Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1616/11.5TVLSB.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Os limites lógicos e objectivos do recurso não devem sufocar o  direito subjacente a esse recurso, em matéria de facto.
2. Não fica, por isso, a Relação impedida de tomar decisão autónoma na reapreciação da decisão do primeiro grau, usando dos mesmos poderes que em matéria de facto a este grau pertencem.
3. Quando sobre os factos existam versões contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades de verificação de cada uma delas e depois fazer uma eleição a favor do enunciado que parece ser relativamente mais provável não só em relação aos restantes, mas também em relação ao próprio enunciado negativo simétrico.
 4. Na responsabilidade civil médica, área onde o paciente está numa posição mais desfavorável do que a do médico no levantamento dos ónus probatórios, a valoração da prova deve convocar standards necessariamente menos exigentes do que os comuns.
 5. O contrato mediante o qual uma clínica/hospital assume directa e globalmente perante um doente obrigações de prestação de actos médicos conjuntamente com as de internamento hospitalar, pode considerar-se um contrato de prestação de serviço médico, na modalidade de contrato total.
 6. Nesta modalidade a clínica é responsável pelos actos praticados pelas pessoas que utilize para o cumprimento das suas obrigações, incluindo o médico que aja em execução da prestação correspondente aos actos médicos integrados no contrato (F. Almeida).
7. O médico não se obriga directamente perante o doente, mas pode ser responsável ex  delictu, se se verificarem os requisitos respectivos, apurados de modo autónomo em relação aos da eventual responsabilidade contratual da clínica (idem).
8. A obrigação principal tipificadora dos contratos de prestação de serviço médico é a obrigação de tratamento, não a da cura.
9. Colocada como consequência da violação da obrigação de tratar, a responsabilidade do médico não deve ser situada em plano de exigência menor que o correspondente a qualquer outra obrigação.
10. Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil quando um médico, colaborador de uma clínica, na realização de uma laparascopia, para remoção de adenocarcinoma do recto e para retirar a vesícula por inflamação crónica da mesma por cálculos, secciona um uréter da doente, tornando-a dependente, para o resto da vida, de uma nefrostomia, sem que se demonstre que tal se ficou a dever a causa externa, a facto de terceiro, etc.
11. Apesar de já ter idade avançada quando foi operada (81 anos), mas sendo ainda pessoa activa, com alegria de viver, justifica-se arbitrar à autora indemnização por dano biológico, a acrescer às indemnizações pelos restantes danos patrimoniais (presentes e futuros), não patrimoniais e estéticos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:  Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A instaurou acção declarativa, sob a forma comum, contra B, C e D pedindo que a 1ª Ré seja condenada a anular todas as facturas emitidas e a reembolsar os montantes pagos pela A, acrescidos de juros à taxa legal e que todos os RR sejam condenados, solidariamente, a pagar os encargos vitalícios resultantes de todas as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, consultas, todos os exames clínicos, assistência médica e medicamentosa, quer sejam prestadas nas suas unidades de saúde, quer sejam nas de outras prestadores, segundo o critério e escolha da A, decorrentes da lesão por estes provocada, nomeadamente a reparação/substituição da nefrostomia. E pede ainda que todos os RR sejam, solidariamente, condenados a pagar à A. a título de indemnização a quantia global de €244.752,00.
Como fundamento da sua pretensão alega, em suma, que a 1ª ré, enquanto dona e administradora do Hospital privado em que a A. foi submetida a intervenção cirúrgica é responsável pela conduta negligente da 2ª R., e a 3ª R., por ter assumido contratualmente os riscos decorrentes da actividade do hospital e dos seus agentes; que a A. deve ser indemnizada pelo risco de vida, pelos tratamentos médico-cirúrgicos a que foi submetida e os que terá de fazer, por todas as dores e mal estar que sofreu no período de 03 de Novembro de 2010 a 16 de Dezembro de 2010, pela falta de atempado diagnóstico e resolução do problema, e também por danos patrimoniais, que incluem as despesas emergentes incorridas até Maio de 2011: e por todas as despesas futuras, nomeadamente encargos vitalícios resultantes de todas as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, consultas, todos os exames clínicos, assistência médica e medicamentosa, quer sejam prestadas nas suas unidades de saúde, quer sejam nas de outras prestadores, segundo o critério e escolha da A, decorrentes da lesão por estes provocada, nomeadamente a reparação/substituição da nefrostomia, que anualmente ascenderão a, pelo menos, € 18.000,00. Refere também que, em consequência das lesões que sofreu, a A. ficou com sequelas que a incapacitam para as suas tarefas quotidianas, tendo ficado dependente da ajuda de uma terceira pessoa, principalmente para a higienização e mudança dos sacos colectores da urina e que os RR. deverão ainda indemnizar a A. por danos não patrimoniais num valor nunca inferior a €83.270,00, a título de compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica – dano biológico deve a A. receber uma quantia não inferior a €5.000,00 e porque o dano causado pelos RR., fez com que a A. tenha assumido o estatuto legal de deficiente, com uma desvalorização de mais de 60%, deverá a A. receber uma quantia nunca inferior a 100.000,00€.
Alega que a 2ªR demonstrou uma total imperícia médica, actuou sem observar a legis artis e sem o dever de zelo e cuidado a que está obrigada durante o período intra-operatório, que no período pós operatório violou o seu dever de cuidado, agiu com negligência grosseira, negligência que quase lhe causou a morte e lhe causou danos irreversíveis e vitalícios.
Citados, os RR contestaram.
A Ré D refere que de acordo com o contrato celebrado com a 1ª ré os limites indemnizatórios e os tipos de danos são os previstos na referida apólice, não contemplando os danos morais. Impugna os factos alegados pela A, conclui pela improcedência da acção e, caso seja condenada, declara exercer o seu direito de regresso sobre a 2ª ré.
A ré B refere os antecedentes da A e o facto de ter sido informada antes da operação das complicações que poderiam advir, que a sua evolução clinica foi compatível com as intervenções realizadas e normal, tendo em conta a sua idade e antecedentes. Refere não ter existido qualquer seccionamento do urétere e que a perfuração intestinal resultou de isquemia decorrente de alterações circulatórias da A e não de qualquer acto praticado pela 2ª ré, que esta seguiu as recomendações existentes e adequadas para este tipo de cirurgia, que cumpriu os seus deveres profissionais no acompanhamento pós-operatório da A, que o R procedeu com a devida e exigível diligência, pelo que não existe qualquer dever de indemnizar.
A Ré C também contestou, referindo os antecedentes clínicos e medicamentosos da A e que a corticoterapia que fazia poderia causar problemas de cicatrização, refere que a evolução clínica da A até dia 9 foi compatível com as intervenções cirúrgicas que foram realizadas e que as complicações que a partir dessa data se verificaram não se deveram a qualquer acto ou omissão de acto médico por parte da Ré. Impugna ter tido qualquer intervenção na colocação do cateter que deu origem ao edema no braço da A, ter seccionado o uréter da A ou ter dado origem à perfuração do intestino. Impugna também ter assumido perante os familiares qualquer acto que tenha dado origem a essas lesões. Refere ter sempre agido com o cuidado e diligência que lhe são impostos e de acordo com as melhores práticas médicas e cirúrgicas, quer durante as cirurgias que realizou quer no pós operatório. Chamou à demanda as seguradoras para as quais transferiu a sua responsabilidade civil profissional.
Foi admitida a intervenção da seguradora E, como associada da Ré C.
E apresentou contestação, fazendo sua a apresentada pela 2ª Ré.
A autora respondeu, referindo que nunca foi devidamente informada dos riscos das cirurgias e que se limitou a assinar um papel “para fazer a operação” sem que lhe tenha sido explicado o alcance do seu consentimento e os eventuais riscos.
Após realização do Julgamento foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e, consequentemente, absolveu as rés do pedido.
Inconformada, interpôs a ré competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
A) Nos termos do art. 615º/1 do CPC a sentença é nula quando padeça dos vícios previstos nas suas alíneas c) e d), para o que aqui interessa.
B) Na verdade, tal como se narra em III (pontos de facto incorrectamente julgados e nulidades), alínea A), pontos 1 a 8 supra das alegações - e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, designadamente, “brevitatis causa” e por economia de meios, as transcrições dos registos áudio dos depoimentos prestados em julgamento - verificam-se as nulidades da sentença por contradição entre a decisão sobre a matéria de facto e os respectivos fundamentos, designadamente quanto à matéria das alíneas gg), rr), xx), yy), Jjj), Nnn), mmm), ooo), dos factos assentes.
C) E como se narra em III, alínea B), pontos 1 a 5, e C) supra das alegações - e que aqui, “brevitatis causa” e por economia processual, se dão por integralmente reproduzidos, designadamente as transcrições dos registos áudio dos depoimentos prestados em julgamento - verificam-se as nulidades da sentença por contradição entre a decisão sobre a matéria de facto e os respectivos fundamentos, designadamente quanto à matéria ali identificada e que foi dada como não provada.
D) Por outro lado, a Mma. Juiz “a quo” estava obrigada, à luz do art. 608º/2 do CPC, a apreciar e pronunciar-se, dada a sua relevância, sobre o teor da participação de sinistro feita pela 1ª R. (constante de fls. 74 dos autos) à sua seguradora relativamente ao acidente que afectou a ora recorrente no dia 03 de Novembro de 2010, extraindo dela todas as inerentes consequências - mas nada disse. Verifica-se assim uma omissão de pronúncia (art. 615º/1, d) do CPC) que tinge de nulidade a sentença, o que expressamente se argui.
E) Dá-se aqui igualmente, e “brevitatis causa”, o aduzido em IV, pontos 1 a 10 supra das alegações, em matéria de violação de direito.
F) Corrigida como deve ser a matéria de facto, importa avançar para a apreciação de direito que de qualquer modo já permitia imputar ao 1º ré a responsabilidade pela produção dos danos causados à recorrente – como de resto o próprio explicitamente reconheceu ao participar o sinistro.
G) Na sequência da intervenção cirúrgica – laparoscopia – do dia 3 de Novembro 2010, advieram para a A., ora recorrente, dramáticos, irreversíveis e permanentes danos para a sua integridade física, com risco da própria vida, para cuja existência não foi prevenida nem sequer como um risco hipotético.
H) Aliás, em relação à ora recorrente não foi obtido o seu consentimento informado para nenhuma das intervenções cirúrgicas a que foi submetida, não tendo sido advertida de quaisquer riscos inerentes ou meramente eventuais, como o impõe desde logo o Código Deontológico da Ordem dos Médicos (art. 44º).
I) Ou seja, ninguém lhe prestou, nem prévia nem posteriormente, qualquer esclarecimentos sobre o prognóstico da sua doença, nem as consequências funcionais dos actos e práticas a executar, e muito menos alguém a preveniu, sequer como uma remota possibilidade, da lesão do uréter; da perfuração do intestino delgado e duma nefrostomia definitiva - entre outras lesões.
