Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6179/08-2
Relator: ISABEL CANADAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO
Sumário: I- Os pressupostos da impugnação pauliana são os seguintes:
(i) A existência de determinado crédito: exige o artº. 610º do Cód. Civil que o impugnante seja titular de um direito de crédito, não sendo indispensável, todavia, que ele se encontre vencido, como se extrai do disposto no artº. 614º, nº 1, do mesmo Código;
(ii) A verificação do acto impugnado: ao credor impugnante incumbe alegar e provar o acto impugnado, que, para ser relevante, nos termos do artº. 610º, proémio, do Cód. Civil, tem de envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, seja por redução do activo do devedor, seja por aumento do seu passivo;
(iii) Impossibilidade ou Agravamento para a satisfação integral do crédito: o artº. 610º, al. b), do Cód. Civil exige também, como requisito geral, que, do acto impugnado, resulte a impossibilidade prática da satisfação integral do crédito do impugnante ou o agravamento dessa impossibilidade, ainda que não se trate de uma situação de pura insolvência;
(iv) Nexo de causalidade entre o acto impugnado e a impossibilidade ou agravamento: do artº. 610º, al. b), do Cód. Civil decorre que tem de se verificar um nexo de causalidade entre o acto impugnado e a situação patrimonial do devedor, traduzida em impossibilidade ou agravamento para a satisfação do crédito, sendo que, em regra, aquele nexo resultará precípuo do próprio acto impugnado, devendo atender-se à data deste para determinar essa impossibilidade ou o seu agravamento;
(v) Má fé do devedor e do terceiro, em caso de acto oneroso posterior ao crédito: sendo o acto impugnado, posterior ao crédito, oneroso, o credor terá de demonstrar a má fé do devedor e do terceiro adquirente, considerando, o nº 2 do artº. 612º do Cód. Civil, má fé a consciência do prejuízo que o acto oneroso causa ao credor.
II- Dada a dificuldade prática para o credor de provar que o devedor não dispõe de bens penhoráveis, como resultaria das regras gerais do ónus da prova, o artº. 611º do Cód. Civil veio estabelecer uma norma específica de repartição desse ónus, nos termos da qual sempre caberia ao devedor ou ao terceiro adquirente provar que o devedor tem bens penhoráveis de igual ou maior valor.
III- Da data do acto impugnado a precipuidade do nexo de causalidade entre o mesmo e a situação patrimonial do devedor, traduzida na referida impossibilidade ou agravamento para a satisfação do crédito, dado que o acto impugnado, posterior ao crédito da impugnante, é oneroso (trata-se de um contrato de compra e venda), a impugnação só procederá se se puder concluir que ambas as Rés (tanto a alienante como a adquirente do imóvel em questão) agiram de má fé.
IV- A má fé relevante para efeitos da impugnação pauliana dirigida a actos onerosos, posteriores à constituição do crédito, consistirá na consciência do prejuízo – por banda do devedor e do terceiro adquirente – que o acto impugnado causa ao credor.
(LS)
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
1. T..., S. A. instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra S..., S.A. e J..., Lda., pedindo que:
a) A primeira Ré seja condenada a pagar à A. a quantia de € 76.902,56, acrescida de juros de mora vencidos até à interposição da acção, no valor de € 12.368,21, e dos vincendos até integral pagamento;
b) Seja declarada ineficaz a transmissão do imóvel em causa, objecto da escritura celebrada em 03 de Abril de 2002 no ... Cartório Notarial de Lisboa;
c) Sejam declarados ineficazes e ordenado o cancelamento de todos os actos de inscrição matricial e registo predial efectuados sobre o referido prédio, subsequentes à referida venda, incluindo o registo provisório de aquisição;
d) Seja declarado o direito da A. a obter a satisfação integral do seu crédito à custa do prédio da 1ª Ré, praticando os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei sobre tal bem.
Para tanto alegou, em resumo, que:
- No exercício da sua actividade de construção civil e obras públicas, a A. efectuou para a 1ª Ré vários trabalhos de pavimentações betuminosas numa obra da Estação de Transferência de Resíduos Sólidos Urbanos sita em Sobral de Monte Agraço;
- Esta obra havia sido adjudicada à 1ª Ré por uma outra sociedade, R..., S.A., que explora a referida estação de transferência;
- O montante ainda em dívida desses trabalhos cifra-se em € 76.902,56;
- Os trabalhos foram adjudicados, primeiro no seguimento de um convite feito pela 1ª Ré à A. e, posteriormente, pela elaboração de uma proposta de preços enviada pela A. à 1ª Ré em 19 de Novembro de 2001;
- Esta proposta foi aceite através de carta datada de 27 de Novembro de 2001;
- Instada várias vezes para proceder ao pagamento da quantia em dívida de € 76.902,56, a 1ª Ré nada pagou;
- O crédito da A. relativamente à 1ª Ré nasceu nos anos de 2000 e 2001, data em que esses trabalhos foram realizados e deveriam ter sido pagos;
- Em 15.02.2002, a 1ª Ré registou provisoriamente, a favor da 2ª Ré, o único bem imóvel que possuía, o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área de dois mil cento e um metros quadrados e dez decímetros, situado em S. Jorge de Arroios, na Avenida ...., Lote ....., freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa;
- Este registo veio depois a converter-se em definitivo em 18.06.2002 com a outorga da escritura pública de compra e venda celebrada em 03.04.2002, no ...Cartório Notarial de Lisboa;
- A sociedade adquirente, 2ª Ré, tem como únicos sócios e gerentes B... e C..., os quais aí detêm cada um deles uma quota de € 2.500,00 no capital social de € 5.000,00;
- C...., B... e D... são os únicos administradores da 1ª Ré;
- Sendo os mesmos sócios e administradores comuns às duas sociedades não podiam ignorar que pela venda que haviam efectuado resultava uma manifesta insuficiência do património da sociedade vendedora que poria em risco o recebimento do crédito da A.;
- E ao agirem as Rés do modo descrito fizeram-no com manifesta má-fé, já que não ignorando o crédito da A., estavam plenamente conscientes do prejuízo que causavam, visto que de tal acto decorria a impossibilidade da A. vir a obter o recebimento do crédito;
- A 1ª Ré não possui outros bens que possibilitem a satisfação integral do crédito da A..

2. Regularmente citadas, as Rés contestaram:
2.1. Por excepção dilatória:
- arguindo a excepção de ilegitimidade da 1ª Ré, com fundamento em que a 1ª Ré facturou e pagou directamente à subempreiteira, E...., Lda., com o consentimento expresso e escrito da A.;
- e invocando a “nulidade do pedido”, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, dado que a A. pede a declaração da ineficácia da transmissão do imóvel, o que corresponde a uma pretensão de declaração de nulidade da escritura de compra e venda com mútuo e registos de aquisição e hipoteca, enquanto a impugnação pauliana visa a concessão ao credor do poder de executar os bens no património do obrigado à sua restituição.
2.2. Por excepção peremptória e por impugnação, dizendo, em resumo, que:
- No âmbito de um contrato de empreitada para a construção da Estação de Transferência de Resíduos Sólidos da Arruda dos Vinhos e Sobral de Monte Agraço celebrado pela 1ª Ré, esta subcontratou a E...., Lda. para a realização dos trabalhos de arranjos exteriores-pavimentos e estradas de acesso;
- A sociedade E..., Lda., por sua vez, sub-contratou na A. a execução dos referidos trabalhos;
- Na execução do contrato de subempreitada a 1ª Ré pagou de imediato à E..., Lda. o valor acordado como condição para o início das obras;
- Os trabalhos iniciaram-se e antes da obra concluída, a E..., Lda. disse que não a continuava, tendo, então, a 1ª R., acordado com a A. a continuação e conclusão da mesma;
- Posteriormente, de comum acordo entre a A., a 1ª Ré e a E..., Lda., foi acertado que a 1ª R. pagaria à E..., Lda., que, por sua vez, pagaria à A.;
- Por conta dos trabalhos facturados pela E..., Lda., nos quais se encontravam aqueles realizados pela A., em 03 de Julho de 2002, foi pago o valor de € 73.562,21, desconhecendo a 1ª Ré se a E..., Lda. pagou qualquer valor à A.;
- A A. nunca entregou à 1ª Ré qualquer factura;
- Não existe o pretendido dolo, por a escritura ter sido outorgada pela anterior administração da 1ª Ré, da qual não fazia parte nenhum dos actuais administradores;
- Não houve diminuição da garantia patrimonial com a venda do terreno, por ter entrado no património da 1ª Ré o valor correspondente ao preço recebido;
- A 1ª Ré possui outros bens.
2.3. Assacam, ainda, litigância de má fé à A., com fundamento em que o pedido da A. de cancelamento do registo não tem suporte factual, visando antes pressionar a 1ª Ré a pagar, sabendo a A. que com o registo de tal pretensão prejudica a 1ª Ré no desenvolvimento do seu projecto de edificação no lote de terreno.
Concluem pela improcedência da acção e pedem que a A. seja condenada como litigante de má fé, em indemnização no montante de € 10.000,00.
3. A A. apresentou réplica, sustentando a improcedência das excepções invocadas e concluindo como na petição inicial, opondo-se, ainda, à questão da litigância de má fé.
4. No decurso da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador – no âmbito do qual foram julgadas improcedentes as arguidas excepções dilatórias de ilegitimidade e "nulidade do pedido" –, procedendo-se, de seguida, à selecção da matéria de facto assente e à organização da base instrutória, que não sofreram reclamação, mas que foram objecto de, respectivamente, rectificação e aditamento, nos termos dos despachos de fls. 313-314, 347 e 381.

5. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, perante juiz singular, com gravação da prova, conforme actas de fls. 310-315 (1ª sessão), 346-352 (2ª sessão), 381-382 (3ª sessão) e 386 (4ª sessão), sendo decidida a matéria de facto controvertida pela forma constante do despacho de fls. 383-385, que não foi, então, objecto de reclamação.
6. Entretanto, no decurso da 1ª sessão da audiência final, foi interposto recurso de agravo do despacho exarado a fls. 315 – que indeferiu a concessão de prazo requerida pelas Rés para se pronunciarem sobre o original do documento junto sob o nº 4 com a petição inicial –, o qual veio a ser julgado deserto por despacho de fls. 346-347, proferido na 2ª sessão daquela audiência.
7. A. e Rés apresentaram alegações de direito por escrito (cfr. fls. 414-416 e 399-406, respectivamente).
8. Por fim, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência:
a) Condenou a 1ª Ré, "S....", a pagar à A. a quantia de € 76.902,56, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação da 1ª Ré, em 09/04/03, até integral pagamento, à taxa de 12% até 01/10/04 e, desde então, às taxas que resultem da aplicação da Portaria nº 597/05, de 19/7;
b) Absolveu a 1ª Ré do pedido de pagamento de € 12.368,21 de juros já vencidos até à interposição da acção;
c) Julgou a acção de impugnação pauliana procedente e, consequentemente, reconheceu à autora o direito à restituição do lote de terreno – com área de 2101,10 m2, sito na Av. ...., ...., freguesia de S. Jorge de Arroios, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ... - freguesia de São Jorge de Arroios, inscrito na matriz da freguesia de Alvalade sob o artº.... – na medida do seu crédito, podendo executá-lo no património da 2ª Ré, "J..." e podendo praticar sobre tal lote os actos de conservação de garantia que se acharem necessários;
d) Absolveu as rés do pedido de cancelamento dos registos, predial e matricial, do prédio (lote de terreno referido), subsequentes à transmissão da 1ª para a 2ª rés;
e) E não encontrou fundamento para a condenação da A. como litigante de má fé.

9. Inconformadas com tal decisão, as Rés interpuseram o presente recurso de apelação – que foi recebido com efeito meramente devolutivo (cfr. despacho de fls. 509) – tendo formulado, a rematar a respectiva alegação, as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. A. e 1ª Ré concluíram, em 27.11.2001, o contrato de subempreitada, plasmado nos documentos de fls. 6, 7 e 8 – alíneas C), E) e F) da matéria assente.
2ª. Este contrato deu início ao relacionamento comercial entre ambas as Empresas.
3ª. Resulta do contrato, que a 1ª Ré contratou apenas com a A. a realização dos trabalhos, no valor de 5 936 000$00 / 29 608,64 €, acrescido de IVA, constantes do documento de fls. 8,
4ª. ficando estabelecido que o pagamento dos trabalhos adjudicados era a 30 dias da data da factura (doc. de fls. 7) – o que deve ser considerado na matéria de facto provada, nos termos do disposto nos arts. 264º, nºs 2 e 3; 650º, nº 1, parte final; 659º, nº 3 e 713º, nº 2, todos do Cód. Proc. Civil.
5ª. Atento o que ficou estabelecido contratualmente, a 1ª Ré responde apenas pelo montante dos trabalhos adjudicados, acrescido do respectivo IVA,
6ª. não sendo responsável pelo excesso em 70% do valor contratado, ou seja (50 331,04 € - 29 608,64 € =) 20 722,40€.
Por outro lado,
7ª. A verba de 52 041,60 € (nº 1 do ponto 4º dos factos provados) diz respeito à factura 2000, emitida pela A. à E..., Lda. (a fls. 364), sendo o respectivo pagamento da responsabilidade desta Construtora;
8ª. A verba de 7.767,64 € é relativa à “rectificação dos trabalhos executados na Estrada de Acesso, em 28.01.2001”, que a 1ª Ré não contratou;
9ª. A verba de 9.078,62 € é de trabalhos de reparação feitos de 07.11.02 a 09.11.02 que são da responsabilidade da dona da obra – R... –, como a própria A. refere no documento de fls. 5.
10ª. Assim sendo, a 1ª Ré não contratou com a A. a realização de trabalhos no montante de 76 902,56 €;
11ª. nem assumiu a responsabilidade pelo pagamento daquele valor, como resulta da prova produzida;
12ª. não estando constituída na obrigação de pagar à A. a quantia de 76 902,56 €,
13ª. pelo que deve ser alterada a resposta ao quesito 1º da base instrutória, nos termos do disposto no art. 712º, nº1, alínea b) do Cód. Proc. Civil.
14ª. A A. não emitiu até ao momento as facturas dos trabalhos adjudicados (cfr. fls. 354), o que torna inexigível o respectivo pagamento antes disso.
15ª. Daí que, a citação da 1ª Ré para a acção não produza efeitos interpelativos do pagamento;
16ª. não podendo considerar-se vencida a obrigação da 1ª Ré a partir da citação;
17ª. e, consequentemente, não está a 1ª Ré em mora a partir daí,
18ª. pelo que, não são devidos juros de mora a partir da citação.
19ª. O não pagamento dos trabalhos adjudicados não se deve à venda dos imóveis, mas à conduta da A., por não querer emitir as facturas respectivas – facto que não foi ponderado na sentença;
20ª. bem como não foi considerado que a venda do terreno foi efectuada quase cinco meses depois (e as vendas dos lotes 18, 19 e 20 mais de um ano) da altura em que a A. devia ter emitido as facturas dos trabalhos adjudicados e tê-las apresentado à cobrança nos termos do contrato; e
21ª. igualmente não foi tido em conta que a inércia da A. não pode conferir ao crédito a protecção da impugnação pauliana, contra o direito das RR estabelecido nos arts. 405º e 1305º do Cód. Civil de poderem dispôr dos seus bens;
22ª. e, ainda que, pelas vendas realizadas entraram na 1ª Ré os contravalores, cujo montante, tendo apenas em conta o do terreno, excedia largamente o necessário para garantir o valor dos trabalhos adjudicados à A..
23ª. Não se verifica, assim, o requisito da impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito da impugnação pauliana,
24ª. devendo ser alterada a resposta ao quesito 6º, nos termos do art. 712º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Civil.
25ª. E a circunstância de B... ser simultaneamente gestor das Rés à data da alienação do terreno, não permite concluir que o negócio tenha sido celebrado com má fé das Rés, porquanto
26ª. o não recebimento dos trabalhos adjudicados se deve à própria A. – causa virtual.
27ª. Daí que, também o requisito da má fé se não verifica, devendo a resposta ao quesito 7º da base instrutória ser alterada nos termos do preceito citado.
28ª. A A. não fez prova do direito de que se arroga, como lhe competia, conforme o disposto no art. 342º, nº 1 do Cód. Civil.
29ª. Ao decidir-se, como se decidiu, foram desrespeitadas as normas dos arts. 270º; 342º, nº 1; 405º; 406º; 610º, alínea b); 612º e 1305º, todos do Cód. Civil; e 35º, nº 1; 1º; 7º e 38º do Cód. do IVA.
Conclui pela procedência do recurso, devendo «ser alteradas as respostas dadas aos quesitos 1º, 6º e 7º da base instrutória; considerar-se na matéria de facto provada que “as condições de pagamento dos trabalhos adjudicados eram a 30 dias”; e revogar-se a douta sentença recorrida por outra decisão, que julgue a acção parcialmente procedente, no tocante ao valor dos trabalhos adjudicados à A., no valor de 5 936 000$00 / 29 608,64€, mais IVA, a pagar à A. nos 30 dias seguintes à emissão e entrega das facturas à 1ª Ré, e totalmente improcedente a acção de impugnação pauliana».

10. A A. /Apelada ofereceu contra-alegações, sustentando a bondade da decisão, nos seguintes (transcritos) termos:
1ª. A douta sentença julgou com acerto e deve ser mantida.
2ª. Deve manter-se integralmente a resposta ao quesito 1º da Base Instrutória.
3ª. Foi a Ré ao não pagar o valor do seu débito que deu causa à acção.
4ª. Mostram-se provados todos os factos que sustentam a procedência da impugnação pauliana.
5ª. Com efeito, o crédito da Autora é anterior ao acto impugnado, resulta do acto impugnado a impossibilidade prática para a Autora de obter a satisfação plena e integral do seu crédito e a transmissão do imóvel foi operada com má fé de ambas as Rés.
6ª. Não foram violados quaisquer preceitos legais.

11. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objecto do recurso
Conforme deflui do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 2, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem é delimitado em função do teor das conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), só sendo lícito ao tribunal de recurso apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por imperativo do artº. 660º ex vi do artº. 713º, nº 2, do citado diploma legal.
Daí que todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação recursória do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, se tenham de considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Os poderes cognitivos deste tribunal ad quem alcançam, ainda (dado verificar-se que a prova produzida oralmente, em 1ª instância, foi objecto de registo magnetofónico), a revisão do julgamento da matéria de facto e da matéria de direito.
Dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelas Apelantes respigam-se como questões solvendas as seguintes, alinhadas segundo um critério de preclusiva precedência lógica:
(i) dos vícios da decisão de facto, por pretextado erro de julgamento da matéria de facto cometido quanto às respostas dadas aos quesitos 1º, 6º e 7º da Base Instrutória; por «excesso de resposta» ao Quesito 1º e por necessidade de ampliação da matéria de facto fixada em 1ª instância;
(ii) do error in judicando, quanto à decisão de direito, referente:
- ao reconhecimento do crédito da A. (montante e ocorrência de mora debitória), objecto da pretensão cumulada com a impugnação pauliana;
- à verificação dos requisitos os requisitos legais de que depende a procedência da impugnação pauliana.

III. Fundamentação
1. Da factualidade fixada em 1ª instância
Dos Factos Assentes e dos Factos que foram tidos como provados em sede de discussão e julgamento
1.1. A A. é uma sociedade comercial que se dedica à actividade da construção civil e obras públicas (alínea A) dos Factos Assentes).
1.2. No exercício da sua referida actividade a A. efectuou para a 1ª ré vários trabalhos de pavimentações betuminosas numa obra da Estação de Transferência de Resíduos Sólidos Urbanos sita em Sobral de Monte Agraço (alínea B) dos Factos Assentes).
1.3. Esta obra havia sido adjudicada à 1ª ré por uma outra sociedade denominada R..., S.A., que explora a referida estação de transferência (alínea C) dos Factos Assentes).
1.4. A autora emitiu o documento de fls. 5, datado de 27.01.2003, intitulado obra da “S.../R.... facturação” do qual consta:
1. Repavimentação da Estrada de Acesso. Factura nº ... de 28/09/01 ------- € 52.041,60
2. Rectificação dos trabalhos executados na Estrada de Acesso em 28/09/01----€ 7.767,64
3. Execução de arranjos exteriores em 28/09/01 -----------------------------------€ 50.331,04
4. Execução de reparação da responsabilidade do dono da obra de 07/11/02 a 9/11/02-----
-----------------------------------------------------------------------------------------------€ 9.078,62
5. Recebimento sobre a factura nº 2000, em 09/07/02 -----------------------------€ 42.316,34
Saldo € 76.902,56
Juros de mora sobre a factura nº 2000 ----------------------------------------------- € 4.077,78
Juros de mora sobre o saldo da factura e rectificação dos trabalhos ---------------€ 2.324,39
Juros de mora sobre a execução dos arranjos exteriores-----------------------------€ 5.846,66
Juros de mora sobre a execução de reparações -----------------------------------------€ 119,38 Total = € 89.270,77
(alínea D) dos Factos Assentes).
1.5. Os trabalhos foram adjudicados, primeiro no seguimento de um convite feito pela 1ª ré à A. e, posteriormente pela elaboração de uma proposta de preços enviada pela A. à 1ª ré em 19 de Novembro de 2001 (alínea E) dos Factos Assentes).
1.6. Esta proposta foi aceite através de carta datada de 27 de Novembro de 2001 (alínea F) dos Factos Assentes).
1.7. Em 15-02-2002, a S... registou provisoriamente a favor da J..., o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área de dois mil cento e um metros quadrados e dez decímetros, situado em S. Jorge de Arroios, na Avenida ...., ...., freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, descrito na ...Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o Nº .... - freguesia de S. Jorge de Arroios e, inscrito na matriz da freguesia de Alvalade sob o artº .... (alínea G) dos Factos Assentes).
1.8. Este registo veio depois a converter-se em definitivo em 18/06/2002 com a outorga da escritura pública de compra e venda celebrada em 03/04/2002, no .... Cartório Notarial de Lisboa (alínea H) dos Factos Assentes).
1.9. A sociedade adquirente, 2ª ré, tem como únicos sócios e gerentes B... e C... os quais aí detêm cada um deles uma quota de € 2.500,00 no capital social de € 5.000,00 (alínea I) dos Factos Assentes).
1.10. C..., B... e D... são os únicos administradores da ré S... (alínea J) dos Factos Assentes).
1.11. As sociedades rés obrigam-se respectivamente com a assinatura de um gerente relativamente à 1ª ré e de um membro do Conselho de administração relativamente à 2ª ré (alínea L) dos Factos Assentes).
1.12. A alienação do imóvel referida em H) foi efectuada pelo preço de € 374.098,42 (alínea M) dos Factos Assentes).
1.13. O valor dos trabalhos efectuados pela A. e não pagos pela 1ª ré totalizam € 76.902,56 (Resposta ao Quesito 1º da Base Instrutória).
1.14. A 1ª ré entregou à "E..." € 73.562,21 em 3 de Julho de 2002 (Resposta ao Quesito 3º da Base Instrutória).
1.15. Em 27/11/2001, a A. entregou à ré uma letra de câmbio no valor de € 44.891,81 para caucionar parte dos trabalhos a executar (Resposta ao Quesito 4º da Base Instrutória).
1.16. A S... não possui outros bens que possibilitem o pagamento do valor dos trabalhos efectuados pela A. (Resposta ao Quesito 6º da Base Instrutória).
1.17. Ao efectuarem a alienação referida em G) e H) as rés sabiam que estavam a impossibilitar a A. de ressarcir o seu crédito (Resposta ao Quesito 7º da Base Instrutória).
1.18. A E... Lda, emitiu a declaração escrita, datada de 05/07/2002, na qual declarou ter recebido da ré S..., nessa data, um cheque n.º .... sobre a CGD no valor de € 73 562,21, documento esse que foi assinado por F... (Resposta ao Quesito 9º da Base Instrutória).
