Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11509/16.4T8LSB.L1-4
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: PRINCÍPIO DE TRABALHO IGUAL SALÁRIO IGUAL
ENFERMEIRO
CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: O artigo 59º n.º1 al. a) da Constituição da República Portuguesa (CRP), dispõe que todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.

A igualdade substantiva de tratamento dos trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho (trabalho igual ou de valor igual), aferido pelos critérios da quantidade, natureza e qualidade, critérios objectivos e sufragados pela CRP, configura um direito de natureza análoga, que por força do disposto pelo art.º17º, é directamente aplicável, tal como os direitos liberdades e garantias, vinculando entidades públicas e privadas, cf. art.º 18º, ambos da CRP.

3º. Uma vez que as funções desempenhadas pelo Autor eram iguais às prestadas pelos seus colegas com contrato de trabalho em funções públicas, todos com a mesma carga horária, não existe qualquer fundamento para a diferenciação salarial verificada. Trata-se de uma situação de disparidade retributiva decorrente tão só da diversidade dos regimes legais aplicáveis, não obstante a reconhecida igualdade quanto à natureza, qualidade e quantidade do trabalho.

O Autor tem direito a receber a mesma retribuição que os enfermeiros com vínculo de emprego público com a mesma carga horário, devendo esse reposicionamento salarial ter efeitos a 01 de Janeiro de 2013.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:

AAA, residente na Rua Francisco de Holanda, n.º 47, r/esquerdo, 1600-088 Lisboa, com o patrocínio oficiosos do Ministério Público, intentou a presente acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, contra BBB,  E.P.E., com sede na Rua (…) Lisboa, pedindo:
a)- Seja a ré condenada a equiparar os vencimentos do autor, com os vencimentos auferidos pelos enfermeiros integrados na função pública desde 01 de Janeiro de 2013;
b)- Seja a ré condenada a pagar o montante 8.126,64 respeitante às diferenças salariais de retribuição base, férias e de Natal, desde 01.01.2013 até 30.04.2016; c) Seja a ré condenada a pagar ao autor juros vencidos e vincendos de mora à taxa legal de 4% sobre as quantias em dívida, computados os vencidos à data da petição inicial em € 540,59.

Alega que foi admitido ao serviço da ré em 21 de Agosto de 2006, para exercer as funções de enfermeiro, mediante a celebração de acordo escrito designado por contrato de trabalho a termo certo e a partir de 05 de Novembro de 2007 um contrato de trabalho por tempo indeterminado. Desde a primeira data que o autor exerce de forma ininterrupta as funções de enfermeiro, ultimamente no Hospital de ... .... ... Lisboa, num horário rotativo de trinta e cinco horas semanais e desde 01.01.2013 mediante a retribuição mensal de € 1.020,06, acrescida de € 4,27 de subsídio de alimentação diária. A Ré, desde essa mesma data, remunera os enfermeiros contratados em contrato de trabalho em funções públicas com a retribuição mensal de € 1.201,48, não tendo colocado o autor no índice 15 a que aquela corresponde. Durante os anos de 2013, 2014 e 2015, o autor exerceu as mesmas funções que aqueles enfermeiros, no mesmo horário e com a mesma carga horária.
           
A Ré contestou, refutando a igualdade de situação em que se encontram enfermeiros contratados ao abrigo do regime de contrato em funções públicas e os demais considerando que, desde logo, os primeiros estão impedidos de acumular funções públicas em actividades de prestação de cuidados de saúde e está limitada a admissibilidade do exercício de funções privadas em acumulação. Acresce que estabelecia o Decreto-Lei n.º 248/2009 que a tabela a aplicar ao pessoal de enfermagem em regime de contrato individual de trabalho teria de ser aprovado por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, o que veio a suceder com a celebração entre os representantes daqueles procedendo-se a uma harmonização do regime remuneratório aplicável. Face desta correspondência e tendo em consideração que o Autor celebrou um contrato de trabalho a tempo parcial foi-lhe feito o correspondente desconto.

Sem realização de audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
1. Declara-se que por prestar trabalho de igual natureza e em horário igual aos dos enfermeiros com a mesma carga horária e categoria profissional com contrato de trabalho em funções públicas o direito de receber a mesma retribuição que estes desde 01.01.2013.
2. Condena-se a ré BBB, E.P.E. a pagar ao autor as diferenças salariais resultantes desse reposicionamento, incluindo retribuição de férias, subsidio de férias e de Natal desde 01.01.2013 até 30.04.2016 - sem prejuízo das quantias já pagas a esse título pela ré – acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de vencimento até integral e efectivo pagamento.

A Ré, inconformada, interpôs recurso, tendo elaborado as seguintes Conclusões:
A. Com o presente recurso pretende o recorrente que o tribunal ad quem aprecie se a douta decisão recorrida enferma de erro de julgamento cometido no apuramento dos factos dados como provados, designadamente, por não ter o tribunal a quo ter declarado que o contrato dos autos é a tempo parcial, muito embora na contestação tal se alegue inequivocamente - vide artigos 18 e 19 da PI.
B. De resto, a sentença está ferida de nulidade por omissão de pronúncia acerca dessa matéria, suscitada na contestação e não apreciação na sentença.
C. A douta sentença incorre, e com o devido respeito, em erro de julgamento quanto á aplicação da lei substantiva, por fazer deficiente qualificação jurídica da destrinça entre as normas aplicáveis ao corpo de enfermagem consoante o vínculo de emprego seja público ou privado.
D. Incorre, ainda, em erro de julgamento no que concerne ao momento do início da aplicabilidade do IRCT a douta sentença recorrida, porque dedicando apenas um parágrafo ao tema, conclui que o RR não alega o fundamento da sua aplicação ao caso concreto, quando nem o teria de fazer por se tratar de disposição convénio-normativa, na medida em que a determinação da RMMG dos enfermeiros se tem de aplicar a todos eles e não apenas aos deles que estejam afiliados nas organizações sindicais outorgantes do ACT que aprova a respectiva tabela salarial,
E. O Tribunal a quo deveria ter dado como provado que o contrato foi celebrado a tempo parcial, atento o disposto na sua cláusula 3.a, n.°3, que assim o estabelece.
F. O A comprometeu-se contratualmente a prestar 35 horas de 40 horas que teria de passar a prestar, em regime de tempo completo, quando a chefia do serviço, enquanto representante do empregador, o viesse a determinar, com a programação do tempo de trabalho que vier a ser acordada entre as partes.
G. Esse facto deverá ser aditado à fundamentação.
H. O RR suscitou a questão do trabalho a tempo parcial, precisamente para sustentar que a remuneração devida não é a que foi estabelecida pelo IRCT dos autos, mas o proporcional da mesma.
I. O tribunal a quo, na definição das questões a decidir, omitiu dois temas essenciais à boa decisão da causa, a saber, se o contrato foi celebrado a tempo parcial e se o desconto efectuado na remuneração é consentâneo com esse facto, alegado e provado pelo RR.
T. Emergindo o litígio dos autos da aplicabilidade da nova RMMG ao contrato em apreciação, a questão da tipologia contratual assumia importância determinante para a discussão jurídica da causa.
K. Por outro lado, tendo o AA alimentado a causa de pedir com as circunstâncias relativas ao que considerou indevido corte salarial, cuja restituição dessas quantias até peticionou, dão se compreende como é que esta matéria não foi considerada como questão que precisaria de ser decidida.
L. De resto, e em última análise, a condenação do RR, nos exatos termos em que foi promovida, não lhe exigirá a prática de quaisquer atos de execução, porque o  (…), EPE foi condenado a pagar o mesmo salário que paga aos funcionários públicos, o que no caso se garante através da dedução da diferença remuneratória para o tempo parcial, isto é, nada mais haveria a pagar, saldando-se a execução de sentença sem o pagamento de quaisquer quantias ao AA,
44. O tribunal a quo considerou que materialmente os regimes público e privado de exercício da actividade de enfermagem são idênticos, desde que o trabalho prestado pelos profissionais seja igual em quantidade e natureza.
N. Discorda-se desse entendimento, porque existe uma diferença no modo de prestação da actividade de enfermeiro entre CIT e CTFP: o regime jurídico em se enquadram os respectivos contratos de trabalho.
O. Assim, existem restrições para os trabalhadores em funções públicas que não abrangem os CIT, designadamente, as relativas á acumulação de funções.
P. Um enfermeiro em exercício de funções públicas tem a sua liberdade contratual coarctada, por não poder acumular funções privadas, ao passo que o enfermeiro detentor de CIT não está submetido a quaisquer grilhões nessa matéria.
Q. Logo, essa diferença de regimes, porque obriga uns é exclusividade e permite que outros se entreguem ao pluriemprego sem restrições, é suficiente para justificar o diverso tratamento remuneratório, ocorrido entre 2013 e 2015.
R. Note-se que a discriminação existente cessou a partir de 1 de Outubro de 2015, uma vez que o ACT dos autos aprovou tabela salarial para os CIT exactamente igual a que entrou em vigor para os funcionários públicos da carreira especial de enfermagem em 2013. Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente, por provado, anulando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a ré, ora recorrente, do pedido.

Nas contra-alegações o MP pugnou pela confirmação do decidido.

Colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir
Tal como resulta das conclusões do recurso de apelação interposto, as questões que importa apreciar são as seguintes:
a)- Nulidade da sentença por omissão de fundamentação de facto;
b)- Violação do “princípio de trabalho igual salário igual”, em virtude da Ré não ter procedido ao reposicionamento remuneratório do Autor, previsto no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 122/2010, desde 01 de Janeiro de 2013, como fez com os enfermeiros com contrato de trabalho em funções públicas.

Fundamentos de facto
Foram considerados assentes os seguintes factos:
1. O Autor foi admitido ao serviço da Ré em 21 de Agosto de 2006, através da celebração de um acordo escrito designado “contrato de trabalho a termo certo”, para desempenhar as funções de enfermeiro.
2. O Autor desempenhava as funções de enfermeiro no Hospital (…) em Lisboa.
3. O horário de trabalho do Autor era rotativo ao longo da semana de segunda a domingo, perfazendo as trinta e cinco horas mensais.
4. O Autor desempenhou as funções de enfermeiro ao abrigo do acordo referido em 1., até 05 de Novembro de 2007.
5. Em 05 de Novembro de 2007, Ré e Autor subscreveram o escrito designado por “contrato de trabalho por tempo indeterminado”, junto a fls. 16-21 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, nomeadamente o seguinte:

Cláusula 1ª
(Actividade contratada)
1.O primeiro outorgante admite o segundo outorgante ao seu serviço e este obriga-se a prestar-lhe a sua actividade profissional de enfermeiro.
2.A actividade a prestar pelo segundo outorgante, objecto do presente contrato, inclui as funções inerentes à actividade contratada, bem como as que sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador detenha qualificação profissional e desde que não impliquem desvalorização profissional, para além de todas as funções compreendidas no mesmo grupo ou carreira profissional em que a actividade contratada se insira.
3.As funções referidas no número anterior serão desempenhadas pelo segundo outorgante por conta, a favor e sob as ordens e direcção do primeiro outorgante.
Cláusula 2ª
(Remunerações e subsídios)
1.Como contrapartida da actividade prestada, o primeiro outorgante obriga-se a pagar ao segundo outorgante, em função do cumprimento do seu período normal de trabalho, uma remuneração mensal de 970,92 € (novecentos e setenta euros e setenta e dois cêntimos), sujeito às contribuições e impostos obrigatórios devidos por lei.
2.O segundo outorgante tem ainda direito ao subsídio de refeição, no valor equivalente ao devido aos funcionários e agentes da Administração Pública, por cada dia efectivo de trabalho.
(…).
Cláusula 3ª
(Período de trabalho)
1.O segundo outorgante obriga-se a prestar 35 (trinta e cinco) horas de trabalho semanal, em obediência ao horário de trabalho determinado pelo primeiro outorgante e em vigor no estabelecimento, designadamente o do serviço de colocação onde aquele ficar funcionalmente integrado, de acordo com a organização, esquema e escala de funcionamento desse serviço.
2.Nos termos da lei, o horário de trabalho poderá ser alterado pelo primeiro outorgante após audição do trabalhador, designadamente por alterações decorrentes das necessidades objectivas do funcionamento dos serviços.
3.As diferenças entre as 35 e as 40 horas do novo horário semanal, ainda não prestadas pelo segundo outorgante desde o inicio do contrato, serão por ele compensadas em futuros acertos a combinar com a respectiva chefia.
Cláusula 4ª
(Local de trabalho)
1.O segundo outorgante obriga-se a prestar a sua actividade profissional na sede do primeiro outorgante, bem como noutros locais em que a mesma tenha estabelecimentos.
2.O segundo outorgante obriga-se ainda a prestar a sua actividade profissional nas unidades orgânicas ou instalações do primeiro outorgante, bem como nos demais sítios na sua área de cobertura assistencial ou com ela relacionadas, designadamente locais onde permaneçam ou se desloquem utentes seus.
3.O segundo outorgante obriga-se à execução de todas as deslocações inerentes às suas funções ou indispensáveis à sua formação profissional.
(…).”

6.A partir de 05 de Novembro de 2007, o Autor continuou a desempenhar as funções de enfermeiro no Hospital (…) em Lisboa.
7.O Autor foi classificado pela Ré na categoria profissional de enfermeiro.
8.A Ré como contrapartida do trabalho do Autor pagava-lhe a quantia mensal de € 970,92, acrescida de um subsídio de alimentação.
9.Por determinação da Ré, a partir de 2012, o Autor passou a desempenhar as suas funções de enfermeiro no Hospital (…), no serviço neuro-críticos.
10.O horário do Autor sempre foi rotativo de segunda a domingo, perfazendo trinta e cinco horas semanais.
11.As funções de enfermeiro que o Autor desempenha desde 2006 e actualmente consistem na prestação de serviços de enfermagem, em cuidados directos aos doentes.
12.A partir de 01 de Janeiro de 2013, a Ré como contrapartida do seu trabalho passou a pagar-lhe a quantia mensal de € 1.020,06 acrescida de € 4,27 de subsidio de alimentação diário.
13.A Ré tem ao seu serviço no Hospital (…), no serviço de neuro-críticos e desde tal data outros enfermeiros com vínculo contratual de contrato de trabalho em funções públicas.
14.Estes enfermeiros, como o Autor, prestam serviços de enfermagem, em cuidados directos aos doentes.
15.Estes enfermeiros têm a mesma carga horária de trinta e cinco horas semanais.
16.Desde 01 de Janeiro de 2013, a Ré tem vindo a pagar aos enfermeiros, com vínculo de contrato de trabalho em funções públicas, como contrapartida do seu trabalho a quantia mensal de € 1.201,48 acrescida de 4,27 de subsidio de alimentação diário.
17.A partir de 01 de Janeiro de 2013 a Ré apenas aplicou o nível remuneratório 15 aos enfermeiros com vínculo de contrato de trabalho em funções públicas aumentando-lhes a sua remuneração mensal de € 1.020,06 para € 1.201,48.
18.A partir de 01 de Janeiro de 2013, a Ré manteve a retribuição mensal do autor no valor de € 1.020,06.
19.Nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, o Autor e os enfermeiros com vínculo de contrato de trabalho de funções públicas exerciam as mesmas funções na Ré, prestando serviços de enfermagem, em cuidados directos aos doentes.
20.No mesmo horário e com a mesma carga horária de trinta e cinco horas semanais.
21.A partir de 01 de Outubro de 2015, a Ré fez constar do recibo de vencimento do Autor a título de remuneração base a quantia de € 1.201,48.
22.No mês de Dezembro de 2015, a ré descontou ao Autor a quantia de € 150,18.
23.No processamento do mês de Dezembro a Ré procedeu ao desconto da quantia de € 300,36 correspondentes aos meses de Outubro e Novembro de 2015.
24. A Ré continuou a descontar mensalmente ao Autor a quantia de € 150,18.
25.A partir de Outubro de 2015, foram deduzidos € 150,18 tendo em consideração a carga horária de 35 horas semanais do Autor.

Fundamentos de direito.

A)Nulidade da sentença por omissão de pronúncia
A Ré invoca a nulidade da sentença por não ter consignado provado que o contrato celebrado com o Autor o foi a tempo parcial, como decorre do n.º3 da sua clª 3, segunda a qual, o Autor comprometeu-se a prestar 35 horas de 40 horas que teria de passar a prestar em regime de tempo completo, quando a chefia do serviço o viesse a determinar.
Não se nos afigura, porém, que a Recorrente tenha razão.
Desde logo, a Ré aceitou a factualidade vertida pelo Autor na petição inicial, quando, na contestação, aceitou que todos factos eram verídicos, devendo aceitar-se que as funções exercidas são idênticas às que asseguram os contratados em funções públicas – art.º1 da contestação (fls. 106).
O tribunal recorrido deu, ainda, como provada os referidos termos da invocada cl. 3ª, sobre o horário de trabalho prestar pelo Autor, transcrevendo-a na íntegra no facto n.º5.
Foram dados como provados, nos pontos n.ºs 19 e 20, porque aceites pela Ré, os factos alegados na petição inicial sobre a qualidade e quantidade da prestação de trabalho do Autor, a saber:     
Nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, o Autor e os enfermeiros com vínculo de contrato de trabalho de funções públicas exerciam as mesmas funções na Ré, prestando serviços de enfermagem em cuidados directos aos doentes. No mesmo horário e com a mesma carga horária de trinta e cinco horas semanais.
Não se verifica assim a invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia, uma vez que que foi dado como provado a matéria relativa ao horário de trabalho a prestar pelo Autor.

B)Violação do princípio de trabalho igual salário igual, pelo facto de a Ré não ter procedido ao reposicionamento remuneratório do Autor, previsto no artigo 5º do Decreto-Lei n.º122/2010, desde 01 de Janeiro de 2013, como fez com os enfermeiros com contrato de trabalho em funções públicas.
Comecemos por uma breve análise dos diplomas em causa.
Como resulta do articulado pelas partes, a Ré é uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial, criada pelo Decreto-Lei n.º27/2009, de 27 de Janeiro e submetida aos estatutos, constantes do anexo II do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, com as especificidades estatutárias que constam do anexo ao Decreto-Lei n.º 27/2009, bem como o regime da gestão hospitalar, aprovado pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro.
O regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, regulado na Lei n.º12-A/2008, de 27 de Fevereiro, não é aplicável às entidades públicas empresariais, com excepção dos trabalhadores que à data da sua publicação tivessem a qualidade de funcionário ou agente. A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, exclui do âmbito da sua aplicação das entidades públicas empresariais.

A carreira de enfermagem enquanto carreira especial da Administração pública é regulada pelo Decreto-Lei n.º 248/2009, de 22 de Setembro, caracterizando-se pela atribuição ao trabalhador de uma situação estatutária e regulamentar, uniformemente, aplicável a todos os que pertençam a um mesmo grupo de pessoal e integrem a mesma categoria. Tendo em consideração o disposto nos seus artigos 14º e 15º, os níveis remuneratórios correspondentes às posições remuneratórias das categorias que integram a carreira especial de enfermagem no sector públicoenfermeiro e enfermeiro principal –são identificados por diploma próprio - Decreto-Lei n.º 122/2010, de 11 de Novembro - em conformidade com os princípios e regras consagradas na Lei n.º12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que veio estabelecer, por categoria, o número de posições remuneratórias da carreira especial de enfermagem, bem como identificar os correspondentes níveis salariais. Dispondo o art.º5, do referido DL n.º122/2010, sob a epígrafe Reposicionamento remuneratório”, o seguinte:
“1 –Na transição para a carreira especial de enfermagem, os trabalhadores são reposicionados nos termos do artigo 104º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.
2 –Sem prejuízo do disposto no número anterior, os enfermeiros posicionados nos escalões 1 e 2 da carreira de enfermeiro, bem como os posicionados no escalão 1 da categoria de enfermeiro graduado, mantêm o direito à remuneração base que vêm auferindo, sendo reposicionados na primeira posição remuneratória da tabela remuneratória constante do anexo ao presente diploma, nos seguintes termos:
a)- A 1 de Janeiro de 2011, os enfermeiros graduados com avaliação positiva que, pelo menos, desde 2004, se encontrassem posicionados no escalão 1 daquela categoria;
b)- A 1 de Janeiro de 2012, os restantes enfermeiros graduados com avaliação positiva;
c)- A 1 de Janeiro de 2013, os enfermeiros posicionados nos escalões 1 e 2 da categoria de enfermeiro, bem como os enfermeiros graduados que não tenham sido abrangidos pelas alíneas anteriores.”

No entanto, o Autor veio invocar a violação do princípio de trabalho igual salário igual, alegando que a Ré não procedeu ao seu reposicionamento remuneratório em 01 de Janeiro de 2013, como fez com os enfermeiros com contrato de trabalho em funções públicas.

Vejamos 

O artigo 59º n.º1 al. a) da Constituição da República Portuguesa (CRP), dispõe que “todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o principio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”.

Deste princípio não decorre uma igualdade absoluta em todas as circunstâncias, sendo pois permitido um tratamento diferenciado, desde que justificado materialmente, como se refere do Acórdão do STJ de 12.10.2011, in www.dgsi.pt, “…a igualdade de retribuição pressupõe a prestação de trabalho de igual natureza, quantidade e qualidade, apenas sendo proscrita a diferenciação arbitrária, sem qualquer fundado/objectivo motivo, ou com base em categorias tidas como factores de discriminação, (sexo, idade, raça, etc.), sem fundamento material atendível.”  

O actual Código de Trabalho, aprovado pela Lei n.º7/2009 de 12.02, regula nesta matéria o que respeita aos conceitos de discriminação, de trabalho igual, trabalho de valor igual, factores de discriminação e ónus da prova no caso de invocação de práticas discriminatórias, nos artigos 23º, 24º, n.º 1, 25º n.ºs 1, 5 e 6 do CT.
O artigo 23º, n.º1 al. c)e d), dispõe: c) Trabalho igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são iguais ou objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade; d) Trabalho de valor igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são equivalentes, atendendo nomeadamente à qualificação ou experiência exigida, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico e às condições em que o trabalho é efectuado.
Dispõe, ainda, o artigo 24º, n.º1, que, “ O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreiras profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos. (…).”
E de acordo com o disposto no artigo 25º, n.º5 - Cabe a quem alega discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer factor de discriminação. (…).”

No caso em análise resultou provado que:
- A partir de 01 de Janeiro de 2013, a Ré tem ao seu serviço, no Hospital (…) no serviço de neuro-críticos, outros enfermeiros com contrato de trabalho em funções públicas, que prestam, tal como o Autor, serviços de enfermagem em cuidados directos aos doentes, com a mesma carga horária de trinta e cinco horas semanais (factos n.ºs 14 e 15).
-A partir de 01 de Janeiro de 2013, a Ré aplicou o nível remuneratório 15 aos enfermeiros com contrato de trabalho em funções públicas, aumentando-lhes a remuneração mensal de €1.020,06 para € 1.201,48; (facto n.º17).
-A partir de 01 de Janeiro de 2013, a Ré manteve a retribuição mensal do Autor no valor de € 1.020,06 (facto n.º 18).
-A partir de 01 de Outubro de 2015, a Ré fez constar do recibo de vencimento do Autor a título de remuneração base a quantia de € 1.201,48 (facto n.º 21).
-No mês de Dezembro de 2015, a Ré descontou ao autor a quantia de € 150,18; e no processamento do mês de Dezembro, a Ré procedeu ao desconto da quantia de € 300,36, correspondentes aos meses de Outubro e Novembro de 2015. (factos n.ºs 22 e 23)
-A Ré continuou a descontar mensalmente ao Autor a quantia de € 150,18 (facto n. 24).
-Nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, o Autor e os enfermeiros com vínculo de contrato de trabalho de funções públicas exerciam as mesmas funções na Ré prestando serviços de enfermagem em cuidados directos aos doentes. No mesmo horário e com a mesma carga horária de trinta e cinco horas semanais (factos n.ºs 19 e 20).

Resultou, assim, provado que as funções desempenhadas pelo Autor eram iguais às desempenhas pelos enfermeiros que têm com a Ré um contrato de trabalho em funções públicas, sem que tenham resultado apurados factos que permitem afirmar que o modo de prestação da actividade de enfermeiro pelo Autor seja diversa, no que quer que seja, do modo de prestação da mesma actividade pelos enfermeiros vinculados por contrato de trabalho em funções públicas. 

A Ré alega que estão, porém, sujeitos a regimes jurídicos diferentes, invocando as limitações de acumulação de funções dos enfermeiros vinculados por contrato de trabalho em funções públicas. Com efeito, a prestação de trabalho em funções públicas é, em princípio, exercido em exclusividade (art.º20, do RCTFP), podendo, porém, em certas condições (designadamente não serem concorrentes, similares ou conflituantes) ser autorizada a acumulação de funções privadas, desde que observados os requisitos legalmente previstos (art.º 22º e 23º do citado regime).

No entanto, os trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho também estão obrigados a diversos deveres para com a sua entidade empregadora, nomeadamente o dever de lealdade, não podendo negociar por conta própria ou alheia em concorrência com ele (art.º128, nº 1 al. f) do CT). Mas, ainda que se entenda que, nesse domínio, os constrangimentos a que estão sujeitos os trabalhadores em funções públicas possam ser mais apertados e estritos, não nos parece que isso, por si só, constitua motivo bastante para justificar a diferenciação salarial, pois, se assim fosse, também não se justificaria que, a partir de 1 de Outubro de 2015, tivessem sido aplicados aos trabalhadores dos hospitais EPE vinculados por contrato de trabalho comum os mesmos níveis e posições remuneratórias aplicáveis aos enfermeiros vinculados por contrato de trabalho em funções públicas. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.06.2014, em 3424/11.4TTLSB.L1-4, www.dgsi.pt, que versa diferenciação retributiva decorrente da qualidade de funcionário público relativamente a outros, “(…), não tendo o factor em apreço qualquer influência na quantidade, natureza e qualidade do trabalho, o principio da igualdade de tratamento determinante de que o trabalho igual, salário igual, na mencionada vertente positiva, exige da ré uma atitude activa de equiparação substantiva dos seus Educadores de Infância em matéria retributiva, e, por inerência, em matéria de promoção profissional derivada do aludido diploma legal.”

Assim, tal como resultou provado, a diferenciação salarial verificada não assenta em qualquer fundamento material, decorre apenas do regime legal aplicável. Trata-se, pois, de uma situação de disparidade retributiva decorrente tão só da diversidade dos regimes legais aplicáveis, não obstante a reconhecida igualdade quanto à natureza, qualidade e quantidade do trabalho.

Na verdade, a igualdade substantiva de tratamento dos trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho (trabalho igual ou de valor igual), aferido pelos critérios da quantidade, natureza e qualidade, critérios objectivos e sufragados pela CRP, configura um direito de natureza análoga, que por força do disposto pelo art.º17º, é directamente aplicável, tal como os direitos liberdades e garantias, vinculando entidades públicas e privadas, cf. art.º 18º, ambos da CRP.

Uma vez que se provou que as funções desempenhadas pelo Autor eram iguais às prestadas pelos seus colegas com contrato de trabalho em funções públicas, todos com a mesma carga horária, não existe qualquer fundamento para a diferença de tratamento. Com este entendimento, em questão idêntica, já subscrevemos o Acórdão desta Relação de Lisboa, em 17.05.2017, no processo n.º10032/16. 1T8LSB.l1 14, in dgsi. “ Coexistindo num hospital EPE (pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial) pessoal de enfermagem sujeito ao regime do contrato individual de trabalho comum, ou seja de acordo com o Código do Trabalho, com outro da mesma profissão sujeito a contrato de trabalho em funções públicas, embora o reposicionamento remuneratório das categorias da carreira especial de enfermagem efectuada pelo DL nº 122/2010 de 11/11, concluído em 1/1/2013, seja aplicável apenas aos enfermeiros com vínculo de emprego público, se assente que o trabalho exercido por uns e por outros ao mesmo empregador é igual em qualidade, natureza e quantidade, impõe-se, por aplicação directa do princípio “a trabalho igual, salário igual”, que sejam pagas àqueles (sujeitos a contrato de trabalho comum) remunerações idênticas às que são pagas a estes (sujeitos a CTFP).

Assim sendo, concluímos, como na sentença recorrida, que o Autor tem direito a receber a mesma retribuição que os enfermeiros com vínculo de emprego público com a mesma carga horário, devendo esse reposicionamento salarial ter efeitos a 01 de Janeiro de 2013.
Decisão
Face ao exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Réu e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente. 


Lisboa, 22 de Novembro de 2017.


PAULA SÁ FERNANDES
JOSÉ FETEIRA
FILOMENA MANSO