2002 não resulta um “saldo devedor” e do de 31/10/2002 não decorre que a conta bancária tivesse um “saldo a favor da R. de €9.003,30”, tal como conta provado do ponto 12 dos factos provados da sentença recorrida. O que resulta desse último documento (fls 32) é apenas que o saldo da conta, na data em causa, era “€0,00”.
«Esses documentos, só por si, não demonstram de forma inequívoca que o saldo anterior dessa conta do A. marido adveio necessária e unicamente do “Contrato Facilidade de Crédito” de fls 28 verso a fls 29, ainda que existam alguns indícios de que assim possa ser.
«Aqui chegados, podemos já ter por certo que houve “erro de julgamento” relativamente a um facto provado – o n.º 12 –, cuja prova não resulta de documentos assinados pelos A.A., mas de documentos elaborados apenas pelo R., os quais não demonstram só por si a existência de um saldo a favor da R. de €9.003,30, sendo claro que os A.A. não aceitam tal facto nos seus articulados. Pelo que, deste modo, não poderia tal facto ser dado por provado. (…)
«É para nós evidente que não poderia, sem mais, ser dado por provado o facto n.º 12, devendo o julgamento relativo a esse facto ser oficiosamente anulado, sendo que dos demais factos provados não resulta evidenciado, pelas razões que já tivemos oportunidade de expor, que existe uma dívida por parte dos A.A. à R. e que houve um incumprimento contratual.
«Só com base na prova documental e da posição das partes expressas nos articulados não se pode dar por provado que o R. veio efetivamente a conceder um empréstimo de 2.360.000$00, como alegado no artigo 17.º da contestação; que o plano de amortização do financiamento não foi cumprido pelos A.A., como consta do artigo 21.º da contestação; e que a dívida ao R. é de €9.003,30, tal como invocado nos artigos 22.º e 26.º da contestação.
«É o R. quem tem ónus de prova desses factos, nos termos do Art. 343.º n.º 1 do C.C., sendo que esses factos continuam evidentemente controvertidos, finda que foi apenas a fase dos articulados.
«Na verdade os autos ainda não estavam em condições para ser proferida decisão conscienciosa sobre o mérito da causa, só com base na prova documental relevada pelo Tribunal a quo, havendo que produzir os demais meios de prova que oportunamente foram requeridos pelas partes.» (sic – sublinhado nosso).
Decorre do assim transcrito que o despacho saneador-sentença foi anulado por motivo dos autos ainda não conterem então todos os factos relevantes para o conhecimento imediato do mérito da causa, impondo-se a produção de prova sobre se efetivamente foi disponibilizado pelo R. qualquer valor, nos termos convencionados pelo acordo escrito de fls 28 verso a fls 29 (“carta contrato – Facilidade de crédito de Esc. 2.360.000$00”).
Mas mais relevante que isto é a conclusão de que o facto de ter sido celebrado o contrato constante de fls 28 verso a fls 29 e de aparecer creditado na conta dos A.A. o valor de €9.003,30 e do mesmo ter sido objeto de posterior transferência (cfr. doc.s de fls 31 verso e fls 32), não é necessariamente contraditório com a circunstância de não se ter dado por provados os factos de que o R. disponibilizou determinado valor, por força desse acordo de financiamento, e que os A.A. utilizaram qualquer valor desse financiamento. Isto porque, frise-se uma vez mais, do contrato de fls 28 verso a fls 29 não resulta a constituição duma dívida, mas um mero acordo sobre o modo de funcionamento do crédito decidido conceder. Pelo que, o contrato de mútuo só se constituiria se, e quando, o R. disponibilizasse efetivamente algum montante no quadro desse acordo escrito.
Competia assim ao R.-Banco, porque estamos no âmbito duma ação de simples apreciação negativa, provar que o valor de €9.003,30, depositado na conta de depósitos à ordem em nome do A. (cfr. fls 31 verso), foi disponibilizado pelo R., no quadro do “contrato de facilidade de crédito” de fls 28 verso a fls 29, tendo sido utilizado pelos A.A., na sequência da transferência de €9.003,30, documentada no extrato de conta a fls 32 (cfr. Art. 343.º n.º 1 do C.C.).
Como o Tribunal a quo julgou que o R. não cumpriu esse ónus de prova relativamente aos pontos 1 e 2 dos factos não provados, não existe qualquer contradição, pois entendeu que os documentos juntos aos autos eram insuficientes para a sua demostração – em conformidade com a fundamentação expedida no anterior acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa –, sendo que a apreciação que fez da prova testemunhal alegadamente também não teria esclarecido esses factos, limitando-se a remeter para prova documental que não foi junta aos autos.
Em face do exposto, só poderemos concluir que não houve qualquer contradição lógico-factual, havendo apenas uma discordância do apelante com o julgamento da matéria de facto que poderá apenas integrar um eventual erro de julgamento e não uma nulidade. Termos em que improcede a invocada nulidade.
2. Da impugnação da matéria de facto.
Estabelece o Art. 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documentos superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que ao Recorrido caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/5/2016 (Relatora: Maria Amélia Ribeiro - Proc. n.º 1393/08) que: «É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum».
No Acórdão da Relação do Porto de 6.3.2017 (Relator: Miguel Morais, Proc. n.º 632/14), afirma-se que: «tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas, nos termos do Art. 607º, nº 4), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando, designadamente, reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos ou indicar, de forma acrítica, um determinado documento.
«Deste modo, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
«Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do n.º 1 do Art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante.»
No caso dos autos o Recorrente veio sustentar que os factos constantes dos pontos 1 e 2 da matéria de facto não provada deveriam ser dados por provados, tendo essencialmente por base os documentos constantes de fls 28 verso a 29 (contrato de facilidade de crédito em conta corrente), os extratos bancários de fls 31 verso e fls 32 e o depoimento da testemunha Ana Cristina dos Santos Macedo Ferreira Raposo, fazendo transcrição de vários segmentos das suas declarações em audiência de julgamento.
Os apelados limitaram-se a defender que o Tribunal a quo fez uma interpretação correta da prova produzida em audiência de julgamento, em conformidade com o que o Tribunal da Relação de Lisboa já havia decidido nestes autos sobre a força probatória dos documentos juntos.
De referir que a sentença recorrida sustentou a sua convicção no julgamento sobre os factos 1 e 2 não provados, por: «(…) a Ré não ter junto aos autos qualquer documento comprovativo de que creditou aquele montante aos Autores no momento imediatamente subsequente à outorga do acordo referido em A), supra, 7 - e que os Autores o tenham movimentado, não sendo, segundo o T. R. Lisboa (como decorre da análise do Ac. proferido em sede de recurso da sentença anteriormente proferida nos autos) suficiente para a prova da disponibilização efetiva do valor em causa pela Ré aos Autores o teor dos documentos de fls. 31, verso a 32 dos autos, claramente posteriores e sem prova dos movimentos originários. / Por outro lado, a não prova de tais factos decorreu da circunstância de o depoimento da única testemunha pela Ré arrolada e ouvida em audiência de julgamento, não resultar a disponibilização de tal valor aos Autores pela Ré e/ou a sua movimentação por aqueles uma vez que a testemunha referiu de forma expressa que os movimentos a crédito - pela Ré - de tal montante em conta bancária e sua movimentação, pelos Autores, resultará de outros documentos bancários da demandada, que se não mostram juntos aos autos.» (sic)
Escusar-nos-emos de voltar aqui a repetir o que já deixámos consignado no acórdão de 28 de abril de 2018, relativamente à força probatória dos documentos de fls 28 verso a fls 29 e 31 verso e 32. O que ali dissemos continua a aplicar-se. Resta apenas saber se a prova testemunhal produzida em audiência poderia permitir ao Tribunal concluir que o valor de €9.003,30, depositado na conta aberta em nome do A. (cfr. fls 31 verso), resultou de disponibilização de financiamento por parte do R. no quadro do “contrato de facilidade de crédito em conta corrente” de fls 28 verso a fls 29 e se a transferência de €9.003,30, documentada a fls 32, que deixou o saldo dessa conta do A. a “zero”, resultou de movimentação feita nessa conta pelos A.A..