1.19. A E..., Lda, emitiu o recibo n.º 0722/01, datado de 05/07/02, no qual declara ter recebido da ré S... a quantia de € 73 562,21, documento esse assinado pelo gerente da E... (Resposta ao Quesito 10º da Base Instrutória).
Do Facto que foi tido como provado por documento em sede de sentença:
1.20. O valor patrimonial do prédio é de € 441.672,81 (Documento de fls. 304 verso).

2. Dos vícios da decisão de facto
2.1. Do alegado erro de julgamento da decisão de facto cometido pelo tribunal a quo
2.1.1. Parâmetros da sindicabilidade do julgamento fáctico operado pela 1ª instância
Consabido é que o Cód. Proc. Civil de 1939 estabelecia como regra a inalterabilidade da decisão do tribunal colectivo sobre a matéria de facto constante do questionário. Tal solução, podendo ser criticada (por, eventualmente, cercear excessivamente as garantias de um bom julgamento), tinha, todavia, uma justificação lógica e cabal: «na verdade, não havendo redução a escrito das provas produzidas perante o tribunal colectivo, não podia a Relação controlar o modo como o mesmo Colectivo apreciara essas provas» (LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, 2003, p. 95).
Posteriormente, «o CPC de 1961 procurou ampliar os poderes da Relação no que toca, não só à apreciação das respostas à matéria de facto dadas pelo tribunal de 1ª instância, mas também à imposição duma fundamentação mínima relativamente às decisões do Colectivo, e determinou a possibilidade de anulação, ainda que oficiosa, quando as respostas à matéria de facto fossem deficientes, obscuras ou contraditórias» (LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES, ibidem).
Ou seja, perante a ausência de previsão de registo magnético, escrito ou taquigráfico dos depoimentos prestados, o legislador procurou mitigar os efeitos daquela oralidade impondo ao tribunal o dever de motivação.
Na prática, todavia – e apesar de se prever um segundo grau de jurisdição em matéria de facto –, face à anterior redacção do artº. 712º do Cód. Proc. Civil, só muito excepcionalmente era tal garantia exequível.
De facto, perante a anterior redacção da al. a) do nº 1 do cit. artº. 712º, a Relação só gozava do poder-dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto se do processo constassem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão – o que apenas sucedia quando, havendo prova testemunhal, todas as testemunhas tivessem sido ouvidas por deprecada (estando os respectivos depoimentos reduzidos a escrito) ou se os elementos fornecidos pelo processo impusessem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
Nos demais casos – que, de resto, constituíam a larga maioria –, bastava que, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal procedesse à indicação, ainda que em termos genéricos ou imprecisos, dos meios de prova em que se tinha apoiado para formar a sua convicção, para que o tribunal superior ficasse impedido de sindicar a decisão proferida pelo tribunal “a quo”.
E aqui radicavam, ainda que não em termos exclusivos, as principais críticas apontadas ao sistema da oralidade plena ou pura – implementado no Cód. Proc. Civil de 1939 e continuado no Cód. Proc. Civil de 1961–, que acabaram por levar o legislador a aprovar as medidas intercalares previstas no DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro, posteriormente mantidas na redacção final do Cód. Proc. Civil.
Efectivamente, o aludido DL nº 39/95 veio possibilitar um recurso amplo sobre a matéria de facto, ao prescrever a possibilidade de registo ou documentação da prova, solução que a revisão do Cód. Proc. Civil operada em 1995/1996 sedimentou.
Assim, «a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto passou a poder ser alterada, não só nos casos previstos desde 1939, mas também quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tenha sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida» (LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES, in ob. e vol. cit., p. 96).
Após a mencionada Revisão de 1995/96 do Cód. Proc. Civil, o aludido artº. 690º-A passou a ter a seguinte redacção:
«“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”
1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente.
4- O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso nos termos do nº2 do art. 684º-A».
Posteriormente, o DL nº 183/2000, de 10 de Agosto, eliminou a exigência (estabelecida na redacção originária do nº 2 deste art. 690º-A) de que o recorrente procedesse, sob pena de rejeição do recurso, à «transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda», passando a prescrever que o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento devem ficar registados na acta da audiência de julgamento (cfr. o nº 2 aditado por este diploma ao artº. 522º-C do Cód. Proc. Civil) e possibilitando que as partes possam recorrer da matéria de facto com base na simples referência ao assinalado na acta (cfr. a nova redacção dada por este diploma aos nºs 2 e 3 do cit. artº. 690º-A), devendo o tribunal de recurso proceder à audição e visualização do registo áudio e vídeo, respectivamente, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal (cfr. o nº 5 aditado ao cit. artº. 690º-A por este diploma).
Porém, desde logo, importa sublinhar que o poder de cognição deste Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Assim, por um lado, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no artº. 690º-A, nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, sendo que «a expressão “ponto da matéria de facto” procura acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do nº 1 do art. 690º-A: na verdade, o alegado “erro de julgamento” normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo “facto”, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente» (CARLOS LOPES DO REGO, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., 2004, p. 608).
Por outro lado, o controlo de facto, a avaliação da validade da prova, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados oralmente, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova pelo julgador, construída dialecticamente na base dos princípios da oralidade e da imediação subjacentes a toda a actividade de produção da prova.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artº. 655º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, segundo o qual «o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto») que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador, não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, podendo existir também aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes (v.g., o modo como foi feito o depoimento, as hesitações, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória) que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e são totalmente imperceptíveis na gravação/transcrição para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores.
Todavia, tal princípio da livre apreciação e prudente convicção é apenas um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova, ou seja, o estabelecimento de um sistema de prova legal.
Quer isto significar que, não obstante o seu carácter negativo, este princípio pressupõe a adopção de regras ou critérios de valoração da prova.
E, se o que se pretende é conhecer um acontecimento pretérito, tal valoração há-de conceber-se como uma actividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos. Ou seja: no nosso sistema processual civil, as decisões de facto não assentam puramente no íntimo convencimento do julgador, num mero intuicionismo, antes se exigindo um convencimento racional, devendo, pois, o juiz pesar com justo critério lógico o valor das provas produzidas.
«O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, passa de convencido a convincente» (Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348).
Daí que a lei determine expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal «analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador» (cfr. nº 2 do artº. 653º do Cód. Proc. Civil).
O acatamento de tal exigência legal de fundamentação impõe, assim, um maior esforço na racionalização do processo de formação da convicção e, num tal contexto, que, partindo da indicação e apreciação crítica dos meios de prova (nos seus aspectos mais relevantes) que foram usados na aquisição da convicção, o tribunal explicite as razões de ciência extraídas daqueles; o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver; os motivos da credibilidade de declarações, depoimentos, documentos ou perícias que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Daí que – conforme orientação jurisprudencial prevalecente –, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância se deva restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão da matéria de facto, nos concretos pontos questionados, tendo presente que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e que, na avaliação da respectiva credibilidade, se tem que reconhecer que o tribunal a quo, pelas razões supra enunciadas, se encontra em melhor posição.
Na verdade, só perante tal situação de flagrante desconformidade entre os meios de prova que foram usados na aquisição da convicção e a decisão da matéria de facto é que haverá erro de julgamento. Uma tal situação não ocorrerá quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, porquanto, nesta hipótese, deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, dado estarmos então no domínio e âmbito da livre convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal ad quem sindicar, e pelas razões já supra expendidas.
Em jeito de conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que o recorrente demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão assaz difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo agravante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.
Reafirma-se: o tribunal de 2ª instância não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas antes averiguar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (conjugada com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Uma vez que, em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, se coloca essencialmente um problema de aferição da razoabilidade – à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência (cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, in ob. e p. cit) – da convicção probatória do julgador recorrido, forçoso é concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o depoimento de uma testemunha tem um sentido totalmente dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento da matéria de facto; em que não foram consideradas -v.g., por mera distracção- determinadas declarações ou outros elementos de prova; em que o teor dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou, e pouco mais.
Sob o ponto de vista formal, considera-se que as ora Apelantes deram cumprimento ao procedimento legalmente exigível para poder atacar a decisão de facto da 1ª instância, na medida em que:
- resultam especificados os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (al. a) do nº 1 do artº. 690º-A do Cód. Proc. Civil;
- procedem à indicação dos concretos meios probatórios produzidos no processo, que - na sua perspectiva - imporiam uma decisão de facto diversa da recorrida (al. b) do nº 1 do mesmo artº. 690.º-A).
Resta, então, apurar se, in casu, existem razões para alterar a factualidade apurada pelo tribunal a quo.
2.1.2. O pretextado erro de julgamento da matéria de facto cometido quanto à resposta dada aos quesitos 1º, 6º e 7º da Base Instrutória
E tendo presentes os princípios orientadores sumariamente elencados, logo se vê que este Tribunal da Relação, atento o que supra se referiu sobre a sua possibilidade de alterar a matéria de facto (respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância), não tem razões para alterar a factualidade apurada pelo tribunal a quo.
Senão vejamos:
Aos quesitos 1º, 6º e 7º da Base Instrutória (baseados nas afirmações vertidas nos artigos 4º, 10º e 20º da petição inicial) foi dado o seguinte teor:
- O valor dos trabalhos efectuados pela A. totaliza € 76.902,56? (Quesito 1º)?
- A S...r não possui outros bens que possibilitem o pagamento do valor dos trabalhos efectuados pela A.? (Quesito 6º)
- Ao efectuarem a alienação referida em G) e H), as rés sabiam que estavam a impossibilitar a A. de ressarcir o seu crédito? (Quesito 7º)
Sobre essa matéria foram prestados e gravados os seguintes depoimentos:
- Quesito 1º: inquirição das testemunhas da A., G...., H..., I..., K... e L...;
- Quesito 6º: inquirição das testemunhas da A., H..., I...., K..., F..., e da testemunha das Rés, M...;
- Quesito 7º: inquirição das testemunhas da A., H...., K... e F....
O Tribunal a quo respondeu da seguinte forma:
- Quesito 1º: Provado que o valor dos trabalhos efectuados pela A. e não pagos pela ré totalizam € 76.902,56.
- Quesito 6º: Provado.
- Quesito 7º: Provado.
Na motivação das respostas a tais quesitos da Base Instrutória, consignou-se que:
«Para a decisão da matéria de facto, nos termos expostos, o tribunal baseou a sua decisão nos seguintes meios de prova.
A resposta ao ponto 1º teve por base o depoimento das testemunhas G... (Engenheiro que trabalha para a A. e foi ele quem redigiu a proposta de trabalhos e fez as medições da obra), K... (Engenheiro, gerente da E...) e, F... (na altura colaborador da E...) os quais explicaram que a A., inicialmente, foi subcontratada pela E... para efectuar os trabalhos de alcatroagem dos pavimentos no acesso à Estação de Resíduos; como a 1ª Ré deixou de pagar à E..., esta parou a obra; depois, a 1ª R e a A. acordaram directamente que a A. acabaria os trabalhos de pavimentação da estrada de acesso à Estação e executaria os arranjos exteriores da Estação, conforme proposta de fls. 6 e 7, que a 1ª Ré aceitou a fls. 8. Que relativamente à pavimentação da estrada de acesso, inicialmente acordada com a E..., o valor foi de € 52.041,60, mas que a 1ª ré se obrigou a pagar esse valor para que a A. recomeçasse os trabalhos e aceitasse executar os arranjos exteriores – como aliás é mencionado na carta de fls 89, com a qual seguira a proposta de fls 6 e 7. Pela rectificação da execução dos trabalhos de pavimentação do acesso (a área era maior que a inicialmente prevista) despendeu 7.767,44 €. Quanto aos arranjos exteriores, o seu valor foi de 50.331,04 €. Além disso, a “R...” pediu à 1ª R para que a A. reparasse uns estragos feitos pela dona da obra, no valor de 9.078,62 €. Porque a E.... entregou à A. 42.316,34€, os trabalhos por pagar pela 1ª ré somam 76.902,56€.
(…)
Respondeu-se negativamente ao ponto 5º, na medida em que, conforme resulta dos documentos de fls 331 e segs, à data da venda do imóvel em causa, em 03/04/2002, a 1ª ré era proprietária registada, de mais três lotes de terreno para construção, designados por lotes 18, 19 e 20, com as áreas, respectivamente, de 282 m2, 344,2 m2, 510,6 m2, sitos em Camarate, Loures. Lotes esses que a 1ª ré fez inscrever, provisoriamente, por natureza e por dúvidas, a favor da 2ª ré, em 11/4/2002, inscrições essas canceladas por recusa, de 29/7/02. Posteriormente, em 17/1/03, a 1ª ré vendeu esses lotes a terceira.
Para resposta ao ponto 6º, teve-se em conta, para além do já referido na fundamentação do ponto 5 (de que a 1ª ré vendeu os três lotes) as testemunhas F..., I... e K..., confirmaram que a 1ª ré não tem mais bens. Aliás, nos termos do artº 611º do CC, cabia à 1ª ré provar que tinha outros bens penhoráveis, o que ela não provou.
A resposta ao ponto 7º teve por base, por um lado, os depoimentos das testemunhas K... e F..., os quais afirmaram não terem dúvidas que as rés sabiam que com a venda daquele terreno a A. (e os outros credores) não poderiam receber os seus créditos sobre a 1ª ré. Depoimentos esses justificados com a circunstância de o B..., à data da celebração da escritura de compra e venda, em 03/04/02, era gerente da 2ª ré e presidente do conselho de administração da 1ª ré (fls 34 e 35 e 46).
As referidas testemunhas disseram que o B.... sabia dos negócios e das dívidas da 1ª ré.
(…)»
As Apelantes alegam, porém, que:
- A. e 1ª Ré concluíram, em 27.11.2001, o contrato de subempreitada, plasmado nos documentos de fls. 6, 7 e 8 – alíneas C), E) e F) da matéria assente.
- Este contrato deu início ao relacionamento comercial entre ambas as Empresas.
- Resulta do contrato, que a 1ª Ré contratou apenas com a A. a realização dos trabalhos, no valor de 5 936 000$00/29 608,64 €, acrescido de IVA, constantes do documento de fls. 8,
- ficando estabelecido que o pagamento dos trabalhos adjudicados era a 30 dias da data da factura (doc. de fls. 7) – o que deve ser considerado na matéria de facto provada, nos termos do disposto nos arts. 264º, nºs 2 e 3; 650º, nº 1, parte final; 659º, nº 3 e 713º, nº 2, todos do Cód. Proc. Civil.
- A verba de 52 041,60 € (nº1 do ponto 4º dos factos provados) diz respeito à factura 2000, emitida pela A. à E..., Lda. (a fls. 364), sendo o respectivo pagamento da responsabilidade desta Construtora;
- A verba de 7.767,64 € é relativa à “rectificação dos trabalhos executados na Estrada de Acesso, em 28.01.2001”, que a 1ª Ré não contratou;
- A verba de 9.078,62 € é de trabalhos de reparação feitos de 07.11.02 a 09.11.02 que são da responsabilidade da dona da obra – R... –, como a própria A. refere no documento de fls. 5.
- Assim sendo, a 1ª Ré não contratou com a A. a realização de trabalhos no montante de 76 902,56 €;
- nem assumiu a responsabilidade pelo pagamento daquele valor, como resulta da prova produzida;
- não estando constituída na obrigação de pagar à A. a quantia de 76 902,56 €,
- pelo que deve ser alterada a resposta ao quesito 1º da base instrutória, nos termos do disposto no art. 712º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Civil.
- O não pagamento dos trabalhos adjudicados não se deve à venda dos imóveis, mas à conduta da A., por não querer emitir as facturas respectivas – facto que não foi ponderado na sentença;
- bem como não foi considerado que a venda do terreno foi efectuada quase cinco meses depois (e as vendas dos lotes 18, 19 e 20 mais de um ano) da altura em que a A. devia ter emitido as facturas dos trabalhos adjudicados e tê-las apresentado à cobrança nos termos do contrato; e
- igualmente não foi tido em conta que a inércia da A. não pode conferir ao crédito a protecção da impugnação pauliana, contra o direito das RR estabelecido nos arts. 405º e 1305º do Cód. Civil de poderem dispôr dos seus bens;
- e, ainda que, pelas vendas realizadas entraram na 1ª Ré os contravalores, cujo montante, tendo apenas em conta o do terreno, excedia largamente o necessário para garantir o valor dos trabalhos adjudicados à A..
-. Não se verifica, assim, o requisito da impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito da impugnação pauliana,
- devendo ser alterada a resposta ao quesito 6º, nos termos do art. 712º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Civil.
- E a circunstância de B... ser simultaneamente gestor das Rés à data da alienação do terreno, não permite concluir que o negócio tenha sido celebrado com má fé das Rés, porquanto
- o não recebimento dos trabalhos adjudicados se deve à própria A. – causa virtual.
- Daí que, também o requisito da má fé se não verifica, devendo a resposta ao quesito 7º da base instrutória ser alterada nos termos do preceito citado.
Ora, da análise de tal argumentação recursória resulta, desde logo, que as Apelantes consideram que as respostas positivas aos aludidos Quesitos não se conformam com o teor dos documentos juntos aos autos (na leitura normativa que dos mesmos fazem), ou seja, os elementos probatórios que as ora Apelantes pretendem que sejam valorados diversamente do que o foram pelo Sr. Juiz a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são apenas os documentos de fls. 6, 7, 8 (referidos nas Alíneas E) e F) dos Factos Assentes), e 364, não impugnando as Rés tal decisão de facto com base nos depoimentos testemunhais produzidos, pelo que, não observando as Apelantes o ónus de impugnação prescrito na já citada al. b) do nº 1 do artº. 690º-A do Cód. Proc. Civil quanto aos depoimentos prestados, vedado se encontra a esta Relação proceder à reapreciação crítica de tais depoimentos prestados à matéria em apreço (mediante a audição das cassetes contendo a prova gravada).
Sucede que a decisão de facto respeitante aos Quesitos em apreço resultou da valoração da prova testemunhal produzida em audiência, complementada pela análise crítica do teor dos documentos de fls. 6-7, 8, 34-35, 46 e 89, como se alcança da respectiva fundamentação.
Posto isto, tendo em atenção:
- por um lado, que o teor dos documentos referenciados pelas Apelantes nunca seria decisivo para impor, só por si, decisão de facto diversa da proferida (independentemente do alcance jurídico a atribuir, em sede normativa, ao que deles consta);
- por outro, que a respectiva apreciação foi conjugada com o resultado da prova testemunhal produzida oralmente, sem que as ora Apelantes tivessem impugnado os pontos de facto em causa mediante recurso aos depoimentos prestados,
tem, necessariamente de improceder a reapreciação da prova sobre os pontos de facto questionados.
Termos em que se têm por assentes as respostas positivas aos Quesitos 1º, 6º e 7º da Base Instrutória.
2.2. Da impugnação da resposta ao Quesito 1º da Base Instrutória, no que concerne ao inciso «e não pagos pela Ré»
Nesta sede de impugnação da matéria de facto, importa, ainda aludir ao apontado – apenas em sede de alegação recursória – «excesso de resposta» ao Quesito 1º, uma vez que ele não comportava a expressão «e não pagos pela Ré».
Constata-se, todavia, que, ainda que a redacção da resposta ao Quesito 1º da Base Instrutória possa, na sua estrita literalidade, suscitar dúvidas quanto ao alcance da inclusão de tal inciso – designadamente, na perspectiva do assacado vício (formal da decisão de facto) de excesso –, quando interpretada no correcto contexto daquele segmento da decisão de facto – reportado à fixação dos factos pertinentes ao thema decidendum (isto é, à condensação propriamente dita oportunamente efectuada) e ao quadro factual que resultou provado –, afigura-se ser perfeitamente clara no sentido de que tal resposta cobre de forma positiva todo o facto, oportunamente, enunciado para prova.
Senão vejamos:
Conforme supra referido (sob o antecedente ponto III.2.1.2.), o teor do Quesito 1º da Base Instrutória baseia-se na afirmação vertida no artigo 4º da petição inicial, no qual se alegava que «o montante ainda em dívida desses trabalhos (efectuados pela A.) cifra-se em € 76.902,56», com remissão para o documento junto a fls. 5, do qual já consta o abatimento, ao montante desses trabalhos, do «recebimento sobre a factura nº 2000, em 09/07/02, de € 42.316,34» (cfr., ainda, alínea D) dos Factos Assentes / ponto 1.4. da Factualidade Provada supra enunciada).
A inclusão de tal inciso «e não pagos pela Ré» corresponde, assim, no caso em apreço, a uma explicitação do conteúdo do enunciado fáctico, oportunamente alegado, contraditado, seleccionado e que, em sede de audiência final, logrou vir a ser provado.
Ou seja: tal resposta apenas pretendeu explicitar que, dos trabalhos efectuados pela A., apenas se encontram em dívida € 76.902,56 – de resto, nas acções fundadas em responsabilidade contratual, não cabe ao autor provar nem a culpa, nem o não cumprimento, mas tão só a constituição da obrigação (cfr. artº. 799º, nº 1, do Cód. Civil) –, conforme, de resto, se sublinha no seguinte trecho da motivação aduzida: «(…) depois, a 1ª R e a A. acordaram directamente que a A. acabaria os trabalhos de pavimentação da estrada de acesso à Estação e executaria os arranjos exteriores da Estação, conforme proposta de fls. 6 e 7, que a 1ª Ré aceitou a fls. 8. Que relativamente à pavimentação da estrada de acesso, inicialmente acordada com a E..., o valor foi de € 52.041,60, mas que a 1ª ré se obrigou a pagar esse valor para que a A. recomeçasse os trabalhos e aceitasse executar os arranjos exteriores – como aliás é mencionado na carta de fls 89, com a qual seguira a proposta de fls 6 e 7. Pela rectificação da execução dos trabalhos de pavimentação do acesso (a área era maior que a inicialmente prevista) despendeu 7.767,44 €. Quanto aos arranjos exteriores, o seu valor foi de 50.331,04 €. Além disso, a “R....” pediu à 1ª R para que a A. reparasse uns estragos feitos pela dona da obra, no valor de 9.078,62 €. Porque a E... entregou à A. 42.316,34€, os trabalhos por pagar pela 1ª ré somam 76.902,56€», pelo que não ocorre o apontado vício de excesso.
Improcedem, assim, as razões das Apelantes nesta parte.
2.3. Aditamento à matéria de facto fixada em 1ª instância
Ainda, no contexto de fixação quadro factual pertinente ao thema decidendum, sustentam as Apelantes que resulta do contrato de subempreitada, plasmado nos documentos de fls. 6, 7 e 8, que ficou estabelecido que o pagamento dos trabalhos adjudicados era a 30 dias da data da factura (doc. de fls. 7), o que deve ser considerado na matéria de facto provada, nos termos do disposto nos arts. 264º, nºs 2 e 3; 650º, nº 1, parte final; 659º, nº 3 e 713º, nº 2, todos do Cód. Proc. Civil.
Repristinando o quadro alegatório respectivo, temos que:
Nos artigos 5º e 6º da petição inicial, a A. alegou que:
- Os trabalhos foram adjudicados, primeiro no seguimento de um convite feito pela 1ª Ré à A. e, posteriormente pela elaboração de uma proposta de preços enviada pela A. à 1ª Ré em 19 de Novembro de 2001 (conforme documento de fls. 6-7 junto com a petição inicial);
- Esta proposta foi aceite através de carta datada de 27 de Novembro de 2001 (conforme documento de fls. 8 junto com a petição inicial),
tendo tal matéria sido transposta para as alíneas E) e F) dos Factos Assentes.
Ora, da parte final do aludido documento de fls. 6-7 consta «Condições de pagamento: a 30 dias da data da factura», facto este que assume manifesto relevo para a apreciação do caso sub judice (no que concerne ao vencimento da obrigação).
Assim, considerando que se trata de matéria assente por acordo das partes, ao abrigo do disposto no artº. 712º, nº 4, do Cód. Proc. Civil, adita-se ao factualismo acima consignado sob o ponto 1.5. o teor da parte final daquele documento de fls. 6-7, passando aquele enunciado fáctico a ter a seguinte redacção:
«1.5. Os trabalhos foram adjudicados, primeiro no seguimento de um convite feito pela 1ª Ré à A. e, posteriormente pela elaboração de uma proposta de preços enviada pela A. à 1ª Ré em 19 de Novembro de 2001, da qual constava que o pagamento dos trabalhos adjudicados seria a 30 dias da data da factura».

3. Do reconhecimento do crédito da A. (montante e ocorrência de mora debitória), objecto da pretensão cumulada com a impugnação pauliana
Nos presentes autos, em cumulação com a própria impugnação pauliana, é invocado o direito de crédito (enquanto um dos elementos integradores da causa de pedir complexa da impugnação pauliana), alegando-se o facto jurídico donde emerge (contrato celebrado entre a A. e a 1ª Ré), e pedindo-se a condenação da (1ª) Ré devedora no pagamento da prestação respectiva.
O reconhecimento do crédito da A. é, assim, desde logo, uma condição indispensável à procedência da pauliana.
Ora, em face da solução dada à impugnação da matéria de facto no antecedente ponto III.2., prejudicada fica a solução jurídica pretendida pelas Apelantes de apenas ser reconhecido o crédito de 5. 936. 000$00 / 29. 608,64 €, acrescido de IVA.
Na verdade, tomando por base o facto assente sob o ponto III.1.13. (concatenado com a resposta negativa ao Quesito 2º da Base Instrutória), a sentença recorrida fez correcta aplicação das normas jurídicas aplicáveis, procedendo à adequada qualificação jurídica da situação de não cumprimento da obrigação decorrente do contrato celebrado entre a A. e a 1ª Ré relativamente ao pagamento da quantia peticionada, condenando a 1ª Ré no pagamento à A. da quantia de € 76.902,56, não havendo, pois, qualquer juízo de censura a fazer ao decidido quanto ao reconhecimento do crédito da A. no aludido montante de € 76.902,56.
Na mesma sentença, foi ainda a 1ª Ré condenada no pagamento à A. dos juros de mora vencidos e vincendos (sobre a aludida quantia de € 76.902,56), desde a citação da 1ª Ré, em 09/04/03, até integral pagamento, à taxa de 12% até 01/10/04 e, desde então, às taxas que resultem da aplicação da Portaria nº 597/05, de 19/7, considerando-se, no que concerne a tal indemnização moratória, que a 1ª Ré se encontrava em mora desde a citação, por a interpelação para pagamento apenas ter ocorrido ou produzido efeito aquando da citação da 1ª Ré para a acção.
Insurgem-se, igualmente, as Apelantes quanto à procedência de tal pretensão condenatória em juros de mora desde a data da citação da 1ª Ré para a acção, argumentando para tanto:
- A 1ª Ré contratou apenas com a A. a realização dos trabalhos, constantes do documento de fls. 8, ficando estabelecido que o pagamento dos trabalhos adjudicados era a 30 dias da data da factura;
- A A. não emitiu até ao momento as facturas dos trabalhos adjudicados (cfr. fls. 354), o que torna inexigível o respectivo pagamento antes disso;
- Daí que, a citação da 1ª Ré para a acção não produza efeitos interpelativos do pagamento, não podendo considerar-se vencida a obrigação da 1ª Ré a partir da citação, e, consequentemente, não está a 1ª Ré em mora a partir daí, pelo que, não são devidos juros de mora a partir da citação.
Quid juris?
Como é sabido, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, expressando a lei que «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» (cfr. nºs. 1 e 2 do artº. 804º do Cód. Civil).
E, em princípio, o devedor só fica constituído em mora depois haver sido, judicial ou extrajudicialmente, interpelado para cumprir (nº 1 do artº. 805º do Cód. Civil).
Mas já haverá mora debitória, independentemente de interpelação, e no que para o caso releva, se a obrigação for a prazo certo (cfr. al. a) do nº 2 do artº. 805º do Cód. Civil), vencendo-se, então, automaticamente.
Por outro lado, «o facto de não ser exigível, no momento em que a acção foi proposta, não impede que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu a conteste, nem que este seja condenado a satisfazer a prestação no momento próprio» (nº 1 do artº. 662º do Cód. Proc. Civil).
Efectivamente, o aludido artº. 662º do Cód. Proc. Civil, para não se obrigar o credor a vir novamente a juízo quando a obrigação estiver vencida, permite que seja proferida sentença de condenação em acção que tenha por objecto obrigação ainda não exigível ou não vencida.
Aportando agora tal quadro normativo ao caso em apreço:
Encontra-se provado que:
- No exercício da sua actividade, a A. efectuou para a 1ª Ré vários trabalhos de pavimentações betuminosas numa obra da Estação de Transferência de Resíduos Sólidos Urbanos sita em Sobral de Monte Agraço;
- Tais trabalhos foram adjudicados, primeiro no seguimento de um convite feito pela 1ª Ré à A. e, posteriormente pela elaboração de uma proposta de preços enviada pela A. à 1ª Ré em 19 de Novembro de 2001, da qual constava que o pagamento dos trabalhos adjudicados seria a 30 dias da data da factura (conforme aditamento operado no antecedente ponto III.2.3.);
- Esta proposta foi aceite através de carta datada de 27 de Novembro de 2001;
- O valor dos trabalhos efectuados pela A. e não pagos pela 1ª Ré totalizam € 76.902,56.
Ou seja, a obrigação em referência, quanto ao seu cumprimento, reveste a natureza de obrigação a prazo, dependendo o respectivo vencimento da verificação do decurso de um lapso de tempo (a 30 dias da data da factura), e não apenas de interpelação, ainda que judicial.
Assim, como a A. não emitiu qualquer factura, conforme resulta da declaração confessória ínsita no requerimento apresentado pela A. a fls. 359 (original), aquando da propositura da acção, a obrigação ainda não se encontrava vencida, o que não, impedindo a condenação da Ré a satisfazer a prestação (no âmbito da previsão legal referente às acções de condenação in futurum constante do citado artº. 662º do Cód. Proc. Civil), conduz, todavia, a que não sejam devidos juros de mora a partir da citação (o que consubstanciaria, in casu, uma situação de exigibilidade antecipada não prevista na lei), mas apenas decorrido o prazo de 30 dias após emissão das facturas, conforme convencionado entre a A. e a 1ª Ré.
Do que fica dito, conclui-se que assiste razão às Apelantes quando sustentam que a obrigação da 1ª Ré não se pode considerar vencida a partir da citação, não sendo devidos juros de mora a partir da mesma, pelo que, nesta parte, o recurso obtém procedência.

4. Da verificação cumulativa dos diversos pressupostos requeridos pela impugnação pauliana no caso sub judicio
4.1. Enquadramento preliminar
Com a presente acção, a A. visa impugnar o contrato de compra e venda pelo qual a 1ª Ré, S..., S.A., vendeu à 2ª Ré, J..., Lda., por escritura pública celebrada em 03.04.2002, o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área de dois mil cento e um metros quadrados e dez decímetros, situado em S. Jorge de Arroios, na Avenida ..., ..., freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, do qual era proprietária.
Como bem observa ANTUNES VARELA, «a lei não se limita a conceder ao credor o direito de promover a execução forçada da prestação no caso de o devedor não cumprir voluntariamente e de se ressarcir à custa do património do obrigado, se a realização coactiva da prestação não for possível», mas «concede-lhe ainda os meios necessários para o credor defender a sua posição contra os actos praticados pelo devedor, capazes de prejudicarem a garantia patrimonial da obrigação, diminuindo a consistência prática do seu direito de agressão sobre os bens do obrigado» (in «Das Obrigações em Geral», vol. II, 4ª ed., p. 421).
Ora, um dos instrumentos de tutela predispostos na lei para a preservação da consistência prática do direito de crédito é precisamente a chamada impugnação pauliana, a qual confere ao credor o poder de reagir contra os actos praticados pelo devedor (ainda que válidos) que envolvam diminuição da garantia patrimonial, seja porque diminuam o activo, seja porque aumentem o passivo do património do devedor (cfr. ANTUNES VARELA., ob. e vol. cit., p. 422 e 434).
E, como é sabido, a impugnação pauliana requer a verificação cumulativa de diversos pressupostos, enunciados nos artºs. 610º e 612º do Cód. Civil (que constituem os elementos integradores da causa de pedir complexa da acção por que for deduzida).
Tais pressupostos são os seguintes:
(i) A existência de determinado crédito: exige o artº. 610º do Cód. Civil que o impugnante seja titular de um direito de crédito, não sendo indispensável, todavia, que ele se encontre vencido, como se extrai do disposto no artº. 614º, nº 1, do mesmo Código;
(ii) A verificação do acto impugnado: ao credor impugnante incumbe alegar e provar o acto impugnado, que, para ser relevante, nos termos do artº. 610º, proémio, do Cód. Civil, tem de envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, seja por redução do activo do devedor, seja por aumento do seu passivo;
(iii) Impossibilidade ou Agravamento para a satisfação integral do crédito: o artº. 610º, al. b), do Cód. Civil exige também, como requisito geral, que, do acto impugnado, resulte a impossibilidade prática da satisfação integral do crédito do impugnante ou o agravamento dessa impossibilidade, ainda que não se trate de uma situação de pura insolvência;
(iv) Nexo de causalidade entre o acto impugnado e a impossibilidade ou agravamento: do artº. 610º, al. b), do Cód. Civil decorre que tem de se verificar um nexo de causalidade entre o acto impugnado e a situação patrimonial do devedor, traduzida em impossibilidade ou agravamento para a satisfação do crédito, sendo que, em regra, aquele nexo resultará precípuo do próprio acto impugnado, devendo atender-se à data deste para determinar essa impossibilidade ou o seu agravamento;
(v) Má fé do devedor e do terceiro, em caso de acto oneroso posterior ao crédito: sendo o acto impugnado, posterior ao crédito, oneroso, o credor terá de demonstrar a má fé do devedor e do terceiro adquirente, considerando, o nº 2 do artº. 612º do Cód. Civil, má fé a consciência do prejuízo que o acto oneroso causa ao credor.
Assentes tais premissas, vejamos agora se os requisitos acabados de enunciar concorrem no caso dos autos.
4.2. Da procedência da impugnação pauliana por preenchimento de tais pressupostos no caso sub judice
Procedendo, então, à análise da matéria factual provada na óptica do preenchimento de tais pressupostos no caso sub judice, temos que:
Conforme precedentemente analisado sob o ponto III.3., não constando já o direito de crédito de título executivo, foi invocado, em cumulação com a própria impugnação pauliana, vindo a ser reconhecido, na sentença recorrida, o crédito da A. sobre a 1ª Ré, no montante de € 76.902,56.
Mais resultou provada:
- a anterioridade desse crédito (respeitante a trabalhos realizados pela A., primeiro no seguimento de um convite feito pela 1ª Ré à A. e, posteriormente, pela elaboração de uma proposta de preços enviada pela A. à 1ª Ré em 19 de Novembro de 2001, aceite através de carta datada de 27 de Novembro de 2001) relativamente ao acto impugnado, venda pela 1ª Ré, S..., S.A., à 2ª Ré, J...., Lda., por escritura pública celebrada em 03.04.2002, do prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área de dois mil cento e um metros quadrados e dez decímetros, situado em S. Jorge de Arroios, na Avenida ...., ...., freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa;
- e a relevância de tal acto, por envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, por redução do activo do devedor, tanto mais que a 1ª Ré não possui outros bens que possibilitem o pagamento do valor dos trabalhos efectuados pela A. (conforme ponto 1.16. dos Factos Provados).
Verifica-se, igualmente, que daquela venda (acto impugnado) resulta a impossibilidade prática da satisfação integral do crédito da A. / impugnante ou, pelo menos, o agravamento dessa impossibilidade decorrente da conversão de um bem imóvel em dinheiro de montante equivalente, já que o dinheiro constitui, por natureza, um valor facilmente dissipável e, por isso, subtraído ao controlo dos credores. Como impressivamente observa VAZ SERRA, «a venda, substituindo à coisa vendida o preço, causa um prejuízo aos credores, o qual consiste na diminuição ou inutilização prática do seu direito de execução» (Anotação ao Ac. do S.T.J. de 30.01.1968, in R.L.J., ano 102º, p. 6).
Acresce, ainda neste particular, que, dada a dificuldade prática para o credor de provar que o devedor não dispõe de bens penhoráveis, como resultaria, aliás, das regras gerais do ónus da prova, o artº. 611º do Cód. Civil veio estabelecer uma norma específica de repartição desse ónus, nos termos da qual sempre caberia ao devedor (1ª Ré / alienante) ou ao terceiro adquirente (2ª Ré) provar que o devedor tem bens penhoráveis de igual ou maior valor, o que, no caso em apreço, não lograram fazer.
Decorre, outrossim, da data do acto impugnado a precipuidade do nexo de causalidade entre o mesmo e a situação patrimonial do devedor, traduzida na referida impossibilidade ou agravamento para a satisfação do crédito.
Por último, dado que o acto impugnado, posterior ao crédito da A. / impugnante, é oneroso (trata-se de um contrato de compra e venda), a impugnação só procederá se se puder concluir que ambas as Rés (tanto a alienante como a adquirente do imóvel em questão) agiram de má fé.
Como referimos, a má fé relevante para efeitos da impugnação pauliana dirigida a actos onerosos, posteriores à constituição do crédito, consistirá na consciência do prejuízo – por banda do devedor e do terceiro adquirente – que o acto impugnado causa ao credor, sendo que:
- por um lado, a nossa lei não exige, neste plano da má fé, a concertação do devedor e do terceiro adquirente, bastando-se com a consciência do prejuízo por parte de cada um deles;
- por outro, exige-se, em princípio, a consciência ou previsão efectiva do prejuízo, sendo tal conhecimento, na maioria dos casos, provado a partir de factos indiciários que, segundo a experiência comum, permitam induzir esse conhecimento.
No caso dos autos, apurou-se que:
- A sociedade adquirente, 2ª Ré, tem como únicos sócios e gerentes B... e C...., os quais aí detêm cada um deles uma quota de € 2.500,00 no capital social de € 5.000,00;
- C..., B... e D... são os únicos administradores da 1ª Ré, S...;
- As sociedades rés obrigam-se, respectivamente, com a assinatura de um gerente, relativamente à 1ª Ré, e de um membro do Conselho de Administração, relativamente à 2ª Ré;
- A alienação do imóvel foi efectuada pelo preço de € 374.098,42, sendo o valor patrimonial do prédio de € 441.672,81;
- Ao efectuarem a alienação do imóvel as Rés sabiam que estavam a impossibilitar a A. de ressarcir o seu crédito.
(Cfr. pontos 1.9. a 1.12.,1.17. e 1.20. dos Factos Provados).
À luz de quanto precede, tem de concluir-se que as Rés tiveram plena consciência do prejuízo causado à A. pelo acto ora impugnado. Agiram, pois, de má fé, nos termos do nº 2 do cit. artº. 612º e para os efeitos previstos no nº 1 do mesmo preceito.
Mostram-se, assim, verificados, no caso sub judice, todos os requisitos legais de que depende a procedência da impugnação pauliana, pelo que improcede a argumentação expendida pelas Apelantes no tocante à improcedência da mesma pretensão.
IV. Decisão
Posto o que precede, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
- determinar o aditamento ao factualismo provado consignado sob o ponto 1.5. do seguinte inciso «da qual constava que o pagamento dos trabalhos adjudicados seria a 30 dias da data da factura»;
- revogar parcialmente a sentença sob recurso, no segmento em que condenou a 1ª Ré, "S...", a pagar à A., os juros de mora vencidos e vincendos (sobre a quantia de € 76.902,56), desde a citação da 1ª Ré, em 09/04/03, até integral pagamento, à taxa de 12% até 01/10/04 e, desde então, às taxas que resultem da aplicação da Portaria nº 597/05, de 19/7, consignando-se como momento próprio da satisfação da prestação o prazo de 30 dias a contar da emissão das facturas;
- no mais, manter a decisão sob recurso.
Custas pelas Apelantes e pela Apelada, na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2009
(Isabel Canadas)
(Sousa Pinto)
(Jorge Vilaça)