J) A recorrente não tinha nenhuma dessas lesões previamente à cirurgia, e não a teria consentido se essas consequências tivessem sido sugeridas ou previstas.
K) O objecto da cirurgia era um, e as consequências advindas foram totalmente estranhas a tal objecto e resultaram de deficiente execução do acto cirúrgico.
L) A recorrente pretendia curar ou tentar curar um mal que tinha, mas, em resultado dessa cirurgia, adquiriu outros males sem nenhuma relação com aquele. Buscou uma cura, saiu lesionada – e de forma grave e permanente.
M) Ficou demonstrado igualmente que a 2ª ré não actuou em observância das regras da arte e dos deveres de cuidado a que estava adstrita porque, estando ciente, tal como o 1º R., do risco frequente de ocorrências iguais às que afectaram a recorrente (a lesão do uréter, em qualquer que seja a modalidade), não agiu com o cuidado e a cautela exigíveis nessas circunstâncias.
N) Aliás, a 2ª ré, na sua contestação errática acaba por lançar, no art. 57º dessa peça e quanto à lesão do uréter, uma inarredável dúvida quando exara que “... É igualmente de admitir que a lesão do uréter tenha tido idêntica causa”. Ora, se a própria cirurgiã não tem certezas acerca da sua acção, documentada fica, também por aí, a violação das “leges artis” e dos deveres de cuidado.
O) A 2ª R., no esclarecimento escrito que dirigiu ao Dr., datado de 01/Fevereiro/2011 e constante de fls. 959 dos autos, refere que 80% das lesões dos uréteres são iatrogénicas, sendo que a cirurgia colorectal é responsável por 14% destas .
A incidência de lesão iatrogénica do uréter na ressecção anterior baixa do recto é de 0,3 a 5,7%.
Na maioria dos casos ocorre por lesão térmica, sendo o diagnóstico efectuado a 24h a 3 semanas após o procedimento. Os sinais e sintomas podem incluir dor no flanco (36-90%), febre e sépsis (10%), fístula, urinoma, ileus prolongado ou falência renal secundaria a obstrução bilateral.
A lesão do uréter é a complicação urológica mais frequente na cirurgia colorectal e tem sido reportada entre 1 a 10%, das quais só 23% são identificadas intraoperatoriamente.” (fls. 960).
P) Se só 23% das lesões do uréter são identificadas intra-operatoriamente, tal aconselharia a que a R. tomasse medidas céleres para descobrir o que se passava com a doente, que apresentava os sintomas elencados: dor, febre, sépsis, ileus prolongado, falência renal secundária à obstrução.
Q) Estas referências a altas probabilidades de lesões iatrogénicas do uréter em cirurgias colorectais postulam um maior cuidado e atenção ao resultado do acto operatório, e os réus demonstram que estavam plenamente cientes disso. Contudo no caso concreto negligenciaram tal cuidado.
R) A recorrente considera que existe erro médico com culpa e que existe nexo de causalidade entre os atos médicos e os danos supervenientes.
S) Houve erro médico por incumprimento e por cumprimento defeituoso.
T) A recorrente sofreu duas lesões iatrogénicas: uma lesão no uréter esquerdo e a perfuração do intestino delgado.
U) E é ao médico que incumbe a prova de que não agiu com culpa, ou seja, que naquelas circunstâncias não devia, nem podia agir de outra maneira, havendo assim uma presunção de culpa nos termos do art. 799º nº 1, do Código Civil.
V) O incumprimento e/ou cumprimento defeituoso da prestação da médica, 2ª R., ao serviço do 1º R., foi objecto de prova por parte da recorrente e consistiu na demonstração em como a médica recorrida não agiu de acordo com as leges artis, pois estava obrigada a empregar a diligência e o cuidado devidos, e não o fez, resultando para a recorrente lesões permanentes.
W) A falta do consentimento esclarecido e livre não se enquadra no conceito de contrato e, nessa situação, aplica-se o regime geral da responsabilidade objectiva extracontratual ou aquiliana por decorrer da inobservância de norma jurídica, por a médica recorrida C, por omissão voluntária negligente ou imprudência, ter violado os direitos de informação, causando danos, e por violação dos arts. 25º, 26º e 64º da Constituição da República Portuguesa; 156º e 157º do Código Penal e do art. 70º do Código Civil.
X) Estão em causa Bens Superiores como a Vida, a Saúde e a Integridade Física e a recorrente não se conforma que o Tribunal tenha decidido e julgado sem provas relativamente ao consentimento esclarecido e livre e que o Tribunal não tenha valorado toda a documentação clínica, relatórios médicos e de enfermagem que provam o incumprimento e/ou cumprimento defeituoso da prestação da médica.
Y) Tal documentação clínica foi obtida contra a vontade do 1º R., o qual, em vez de a facultar por sua própria iniciativa, até requereu, na sua contestação, a final, que a prova documental junta à providência cautelar de arrolamento fosse desentranhada e que não pudesse ser usada nestes autos. Ora, se o 1º R. estivesse tranquilo com a prova, jamais teria formulado tal pedido que encerra em si um propósito de opacidade e de fuga às responsabilidades.
Z) Ao não entender assim, o tribunal “a quo” cometeu um erro de julgamento e violou a lei ordinária.
AA) Além da violação da lei ordinária, deve considerar-se que o art. 799º/1 do CC, quando interpretado com o sentido e alcance plasmados na sentença do tribunal “a quo”, deve ser julgado inconstitucional, por ofender os princípios da legalidade, segurança jurídica, da protecção da confiança, da integridade física e da saúde ínsitos nomeadamente nos arts. 2º, 3º, 20º, 25º e 64º da CRepP, porque indissociáveis da existência de um Estado de direito democrático.
Nestes termos e nos melhores de Direito com que V.Exas. sempre suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência,
a) ser alterada a resposta à matéria de facto quanto à matéria assente e a não assente, nos termos supra preconizados;
b) serem conhecidas as invalidades e nulidades suscitadas; e,
c) revogar-se a sentença proferida por violação de lei e erro de julgamento e condenar-se os recorridos no pedido formulado na p.i., por ser da mais elementar JUSTIÇA’’.
O Sindicato ofereceu contra-alegações em que pugna pela improcedência do recurso. As seguradoras aderiram ao recurso do sindicato.
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Constituem questões decidendas saber se:
i) A sentença impugnada é nula;
ii) Deve ser alterada a decisão de facto;
iii) Se tal decisão for alterada se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil médica.
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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
A) Por acordo escrito titulado pela apólice n.º 80.00100742, o 1º R., transferiu para D , mediante o pagamento de prémio, a sua responsabilidade civil relativa ao exercício da sua actividade hospitalar, até ao limite máximo de €500.000,00 por anuidade, €125.000,00 por sinistro em danos corporais e €7.500,00 por danos materiais, sendo prevista uma franquia de 10% do valor do sinistro, com o valor mínimo de €125,00.
B) No ano da ocorrência do sinistro dos autos, ocorreram outros sinistros, estando provisionado o montante de €302.500,00 conforme se discrimina:
- Proc. 80.823 (acidente ocorrido em 03.05.10): €125.000,00;
- Proc. 80.833 (acidente ocorrido em 18.10.10); €50.000,00;
- Proc. 80.877 (acidente ocorrido em 14.06.10): €125.000,00; e
- Proc. 80.932: €2.500,00.
C) Por acordo escrito titulado pela apólice n.º 0084.25.948403, 2ª R., transferiu a sua responsabilidade civil, relativa ao exercício da sua actividade profissional médica, especialidade de cirurgia geral, para E, mediante o pagamento de prémio, garantido o capital de indemnização até ao montante de €300.000,00, uma vez que o capital da anuidade fica limitado, em cada sinistro, ao valor indicado como “sub-limite do Capital Seguro”, sendo aplicada a cada sinistro, relativamente a danos patrimoniais, uma franquia de 10% do valor reclamado, com um mínimo de €125,00.
D) O 1º R. emitiu e entregou à A. para pagamento as seguintes facturas relativas aos serviços médico-hospitalares nelas discriminados:
1) Factura n.º 250070224, no valor de €50.889,86; (cfr. doc. de fls 15 a 52 do apenso “A”);
2) Factura n.º 250000064, no valor de €213,77 (cfr. doc. de fls 241 a 242);
3) Factura n.º 250005967, no valor de €3.984,63 (cfr. doc. de fls 243 a 248);
4) Factura n.º 250011004, no valor de €1.984,63 (cfr. doc.s de fls 48 a 49 e fls 251 a 252);
5) Factura n.º 250011006, no valor de €565,10 (cfr. doc. de fls 253 a 255);
6) Factura n.º 250008765, no valor de €292,18 (cfr. doc. de fls 249 a 250);
7) Factura n.º 250011706, no valor de €67,80 (cfr. doc. de fls 256 a 257);
8) Factura n.º 250021516, no valor de €282,83 (cfr. doc. de fls 50 a 51);
9) Factura n.º 250031693, no valor de €1.513,51 (cfr. doc. de fls 46 a 47);
10) Factura n.º 250024019, no valor de €81,60 (cfr. doc. de fls 54 a 55);
11) Factura n.º 250034669, no valor de €182,43 (cfr. doc. de fls 52 a 53); e
12) Factura n.º 250038153, no valor de €1.174,78 (cfr. doc. de fls 44 a 45).
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Também assentes, por acordo das partes no início da audiência:
e) A 2ª R. foi contratada pelo 1º R. para exercer a profissão de médica no “Hospital…” e integra o respectivo corpo clínico.
f) No dia 2 de Novembro de 2010, a A. foi internada no “Hospital…” para ser submetida a uma cirurgia para remoção de um adenocarcinoma no Cólon/Recto.
g) Depois de efectuados todos os procedimentos pré-operatórios habituais nestas circunstâncias – orientados pela 2ª R., – a doente foi submetida à mencionada intervenção cirúrgica – laparoscopia – dia 3 de Novembro 2010.
h) A A. foi sujeita aos procedimentos pré-operatórios necessários e depois foi submetida a cirurgia para remoção de adenocarcinoma do recto e para colecistectomia por colecistite crónica litiásica, ou seja, para retirar a vesícula por inflamação crónica da mesma por cálculos.
i) Essas duas operações referidas ocorreram durante o mesmo acto operatório.