Ouvimos o depoimento da testemunha Ana …..com muita dificuldade, porque a gravação não tem boa qualidade. Em todo o caso, mesmo sendo evidente a dificuldade de audição integral do depoimento em causa, conseguimos perceber que, no essencial, as transcrições que o apelante reproduziu nas alegações de recurso são conformes com a gravação. Aliás, os apelados também não puseram em causa o teor das mesmas.
Dito isto, a testemunha em menção teve acesso à prova documental bancária, por força do exercício das suas funções no quadro dos serviços de recuperação de crédito, tendo assim conhecimento da celebração do contrato dos autos (aos minutos 2:08 a 3:12). Essa testemunha referiu que foi disponibilizado pelo banco na conta do A. o montante de €9.003,30 (ao minuto 10:00), e que só foi disponibilizado esse valor, apesar do financiamento ser no valor de esc.: 2.360.000, porque era assim que funcionava o contrato (aos minutos 11:00 a 11:50). Mais esclareceu que esse valor foi disponibilizado, porque era o cliente que pedia, sendo esse o modo de funcionamento do contrato, que não implicava o uso integral do capital do financiamento (aos minutos 12:49 a 13:15). Um pouco mais à frente refere que o valor em causa foi disponibilizado e utilizado, não tendo sido reposto o saldo (aos minutos 15:28 a 16:00). Ideia que depois é repetida nas transcrições relativas aos minutos 31:20 a 35:00 constantes de fls 146 verso a 149 das alegações.
Sendo este o depoimento da testemunha, conjugado com os documentos de fls 28 verso a 29 (contrato de facilidade de crédito) e de fls 31 verso e 32 (extratos de conta), julgamos que estamos em condições de dizer que o Tribunal deveria dar por provado que os €9.003,30 depositados na conta de depósitos à ordem n.º 207/37883/250.6 em nome de A, conforme extrato de 7/2/2002 (cfr. doc. de fls 31 verso), resultou de disponibilização financeira feita pelo banco R., a pedido do seu cliente, no quadro do contrato de fls 28 verso a fls 29.
Conjuga-se esse depoimento com o clausulado do contrato que previa: 1) a possibilidade de concessão de crédito até ao montante de Esc.: 2.360.000$00 (cláusula 1. Montante); 2) que o empréstimo seria feito por disponibilização na conta em nome do mutuário com o n.º 207/37883/250.6, servindo o extrato de meio de prova da dívida e da sua movimentação (cláusula 2. Forma); e 3) que o empréstimo era feito por transferência bancária para essa mesma conta, executada pelo banco, após prévia ordem do mutuário, ficando o R. obrigado a realizá-la desde que a ordem não excedesse o valor máximo de 2.360.000$00 (cláusula 4. Modo de Funcionamento/utilização) – cfr. cit. doc. a fls 28 verso.
A tal acresce que o valor que foi depositado (€9.003,30) foi, na sequência, objeto de ordem de transferência, ficando a conta com um saldo a “zero” (cfr. doc. a fls 32), o que motivou que posteriormente se tivesse considerado o crédito vencido e tivessem sido realizadas as diligências de cobrança que justificaram a intervenção dos serviços do Banco para os quais a testemunha Ana …. trabalhava.
Por fim, evidenciando-se que essa movimentação da conta bancária resulta da relação jurídica contratual em menção, deveremos ter também por certo que o movimento a crédito foi a pedido dos mutuários, podendo apenas presumir-se (Art.s 349.º e 351.º do C.C.) que o débito subsequente foi no seu interesse, pois só eles, para além do banco, eram parte no contrato e poderiam usar e beneficiar do crédito concedido. Em todo o caso, sendo o A. o único titular identificado da conta em menção, por regra, só ele poderia movimentar a mesma a débito.
Resta também dizer que ficou absolutamente claro da prova testemunhal mencionada que os A.A. nada pagaram ao R..
Julgamos que foi excessivamente valorizada a existência doutra prova documental que não foi junta aos autos, quando a testemunha confirmou a sua existência necessária. Se o Tribunal a quo continuava com dúvidas, apesar do depoimento testemunhal prestado, então deveria ter solicitado que esses documentos fossem juntos, uma vez que estava indiciada a sua existência. Em todo o caso a prova produzida já indiciava suficientemente a veracidade dos factos em menção, tendo em atenção o documentado nos autos, conjugado com o depoimento da testemunha Ana ……  .
Julgamos assim que deverão ser eliminados os pontos 1 e 2 dos factos não provados e devem ser aditados aos factos provados os seguinte 2 pontos:
«11-A - A R. disponibilizou aos A.A. esse valor de €9.003,30 no quadro do acordo escrito mencionado em 7-.;» e
«12-A - Os A.A. não restituíram à R. o valor de €9.003,30 que lhes foi disponibilizado na conta bancária referida em 7-, após a transferência mencionada em 12-, que deixou a mesma com saldo a “zero”.
3. Da inexistência de incumprimento e de qualquer dívida.
Fixada a matéria de facto provada, cumpre agora tomar conhecimento do mérito da causa.
Relembre-se que os A.A. instauraram a presente ação de simples apreciação negativa pedindo que se reconhecesse que não existia qualquer incumprimento por parte dos A.A. que justificasse a comunicação ao Banco de Portugal e que não inexistiria qualquer montante em dívida ao R., sustentando nunca terem celebrado com este qualquer contrato de mútuo, tendo-se limitado a requerer um regime de incentivo para microempresas, que consistia num subsídio a fundo perdido para a sua atividade profissional, negando ainda ter recebido do R. qualquer valor mutuado, que tivessem agora de restituir.
O R. veio alegar que, na sequência do A. ter requerido o alegado incentivo às microempresas, solicitou um crédito ao BES, que veio a ser concedido, até ao valor de 2.360.000$00 (PTE), e que os A.A. se obrigaram a liquidar, com entrega simultânea de livrança em branco, com autorização de preenchimento, para titulação e garantia do cumprimento das suas obrigações contratuais. Mais alegou que os A.A. incumpriram as obrigações decorrentes desse contrato, mostrando-se em dívida, desde Setembro de 2002, a quantia de €9.003,30.
Está assim em causa uma ação de simples apreciação negativa em que compete ao R. a prova da existência do crédito sobre os A.A., emergente da relação contratual que invoca, e do incumprimento desse contrato (Art. 343.º n.º 1 do C.C.). Ora, decorre da matéria de facto provada, que as partes celebraram o contrato que o R. alegou (facto 7), no quadro do qual aquele disponibilizou aos A.A. o montante de €9.003,30, que foi depositado em conta à ordem em nome do A., tal como acordado (factos 11 e 11-A), sendo que a conta ficou a “zero”, após ordem de transferência no valor de €9.003,30, ocorrida em 17/10/2002, não tendo sido restituído o valor assim disponibilizado pelo R. (factos 12 e 12-A).
Julgamos assim que o R. fez prova do seu crédito, emergente da relação contratual que invocou, estando os A.A. em incumprimento (Art.s 406.º n.º 1, 798.º e 799.º, 804.º a 806.º do C.C.). Pelo que, a ação deve improceder quanto ao pedido principal relativo ao pretendido reconhecimento da inexistência do incumprimento e da inexistência duma dívida dos A.A. relativamente ao R., devendo a sentença recorrida ser revogada nessa parte, procedendo as conclusões apresentadas no sentido do exposto.
4. Da indemnização por danos não patrimoniais.
A sentença recorrida condenou ainda o R. a pagar aos A.A. uma indemnização de €1.500,00 por danos não patrimoniais ou morais decorrentes do ilícito que consistiu no facto de o banco ter comunicado ao Banco de Portugal um alegado incumprimento dos A.A. relativo ao financiamento bancário.
Sucede que, como vimos no ponto 3. do presente acórdão, essa dívida e o correspondente incumprimento existem efetivamente. Pelo que, está posta em causa a existência do facto ilícito invocado em que se sustentava a obrigação de indemnização, fundada na responsabilidade civil extracontratual (Art. 483.º do C.C.), tendo em atenção que a participação desses eventos de crédito se traduz no cumprimento de um dever legal imposto aos bancos no quadro do nosso sistema financeiro.
Efetivamente, o Banco de Portugal é a entidade que tem por competência supervisionar todas as instituições de crédito e sociedade financeiras (Art. 105º da Constituição da República Portuguesa e Art. 17º n.º 1 da Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei n.º 5/98 de 31/1), cabendo-lhe em especial estabelecer diretivas para atuação dessas entidades e assegurar os serviços de centralização de risco de crédito.
Em contrapartida, as instituições de crédito ou sociedade financeiras estão obrigadas a apresentar ao Banco de Portugal as informações que este considere necessárias à verificação do seu grau de liquidez e solvabilidade, riscos em que incorrem, cumprimento das normas legais, sua organização administrativa, da eficácia dos seus controlos internos, entre outras (cfr. Art. 120º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec.Lei 298/92 de 31/12).
O Serviço de Centralização de Riscos de Crédito foi criado originalmente pelo Dec.Lei n.º 47.909 de 7 de Setembro de 1967, tendo em vista centralizar as informações sobre riscos de créditos concedidos pelas instituições financeiras sujeitas à supervisão do Banco de Portugal. A atividade desse Serviço é atualmente regulada pelo Dec.Lei n.º 204/2008 de 14/10 (que revogou o anterior Dec.Lei n.º 29/96 de 11/4), onde se estabelece, no seu Art. 3º n.º 1, que: “As entidades participantes (que são as sujeitas à supervisão do Banco de Portugal nos termos do Art. 2º n.º 1) ficam obrigadas a fornecer ao Banco de Portugal, nos termos da regulamentação aprovada, todos os elementos de informação respeitantes a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido em Portugal referidos no número seguinte (…) ”.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito estabelece, logo na alínea a), o dever de comunicar operações ativas com pessoas singulares ou coletivas, e nas alíneas seguintes os créditos tomados, com ou sem recurso, os cedidos e os afetos a obrigações hipotecários ou sobre o setor público, havendo uma obrigatoriedade de atualização mensal dessa informação. Portanto, o Banco R. estava legalmente obrigado a fazer a participação da situação deste seu crédito em incumprimento pelos A.A., não existindo causa que legitime a conclusão de que a comunicação feita à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal fosse indevida ou abusiva.
Ora, o exercício legítimo de um direito ou o cumprimento duma obrigação legal exclui a ilicitude (Vide: Pessoa Jorge in “Ensaios Sobre Os Pressupostos Da Responsabilidade Civil”, 1999, pág.s 153 a 281; e Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 9ª Ed., pág.s 520 e ss). Em consequência, não se verificando um dos pressupostos legais da responsabilidade extracontratual, inexiste obrigação de indemnização (Art. 483.º do C.P.C.), devendo o R. ser absolvido desse pedido.
Procedem assim as conclusões apresentadas neste sentido, devendo a sentença recorrida ser igualmente revogada nesta parte e substituída pela decisão de absolver o R. do pedido de indemnização por danos não patrimoniais.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação nos seguintes termos:
a) Julgamos improcedente por não provada a alegada nulidade da sentença recorrida, por alegada violação do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C.;
b) Julgamos procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, eliminando dos factos não provados os pontos 1 e 2 e acrescentando aos factos provados os pontos 11-A e 12-A, com a seguinte redação:
«11-A - A R. disponibilizou aos A.A. esse valor de €9.003,30 no quadro do acordo escrito mencionado em 7-.;»
«12-A - Os A.A. não restituíram à R. o valor de €9.003,30 que lhes foi disponibilizado na conta bancária referida em 7-, após a transferência mencionada em 12-, que deixou a mesma com saldo a “zero”.
Julgamos a apelação, quanto ao mérito da causa, procedente por provada, revogando a sentença recorrida na parte dispositiva constante das alíneas A) e B), as quais são substituída pela decisão de julgar a ação improcedente por não provada, quer quanto ao pedido de declaração de inexistência de qualquer incumprimento por parte dos A.A., no que ao R. respeita ou perante este, quer quanto ao pedido de condenar o R. a pagar à A., a título de danos não patrimoniais ou morais, a quantia de €1.500,00, decidindo-se, em consequência, absolver o R. também desses pedidos.
- As custas seriam pelos apelados (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.), que no entanto estão isentos do seu pagamento por força do benefício de apoio judiciário (Cfr. fls 12 verso e fls 13 verso).
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Lisboa, 11 de dezembro de 2019
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva