Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1210/14.9T8LSB.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: NOTÁRIO
IMPEDIMENTOS LEGAIS
NULIDADE DE ACTO NOTARIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: –  O artigo 5 do Código do Notariado, consagra os impedimentos legais dos notários e oficiais públicos, sancionados com a nulidade do acto praticado nos termos do artº 71 nº1 do mesmo Código.
–  Está legalmente impedida de realizar o acto notarial, notária accionista e administradora de sociedade anónima, outorgante na referida escritura e nela representada pelo seu filho, presidente do respectivo Conselho de Administração, por se entender ser beneficiária, ainda que indirecta, do acto, quer ela própria quer o seu parente em linha recta.
– A nulidade do instrumento público acarreta normalmente a invalidade do acto ou negócio que nele se contém, que fica assim privado dos efeitos jurídicos que visava.
– No entanto, nem sempre a forma autêntica é exigida para a validade do negócio jurídico, vigorando em princípio a liberdade de forma (artº 219 do C.C.) pelo que, nestes casos, a invalidade do instrumento não acarreta a invalidade do negócio que lhe subjaz.
– Do teor das disposições conjugadas do artº 71 nº1 do C. do Notariado e 369 do C.C. extrai-se que o legislador consignou a nulidade do acto notarial nos casos de impedimento do notário, deixando pois em consequência de existir documento autêntico, munido de especial força probatória, relativamente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, mas tal nulidade do acto notarial não implica a nulidade do acto ou negócio nele contido.
– Nestes casos, o documento lavrado por oficial público incompetente ou impedido, ou sem a observância das formalidades legalmente prescritas, desde que assinado pelas partes, tem a mesma eficácia probatória do documento particular e vale como tal.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


M..., portadora do bilhete de identidade ..., NIF ..., residente ..., intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra A..., titular do cartão de cidadão n.º ..., com morada ... e J... S.A., sociedade comercial anónima com o número de identificação de pessoa colectiva ..., com sede ... peticionando:
“ (…)
a)–  Ser o contrato de cessão de posição contratual outorgado pela Autora e pelo 1.º Réu a favor da 2.ª Ré (…) declarado nulo, com as legais consequências;
b)–  Ser ordenado o cancelamento da inscrição da cessão do contrato-promessa de compra e venda no Registo Predial referente ao respectivo imóvel”.

Para o efeito a A. alegou, em síntese, que:
–  mediante escritura de cessão da posição contratual de 3 de Julho de 2014, juntamente com o 1.ºR cedeu a posição que detinha, na qualidade de promitente compradora do prédio sito na Rua da A..., n.ºs ...-... e Rua da P..., n.º ...-B, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de ... ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... com a licença de utilização n.º .../... emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 10 de Dezembro de 1996;
–  tal escritura foi celebrada pela Dr.ª J..., que é mãe de A... e que interveio em tal escritura na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da sociedade aqui 2.ª Ré,
–  a Sr.ª Notária encontrava-se impedida para celebrar a referida escritura, conforme o disposto no artigo 5.º do Código Notariado (CN), o que determina a nulidade do acto, conforme dispõe o artigo 71.º do mesmo diploma;
Regularmente citados, os RR contestaram, excepcionando a preterição de litisconsórcio activo, por a A se apresentar a litigar desacompanhada do seu marido e impugnando a factualidade alegada pela A., essencialmente no que respeita ao modo como se desenrolaram as negociações, bem como impugnando juridicamente a necessidade de formalização da cessão, por via de escritura, mais tendo invocado o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil (CC), no sentido de que, em seu entender – mesmo a verificar-se tal impedimento – tal não determinará a afectação do negócio jurídico subjacente ali expresso.

Invocaram ainda que a A confirmou o negócio ao receber, em parte, o preço, em 29 de Julho de 2014 (50.000€) e em 6 de Agosto de 2014 (50.000€), bem como o abuso de direito da autora, para os efeitos do artigo 334.º do CC, na medida em que deu causa ao vício de forma verificado, sabendo muitos meses antes da celebração da escritura que o Presidente do Conselho de Administração da 2.ª R., era filho da Sr.ª Notária.

A A deduziu resposta às excepções, alegando o falecimento do seu marido em momento anterior ao da propositura da acção, requerendo a intervenção dos demais herdeiros e impugnando a existência de abuso de direito.

Foi admitida a requerida intervenção de terceiros.

Realizada audiência prévia, saneado o processo e realizado julgamento, proferiu-se sentença nos termos da qual o tribunal recorrido, julgou a acção procedente e, consequentemente decidiu:
“a)–  declaro nula a escritura de cessão da posição contratual de 15 de Julho de 2014, mediante a qual a A, juntamente com o 1.ºR, cedeu a posição que detinha, na qualidade de promitente compradora do prédio sito na Rua da A..., n.ºs ...-... e Rua da P..., n.º ...-B, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de ... ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com a licença de utilização n.º .../... emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 10 de Dezembro de 1996;
b)–  determino a comunicação da presente decisão, após trânsito, à competente Conservatória do Registo Predial de Lisboa, por forma a que se proceda ao registo do decidido.”

Não conformado com esta decisão, impetrou o R. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1.– A cessão da posição contratual sub judice foi celebrada por escritura pública lavrada pela Notária J..., accionista da cessionária;
2.– Outorgou em tal escritura como representante da sociedade anónima cessionária o filho da referida Notária, administrador da mesma.
3.– Nos termos do n.º 1 do art.º 71.º é nulo o acto lavrado por notário legalmente impedido.
4.– Os n.ºs 1 e 2 do art.º 5.º do Código do Notariado elencam as causas de impedimento dos notários.
5.– No entanto o n.º 3 desse mesmo art.º 5.º excepciona de tais impedimentos os casos em que seja parte uma sociedade anónima de que o próprio notário, seu cônjuge, parente ou afim na linha, em 2.º grau da linha colateral, sejam sócios.
6.– Por isso, sendo a cessionária uma sociedade anónima, não estava a referida Notária impedida de lavrar a escritura de cessão da posição contratual sub judice pelo facto de ser accionista da mesma e o respectivo representante na escritura em causa ser seu filho.
7.– Daí que a escritura de cessão da posição contratual sub judice não enferme de qualquer vício maxime de nulidade.
8.– Ao assim não entender violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação, o n.º 1 do art.º 71.º e o n.º 3 do art.º 5.º do Código do Notariado.
9.– Nos termos do art.º 294.º do Código Civil os negócios celebrados contra disposição legal imperativa, como, in casu, a douta sentença recorrida entendeu verificar-se, são nulas “salvo no caso em que outra solução resulte da lei”.
10.–  O n.º 1 do art.º 71.º do Código do Notariado determina que o acto lavrado por notário legalmente impedido, como a douta sentença recorrida entende ser o caso, “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art.º 369.º do Código Civil”.
11.– Por isso a escritura de cessão da posição contratual sub judice, se a notária que a lavrou estivesse impedida de a fazer, a única consequência seria a mesma perder a força de documento autêntico, mas o acto de cessão da posição contratual não era afectado em si mesmo.
12.– De facto não ficaria minimamente afectada a materialidade e validade do negócio jurídico de cessão da posição contratual passando a escritura a valer como documento particular, porquanto a intervenção da notária não confere validade substancial ao negócio, mas apenas lhe atribui fé pública.
13.– Ao assim não entender, violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação, o n.º 1 do art.º 71.º do Código do Notariado e o art.º 294.º, n.º 2 do art.º 369.º do Código Civil.
14.– A forma de transmissão por acto entre vivos dos direitos e obrigações das partes define-se em função do negócio que serve de base à cessão (Código Civil, art.º 425.º).
15.– A cessão da posição contratual sub judice reporta-se à posição de promitentes-compradores num contrato de promessa de compra e venda de um imóvel pelo que é apenas exigida a forma de documento particular (Código Civil, art.º 410.º, n.º 2).
16.– Por isso, mesmo considerando que a escritura sub judice, por ter perdido a fé pública que a intervenção notarial lhe atribuía, deixou de ser um documento autêntico, passou a assumir a forma de um documento particular, forma esta que é a legalmente exigida para a cessão da posição contratual num contrato promessa de compra e venda de um imóvel, como é o caso.
17.–  Mesmo no caso da cessão da posição contratual estar ferida de nulidade, dado que o documento de cessão tem os elementos essenciais de substância – vontade de ceder e de adquirir, objecto, preço, condições de pagamento – é de supor que os cedentes e cessionária celebrariam o contrato sub judice se tivessem previsto a sua invalidade.
18.– Ao assim não entender, violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação, o art.º 410.º, n.º 2, o art.º 425.º e o art.º 293.º do Código Civil.
19.–  Posteriormente à escritura sub judice, concretamente em 26 de Setembro de 2014, entre o cedente A... e a cessionária sociedade foi celebrado perante a Notária M... uma escritura pública em que o primeiro voltou a declarar a sua vontade de ceder a sua posição contratual no contrato promessa sub judice à segunda e esta a sua vontade de assumir tal posição nesse contrato nos precisos termos em que a haviam feito na escritura sub judice.
20.–  Este acto, em si mesmo sempre faria extinguir parcialmente o efeito jurídico pretendido pela Autora ora Recorrida na presente acção – declaração da nulidade da cessão da posição contratual na parte realizada pelo Réu e ora Recorrente A..., assumindo por isso a qualidade de uma excepção peremptória e não de confirmação de um acto nulo, como pretende a douta sentença recorrida, excepção essa que foi tempestivamente deduzida.
21.– Ao assim não entender, violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação, o art.º 224.º e 232.º do Código Civil e o n.º 3 do art.º 576.º e n.º 2 do art.º 608.º do Código do Processo Civil.
22.–  Por isso, sempre e em qualquer circunstância nunca a cessão da posição contratual feita pelo Recorrente A... à Recorrente sociedade podia ser declarado nula porquanto ambos reiteraram por escritura pública a sua vontade de um ceder e outra adquirir a posição contratual daquele no contrato promessa sub judice.
23.– A escritura sub judice foi precedida de um “Acordo de Vontades” celebrado em 3 de Julho de 2014; a Autora ora Recorrida recebeu em 6 de Agosto de 2014 parte do valor da cessão que apenas lhe ser devido em 31 de Dezembro de 2014; outorgou procuração a favor de um mandatário em 9 de Setembro de 2014 e intentou a presente acção em 25 de Setembro de 2014; e sabia há meses que o outro outorgante na escritura de cessão da posição contratual em representação da cessionária era filho da Notária que lavrou a escritura, facto que invoca na presente acção como fundamento da declaração de nulidade da mesma.
24.– Ao assim agir, excedeu claramente a Recorrida os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes que devem presidir ao exercício de qualquer direito, defraudou as legítimas expectativas que havia criado na cessionária e no outro cedente e a confiança que estes nela depositaram, quer nas negociações quer na celebração do negócio jurídico sub judice.
25.– No que respeita ao Recorrente A..., a propositura da presente acção pela Recorrida integra uma tentativa de violação da respectiva vontade contratual.
26.– Ao assim não entender, violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação, o art.º 334.º do Código Civil.
27.– Ao declarar, embora erradamente, a nulidade da cessão da posição contratual sub judice, deveria o Tribunal a quo determinar a restituição pela Recorrida à Recorrente sociedade dos valores que desta recebeu em cumprimento de tal cessão – 100.000,00 Euros.
28.– Ao não o fazer, embora dos autos constem de forma inequívoca que a Recorrida recebeu da Recorrente sociedade tal valor, violou a douta sentença recorrida o n.º 1 do art.º 289.º do Código Civil.
29.– Ao não conhecer desta questão que estava obrigada a conhecer, é a douta sentença recorrida nula atento o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do Código do Processo Civil.
Termos em que e nos demais que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogada a douta sentença recorrida com o que, uma vez mais, se fará a costumada JUSTIÇA”
Pela A. foram interpostas contra alegações, constando das suas conclusões o seguinte:
“1.– A notária estava impedida de realizar a escritura de cessão da posição contratual sub judice porque tinha um interesse directo no negócio e consequentemente violou a proibição legal do artigo 72º do Código do Notariado, que determina que é nulo o acto lavrado por funcionário (…) legalmente impedido.
2.– A referida notária estava legalmente impedida porque nos termos do art. 5º do Código do Notariado ”o notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge, ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2º grau da linha colateral”.
3.– No acto sub judice interveio uma sociedade anónima como cessionária, todavia, esta sociedade, para além de ter como accionistas e administradores a própria notária e seus filhos, foi chamada apenas para servir de testa-de-ferro no negócio.
4.– O administrador que assinou a escritura de cessão da posição contratual tinha apenas um conhecimento difuso do negócio, o que, pelas regras da experiência comum, é incompatível com um negócio desta natureza.
5.– A notária trocou intensa correspondência com o Recorrente A... sobre o negócio, em que o assessorou nos dias que o antecederam, em violação do dever de isenção e equidistância perante as partes envolvidas.
6.– A forma solene convencionada pelas partes para um negócio que por lei admite liberdade de forma, uma vez convencionada, passa a ser a forma exigida para validade formal e substancial do negócio.
7.– Não há abuso do direito, quando a Recorrida recorre aos tribunais para declaração de nulidade do acto de cessação da posição contratual feito por notária legalmente impedida em virtude da violação designadamente do princípio de integridade, legalidade, isenção, equidistância e independência em relação às partes.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso interposto pelos Recorrentes ser considerado improcedente e a douta sentença confirmada, por ser conforme o direito e a justiça.”

QUESTÕES A DECIDIR.
Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, a única questão a decidir que delimita o objecto deste recurso, consiste em apurar:
a)– Se a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia por não ter determinado a restituição do recebido pela A. a título de sinal pela realização do negócio, cuja nulidade é invocada.
b)– Se existia impedimento legal à realização da escritura pública pela notária J...;
c)– Se o impedimento da notária afecta a validade substancial do negócio.
d)– Se a A. actua em abuso de direito, por ter recebido parte do preço da cessão de posição contratual e confirmado o negócio.

Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
“Factos considerados assentes na Audiência Prévia, i. é, factos já considerados assentes por acordo e por documentos, em momento anterior ao julgamento
1– Em 6 de maio de 2013 e na qualidade de promitentes compradores, a autora M... e o réu A... celebraram um contrato promessa de compra e venda relativamente ao prédio urbano sito na Rua da A..., n.ºs ...-... e Rua da P..., n.º ...-B, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de ... ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com a licença de utilização n.º .../... emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 10 de Dezembro de 1996, conforme doc. n.º 1 junto com a p.i. [Facto provado A)].
2– Com registo de aquisição a favor do proprietário, e promitente vendedor, Fundo ..., gerido pelo B... S.A. (actualmente I... S.A.), pela Ap. 43 de 2003/06/04; tal contrato promessa foi objecto de registo na Conservatória do Registo Predial de Lisboa pela Ap. 2... de 2014/07/09, conforme doc. n.º 2 junto com a p.i. [e ainda doc. de fls. 265 a 268]. [Facto provado B)].
3– Em 28 de Junho de 2013, os referidos outorgantes fizeram um aditamento ao contrato promessa identificado em A) - cujo teor é o que consta do doc. n.º 3 junto com a p.i. - nos termos do qual foi efectivada a transferência da posse do imóvel em causa para os promitentes-compradores, a autora e o réu A.... [Facto provado C)].
4– Por deliberação, de 20 de maio de 2014, da assembleia geral da Associação Crescemos Juntos (“ACJ”), Instituição Particular de Solidariedade Social, J... foi eleita presidente da respectiva direcção, conforme doc. n.º 5 junto com a p.i.. [Facto provado D)].
5– Em 3 de Julho de 2014, entre a autora e o réu A..., como Primeiros Outorgantes, e J..., como Segunda Outorgante, foi celebrado o acordo constante do doc. n.º 7 junto com a p.i. [Facto provado E)].
6– Em 15 de Julho de 2014, a autora e o réu A... outorgaram a escritura pública - cuja cópia constitui o doc. n.º 8 junto com a p.i. - pela qual cederam a posição contratual que detinham no aludido contrato promessa de compra e venda à ré J... S.A., tendo esta sociedade sido representada na mesma escritura por A..., na qualidade de presidente do conselho de administração da ré sociedade. [Facto provado F)].
7– Esta escritura pública foi lavrada no Cartório Notarial de J..., pela respectiva notária, J... [Facto provado G)].
8– A referida notária é accionista e administradora da ré J... S.A., conforme doc. n.º 9 junto com a p.i.. [Facto provado H)].
9– A... é filho de J..., conforme doc. n.º 10 junto com a p.i.. [Facto provado I)].
10– Em 16 de Julho de 2014, a ré sociedade celebrou com a I... um aditamento ao aludido contrato promessa, conforme doc. n.º 9 junto com a contestação. [Facto provado J)].
11– Do preço global de € 300.000,00 a autora tinha a receber € 150.000,00, correspondente à metade dela e marido na posição contratual em causa, dos quais recebeu, da ré sociedade, em 29 de Julho de 2014, € 50.000,00, conforme cópia do respectivo cheque que constitui o doc. n.º 4 junto com a contestação, e emitiu nessa data a declaração constante do doc. n.º 5 sobre esse recebimento. [Facto provado K)].
12– Em 6 de agosto de 2014, a autora recebeu, também por conta da sua quota-parte no preço, o valor de € 50.000,00, conforme cópia do respectivo cheque que constitui o doc. n.º 6 junto com a contestação, e emitiu a declaração constante do doc. n.º 7 junto com a contestação, onde reconhece ser tal pagamento antecipado, “(…) a pedido da Declarante (cedente) e por motivos de ordem pessoal da mesma, assumindo ela por isso e desde já, os custos financeiros que a referida sociedade suporta em virtude do pagamento antecipado, e que serão deduzidos no pagamento da 3ª e última prestação acordada.” [Facto provado L)].
13– Em 26 de Setembro de 2014, os réus A... e J... S.A., esta representada na mesma escritura por A..., na qualidade de presidente do seu conselho de administração, celebraram entre si a escritura pública cuja cópia constitui o doc. n.º 8 junto com a contestação, denominada de “Confirmação de vontades”. [Facto provado M)].
Factos provados, na sequência de julgamento
14)– Com a celebração do contrato promessa referido em A), os promitentes-compradores, a autora e o réu A..., entregaram ao promitente vendedor, a título de sinal, a quantia de € 300.000,00.
(motivação: exame de doc. de fls. depoimentos de parte e prova testemunhal, nos moldes infra explicitados)
15)– Em 1 de Setembro de 2013, a autora e o réu A... celebraram um contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional com a Associação Crescemos Juntos (“ACJ”), Instituição Particular de Solidariedade Social, cuja cópia constitui o doc. n.º 4 junto com a p.i., passando, desde então, a ACJ a funcionar no imóvel ali identificado.)
16)– Em 1 de Julho de 2014, a autora e o réu A... enviaram à presidente da direcção da ACJ, J..., uma proposta para compra do prédio urbano identificado em A), conforme doc. n.º 6 junto com a p.i., onde era proposta a cessão da posição dos mesmos no aludido contrato promessa de compra e venda pelo valor de € 300.000,00, que seria pago até 31 de Dezembro de 2014.
(motivação: depoimento de parte do 1.º R)
17)– Tal proposta foi aceite, tendo levado à celebração do acordo referido em E).
18)– Conforme doc. n.º 1 junto com a contestação, no dia 1 de Julho de 2014, por correio electrónico das 17,30 h, o réu A... enviou a J... a proposta cuja cópia constitui o doc. n.º 6 junto com a p.i., solicitando a opinião desta.
(motivação: depoimento de parte do 1.º R)
19)– Nesse mesmo dia, pelas 17,49 h, J... respondeu nos termos que constam do doc. n.º 1 junto com a contestação, dizendo, designadamente que “o global está aceite, como já havia informado".
(motivação: depoimento de parte do 1.º R e depoimento de J...)
20)– No dia 2 de Julho de 2014, em correio electrónico das 12,31 h, conforme doc. n.º 2 junto com a contestação, o réu A..., com a mensagem “Veja o que acha sff. Depois diga-me em que nome é que quer que mande as coisas para o BPN sff”, enviou a J..., como a "minuta do nosso contrato", o anexo respectivo ao doc. n.º 2.
(motivação: depoimento de parte do 1.º R e depoimento de J...)
21)– No dia 2 de Julho de 2014, às 14,38 h, o réu A... enviou à autora e a J... o correio electrónico e anexo cujas cópias constituem o doc. n.º 3 junto com a contestação.
(motivação: depoimento de parte do 1.º R e depoimento de J...)
22)– Vários meses antes da celebração da escritura referida em F), a autora e o réu A... já sabiam que o presidente do conselho de administração da ré sociedade era filho de J....
(motivação: depoimento de parte da A)

Factos não provados
1)– Desde o princípio de Julho de 2014, ocorreram negociações entre a ré sociedade, a autora, o réu A... e a sociedade I... S.A., com vista a obter o consentimento desta para a referida cessão da posição contratual.
2)– Os réus e a sociedade I... tinham apresentado à autora a sugestão de formalizarem o acordo alcançado apenas num escrito particular e no qual interviesse também a mesma I... S.A., conforme doc. 10 junto com a contestação.
3)– Contudo, a autora, dizendo ser o preço muito elevado e ficar em dívida, e ter mais de 70 anos de idade, solicitou que fosse efectuada uma escritura onde constasse o acordo alcançado, o que os réus e a I... aceitaram, por nada terem visto de prejudicial, nessa formalização, ao negócio efectuado e por, assim, ficarem sempre com um escrito esclarecedor e probatório dos respectivos direitos e deveres.
A demais factualidade não expressamente enumerada supra constitui matéria conclusiva, jurídica ou irrelevante para a boa decisão da causa, que não admite decisão nesta sede.”

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Não sendo posta em crise a factualidade adquirida pelo tribunal recorrido, insurge-se o recorrente contra a decisão que declarou nula a escritura de cessão de posição contratual celebrada pela notária J..., esgrimindo em síntese os seguintes argumentos:
– sendo a cessionária uma sociedade anónima, não estava a referida Notária impedida de lavrar a escritura de cessão da posição contratual sub judice pelo facto de ser accionista da mesma e o respectivo representante na escritura em causa ser seu filho;
– se a notária que a lavrou estivesse impedida de a fazer, a única consequência seria a mesma perder a força de documento autêntico, mas o acto de cessão da posição contratual não era afectado em si mesmo;
–  mesmo considerando que a escritura sub judice, por ter perdido a fé pública que a intervenção notarial lhe atribuía, deixou de ser um documento autêntico, passou a assumir a forma de um documento particular, forma esta que é a legalmente exigida para a cessão da posição contratual num contrato promessa de compra e venda de um imóvel;
–  posteriormente à escritura sub judice, concretamente em 26 de Setembro de 2014, entre o cedente A... e a cessionária sociedade foi celebrado perante a Notária M... uma escritura pública em que o primeiro voltou a declarar a sua vontade de ceder a sua posição contratual no contrato promessa sub judice à segunda e esta a sua vontade de assumir tal posição nesse contrato nos precisos termos em que a haviam feito na escritura sub judice, pelo que este acto extinguiria parcialmente o efeito jurídico pretendido pela A. nesta acção;
–  a A. sabia à meses que o representante da 2ª R. na escritura era filho da notária, tendo recebido parte dos valores acordados pela cessão, actuando em abuso de direito;
–  o Tribunal a quo deveria ter determinado a restituição pela Recorrida à Recorrente sociedade dos valores que desta recebeu em cumprimento de tal cessão – 100.000,00 Euros, por força da nulidade do negócio, omitindo assim decisão que lhe cumpria proferir;
Passemos pois a apreciar as questões elencadas pela recorrente, nomeadamente apurando:
a)– Se a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia por não ter determinado a restituição do recebido pela A. a título de sinal pela realização do negócio, cuja nulidade é invocada.
Nas suas conclusões recursórias invoca o apelante a nulidade da decisão recorrida, alegando que decidindo pela nulidade do negócio, deveria a sentença ter determinado a restituição pela A. do recebido, incorrendo assim em omissão de pronúncia.
A respeito das nulidades da sentença, dispõe o artº 615 nº 1 do C.P.C. que esta enferma de nulidade, no que ao caso importa, quando:
“d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”
Tratam-se estes de vícios formais que respeitam aos limites da sentença (alíneas d) e e), cuja verificação afecta a sua validade.
A nulidade invocada está directamente relacionada com o artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste circunspecto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes.

A omissão de pronúncia como causa de nulidade da sentença, circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade esta distinta da invocação de um facto ou argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.

Com efeito, “o julgador não tem que analisar e apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Por isso, como se disse no acórdão desta secção de 23.6.2004 (6) não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.
(…)
A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões, para efeitos do disposto nos artigos 660, n.º 2 e 668, n.º 1, d), do CPC. A resposta tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as excepções invocadas pelo réu, o que vale por dizer que questões serão apenas, como se disse no já citado acórdão de 21.9.2005, "as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter." Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções (vide acórdãos deste tribunal de 7.4.2005 e de 14.4.2005)” - Ac. do S.T.J. de 29/11/2005, Proc. nº 05S2137.

No caso em apreço, a alegada nulidade por omissão de pronúncia reporta-se à restituição do recebido pela A., pelo negócio de cessão de posição contratual, cuja nulidade aqui peticiona.

Ora a decisão recorrida pronunciou-se expressamente sobre esta questão, nos seguintes termos:
“Finalmente, sempre se dirá que no caso não tem aplicação o douto Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/1995, de 28-03-1995 (Exmo. Senhor Conselheiro MIGUEL MONTENEGRO) que estabelece a seguinte Jurisprudência: “Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no n. 1 do artigo 289 do Código Civil.”
Com efeito, se, por um lado, a declaração de nulidade não resultou de conhecimento oficioso pelo Tribunal, por outro, em face dos fundamentos da declaração de nulidade, conclui-se que os autos não reúnem factos materiais com consistência bastante que nos permitam a identificação dos titulares da relação material. Daí que não se determine – oficiosamente – a restituição de quaisquer valores percebidos por força do contrato cuja declaração de nulidade foi requerida.”

Não existe pois a apontada nulidade da sentença, ocorrendo quanto muito erro de julgamento, que não é, consabidamente, fundamento de nulidade.

Não existindo a apontada nulidade, passemos ao cerne do recurso, mormente apurando se existia impedimento legal da Srª Notária relativamente à celebração da escritura e, existindo, quais os efeitos desse impedimento relativamente à validade do contrato, cuja nulidade é aqui peticionada.
b) Se existia impedimento legal à realização da escritura pública pela notária J...;
Decidindo:
Considerou a decisão impugnada a nulidade da escritura pública de cessão de posição contratual lavrada pela A. e pelos RR., por impedimento da notária que a lavrou, dadas as relações familiares existentes entre a referida notária e o presidente do Conselho de Administração da 2ª R., que outorgou nessa escritura na qualidade de representante da referida R., por violação do disposto nos artºs 5 nº1 e 72 do Código do Notariado.
Argumentou o tribunal recorrido citando Sofia Henriques, in O REGIME DE IMPEDIMENTOS E SUSPEIÇÕES DO NOTÁRIO NO ÂMBITO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO, disponível in Revista Julgar que “os Notários são oficiais públicos, que exercem em regime de profissão liberal, funções públicas e privadas, o que os obriga a especiais deveres de imparcialidade e isenção.” visando este impedimento legal “assegurar os deveres de isenção e imparcialidade e evitar os casos de abuso da função”, concluindo que estamos “perante norma imperativa, que determina ope legis a nulidade do acto”.
Ora, dispõe o artº 71 nº1 do C. do Notariado, que é nulo o acto lavrado por funcionário legalmente impedido.
Os casos de impedimento do notário estão previstos no artº 5 do C. do Notariado, dispondo este que
“1– O notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2.º grau da linha colateral.
2– O impedimento é extensivo aos actos cujas partes ou beneficiários tenham como procurador ou representante legal alguma das pessoas compreendidas no número anterior.
3– O notário pode intervir nos actos em que seja parte ou interessada uma sociedade por acções, de que ele ou as pessoas indicadas no n.º 1 sejam sócios, e nos actos em que seja parte ou interessada alguma pessoa colectiva de utilidade pública a cuja administração ele pertença.”

Alega o recorrente que esta norma não impede a realização de actos pelo notário quando seja parte uma sociedade por acções de que ele seja sócio, pelo que sendo a notária accionista da sociedade J... S.A., não estava impedida de celebrar a referida escritura não obstando a este entendimento o facto de o representante dessa firma e interveniente no acto, ser seu filho.
Não é este, no entanto, o sentido desta norma. Pode o Notário intervir em escrituras em que seja parte ou interessada uma sociedade por acções (anónima) de que seja sócio (accionista), desde que com observância do disposto no nº1, ou seja, desde que, em razão da sua qualidade de accionista, não seja beneficiário directo ou indirecto (nomeadamente por deter o controlo desta sociedade), do acto que se pretende abrangido pela forma pública, nem o sejam os demais parentes e afins indicados no nº1.

Ora, resultou provado que a referida notária para além de accionista, é administradora da ré J... S.A. [Facto provado 9].

Detendo a qualidade de accionista e administradora da referida sociedade, estava a Srª Notária impedida de lavrar a escritura em apreço, acrescendo a este impedimento o facto de o representante da referida sociedade (presidente do Conselho de Administração) ser seu filho, incluído pois no elenco dos descendentes em linha recta, referidos no nº1 da citada norma legal.

Dos factos provados, conforme refere a sentença recorrida, decorre ainda que a Srª Notária lavrou acordos respeitantes a este imóvel e à referida cessão, com a A. e o 1º R., actuando quer em seu nome, quer em nome da ora 2ª R.

Existia, assim, um impedimento legal à prática deste acto por parte da referida notária, baseado nos deveres de isenção, imparcialidade e fé pública, que o notário tem de observar.

Alega no entanto, a recorrente, que este impedimento, a existir, afecta apenas a fé pública do documento mas não a validade do negócio, que não necessita de qualquer forma especial, invocando o disposto nos artºs 71 nº1 do Código do Notariado, 294 e 369 nº2 do C.C., argumentação que não foi acolhida pelo tribunal recorrido.

Passemos assim à questão colocada pelo recorrente que se prende com os efeitos da nulidade do acto notarial.
c) Se o impedimento da notária afecta a validade substancial do negócio.
A nulidade decorrente de impedimento legal para a prática do acto por parte da notária, constitui uma nulidade absoluta do acto notarial e não de mera anulabilidade, não consentindo qualquer sanação do acto, conforme refere a decisão recorrida.
Com efeito, de acordo com “A.M. Borges Araújo, “Prática Notarial”, Almedina, 4ª ed. a págs. 162, “o sistema notarial assenta no princípio da taxatividade (numerus clausus) das causas geradoras de invalidade, daqui decorrendo que a nulidade só se verifica quando a lei expressamente a determine por ocorrer algum dos factos especialmente previstos na mesma lei como causa de invalidade.
(…)
Este princípio de taxatividade (…), corresponde a óbvias exigências do senso comum assim como a elementares necessidades de certeza e segurança da vida jurídica. Pense-se na infinidade e variedade de deveres que cingem o notário no exercício da sua função, o mesmo é que dizer na prática dos seus actos, e pense-se ainda no desigual relevo desse mesmos deveres.”
Justifica-se por outro lado, as gravosas consequências da nulidade do acto notarial, nestes casos taxativos, tendo em conta que se trata de oficial público no exercício das suas funções, merecedor de especial fé e confiança públicas.

Assim sendo, a lei notarial prevê apenas duas formas distintas para o suprimento de vícios determinantes de nulidade do acto notarial, uma que designou de sanação prevista para determinadas nulidades referidas nos artsº 70 e 71 nº3 do C. Notariado e de revalidação prevista no artº 73 do mesmo diploma legal.

A nulidade em apreço não é passível de sanação notarial, porque não enquadrável no disposto no artº 71 nº3 acima referido, nem na excepção prevista na parte final do  nº1 do referido artigo.

Com efeito, dispõe este preceito que “1 - É nulo o acto lavrado por funcionário incompetente, em razão da matéria ou do lugar, ou por funcionário legalmente impedido, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil.”

Versa por sua vez este preceito legal sobre a “Competência da autoridade ou oficial público”, estabelecendo que
“1.– O documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar.
2.– Considera-se, porém, exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respectivas funções, a não ser que os intervenientes ou beneficiários conhecessem, no momento da sua feitura, a falsa qualidade da autoridade ou oficial público, a sua incompetência ou a irregularidade da sua investidura.”
A excepção consignada no nº2 deste artº 369 acima transcrito, reporta-se à competência do oficial público e não aos impedimentos legais, que constituem casos de nulidade absoluta do acto.
Assim, o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público não estiver legalmente impedido de o lavrar.
Por outro lado, a nulidade do instrumento público acarreta normalmente a invalidade do acto ou negócio que nele se contém, que fica assim privado dos efeitos jurídicos que visava.
No entanto, nem sempre a forma autêntica é exigida para a validade do negócio jurídico, vigorando em princípio a liberdade de forma (artº 219 do C.C.).
Nestes casos, a invalidade do instrumento não acarreta a invalidade do negócio que lhe subjaz.
A questão coloca-se com mais acuidade, nos casos em que está prevista a forma escrita ou em que as partes acordaram numa forma especial para a declaração, presumindo-se então que “as partes se não querem vincular senão pela forma convencionada.” (artº 223 do C.C.)
A este respeito entendeu a sentença sob recurso, citando um acórdão de 10/01/2017 da R. do Porto, que constituindo esta escritura violação de lei imperativa, “não se poderá deixar entrar pela janela aquilo que, manifestamente, o legislador não quis deixar entrar pela porta.”
Diga-se que o referido acórdão não visa, nem se pronuncia, sobre qualquer nulidade decorrente do impedimento do notário, mas antes sobre a invalidade decorrente da inserção numa escritura de partilhas de declaração diversa da vontade dos declarantes, que traduz uma desconformidade entre a declaração e a vontade real, efectuadas perante o notário, entendendo que não era possível a redução ou aproveitamento do negócio, por violadora de lei imperativa (quanto ao loteamento).
Há assim, que fazer apelo às disposições conjugadas do artº 71 nº1 do C. do Notariado e 369 do C.C. Destas extrai-se que o legislador consignou a nulidade do acto notarial nos casos de impedimento do notário, deixando, pois, em consequência, de existir documento autêntico munido de especial força probatória, relativamente aos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
No entanto, esta nulidade do acto notarial não implica, por si só, a nulidade do acto ou negócio nele contido.
É esta a solução mais consentânea com os fins visados por estas normas, sendo certo que os vícios notariais não se estendem à validade substantiva do negócio.
Deixando de existir documento autêntico nos termos do disposto no artº 369 nº1 do C.C., existe no entanto documento particular, subscrito e contendo as declarações dos nela intervenientes, sem que razões de peso existam para considerar a invalidade substancial, ou formal do acto, antes existindo razões para o seu aproveitamento.
Com efeito, no caso em apreço, reportando-se a cessão de posição contratual a contrato promessa de compra e venda de imóvel, a forma legalmente exigida é o documento escrito (artºs 410 e 425 nº1 do C.C.), forma essa que se mostra cumprida, sem que tenham sido alegados factos dos quais decorra a essencialidade da escritura em causa.  
Denote-se que a A., que interpõe esta acção, recebeu, quer nesta ocasião quer posteriormente, parte do preço da cessão vertida neste instrumento, pagamento por si aliás peticionado já após a outorga da referida escritura, constando o pagamento da demais parcela acordado, estando pois o negócio nos seus termos gerais, praticamente concluído.
Por noutro lado e como refere Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do Código Civil (Provas nº 69, in BMJ 111, págs. 102 e segs.), sendo ponderada a inclusão no código civil de preceito idêntico ao vigente nos sistemas francês e italiano, que consagra que o documento lavrado por oficial público incompetente ou impedido, ou sem a observância das formalidades legalmente prescritas, desde que assinado pelas partes, tem a mesma eficácia probatória do documento particular e vale como tal (artºs 2071 do C.C. italiano e 1318 do C.C. francês), foi decidido no sentido da desnecessidade de inclusão de disposição desse teor no nosso ordenamento civil, por resultar já dos princípios gerais que, se o documento exarado por oficial público não puder valer como autêntico, pode valer como documento particular. (neste sentido vidé ainda A.M. Borges Araújo, obra citada, págs 174 e segs. e Pinto Furtado, A Acta e o Instrumento Notarial, de documentação das reuniões de assembleia das sociedades comerciais, Revista de Dir. de Estudos Sociais, XXV, págs. 63 e segs.).
Assim sendo, conclui-se que o impedimento da notária que lavrou a escritura pública não afecta a validade substantiva ou formal do negócio de cessão de posição contratual em apreço, cuja nulidade é aqui invocada e peticionada.
A sentença recorrida, considerou e declarou “nula a escritura de cessão da posição contratual de 15 de Julho de 2014, mediante o qual a A, juntamente com o 1.ºR, cedeu a posição que detinha, na qualidade de promitente compradora do prédio sito na Rua da A..., n.ºs ...-... e Rua da P..., n.º ...-B, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de ... ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com a licença de utilização n.º .../96 emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 10 de Dezembro de 1996.”
No entanto, a nulidade do acto notarial, por impedimento legal do notário que lavrou a escritura, não implica nem equivale à nulidade automática do negócio jurídico de cessão da posição contratual, fim este visado e peticionado pela ora A., conforme acima referido.
Não existindo fundamentos, nem resultando da causa quaisquer factos que nos permitam declarar a nulidade do contrato de cessão de posição contratual outorgado pelos A. e RR., o pedido formulado na alínea A) e consequentemente o da alínea B), terá de improceder, considerando-se válido o contrato de cessão de posição contratual, mediante o qual a A. juntamente com o 1.ºR, cedeu a posição que detinha, na qualidade de promitente compradora do prédio sito na Rua da A..., n.ºs ...-... e Rua da P..., n.º ...-B, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de ... ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com a licença de utilização n.º .../96 emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 10 de Dezembro de 1996.
Prejudicados estão as demais questões suscitadas pelos recorrentes, face ao acima considerado.

DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar parcialmente procedente a apelação, pelo que, embora declarando nulo o acto notarial lavrado pela Srª Notária J..., em 15 de Julho de 2014, em que foram intervenientes a A. e os  RR., se absolve os mesmos dos pedidos formulados pela A., por tal nulidade não afectar a validade do negócio subjacente de cessão de posição contratual.
Custas pela apelada, por se considerar ter decaído na totalidade do recurso.



Lisboa 18/01/18



Cristina Neves           
Manuel Rodrigues                                  
Ana Paula A.A. Carvalho



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.

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