Também se provaram os seguintes factos com interesse para a apreciação da causa:
j) A A. é utente do S… n.º 5 022 016, em virtude de ser sogra de um associado desse sindicato e consequentemente beneficiário daquele sistema de saúde.
k) O 1º R. é o dono do estabelecimento denominado “Hospital…”, vocacionado para a prática de actos médicos e de assistência médica e medicamentosa, sendo esse sindicato quem designa o Conselho de Gerência e escolhe os seus membros, que por sua vez gerem a organização e superintendem em todos os serviços, escolhem e contratam o pessoal clínico e não clínico e assumem a obrigação de vigilância sobre todos os utentes dos serviços sob a directa responsabilidade do 1º R..
l) A A., necessitando de cuidados médicos, dirigiu-se ao hospital… e à médica que lá desenvolve a sua actividade profissional, e aceitou que lhe fossem prestados os cuidados médicos que foram propostos.
m) A A. tinha antecedentes pessoais de hipertensão arterial, doença ostearticular degenerativa, histerectomia total e síndroma de Sjogren.
n) A A. fazia, como decorre do antecedente clínico e histórico, tratamento de corticoterapia, encontrando-se medicada em ambulatório há longa data com coaprovel, rosilan, gabapentina, paracetamol e bialzepan 3.
o) Efectuada a intervenção cirúrgica, no final da mesma foi comunicado aos familiares da A., pela cirurgiã responsável pela cirurgia, Dra. , que tudo havia corrido bem.
p) Informou ainda que o tecido removido iria ser enviado para análise para se poder avaliar a extensão da doença e, consequentemente, a taxa de sucesso na sua cura.
q) É procedimento habitual proceder a análise do tecido retirado, a fim de se conhecerem as características do tumor, grau de envolvimento e eventuais metáteses locais.
r) No dia 7 de Novembro de 2010, para além de se notar maior indisposição, prostração e queixas de mais dores da doente, notava-se também a presença de um mau cheiro no quarto.
s) Os familiares da doente informaram de imediato a 2ª R., e o pessoal de enfermagem dessas circunstâncias, ao que estes justificaram com uma recuperação muita lenta e com uma eventual halitose.
t) A evolução clínica da A. era, até essa data, compatível com as intervenções cirúrgicas realizadas e situação geral da A., atendendo às patologias em tratamento.
u) No dia 8 de Novembro de 2010, o mau cheiro era mais notório, e quando os familiares da ora A. chegaram ao quarto na hora das visitas, a porta do quarto até estava aberta, pelo que mais uma vez insistiram na chamada da atenção para esse facto.
v) Era notória a dificuldade da doente em movimentar o braço direito, verificando-se que a mão se apresentava inchada.
w) No dia 9 de Novembro verificou-se a existência de um edema no braço direito, resultante da colocação e presença de cateter venoso, o que provocou uma tromboflebite da veia jugular interna direita e hidronefrose à esquerda, o que foi diagnosticado por Angiotac;
x) Até esse dia, sem prejuízo da situação resultante do edema, toda a restante situação clínica era compatível com as cirurgias efectuadas, denotando uma evolução lenta, tendo em conta os antecedentes pessoais da A e sua idade.
y) A partir desta data, a 2ª R deixou de ser a única médica a interagir no internamento e no processo clínico da A, sendo-lhe estranhos diversos actos médicos que sobre ela foram praticados por terceiros, bem como decisões de alta e de baixa médica.
z) Da informação contida nos diários clínicos resultava que a A. apresentava:
a. Queixas de tonturas e fotofobia;
b. dor a nível abdominal que não cedia totalmente aos analgésicos,
c. náuseas e vómitos,
d. baixo débito urinário – urina acastanhada e posteriormente alaranjada,
e. abdómen timpanizado, volumoso e muito distendido,
f. pensos inferiores do lado direito repassados de líquido seroso amarelado,
g. a região supra-púbica com edema e rubor,
h. cheiro fétido,
i. palidez,
j. fraqueza,
k. astenia marcada, queixosa à mobilização,
l. peristaltismo,
m. 37,5º de temperatura,
n. abdómen pouco depressível e doloroso à palpação,
o. dificuldade em deambular, mesmo com ajuda,
p. dores,
q. apreensão relativamente à sua situação de saúde,
r. agitação e queixas – não tinha posição de conforto, mal-estar geral,
s. prostrada.
aa) A dor abdominal é habitual e normal no pós-operatório de colecistectomia e ressecção anterior do recto e cedia aos analgésicos, razão porque foram administrados analgésicos adequados àquelas queixas.
bb) No pós-operatório, neste tipo de doenças, é normal a verificação deste tipo de náuseas ou vómitos.
cc) O baixo débito urinário verificado respondeu bem à terapêutica instituída pelo anestesista, conforme é frequente no pós-operatório de grande cirurgia abdominal.
dd) Neste tipo de tratamentos é também normal que o abdómen se apresente timpanizado, sendo certo que o da R nunca esteve excessivamente distendido.
ee) É também normal neste tipo de feridas recentes haver um ligeiro repasse seroso.
ff) É normal a verificação de uma reacção inflamatória pós-operatória com os sinais de edema e rubor na região supra-púbica.
gg) O cheiro verificado era o normal para casos similares.
hh) Verificava-se um sinal de palidez normal e adequada ao pós-operatório.
ii) A fraqueza não era excessiva ou extraordinária no caso vertente.
jj) Não havia astenia fora do esperado no pós-operatório, sendo que a doente se mostrava queixosa devido à doença osteoarticular degenerativa de que padecia e já vinha portadora.
kk) As queixas à mobilização da A. poderiam decorrer da doença osteoarticular degenerativa de que já era portadora e idade da A
ll) O peristaltismo é um sinal positivo de que o seu intestino estava a recuperar da operação efectuada.
mm) A temperatura verificada de 37,5º é aceitável como normal no pós-operatório.
nn) O estado pouco depressível e doloroso do abdómen é normal em pós-operatórios
oo) A dificuldade em deambular era compatível com a situação pós-operatória e tinha características normais para a situação, considerando a doença ostioarticular presente e as intervenções a que acabava de ser submetida.
pp) É também normal a referência a dores.
qq) No dia 9 de Novembro de 2010 a doente piorou e, nos diários clínicos consta que esta apresentava-se:
a. asténica,
b. prostrada,
c. pálida,
d. polipneica (respiração rápida e ofegante),
e. com uma ferida cirúrgica na região supra-púbica com saída de grande quantidade de líquido esverdeado e com cheiro fétido,
f. edemas generalizados.
rr) No dia 9 de Novembro a A. tinha edema apenas no membro superior direito.
ss) Nesse mesmo dia, os familiares da A. foram informados de que, depois de submetida a um angiotac, fora identificada uma situação “anómala” com o funcionamento de um rim, e ainda a existência de uma tromboflebite da veia jugular onde tinha sido colocado o cateter central.
tt) A “anomalia” no funcionamento do rim exigiu a pronta intervenção de um urologista do hospital …– Senhor Dr. – que, através de uma cirurgia de urgência, realizou uma nefrostomia, ou seja, colocou um dreno para que a urina pudesse ser expelida para o exterior, para um “saquinho”, evitando que ficasse depositada na cavidade abdominal.
uu) A 2ª R não teve qualquer intervenção nesse acto.
vv) No relatório da TAC toraco-abdomino-pélvico, efectuada nesse dia, pode-se ler: «Rim esquerdo com atraso na excreção do contraste, com dilatação da árvore excretora e terço proximal do uréter, não se definindo o restante uréter».
ww) Depois desta segunda intervenção, a doente foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos, e a médica responsável, a 2.ª ré, informou os familiares de que a condição da doente era muito grave, sendo o prognóstico reservado, «aconselhando-os a prepararem-se para o pior».
xx) Tanto na primeira, como na segunda intervenção cirúrgica, os médicos presentes, Dr. … e Dr…., confirmaram que o uréter não foi seccionado.
yy) Se tivesse sido seccionado o uréter, teria de haver grande quantidade de urina no abdómen.
zz) Nunca houve urina na cavidade abdominal ou retroperitonial.
Aaa) A operação do dia 11 de Novembro ocorreu em consequência da presença da isquémia focal do intestino delgado com peritonite fibrino-granulocitária.
Bbb) A perfuração do intestino delgado fez extravasão do conteúdo intestinal.
ccc) O conteúdo fecalóide resultou da referida perfuração, verificada, detectada e tratada de imediato no dia 11/11/2010.
Ddd) A doente foi para o bloco cerca das 20h00m onde foi submetida a uma laparotomia exploradora com ressecção do delgado por perfuração deste com peritonite fecal.
Eee) Foi a doente sujeita a laparotomia, após a qual regressou à Unidade de Cuidados Intensivos.
Fff) A laparotomia é o procedimento cirúrgico mais conforme com o estado da arte para o tratamento de perfurações do intestino, tendo a 2ª R já efectuado muitas cirurgias desse tipo.
Ggg) A A. esteve na UCIP (Unidade de Cuidados Intensivos) até dia 26.11.2010.
Hhh) A solução do contraste é utilizada neste tipo de cirurgias, sendo recomendada quando haja dúvidas, o que não foi o caso.
Iii) A 2ªR. não detectou a secção dos uréteres nesse momento.
Jjj) A integridade do uréter foi confirmada intra-operatoriamente.
Kkk) A utilização de stents só é preconizada pela comunidade científica nacional e internacional quando se presume no pré-operatório que os uréteres possam estar envolvidos, como sucede no caso de tumores avançados.
Lll) No caso concreto da A., o tumor detectado estava numa fase inicial pelo que não é preconizado o uso de “stents”, prática não aceite pela comunidade científica, até porque existe risco de complicações com a sua utilização.
mmm) Existia evidente tendência da A. para complicações vasculares e isquémias.
Nnn) No pós-operatório foi verificada a integridade do uréter.
ooo) O débito urinário é normal em doentes com a idade da A, no pós-operatório deste tipo de operações, respondendo facilmente aos diuréticos.
Ppp) As análises que a doente fazia diariamente não apresentavam alterações que levassem a ponderar esse diagnóstico.
Qqq) A R., logo que se pôs a hipótese de haver complicações pós-operatórias, no dia 9 de Novembro, promoveu a realização de actos de diagnóstico complementar, fazendo imediatamente AngioTac e sendo contactado o urologista, tendo a A. sido tratada sempre nesse período com a presença da R.
Rrr) A A. foi medicada e tratada logo que foi detectada a complicação e no próprio dia.
Sss) A 2ª R. sempre esteve a par da situação clínica da A. por observação directa e frequente.
Ttt) Todos os dias a A. foi submetida aos necessários e adequados exames complementares de diagnóstico.
Uuu) O derrame pleural é uma complicação habitual em operações por colecistite e neoplasia do recto, independentemente da técnica utilizada.
Vvv) Os RR. não preveniram a A., nem os seus familiares da eventualidade de haver risco de secção do uréter esquerdo ou perfuração do intestino delgado em consequência deste tipo de intervenções cirúrgicas.
www) No dia 11 de Novembro de 2010, a doente estava entubada e sob sedação pelo que não era possível informá-la directamente e os seus familiares não estavam presentes, tendo sido necessário tratar a doente de modo urgente e inadiável, o que se efectuou, não sendo possível informar e obter o consentimento prévio de qualquer familiar.
xxx) No dia 3 de Dezembro de 2010, verificando-se que o estado geral da doente estava a evoluir positivamente, e antecipando-se a alta da doente para breve, os familiares da doente falaram com a 2.ª ré para que lhes fossem explicadas as causas que poderiam estar na origem desta infeliz – e inesperada – série de eventos.
Zzz) No dia 7 de Dezembro, pela manhã, a 2ª R. observou a doente que estava melhorada, tinha abdómen indolor à palpação, mantinha o trânsito intestinal e tolerava alimentação oral, tendo procedido à palpação e verificado que a mesma era indolor, pelo menos a doente não revelou queixas significativas.
Aaaa) O Dr…pediu a realização de uma ecografia abdominal à doente.
Bbbb) Na sequência da ecografia, que revelou a necessidade de ajustar o dreno, o Dr….procedeu à recolocação do dreno na posição correcta, situação que se tratou de simples acto clínico sem complicação de maior.
cccc) No dia 8 de Dezembro, na hora das visitas, a doente informou os seus familiares de que a 2ª R. teria estado no quarto de manhã, manifestando-lhe o propósito de lhe retirar a algália.
dddd) A retirada da algália era o procedimento correcto face à evolução do estado de saúde da A.
eeee) Dadas as complicações ocorridas na sequência da nefrostomia, a 2ª R., após se inteirar das mesmas, optou pela manutenção da algália, que estava programada.
ffff) O genro da A. contactou o Director Clínico do Hospital do XXXX, Senhor Dr. …, telefonicamente, solicitando-lhe que, nessa sua qualidade, substituísse o médico que estava a acompanhar esta doente, ou seja, a 2ª R.;
gggg) A partir do dia 9 de Dezembro a 2ª R foi substituída por outro médico, nunca mais tendo tido contacto com a doente, aqui A.
hhhh) No dia 16 de Dezembro de 2010, a doente teve alta.
iiii)  A doente, enquanto em casa, contou com a assistência domiciliária do pessoal de enfermagem da extensão das Furnas do Centro de Saúde de Sete-Rios e o apoio diário de pessoal qualificado na sua higiene pessoal, bem como com a visita do seu médico assistente do SNS, o Senhor Dr. …;
jjjj) No dia 4 de Janeiro de 2011, porque a A. apareceu com temperaturas elevadas, da ordem dos 39°, os seus familiares levaram-na ao serviço de urgência do hospital…, onde ficou, nessa noite, no Serviço de Observações, tendo, no dia seguinte, sido internada, no piso 6, com o diagnóstico de infecção urinária;
kkkk) A doente teve alta no dia 14 de Janeiro de 2011;
llll) No dia 31 de Março de 2011 a A. dirigiu-se ao hospital…, apresentando mal-estar geral e uma grande debilidade.
mmmm) Depois de realizados vários exames, entre eles uma ecografia e análises ao sangue, foi-lhe diagnosticada, mais uma vez, uma infecção urinária.
nnnn) Após ter sido medicada com antibiótico por via endovenosa, foi-lhe dada alta, tendo sido prescrito um outro antibiótico a tomar por via oral durante oito dias.
oooo) No dia 4 de Abril de 2011, os familiares da doente contactaram telefonicamente o Sr. Dr. …, para saber se a substituição do cateter da nefrostomia, agendada para dia 5 se mantinha, dadas as condições da doente, e também porque já eram conhecidos os resultados das análises de urina bacteriana realizadas no dia 31, em que se verificou a presença de mais de 4 bactérias.
pppp) Dadas as circunstâncias, o Sr. Dr. … achou por bem adiar esta intervenção por uma semana, para evitar a proliferação de bactérias.
qqqq) Durante a tarde do dia 4 de Abril até à manhã do dia 5, a nefrostomia deixou de drenar completamente, pelo que, dada a gravidade da situação, a A. dirigiu-se ao serviço de urgência do hospital….
rrrr) Nessa ocasião foi atendida pelo Sr. Dr., outro clínico do hospital…, perante os factos, respondeu que não era urologista, que não percebia de urologia e que nada podia fazer, aconselhando a doente a esperar que o urologista aparecesse ou então que se dirigisse ao hospital da sua residência, porque o hospital… não possuía urgências na especialidade de urologia.
ssss) O Dr…. resolveu pedir exames e análises à doente, entre eles uma ecografia, onde se verificou que havia um pequeno desvio do cateter da nefrostomia.
tttt) Dirigiram-se ao piso de cirurgia, onde esperaram pela chegada do urologista, Sr. Dr…., que de imediato procedeu à intervenção de substituição do cateter e, passado algum tempo de recobro, a doente teve alta.
uuuu) No dia 6 de Abril de 2011, estando a doente ainda num estado de grande debilidade física, foi verificado pelos seus familiares que o cateter não estava a drenar, entraram em contacto com o Sr. Dr…., que de imediato contactou o seu colega urologista Sr. Dr…., que se encontrava a dar consultas no hospital…, para proceder a uma lavagem do cateter.
vvvv) A A. dirigiu-se então ao hospital…, onde foi efectuado esse procedimento.
wwww) A A. tem de tem de ser submetida, de 2 em 2 meses, a uma reparação da nefrostomia através de um procedimento de curta duração e com aplicação de anestesia local.
xxxx) Neste momento, a A. tem que continuar com a nefrostomia (a urina é drenada através de um cateter para um saco de contenção exterior que é colado nas costas da paciente), com a consequente perda de autonomia e de liberdade de movimentação para toda a vida.
Zzzz) A A. sofreu um desgaste psicológico, moral e físico com esta situação, que ainda não se deixou de fazer sentir e que perdurará, avaliando-se esse sofrimento num grau de 4 numa escala de sete.
Aaaaa) A nefrostomia a que a A. foi sujeita é definitiva, bem como as reparações cirúrgicas de 2 em 2 meses e a vulnerabilidade que adquiriu de contrair infecções urinárias.
Bbbbb) Após a cirurgia da nefrostomia, a A. sentiu-se diferente e só com o passar de tempo se foi adaptando.
ccccc) A nefrostomia gera uma série de alterações de ordem física e estética, avaliadas num grau 4 numa escala de sete, que prejudica o convívio social e até familiar.
Ddddd) Essas condicionantes verificam-se ao nível da higiene em geral e da higiene da própria estomia e do material colector, e ao nível da alimentação, pois a A. tem de seguir uma rigorosa dieta alimentar própria.
Eeeee) Verificam-se também ao nível do vestuário, pois para poder usar o material colector a A. tem de usar roupas largas.
Fffff) A A. está igualmente condicionada durante as suas viagens e está onerada com as despesas com o material colector, encontrando-se completamente dependente de terceiros para a substituição desse material.
Ggggg) A A., vivia a sua vida de uma forma independente e até ajudava a cuidar dos seus netos.
Hhhhh) A A. tornou-se uma pessoa mais triste.
iiiii) A A. não enfermava de qualquer limitação física ou mental e era completamente independente.
Jjjjj) A A. era uma pessoa alegre, afável, disponível, lutadora, e era muita amiga dos seus filhos e dos seus netos.
Kkkkk) A A teve as seguintes despesas até Maio de 2011:
a) De farmácia – €243,59;
b) Transporte de ambulância e táxis – €22,25;
c) Tratamentos Médicos – €61.216,61;
lllll) Em consequência das lesões que sofreu, a A ficou com sequelas que a incapacitam para as suas tarefas quotidianas, tendo ficado dependente da ajuda de uma terceira pessoa, principalmente para a higienização e mudança dos sacos colectores da urina, apresentando um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 pontos.
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Da nulidade da sentença
Entende a autora que a sentença é nula ex artigo 615.º, 1, c) e d), do CPC. Não tem, porém, razão.
Quanto à nulidade por contradição entre a decisão sobre a matéria de facto e respectivos fundamentos, diremos que tal contradição, a existir, constitui fundamento para se anular, oficiosamente ou a pedido da parte ex artigo 662.º, 2, a decisão impugnada, ou, então, sendo possível, para este segundo grau desfazer a contradição, exercendo os seus poderes de substituição. Não constitui, pois, vício da sentença consistente em a argumentação se orientar em determinado sentido e a decisão apontar noutro diferente ou até oposto. Trata-se neste caso de um error in procedendo e não de um error in judicando que é o que a autora invoca.
Por outro lado, o artigo 615, 1, al. d), do CPC, preceitua que a sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Ao decidir, o juiz não tem de se pronunciar sobre todas as questões singulares levantadas pelas partes. O juiz não tem de refutar singularmente a argumentação desenvolvida pelas partes sendo suficiente que ele, depois de a ter apreciado globalmente, indique os elementos sobre os quais entende fundar a sua decisão e o iter seguido na avaliação dos mesmos e para a sua conclusão, implicitamente desatendendo aqueles logicamente incompatíveis com a decisão adoptada . É esta a interpretação que reputamos mais correcta do artigo 608.º, 2.
Mais uma vez, a autora confunde planos, o da apreciação da prova que deve ser sindicado no plano da impugnação da matéria de fato e o plano da forma em consequência de uma arguição de nulidade.
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Alteração da decisão de facto
Antes de avançarmos, importa elencar os pressupostos teóricos da valoração da prova donde partimos, seguindo essencialmente a lição de Michele Taruffo (La Prueba, Marcial Pons, Madrid, Barcelona, Buenos Aires, 2008, passim).    
A valoração da prova tem por objecto estabelecer a conexão final entre os meios de prova apresentados e a verdade ou falsidade dos enunciados sobre os factos em litígio.
O princípio da livre apreciação de prova ex artigo 607.º, 5, é o princípio fundamental que teremos de levar em conta na reapreciação dos factos. Que, como se sabe, é coisa diferente do arbítrio.
A forma habitual de abordar o problema de como o julgador deve determinar o valor probatório dos meios de prova costuma remeter de forma vaga e geral para as regras de experiência comum, para o que normalmente acontece, para o que razoável ou racionalmente se deve admitir como verdadeiro.
Estes não são, porém, standards que deem garantias de poderem controlar a discricionariedade judiciária. Daí que se tenham avançado outros critérios, tais como o da preponderância da prova ou o da probabilidade preponderante: quando sobre os factos existam versões contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades de cada uma delas e depois fazer uma eleição a favor do enunciado que parece ser relativamente mais provável não só em relação aos restantes, mas também em relação ao próprio enunciado negativo simétrico.
Na responsabilidade civil médica, área onde o paciente está numa posição mais desfavorável do que a do médico no levantamento dos ónus probatórios, a valoração da prova deve convocar standards necessariamente menos exigentes.
Entende a recorrente que devem ser considerados NÃO PROVADOS as seguintes alíneas:
gg) O cheiro verificado era o normal para casos similares.
rr) No dia 9 de Novembro a A tinha edema apenas no membro superior direito.
xx) Tanto na primeira, como na segunda intervenção cirúrgica, os médicos presentes, Dr. e Dr. , confirmaram que o uréter não foi seccionado.
yy) Se tivesse sido seccionado o uréter, teria de haver grande quantidade de urina no abdómen.
Jjj) A integridade do uréter foi confirmada intra-operatoriamente.
mmm) Existia evidente tendência da A para complicações vasculares e isquémias.
Nnn) No pós-operatório foi verificada a integridade do uréter.
ooo) O débito urinário é normal em doentes com a idade da A, no pós-operatório deste tipo de operações, respondendo facilmente aos diuréticos.
Entende, por outro lado, que deviam ser dados como PROVADOS os seguintes factos considerados não provados:
vii. Da documentação clínica resulta que existia a confirmação da presença de conteúdo fecalóide, pelo que a 2ª R., iria levar a doente para o bloco operatório para uma “revisão abdominal”.
xvi. Os sintomas que a A apresentava evidenciavam esse possível diagnóstico, principalmente o baixo débito urinário, referenciado pelos enfermeiros nos seus diários.
xxx. A 2ª R. só no dia 11 de Novembro, depois de confrontada com os relatos dos enfermeiros que a alertavam para uma “ferida cirúrgica na região supra-púbica com saída de grande quantidade de líquido esverdeado com cheiro fétido”, é que mandou retirar os “agrafos do terço médio/inferior da ferida cirúrgica supra-púbica e colocou um dreno”.
xxxi. Esse processo serviu para drenar um líquido amarelo-esverdeado com cheiro fecalóide (sugestivo de conteúdo entérico).
xxxii. No dia 11 de Novembro, a A foi finalmente observada pela R., após esta ter a confirmação laboratorial de que estava na presença de conteúdo fecalóide, pelo que levou a doente para o Bloco Operatório para uma revisão abdominal.
xxxiii. Durante todo este período, a 2ª R. nunca informou a A, nem os seus familiares, do que havia sucedido.
xxxiv. Antes da intervenção cirúrgica de 3/11/2010, a A não tinha qualquer problema de saúde relacionado com as lesões que sobrevieram a esta operação.
Por fim, pretende que os factos negativos v) e xiv) tenham uma resposta positivA
Vejamos se lhe assiste razão.
Começando por este último ponto diremos que a recorrente incorre num erro muito comum, a saber: pretender que dar-se como não provada determinada matéria significa ter-se provado o contrário. Ora a resposta negativa a um facto é um nada processual e nada dá nada, não outra coisa contrária.
Vejamos então a restante matéria.
O facto gg) não está provado. Há duas versões quanto a esta matéria: por um lado a autora afirma que o cheiro era facilmente percepcionado, por outro lado, a tese que defende a normalidade do que resultou provada .No essencial confrontam-se as versões da Exma Sra Dra (sem desprimor, usaremos adiante apenas o nome abreviado dos médicos, precedido de DR.), parte na acção, e a da filha e a do genro da autora Segundo esta versão o cheiro era tamanho que era necessário deixar a porta do quarto da autora aberta, o que estes sentiram e viram. O Dr. em vez de esclarecer cabalmente a questão discreteou sobre a diferença de tratamento feita por médicos e enfermeiros acerca do que é um liquido fecalóide. Fica-se na dúvida.
Quanto ao ponto rr) o mesmo resulta das declarações de parte da 2.ª ré e dos boletins clínicos referentes a 9.11.2010 (fls. 547 e 548) onde de fala sempre em “tem edema acentuado do m. superior dto (cateter central no lado dto).
No que se refere ao ponto xx) os médicos não disseram realmente o que deste ponto consta.
O Dr. auxiliou a 2.ª Ré na operação de 3.11.2010 (fls. 976) e o Dr. foi médico auxiliar da mesma ré na operação de 11.11.2010 (fls. 978).
O primeiro médico fez um depoimento pouco consistente, sendo que em concreto não se lembra da cirurgia. Praticamente limitou-se a dizer que fazia muitas cirurgias como a dos autos e se tivesse acontecido algo de extraordinário se lembraria, o que não terá sido o caso. De resto, não teve sequer o cuidado de se informar previamente sobre este caso.
Quanto ao Dr. o seu depoimento é assaz relevante mas dele não se extrai o que consta do ponto xx). Este médico intervém na segunda cirurgia para ressecagem da perfuração do intestino delgado. Já então havia todo um complicado historial clínico durante 8 dias, com uma segunda intervenção urológica, a 9 de novembro, após verificação da existência de lesão do uréter esquerdo. Ora, a testemunha referiu com clareza que não sabe se o uréter estava ou não seccionado, não podendo garantir que se tivesse procurado o uréter.
Tem nesta parte razão a recorrente. O ponto xx) é eliminado.
Assim como tem razão em relação ao ponto yy). O Dr. explicou que pode haver secções obstrutivas. Por sua vez, o Dr. utilizou a curiosa imagem de uma esponja, se a urina caísse para a zona do retroperitoneu. Então uma espécie gordura existente nessa zona empapa e causa dores. Pode também haver um pinga-pinga (sic) para a zona da cavidade abdominal. Em qualquer caso, a hipótese equacionada no quesito sempre se revelaria exagerada. O ponto yy) é eliminado
No que se refere aos pontos Jjj) e Nnn) não há elementos seguros, para além da posição da própria ré, que os demonstrem. O relatório pericial, na parte em que se funda em elementos fornecidos pela própria ré não pode conduzir a uma conclusão afirmativa. Os pontos Jjj) e Nnn) são eliminados.
Quanto às putativas “evidentes (sic) tendências da autora para complicações vasculares e isquémias’’ (ponto mmm)) nada existe de consistente, para além, bem entendido, do que já consta dos pontos m) e n).
De resto, dos exames feitos antes das cirurgias pela autora e designadamente do de fls. 990 ao coração, resulta o contrário do que seu como provado. O ponto mmm) é eliminado.
O ponto ooo), por sua vez, é contrariado pelo depoimento do Dr.. O ponto ooo) é eliminado.
Vejamos agora os factos que a recorrente entende que deviam ter sido considerados provados.
Quanto ao ponto vii) o Dr. explicou o diferente entendimento entre médicos e enfermeiros sobre o entendimento de liquido fecaloide. Acresce que no intestino delgado não há normalmente fezes, mas sim no intestino grosso.
A resposta negativa dada ao ponto xiv) é a correcta, mas com se disse de início, como tal quesito está formulado na positiva não se pode dar uma resposta positiva, como é lógico.
Como se referiu o depoimento do Dr. põe em causa a normalidade da ocorrência do débito urinário (não será normal – sic, hipoteticamente) no pós-operatório. Mas, de acordo com o mesmo, daí não se segue que não possa existir tal débito, o que deveria ser terapeuticamente atalhado pela anestesista (cfr. alínea cc)), sem que se possa dizer que tal débito a acontecer seja revelador de sintomas de secção do uréter. 
Os pontos xxx, a xxxiv não podem ser dados como provados, porquanto a pretensão da autora se baseia em interpretações subjectivas da autora dos dados e boletins clínicos, sem qualquer outro suporte, designadamente testemunhal (por exemplo, ninguém disse que só depois de alertada pelos enfermeiros a ré fez isto ou aquilo…) e esbarram no conteúdo contrário das declarações da 2.ª ré e também nas regras de experiência que apontam para a autonomia decisória dos médicos.
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Aqui chegados, importa dizer que entendemos que a prova produzida implica uma decisão diversa daquela que deu como não provado a alínea xi) (artigo 662.º.1). E que pese embora esta alínea não tenha sido objecto de impugnação nada impede que a Relação tome decisão autónoma na reapreciação da decisão do primeiro grau, usando dos mesmos poderes que em matéria de facto a este grau pertencem (artigo 5.º, 2, a) e b)) (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018:286).
Deve então dar-se como provado que:
Durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, a 2.ª ré seccionou o uréter esquerdo da autorA
Motivação:
Ana é neta da autora e médica de profissão.
Visitou a avó nos cuidados intensivos do Hospital…, em 9 de novembro de 2010. Encontravam-se nesses cuidados dois médicos, um espanhol e outro português, e um deles (não se lembra qual) disse que o uréter da autora tinha sido seccionado.
José é genro da autora. Acompanhou frequentemente a mulher nas visitas à sogra. Sabe que em 9 de novembro de 2010 numa dessas visitas, alguém do hospital lhes disse que o uréter da autora tinha sido seccionado. Não se lembra quem lhes terá dito isso. A Dra. I …, depois de ter sido confrontada com este facto admitiu ter seccionado o uréter, “mas que não tinha feito de propósito’’. Ca … é filha da autora Normalmente, considerando os laços familiares que a ligam à recorrente e o seu interesse e envolvimento na causa, o seu depoimento deveria ser avaliado cum grano salis. Porém, neste caso, a testemunha mostrou uma serenidade e uma solidez que nos leva a concluir que falou com verdade. De resto, é a única pessoa que conhece em pormenor tudo o que aconteceu com a mãe durante o período de internamento e soube narrá-lo com apreciável objectividade (afora bem entendido as questões técnicas).
Pois bem, esta testemunha relatou que o urologista Dr. J ... lhe disse que tinha ocorrido um problema na 1.ª intervenção cirúrgica feita pela 2.ª ré e que a técnica utilizada de se introduzir uma câmara no abdómen de um paciente para ampliar a zona a operar requeria muita perícia. No caso teria havido uma secção do uréter. O mesmo lhe foi dito por dois médicos nos cuidados intensivos (Drs. M e Mo).  
O Dr. C, que só teve intervenção na segunda intervenção ao intestino da autora não sabe, como se viu, se o uréter estava ou não seccionado. Sabe sim que na 1.ª cirurgia houve um obstáculo no uréter. “Na 2.ª cirurgia nós temos todos uma compreensão de aperto no uréter na 1.ª cirurgia.  Esse aperto percebe-se a posteriori. O rim fica dilatado, porque a drenagem no rim ficou apertada’’; “um angulamento é o suficiente para criar o problema urológico’’; O médico utiliza nesta altura uma comparação que não resistimos a reproduzir por extremamente expressiva: suponhamos uma casa bem arrumada com uns móveis aqui e outros bem distantes ali; agora pensemos no abdómen de uma pessoa. Aqui os órgãos encontram-se todos desarrumados, juntos uns aos outros; numa operação à vesícula e ao intestino, é preciso desarrumar todos esses órgãos e depois voltar a arrumá-los, sem estragar nada.
Pois bem tudo isto deve ser transposto com realismo para o caso concreto e acrescentado com a consideração de que por detrás desses órgãos estão dois uréteres com menos de 5 mm de diâmetro cada, quase invisíveis, como disse o urologista, e que a operação é feita com uma máquina introduzida no abdómen, tornando mais difícil a identificação daqueles dois órgãos.
Claro que a tese do angulamento é possível; é também possível a hipótese de uma fibrose ocorrida após o acto operatório ou ainda a hipótese de uma alteração térmica.
Tudo isto é possível. Também o urologista, Dr. J ... , numa primeira audição, avançou com a tese de que não sabe explicar a causa do obstáculo que surgiu no uréter e conduziu à nefrostomia, mas que “é possível ter havido uma secção do uréter’’, Justamente por esse obstáculo poder ter várias causas não podia ter dito aos familiares da autora que a causa era a secção do uréter da autora.
Numa segunda audição, porém, confrontado com as imagens de fls. 994 e 995 o Dr. J ... afirmou ter havido sem dúvida uma interrupção no uréter, melhor dizendo uma obstrução, que poderia ter sido provocada por secção, laqueação, repuxamento, cotovelo no uréter, não sabe dizer.
Mais ainda: as imagens também dizem que não houve fistula nem extravaso, mas que pode ter havido secção sem extravaso, desde que o corte tivesse ficado fechado.
Tudo isto é algo estranho. Obstrução é, mesmo no léxico da medicina, o entupimento que se forma nos vasos ou canais do corpo humano.
Um vaso ou canal entupido não tem, de acordo com um sentido comum, solução de continuidade. Se está entupido pode em princípio ser desentupido. No caso vertente, o mesmo Dr. Al… disse que não era tecnicamente aconselhável, antes constituiria uma prática muito arriscada, com perigo de vida para doente, tentar desobstruir o uréter. Disse mais: afirmou que se fosse com a sua mãe aconselharia o procedimento que adoptou com a autora.  Tal risco tinha a ver com a distância a que se encontravam as pontas do uréter a ligar.
É altura para perguntar: perante todos estes elementos, deve concluir-se que estamos perante um non liquet quanto às causas de obstrução do uréter ou antes que, em face da manifesta dificuldade de prova, se pode com alguma segurança concluir que a probabilidade preponderante é a de a causa de interrupção do funcionamento normal do uréter ter sido a sua secção?
Parece-me que se deve responder afirmativamente ao segundo termo da alternativa.
Se levarmos ademais em conta que na participação do sinistro à  seguradora constante de fls. 74, o Hospital…descreve o sinistro da seguinte maneira: “lesão no uréter esquerdo, após cirurgia efectuada – colecistectomia e ressecção anterior baixa recto-sigmodeia via laparoscópica’’, e que, nestes casos é normal que sobressaia um certo corporativismo, existente de resto no seio de todas as profissões que criam um espírito de corpo , então não temos dúvidas em admitir que existe uma maior probabilidade de ter acontecido uma secção do uréter do que uma causa diversa ou, dito de outra forma, que é mais razoável que tenha sido esta a causa do que a hipótese simétrica inversa.
***
Do Direito
Dos pressupostos da responsabilidade civil
Para a qualificação do contrato importa considerar os seguintes factos:
e) A 2ª R. foi contratada pelo 1º R. para exercer a profissão de médica no “Hospital…” e integra o respectivo corpo clínico.
f) No dia 2 de Novembro de 2010, a A foi internada no “Hospital…” para ser submetida a uma cirurgia para remoção de um adenocarcinoma no Cólon/Recto.
g) Depois de efectuados todos os procedimentos pré-operatórios habituais nestas circunstâncias – orientados pela 2ª R., – a doente foi submetida à mencionada intervenção cirúrgica – laparoscopia – dia 3 de Novembro 2010.
h) A A foi sujeita aos procedimentos pré-operatórios necessários e depois foi submetida a cirurgia para remoção de adenocarcinoma do recto e para colecistectomia por colecistite crónica litiásica, ou seja, para retirar a vesícula por inflamação crónica da mesma por cálculos.
i) Essas duas operações referidas ocorreram durante o mesmo acto operatório.
j) A A é utente do ZZZZ n.º x xxx xxx, em virtude de ser sogra de um associado desse sindicato e consequentemente beneficiário daquele sistema de saúde.
k) O 1º R. é o dono do estabelecimento denominado “Hospital…”, sito na Rua…, vocacionado para a prática de actos médicos e de assistência médica e medicamentosa, sendo esse sindicato quem designa o Conselho de Gerência e escolhe os seus membros, que por sua vez gerem a organização e superintendem em todos os serviços, escolhem e contratam o pessoal clínico e não clínico e assumem a obrigação de vigilância sobre todos os utentes dos serviços sob a directa responsabilidade do 1º R..
l) A A, necessitando de cuidados médicos, dirigiu-se ao hospital... e à médica que lá desenvolve a sua actividade profissional, e aceitou que lhe fossem prestados os cuidados médicos que foram propostos.
Aditado por Relação:
Durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, a 2.ª ré seccionou o uréter esquerdo da autora.
Perante estes factos podemos concluir, seguindo a análise de Ferreira de Almeida (“Os contratos civis de prestação de serviço médico’’, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996: 78-120), que estamos em face de um contrato socialmente típico inserido na categoria ampla dos contratos de prestação de serviço (artigo 1154.º, CC) onde se inserem prestações de “trabalho intelectual’’.
O resultado a que se alude no artigo é no caso o tratamento e não propriamente a cura.
Aquele autor distingue várias modalidades no contrato em causa. Uma dessas modalidades a que o caso sujeito se adequa funda-se na relação clínica-doente.
Nesta modalidade a “clínica’’ é qualquer unidade de prestação de serviços de saúde seja qual for o seu concreto objecto e forma de organização empresarial (casa de saúde, hospital, sanatório, centro de saúde) ou jurídica (titularidade individual, sociedade civil e sob forma comercial, cooperativa)’’ (op. cit: 89). Neste caso a clínica é o hospital…onde a autora quis ser internada.
Ferreira de Almeida destaca ainda três sub-modalidades: a primeira sub-modalidade é a que chama contrato total “em que a clínica assume directamente e globalmente obrigações de prestação de actos médicos conjuntamente com as de internamento hospitalar’’ (op. cit: 90).
Parece-nos ser esta a sub-modalidade a invocar, sendo que tal deriva da “vocação’’ do hospital…, do facto de a 2.ª ré ter sido contratada para integrar o corpo clínico desse hospital e nele desempenhar funções e do ingresso na clínica pela autora se dever ao facto de ser utente do hospital e não propriamente doente da ré ou de ambos.
Nesta sub-modalidade “a clínica é responsável, nos termos do artigo 800.º, n.º 1., pelos actos praticados pelas pessoas que utilize para o cumprimento das suas obrigações, incluindo o médico ou médicos que ajam em execução da prestação correspondente aos actos médicos integrados no contrato. A qualificação técnico-jurídica como “auxiliares do cumprimento em nada afecta a independência técnico-profissional própria do exercício da medicina’’ (op. cit.: 91/92).
A importante diferença entre a parte formal do contrato (a clínica)  e o sujeito que efectivamente presta a prestação profissional dá azo a que se debata sobre a natureza jurídica da responsabilidade do médico dependente ou auxiliar.
Este debate é já clássico e não este o lugar para o reproduzir. Diremos apenas que à luz dos dados doutrinais e jurisprudenciais hoje prevalecentes parece-nos mais curial afirmar que na sub-modalidade que estamos a considerar, o médico não se obriga directamente perante o doente. “Pode porém ser responsável ex  delictu, se se verificarem os requisitos respectivos, apurados de modo autónomo em relação aos da eventual responsabilidade contratual da clínica’’ (op. cit: 94), podendo surgir esta como comitente e com responsabilidade objectiva (artigo 500.º, 1, CC).
Não desconhecemos porém que é possível outra abordagem, como por exemplo a feita pela Corte Cassazione italiana na já famosa sentença de 22 janeiro de 1999, n.º 589, na qual se afirma o princípio de direito por meio do qual o médico responde a título contratual ex artigo 1218.º do Codice Civile , por força do chamado contatto social qualificato que se forma entre ele e o doente. O doente não tem o direito que o médico o trate, mas se o médico decide intervir, este deverá adoptar a mesma diligência que utilizaria no cumprimento de uma obrigação que tivesse a sua origem num contrato previamente concluído.
Adiante, porem. A obrigação principal tipificadora dos contratos de prestação de serviço médico é a obrigação de tratamento, não a da cura, como dissemos.
Acrescente-se, desde já, que tal não autoriza que, a coberto da conhecida e ultrapassada distinção de Demogue, entre obrigações de meio e obrigações de resultado, se relaxem as exigências quanto à qualidade das prestações sanitárias devidas, relegando a responsabilidade médica para o plano de uma responsabilidade menor até ao ponto de excluir a aplicação do artigo 799.º CC.
Ferreira de Almeida explica muito bem, no artigo citado, a razão pela qual aquela distinção não é necessária nem satisfatória no âmbito do direito português, concluindo que “o conceito de obrigação de “obrigação de meios’’ poderá gerar afinal uma ideia injustificada de responsabilidade diminuída. Colocada no âmbito adequado, como consequência da violação da obrigação de tratar, a responsabilidade contratual do médico não deve ser colocada em plano de exigência menor que o correspondente a qualquer outra obrigação’’ (op. cit: 111/112).
A mesma é, no essencial, a posição de Pedro Romano Martinez quando assevera: “Dito de outro modo, não há obrigações de meios, em que o devedor se aliena do resultado a atingir. Tendo em conta a boa fé, o devedor prossegue sempre um resultado, que pode não ser conseguido por causa externa, facto de terceiro (p. ex., deficiência do aparelho utilizado imputável ao fornecedor), etc.
Em suma, em todas as obrigações há um resultado a atingir, mas atendendo ao tipo de vinculação e à boa fé pode haver diferentes consequências em termos de resultado, nomeadamente na apreciação da culpa’’ (“Responsabilidade civil por acto ou omissão do médico’’, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Ferreira de Almeida, Vol II, Almedina, 477).
Isto dito, passemos a apreciar se houve ou não cumprimento defeituoso por parte do hospital, através da sua auxiliar/médica cirurgiã.
O cumprimento é defeituoso sempre que haja desconformidade entre a prestação devida e aquela que foi efectivamente realizada pelo prestador dos serviços médicos.
Em relação à obrigação principal “considera-se que o tratamento é defeituoso, quando seja desconforme com as “leis da arte médica’’ de harmonia com o estádio dos conhecimentos da ciência do tempo da prestação dos cuidados de saúde’’ (F. Almeida, op. cit: 116/117).
Ora perante o facto de a ré durante a intervenção cirúrgica ter seccionado o uréter esquerdo da paciente, numa operação ao intestino delgado e à vesícula aparentemente simples, não obrigando ao uso de técnicas de contraste para identificar os uréteres nem aconselhando a laparotomia, representa sem dúvida uma actuação desconforme com as legis artis. A lesão provocada na paciente representa sem equívocos um incumprimento contratual e um acto ilícito violador de um bem precioso do doente, a sua saúde e integridade física.
É verdade que existe uma diferença substancial entre a responsabilidade obrigacional e a aquiliana. Enquanto na primeira há uma presunção de culpa do devedor (artigo 799.º, 1, CC), na segunda cabe ao lesado provar a culpa do agente da lesão (artigo 487.º CC).
Também é verdade que se presume a culpa do causador do dano quando se lesionam outras áreas do corpo mais ou menos próximas da que está a ser objecto de tratamento (André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, Coimbra, 2015: 782). É o caso de se lesionar um uréter próximo do intestino e da vesícula.
No entanto, no caso ocorrente, a diferença na prática é praticamente nula, porquanto para além da presunção não ilidida há uma prova da ilicitude “mais provável do que não’’, como tivemos ocasião de explicar acima.
Além de demonstrada a ilicitude e a culpa deduzida de critério de normalidade e da evolução mais provável dos acontecimentos, também não se pode questionar que se não fosse a intervenção incorrecta da 2.º ré não teria ocorrido a secção do uréter com consequente recurso a uma nefrostomia com as consequências bem patentes nos autos.
Para se eximirem à responsabilidade, a médica ou a clínica teriam de provar que a secção do uréter não foi devida a culpa sua, que a rotura do órgão da autora se ficou a dever a causa externa que não podiam evitar, o que não fizeram.
A conclusão a tirar é claramente a de que quer por via aquiliana quer por recurso à responsabilidade contratual o hospital e a médica cirurgiã são civilmente responsáveis por se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos. De resto se dúvidas houvesse sobre este preenchimento sempre se poderia dizer que há presunção de culpa de actos médicos mesmo em sede de responsabilidade aquiliana (por violação de deveres genéricos de protecção) ex artigo 493.º, 2, CC (P. Romano Martinez, op. cit: 474, citando Figueiredo dias e Sinde Monteiro) ou ainda que a autora, que entrou no hospital para ser submetida a duas intervenções que ocorreram por via laparoscópica no mesmo acto operatório, sendo normal e de esperar que tivesse alta livre dessas patologias, saiu do hospital afinal com uma outra patologia, mais grave ainda do que as anteriores porque definitiva, sem chances de cura.
Considerando a factualidade que foi provada constatamos que, ao contrário do que foi decidido no primeiro grau, quedou demonstrado que a Ré, na 1ª cirurgia seccionou o uréter da  A
No mais concordamos com o tribunal quando diz que “não se demonstrou que foi qualquer acto da Ré que provocou a perfuração intestinal tratada na 2ª cirurgia e também não se demonstrou que a Ré agiu no período pós operatório com falta de cuidado no acompanhamento da sua paciente, desleixo na atenção que lhe prestou, que não solicitou os exames de diagnóstico adequados, que não a observou atentamente e que – de também acordo com a legis artis – não diagnosticou atempadamente complicações que vieram a surgir e que se tivessem sido detectadas atempadamente poderiam ser resolvidas ou que não teriam as repercussões que vieram a ter na paciente e no seu estado de saúde’’.
Também damos o nosso acordo ao trecho em que o tribunal argumenta que cabia ao paciente/lesado alegar e demonstrar que o risco de cuja verificação resultaram os danos era um dos riscos previsíveis, razoáveis e significativos que lhe deviam ter sido transmitidos, o que não feito no caso dos autos.
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Da indemnização
Apurados os pressupostos da responsabilidade civil importa agora fixar a indemnização devida.
A autora formulou os seguintes pedidos:
1. Ser o 1º R. condenado a anular todas as facturas emitidas em nome da A desde 03.11.2010, designadamente as facturas nºs 250070224, 250000064, 250005967, 250011004, 250011006, 250008765, 250011706, 250021516, 250031693, 250024019, 250034669, 250038153 e a reembolsar à A os montantes entretanto cobrados, acrescidos de juros à taxa legal;
2. Serem todos os RR. solidariamente condenados a suportar os encargos vitalícios resultantes de todas as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, consultas, todos os exames clínicos, assistência médica e medicamentosa, quer sejam prestadas nas suas unidades de saúde, quer sejam nas de outras prestadores, segundo o critério e escolha da A, decorrentes da lesão por estes provocada, nomeadamente a reparação/substituição da nefrostomia;
3. Serem todos os RR, solidariamente condenados a pagar à A a título de indemnização a quantia global de 244.752,00 €.
Vejamos cada um dos pedidos isoladamente
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Facturas
Em relação às facturas fica provado que:
D) O 1º R. emitiu e entregou à A para pagamento as seguintes facturas relativas aos serviços médico-hospitalares nelas discriminados:
1) Factura n.º 250070224, no valor de €50.889,86; (cfr. doc. de fls 15 a 52 do apenso “A”);
2) Factura n.º 250000064, no valor de €213,77 (cfr. doc. de fls 241 a 242);
3) Factura n.º 250005967, no valor de €3.984,63 (cfr. doc. de fls 243 a 248);
4) Factura n.º 250011004, no valor de €1.984,63 (cfr. doc.s de fls 48 a 49 e fls 251 a 252);
5) Factura n.º 250011006, no valor de €565,10 (cfr. doc. de fls 253 a 255);
6) Factura n.º 250008765, no valor de €292,18 (cfr. doc. de fls 249 a 250);
7) Factura n.º 250011706, no valor de €67,80 (cfr. doc. de fls 256 a 257);
8) Factura n.º 250021516, no valor de €282,83 (cfr. doc. de fls 50 a 51);
9) Factura n.º 250031693, no valor de €1.513,51 (cfr. doc. de fls 46 a 47);
10) Factura n.º 250024019, no valor de €81,60 (cfr. doc. de fls 54 a 55);
11) Factura n.º 250034669, no valor de €182,43 (cfr. doc. de fls 52 a 53); e
12) Factura n.º 250038153, no valor de €1.174,78 (cfr. doc. de fls 44 a 45).
Dado o não cumprimento do Hospital… as mesmas não são devidas. Não é possível, nem a nosso ver justificável, tentar distinguir os serviços que se relacionam com o chamado “erro médico’’ e os restantes.
Não se prova a cobrança de quaisquer outros valores a reembolsar.
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Tratamentos futuros
Quanto à factualidade relevante para apreciação deste pedido, provou-se que:
wwww) A A tem de ser submetida, de 2 em 2 meses, a uma reparação da nefrostomia através de um procedimento de curta duração e com aplicação de anestesia local.
Aaaaa) A nefrostomia a que a A foi sujeita é definitiva, bem como as reparações cirúrgicas de 2 em 2 meses e a vulnerabilidade que adquiriu de contrair infecções urinárias.
Dispõe o n.º 2 do artigo 564.º do Código Civil: «Na fixação da indemnização pode o tribunal atender esses danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior».
No acórdão seminal do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Outubro de 1994, Processo n.º 0847340, pode ler-se o seguinte (sumário) : “I. Por "dano futuro" deve entender-se aquele prejuízo que o sujeito do direito ofendido ainda não sofreu no momento temporal que é considerado. Nesse tempo já existe um ofendido, mas não existe um lesado.

II - Os danos futuros podem dividir-se em previsíveis e imprevisíveis e os danos previsíveis podemos subdividi-los entre os certos e os eventuais. O dano certo pode subdividir-se em determinável e indeterminável.
III - O dano imprevisível não é indemnizável antecipadamente; o sujeito do direito ofendido só poderá pedir a correspondente indemnização depois de o dano acontecer, ou seja, depois de lesado.
IV - Dano futuro certo é aquele cuja produção se a apresenta, no momento de acerca dele formar juízo, como infalível.

V - O dano eventual, que admite vários graus, é aquele cuja produção se apresenta, no momento de acerca dele formar juízo, como meramente possível, incerto, hipotético.
VI - No grau de menos incerteza, o dano futuro deve considerar-se como previsível e equiparado ao dano certo, sendo indemnizável.
VII - No grau de maior incerteza, o dano eventual, esse que mais não seja que um receio, deve equiparar-se ao dano imprevisível, não sendo indemnizável antecipadamente, mas só na hipótese da sua efectiva ocorrência

VIII - O dano futuro certo, determinável ou indeterminável (cujo valor não pode ser fixado antecipadamente à sua verificação) é sempre indemnizável
Só perante cada caso é que será possível fazer uma avaliação do grau de previsibilidade em ordem a apurar se o dano futuro é ou não indemnizável’’.
Perante os referidos elementos probatórios os danos futuros são previsíveis e certos. São portanto indemnizáveis.
Dentro da categoria dos danos certos importa distinguir os danos determináveis dos indetermináveis.
É determinável o dano cujo montante pode ser fixado com precisão ; é indeterminável o dano cujo valor não é passível de ser fixado antecipadamente à sua verificação.
Quando no momento de julgar a extensão do dano não puder ser fixada, o tribunal condena no que vier a ser liquidado ex artigos 564.º, 2, CC e 609.º, 2, CPC.
Ora revendo a factualidade provada facilmente se conclui que o dano futuro para além de certo é indeterminável (cfr. facto não provado xlii) pelo que se deverá relegar a sua quantificação para momento ulterior, depois da autora realizar e pagar as reparações da nefrostomia e os tratamentos de infecções urinárias.
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Danos patrimoniais pretéritos
A autora pediu indemnização no valor de € 61.482,45 pelas despesas com farmácia, transportes de ambulância e táxis e tratamentos médicos.
Provou-se que:
Kkkkk) A A teve as seguintes despesas até Maio de 2011:
a) De farmácia – €243,59;
b) Transporte de ambulância e táxis – €22,25;
c) Tratamentos Médicos – €61.216,61;
A indemnização peticionada é por conseguinte devida
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Danos morais
O legislador, como é sabido, tomou claramente partido a favor da indemnização dos danos morais ou não patrimoniais, circunscrevendo-os, porém, àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496.º, 1, CC).
Esta norma tem alcance geral, sendo aplicável, desde logo e em primeira linha aos danos resultantes de lesão corporal.
É inegável que à luz das circunstâncias do caso e de acordo com um padrão objectivo, de entre os danos sofridos pelo autor podemos claramente identificar a existência de danos não patrimoniais.
Quanto ao cálculo desse montante, o artigo 496.º, 3, 1.ª parte, manda atender à equidade, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494.º, n.º 3, do CC, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Importa ainda sublinhar, como lembra, entre outros, Antunes Varela, que a indemnização por danos não patrimoniais tem uma «natureza acentuadamente mista: por um lado visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente» (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I., Almedina, Coimbra, 1987:568).
Dito de outro modo: as indemnizações por danos não patrimoniais devem ser significativas, não faz qualquer sentido face aos prémios pagos e aos lucros das seguradoras, arbitrar indemnizações miserabilistas.
Pelos danos morais sofridos durante o Internamento, desde a data da primeira cirurgia – 03.11.2010 - até à propositura da acção, incluindo 18 dias na Unidade de Cuidados Intensivos, a autora peticiona a quantia  de € 3.270,00, pela violação da integridade física e psíquica  € 5.000,00 €, e pelo quantum doloris € 50.000,00.
Ora considerando que:
- a autora foi sujeita a uma laparoscopia no dia 3 de Novembro 2010;
- nessa cirurgia a 2.ª ré seccionou-lhe o uréter esquerdo;
- A autora tinha antecedentes pessoais de hipertensão arterial, doença ostearticular degenerativa, histerectomia total e síndroma de Sjogren;
- No dia 9 de Novembro de 2010 a autora piorou e, nos diários clínicos consta que esta apresentava-se:
a. asténica,
b. prostrada,
c. pálida,
d. polipneica (respiração rápida e ofegante),
e. com uma ferida cirúrgica na região supra-púbica com saída de grande quantidade de líquido esverdeado e com cheiro fétido,
f. edemas generalizados.
- No dia 9 de Novembro os familiares da A foram informados de que, depois de submetida a um angiotac, fora identificada uma situação “anómala” com o funcionamento de um rim;
- A “anomalia” no funcionamento do rim exigiu a pronta intervenção de um urologista do hospital…– Senhor Dr. J ... – que, através de uma cirurgia de urgência, realizou uma nefrostomia, ou seja, colocou um dreno para que a urina pudesse ser expelida para o exterior, para um “saquinho”, evitando que ficasse depositada na cavidade abdominal.
- Depois desta segunda intervenção, a doente foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos;
- No dia 7 de Dezembro o Dr. J ... pediu a realização de uma ecografia abdominal à doente.
- Na sequência da ecografia, que revelou a necessidade de ajustar o dreno, o Dr. J ... procedeu à recolocação do dreno na posição correcta, situação que se tratou de simples acto clínico sem complicação de maior.
- No dia 16 de Dezembro de 2010, a doente teve alta.
- No dia 4 de Janeiro de 2011, porque a A apareceu com temperaturas elevadas, da ordem dos 39°, os seus familiares levaram-na ao serviço de urgência do hospital…, onde ficou, nessa noite, no Serviço de Observações, tendo, no dia seguinte, sido internada, no piso 6, com o diagnóstico de infecção urinária;
- A doente teve alta no dia 14 de Janeiro de 2011;
- No dia 31 de Março de 2011 a A dirigiu-se ao hospital…, apresentando mal-estar geral e uma grande debilidade;
- Depois de realizados vários exames, entre eles uma ecografia e análises ao sangue, foi-lhe diagnosticada, mais uma vez, uma infecção urinária;.
- Após ter sido medicada com antibiótico por via endovenosa, foi-lhe dada alta, tendo sido prescrito um outro antibiótico a tomar por via oral durante oito dias;  
- Durante a tarde do dia 4 de Abril até à manhã do dia 5, a nefrostomia deixou de drenar completamente, pelo que, dada a gravidade da situação, a A dirigiu-se ao serviço de urgência do hospital…. onde esperou pela chegada do urologista, Sr. Dr. J ... , que de imediato procedeu à intervenção de substituição do cateter e, passado algum tempo de recobro, a doente teve alta;  
- No dia 6 de Abril de 2011, estando a doente ainda num estado de grande debilidade física, a autora dirigiu-se ao hospital…onde foi efectuada uma lavagem do cateter;.
- A A sofreu um desgaste psicológico, moral e físico com esta situação, que ainda não se deixou de fazer sentir e que perdurará, avaliando-se esse sofrimento num grau de 4 numa escala de sete;  
- A nefrostomia a que a A foi sujeita é definitiva, bem como as reparações cirúrgicas de 2 em 2 meses e a vulnerabilidade que adquiriu de contrair infecções urinárias;
- Após a cirurgia da nefrostomia, a A sentiu-se diferente e só com o passar de tempo se foi adaptando;
- A autora ficou condicionada ao nível da higiene em geral e da higiene da própria estomia e do material colector, e ao nível da alimentação, pois a A tem de seguir uma rigorosa dieta alimentar própria;
- A A está igualmente condicionada durante as suas viagens e está onerada com as despesas com o material colector, encontrando-se completamente dependente de terceiros para a substituição desse material;
- A A, vivia a sua vida de uma forma independente e até ajudava a cuidar dos seus netos;  
- A A tornou-se uma pessoa mais triste;
- A A não enfermava de qualquer limitação física ou mental e era completamente independente;  
- A A era uma pessoa alegre, afável, disponível, lutadora, e era muita amiga dos seus filhos e dos seus netos,
Considerando ainda a capacidade económica das rés (que é de presumir),   
Parece-nos perfeitamente adequado fixar em € 30.000,00 a indemnização pelo danos a que acima se aludiu.
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Dano estético
A complexidade da sociedade moderna e a especialização e diversidade dos  conhecimentos abriram o leque das categorias dos danos indemnizáveis que hoje não cabem já no “caldeirão’’ constituído pelo par danos patrimoniais/ danos não patrimoniais.
Um dos danos que se autonomizou do dano moral foi o dano estético. O dano estético visa compensar o sofrimento da vítima por sequelas ou deformações permanentes, facilmente perceptíveis por terceiros. O dano estético é entendido como a dificuldade que o indivíduo encontra em se relacionar socialmente por causa do aspecto desagradável adquirido em sequência das lesões sofridas. Esse sofrimento materializa-se pois no aspecto exterior da vítima, ao passo que o dano moral é do foro interior do lesado. Por isso se diz que “o dano estético o corpo mostra; o dano moral, a alma sente’’.
A autora peticiona a quantia de € 70.000,00 a título de indemnização pelo dano estético.
Prova-se que:
- A nefrostomia gera uma série de alterações de ordem física e estética, avaliadas num grau 4 numa escala de sete, que prejudica o convívio social e até familiar.
- Essas condicionantes verificam-se ao nível da higiene em geral e da higiene da própria estomia e do material colector.
- Verificam-se também ao nível do vestuário, pois para poder usar o material colector a A tem de usar roupas largas.
- A A está igualmente condicionada durante as suas viagens encontrando-se completamente dependente de terceiros para a substituição desse material.
- A A, vivia a sua vida de uma forma independente e até ajudava a cuidar dos seus netos.
- A A tornou-se uma pessoa mais triste.
Perante esta factualidade parece-nos adequado fixar uma indemnização pelo dano estético no valor de € 10.000,00.
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Dano biológico
Para além das duas tradicionais figuras do dano, afirmou-se também, ao lado do dano estético, a configurabilidade do chamado dano biológico, entendido como lesão do bem ‘’saúde’’ e da integridade psicofísica de uma pessoa, independentemente da perda (ou diminuição) da capacidade de produzir rendimento e das despesas suportadas em consequência do ilícito.
Isto dito apreciemos a pretensão da autora ser indemnizada por uma desvalorização de 60% com um valor de €100.000,00.
Ficou provado que:
- A A, vivia a sua vida de uma forma independente e até ajudava a cuidar dos seus netos;.
- A A tornou-se uma pessoa mais triste.
- A A não enfermava de qualquer limitação física ou mental e era completamente independente.
- A A era uma pessoa alegre, afável, disponível, lutadora, e era muita amiga dos seus filhos e dos seus netos.
- Em consequência das lesões que sofreu, a A ficou com sequelas que a incapacitam para as suas tarefas quotidianas, tendo ficado dependente da ajuda de uma terceira pessoa, principalmente para a higienização e mudança dos sacos colectores da urina, apresentando um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 pontos.
Além disso é necessário levar em conta que quando foi operada a autora tinha 81 anos de idade, tendo hoje pouco mais de 90 anos.
Mesmo assim julgamos que a autora tem direito a ser indemnizada em face de erro médico que lhe afectou permanentemente a saúde e diminuiu consideravelmente a sua capacidade de realização pessoal, com notória deterioração da qualidade de vida.
Bem sabemos que desde os anos 60 do século passado este mundo parece ter deixado de ser para os “velhos’’, mas a justiça não cede aos modismos e deve proteger os idosos pelo menos ao mesmo nível daqueles que ainda não entraram no mercado de trabalho ou que deles estão, temporariamente, excluídos, como é o caso dos desempregados.
Porém no cálculo da indemnização não se pode esquecer que a autora ultrapassou já a esperança média de vida de uma mulher em Portugal e também que o seu défice funcional não é elevado.
Parece-nos pois adequado fixar uma indemnização de € 12.500,00 para ressarcir a autora do dano biológico.
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Umas palavras finais para se dizer que queda prejudicada a apreciação da invocada inconstitucionalidade e que as seguradoras respondem tão-só de acordo com as forças dos seguros, isto é com exclusão tão-só do valor das franquias (cfr. Ac. STJ de 13.07.2000, Proc. 00A3658, www.dgsi.pt). Na verdade, os danos corporais consistem numa lesão à integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica (Ac. RL de27.11.2018, Proc. 932/13.6TBALQ.L1, www.dgsi.pt), e dele podem decorrer danos patrimoniais ou não patrimoniais. São aqueles primeiros e não estes que se opõem como categoria aos danos materiais, definidos nas condições gerais como qualquer ofensa que afecte qualquer bem, móvel, imóvel ou animal, provocando um dano (fls. 180).   
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Pelo exposto, acordamos em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida que se substitui por outra que:
i) Condena o 1.º réu a anular, por não devidas, as facturas elencadas na alínea D) dos factos provados;
ii) Condena as rés a suportarem, solidariamente, os gastos futuros da autora com reparações da nefrostomia e tratamentos de infecções urinárias, no montante que se vier a apurar em incidente de liquidação, respondendo as seguradoras nos limites das apólices mencionadas nas alíneas A) e C) dos factos provados, ou seja, com redução do valor das franquias;
iii) Condena as rés a pagarem, em solidariedade, à autora a quantia de € 113.982 ,42 (cento e treze mil, novecentos e oitenta e dois euros e quarenta e dois cêntimos), respondendo as seguradoras  dentro das forças das apólices, conforme alínea anterior.
iv) Absolve as rés do demais peticionado.
Custas por A e Rés na proporção de 1/3 e 2/3 respectivamente.
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08.10.2020
Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura