Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
99/16.8SRLSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
REPARAÇÃO DE DANOS
FIXAÇÃO DO MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DOR FÍSICA
DANO ESTÉTICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Quanto aos danos não patrimoniais, o quadro legal a atender é constituído pelos n.°s 1 e 4 do artigo 496.° do Código Civil e pelo artigo 494.° do mesmo diploma.
O artigo 494.° refere como circunstâncias atendíveis o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e quaisquer outras que se justifiquem no caso.
Apesar de a letra da lei - n.° 4 do artigo 496.° - não dizer expressamente que o montante da indemnização dos danos não patrimoniais dever ser proporcional à gravidade dos danos, a proporcionalidade ente a gravidade dos danos e o montante da da indemnização tem apoio tanto neste número como no n.° 1 do mesmo preceito.
Tem apoio no n.° 1 porque, segundo esta norma, apenas são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Tem   apoio no n.° 4 porque, dizendo esta norma que o        montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, não se concebe que haja equidade se o montante da indemnização não for proporcional à gravidade dos danos;
II- Visto que o Código Civil não contém quaisquer tabelas que estabeleçam montantes de indemnização em função da gravidade dos danos e que a compensação devida pelos danos não patrimoniais prevista na Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio, serve para efeitos de apresentação aos lesados, por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, por parte das seguradoras, não afastando a fixação de valores superiores aos aí previstos (n.°s 1 e 2 do artigo 1.° da Portaria), os tribunais procuram alcançar a equidade, a proporcionalidade na fixação da indemnização, recorrendo ao que é decidido, nomeadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, em casos análogos.
Este caminho tem apoio no n.° 3 do artigo 8.° do Código Civil, que estabelece que "nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito", e no princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (n.° 1 do artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa), embora as decisões judiciais não deterem força de precedente obrigatória.
Existindo decisões judiciais em que foram fixadas indemnizações por danos não patrimoniais em montante inferior ao fixado pelo tribunal a quo em situações fácticas porventura parecidas com a dos presentes autos, se bem que, quanto a nós, em quadros de uma maneira geral menos gravosas que o ora nos é dado apreciar, a par de que, com o devido respeito por quem assim não entende, é necessário ter uma hermenêutica actualista e despojada de uma perspectiva miserabilista, na fixação das indemnizações por danos não patrimoniais;
III-Relativamente ao dano não patrimonial sofrido pelo demandante em consequência do acidente este sofreu um dano biológico em sentido estrito, ou seja: em consequência do acidente, o demandante sofreu lesões que lhe determinaram sequelas permanentes, tendo ficado para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelo esquerdos. Consequentemente, e tendo por base que a capacidade integral do indivíduo corresponde a 100 pontos, o demandante, com 26 anos de idade, passou a sofrer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 12 pontos, conforme consta do relatório pericial, que se manifesta na sua incapacidade para efetuar tarefas simples do dia-a-dia. Efetivamente, o demandante explicou que deixou de conseguir fazer com o braço esquerdo tudo o que implique levantá-lo acima da zona do queixo. Desta forma, tarefas simples como retirar pratos do armário da cozinha, lavar o cabelo ou pendurar quadros tornaram-se impossível de realizar com esse braço; não consegue mais praticar rugby, que praticou durante longos anos, tendo inclusivamente chegado a ser internacional pela seleção portuguesa, pois as limitações de que passou a padecer não o permitem. Também, conforme explicou de forma impressiva, as relações com a sua mulher e filha ficaram daqui em diante condicionadas pelas sequelas físicas deixadas pelo acidente: o facto de ter um braço que perdeu muita amplitude de movimento afetou de forma permanente a sua atividade sexual e jamais poderá colocar a sua filha às cavalitas, atirá-la ao ar ou sequer levantá-la acima da sua cintura. Na verdade, o demandante tinha 26 anos à data do acidente, tem agora 30 anos, e jamais recuperará a amplitude de movimentos que perdeu no braço esquerdo, aliás, existe uma grande probabilidade de a situação se agravar e poder vir a ter de colocar uma prótese, tendo explicado que para tentar evitar esse desfecho não pode deixar de fazer os exercícios em casa, mesmo tendo já terminado as sessões de fisioterapia. Ou seja, tendo em conta a esperança média de vida para indivíduos do sexo masculino com a idade do demandante, o mesmo pode contar com 50 anos de limitações pela frente, limitações para realizar tarefas simples da vida quotidiana que a maioria das pessoas faz sem grande reflexão, mas que facilitam muito a vida, e limitações que se refletem na forma como se relaciona com a sua mulher e filha.
Sofreu também dor física e dor psíquica sofridas pelo demandante: provou-se que o demandante sofreu fortes dores provocadas pelas lesões decorrentes do acidente, o que lhe causou incómodo físico e psíquico, insónias e uma terrível sensação de mal-estar. Neste campo, explicou o demandante que sofreu dores terríveis, não só como causa direta das lesões, mas também provocadas pela fisioterapia a que teve de submeter-se durante 21 meses, que implicavam exercícios dolorosos em que tinha de forçar o movimento do braço afetado. Revelou que durante muito tempo após o acidente não conseguia sequer ter um sono seguido, acordando constantemente com dores. Explicou ainda que não consegue conduzir um carro por mais de 20 minutos sem ficar com o braço dormente, e tem de dormir de lado e agarrado a uma almofada, caso contrário fica com o braço dormente. Contou o demandante que até de correr teve de desistir, pois passados cerca de 2/3 km fica com dores. Aliás, o demandante foi muito expressivo ao descrever a dor que sofreu, sendo que ficou ainda a sofrer dores de forma crónica. Explicou ainda o demandante como o acidente e as suas sequelas o afetaram psicologicamente, tendo sentido uma grande revolta, e embora atualmente considere que, passados 3 anos, conseguiu resignar-se com as limitações que terá para o resto da vida, revelou que sente ansiedade perante a probabilidade de poder vir a ter de colocar uma prótese, sendo que se isso acontecer terá de trocá-la de 10 em 10 anos. Disse que sempre foi uma pessoa forte e agora se sente frágil; aliás, descreveu o seu braço esquerdo como um braço inútil. Tudo isto encontra reflexo na perícia de avaliação do dano corporal, que fixou o quantum doloris no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente;
 E um dano estético: tendo ainda sido demonstrado que, em consequência do acidente, o demandante ficou com cicatrizes evidentes, tendo inclusivamente passado a sofrer de um dano estético permanente fixado pela perícia de avaliação do dano corporal vertido nos autos  
 O demandante sente uma grande vergonha e constrangimento quando as cicatrizes do braço, que descreve como gordas e muito visíveis, estão expostas, designadamente na praia, tendo noção de que olhar para elas incomoda as pessoas.

IV-Tudo quanto se acabou de referir reveste-se de uma gravidade extrema, pois o demandante era, na data do acidente, um jovem de 26 anos, saudável, que tinha uma vida inteira pela sua frente, cheia de projectos. De um segundo para o outro, devido a uma negligência grave da arguida, o demandante viu a sua vida, completamente alterada para pior. Ou seja, tinha acabado de comprar a mota e ia partir de férias, com a sua namorada/companheira, com quem planeava casar em breve e ter filhos. Porém, de um momento para o outro, todo esse projecto de vida lhe foi roubado com este acidente, tendo ao invés, o demandante enfrentado um longo período de doença, contabilizado em 733 dias, com três intervenções cirúrgicas e longos e dolorosos tratamentos, para no final, concluir que apesar de melhor, nunca mais iria recuperar a possibilidade de levantar ou movimentar o seu braço, acima do nível do queixo.
O demandante vai sempre sentir essa deficiência, essa mazela, e ainda as cicatrizes no seu corpo. Acresce que tendo em conta uma esperança média de vida de oitenta anos, o demandante, hoje com trinta anos, ainda tem 50 anos de sofrimento pela frente.
Na verdade, não devemos ter só em atenção toda a dor e sofrimento que o demandante já passou, mas todo aquele que irá ainda passar durante o resto da sua vida, continuando incapacitado para fazer uma série de coisas, continuando a sofrer dores e estando sempre debaixo da espada de a sua situação óssea piorar e ter de ser novamente intervencionado, como é muito provável que venha a suceder.
Por seu turno, importa realçar que não há quantia pecuniária que efectivamente “pague” toda esta situação, ou seja a mobilidade do seu braço.
Esta situação, como muitas idênticas a esta, merecem uma compensação adequada e justa, à altura de todo o sofrimento causado, não se compadecendo com indemnizações de baixo valor, sobretudo tendo em atenção o valor mínimo da cobertura obrigatória do seguro automóvel, que todo e qualquer condutor tem de contratar, no valor mínimo total de € 7.290.000, e que no caso em apreço está a cargo da demandada seguradora, sendo que o valor arbitrado não corresponde sequer a 1 por cento do valor mínimo obrigatório do seguro de responsabilidade automóvel.”
Pelo que é indubitávelmente equitativa a indemnização de € 60.000,00 (sessenta mil euros) ao demandante numa situação com as características específicas das verificadas nos presentes autos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I Relatório
1. Foi proferido despacho de pronúncia (no NUIPC 99/16.8SRLSB), submetendo a julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, a arguida AA, filha de ……………….e de …….., residente na …………………., em Lisboa, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelos artigos 148.°, n.° 1, 15.° e 69.° n.° 1, al. a) todos do Código Penal, e uma contraordenação p. e p. pelo artigo 30.°, n°s 1 e 2, 145.°, n.° 1, al. f) e 147.° todos do Código da Estrada.
O assistente BB deduziu pedido de indemnização civil contra a CC Companhia de Seguros, S.A., pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si suportados em virtude da conduta que é imputada à arguida.
O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, EPE, deduziu pedido de indemnização cível contra a CC - Companhia de Seguros, S.A., peticionado a condenação desta a pagar indemnização pela assistência prestada a BB em consequência das lesões provocadas pelo veículo conduzido pela arguida, no montante de 1.573,22€ €, acrescido de juros de mora.
A demandada CC - Companhia de Seguros, S.A. apresentou contestação a ambos os pedidos de indemnização civil. Para o efeito, assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo assistente, impugnando, porém, os danos alegados por ambos os demandantes, sustentando ainda que a indemnização pedida a título de danos não patrimoniais pelo assistente é manifestamente excessiva.
O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, E.P.E. e a demandada CC, Companhia de Seguros, S.A. chegaram a acordo relativamente ao pedido de indemnização civil apresentado por este demandante, pelo que se homologou a referida transacção.
Uma vez que a arguida se encontrava acusada da contraordenação p. e p. pelos artigos 30.º, nºs 1 e 2, 145.º, n.º 1, al. f) e 147.º do Código da Estrada e os factos ocorreram em 27 de Julho de 2016, foi declarada a prescrição da referida contraordenação nos termos do disposto no artigo 188.º do Código da Estrada e artigo 28.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações, declarando-se extinta a responsabilidade da arguida pela referida contraordenação.
Dado que o assistente declarou desistir da queixa formulada nos autos contra a arguida, sendo que esta não se opôs e tendo em conta a natureza semipública do crime de que a arguida se encontrava pronunciada, foi a referida desistência homologada e a responsabilidade criminal da arguida declarada extinta, nos termos dos artigos 113.º, nº 1, 116.º, n.º 2 e 148.º, n.º 4, do Código Penal e artigos 49.º e 51.º do Código de Processo Penal.
Foi determinado o prosseguimento dos autos apenas para julgamento do pedido de indemnização civil e tendo-se a este procedido, por sentença, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Instância Local Criminal de Lisboa – J1, proferida em 12 de Novembro de 2020, foi decidido:
“a) Condenar a demandada CC - Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao demandante BB, a título de danos patrimoniais, a quantia total de 4.779,45€ (1800€+2295€+175€ +509,45€), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação da demandada para contestar o pedido até efetivo e integral pagamento e, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 60.000,00€ acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado desta sentença até efetivo e integral pagamento;
b) Condenar a demandada CC - Companhia de Seguros, S.A. e o demandante BB no pagamento das custas do pedido de indemnização civil na proporção do respetivo decaimento (artigo 523° do Código de Processo Penal e artigo 527.° do Código de Processo Civil).” (fim de transcrição).
2. A demandada CC - Companhia de Seguros, S.A., inconformada com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"a) A quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais peca por excesso, sendo
violadora dos critérios fixados no artigo 496.° do Código Civil;
b) Mais concretamente: entende a Recorrente que o valor arbitrado peca por algum
excesso, notando que significativa parte da Jurisprudência dos nossos Tribunais superiores tem arbitrado quantias inferiores à ora fixada, em situações similares;
c) Face ao exposto, deve a Sentença sub judice ser alterada por outra, que, de forma justa, corrija o montante indemnizatório arbitrado.
Nestes termos, e nos demais de Direito, concedendo provimento ao recurso, e alterando a Sentença sub judice conforme preconizado, farão V. Exas. a costumada Justiça! " (fim de transcrição).
3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso (cfr. referência Citius n.º 401385422).
4. A magistrada do Ministério Público em primeira instância notificada das alegações de recurso apresentadas pela CC veio aos autos afirmar: “constatando que as mesmas versam exclusivamente sobre matéria referente ao pedido cível vem declarar sufragar o entendimento de que não possui legitimidade para apresentar resposta a tal recurso.”
5.Respondeu ao recurso o demandante e assistente BB extraindo as seguintes conclusões:
"1. A ora Recorrente vem alegar que a indemnização arbitrada pelo douto Tribunal a quo é excessiva quando comparada com a prática jurisprudencial.
2. Na verdade, e como muito bem foi decidido pelo douto Tribunal a quo, no que respeita aos factos dados como provados e que não foram postos em crise pela Recorrida, os danos de natureza não patrimonial são insuscetíveis de avaliação pecuniária porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao Agente, constituindo esta mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória , embora sob a envolvência de uma cera vertente sancionatória ou de perda privada.
3. A indemnização arbitrada pelo douto Tribunal a quo, não visa assim uma indemnização por um dano concreto mas sim uma compensação por todo o sofrimento que o Recorrido atravessou devido ao acidente de que foi vitima.
4. À data do acidente o Recorrido tinha 26 anos de idade.
5. Como consequência do mesmo esteve de baixa médica mais de dois anos.
6. Foi sujeito a três intervenções cirúrgicas, sendo certo que no futuro seguramente terá de ser submetido a mais intervenções cirúrgicas por via da degradação do seu ombro esquerdo.
7. Terá de se conformar, numa esperança média de vida que ainda tem de mais de 50 anos de duração, com o facto que nunca mais terá uma mobilidade sequer normal no seu braço esquerdo.
8. O Recorrido foi suturado com 19 pontos no rosto, 166 agrafos e 19 parafusos, tudo isto em.
9. Como assente na douta sentença ora recorrida, o Recorrido ainda hoje não consegue levantar o braço esquerdo acima da altura do queixo, e não mais o voltará a conseguir.
10. Para além disso foram 21 meses de fisioterapia, com exercícios diários e dolorosos conforme ficou demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento, sob a angústia de saber que provavelmente nunca mais teria a mobilidade normal no seu braço esquerdo, o que se veio a confirmar.
11. O Recorrido ficou privado de seguir uma vida normal, com todo o choque psicológico que tal representa, que se refletiu na personalidade do recorrido, no próprio receio em voltar a conduzir motociclos e muita insegurança conforme provado na douta sentença recorrida.
12. Como bem decidiu o douto Tribunal a quo, o valor arbitrado pelos Tribunais não deve determinar um enriquecimento injustificado para o lesado, mas também não deve corresponder a um montante miserável para este.
13. O valor atual do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em Portugal acompanha os valores fixados para os restantes países europeus.
14. O recorrido sofreu lesões que lhe determinaram sequelas permanentes, ficando para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelos esquerdos.
15. Ficou incapacitado para efetuar tarefas simples do dia-a-dia.
16. Não consegue mais praticar desporto, seja por limitações fisícas, seja por receio de se magoar novamente.
17. Ficou limitado na sua vida pessoal e familiar.
18. Existe a probabilidade séria do estado clínico do seu ombro e cotovelo agravarem e ter de ser sujeito a mais operações cirúrgicas e mais processos morosos de recuperação.
19. Ficou com um dano estético permanente, com cicatrizes evidentes.
20. Como bem refere a douta sentença ora recorrida, “...dúvidas não restam que o demandante vai viver o resto da sua vida com esse peso, de não poder fazer uma série de coisas, ainda que simples, como lavar o cabelo com aquela mão. Vai sempre sentir essa deficiência, essa mazela, e ainda as cicatrizes no seu corpo. Acresce que, tendo em conta uma esperança média de vida de oitenta anos, o demandante, hoje com trinta anos, ainda tem 50 anos de sofrimento pela frente”.
21. Os danos ali descritos não são, sequer comparáveis aos indicados pela Recorrida através do Acórdão a que faz alusão no seu recurso (O douto acórdão proferido pelo STJ de 29-10-2019).
22. No caso vertente o ora recorrido ficou com uma incapacidade permanente para todos e quaisquer actos que tenha de praticar e que impliquem uma rotação maior do seu cotovelo esquerdo ou movimentos acima da altura do seu queixo.
23. E como se pode verificar por aquele Acórdão, o aqui recorrido era mais jovem, teve um quantum doloris em grau superior, dano estético em grau superior, e uma afectação permanente nas actividades desportivas e de lazer em dois graus superior.
24. Uma vez que, esta indemnização não só deve corresponder a toda a dor e sofrimento que o Recorrido teve, mas também que irá, e comprovadamente nos autos ficou demonstrado, ter no futuro.
25. Veja-se a este respeito o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 10 de Dezembro de 2019, no âmbito do processo 32/14.1TBMTR., disponível em www.dgsi.pt, que refere:
26. “O dano resultante da incapacidade permanente (ainda que parcial), na medida em que representa uma diminuição somática e funcional do lesado, não pode deixar de ser considerado um dano patrimonial (futuro), tanto mais, que, em regra, essa «capitis diminutio», obriga a um maior esforço na realização de tarefas”.
27. Prosseguindo ainda aquele acórdão, “na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, máxime do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional ou dano biológico, em que se traduz a incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão fundamental do lesado à saúde e à integridade física.”
28. Formulando-se um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objectiva e subjectiva dos prejuízos sofridos, tem forçosamente que se concluir que o montante em que a recorrente foi condenada não é excessivo face aos danos sofridos pelo recorrido.
29. E tanto assim é que, note-se a formulação que o douto Tribunal a quo faz na sentença ora recorrida:
30. “Por seu turno, nota-se todo o transtorno, infelicidade e revolta que isto causou no demandante, o que decorre não só das regras da experiência, como também daquilo que ouvimos do demandante, sendo muito impressionante o seu relato em audiência de julgamento. Na verdade, as palavras não são suficientes para o descrever, sendo imprescindível a sua efetiva audição”.
31. Termos em que, se requer a V.Exas. julguem improcedente o recurso apresentado, mantendo a decisão recorrida, pois só assim farão Justiça!
Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser dado provimento às contra-alegações ora apresentadas pela Recorrida, e em consequência ser julgado improcedente o recurso e mantida a sentença recorrida.
Assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!" (fim de transcrição).
6. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs apenas o seu “Visto”, pelo que não careceu ser dado cumprimento ao disposto no art. 417.°, n.° 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP).
7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de “peca por algum excesso”, quando comparada com a prática jurisprudencial, a quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais, sendo violadora dos critérios fixados no artigo 496.º do Código Civil, devendo, nessa conformidade, ser corrigida.
2. Passemos, pois, ao conhecimento da suscitada questão alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto assente pelo Tribunal a quo [factos declarados provados e respectiva motivação] (transcrição):
"Factos provados
1) No dia 27 de Julho de 2016, pelas 13.47 horas, a arguida conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ………… na Estrada da Luz, em Lisboa, no sentido de norte para sul, na via de trânsito da esquerda.
2) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, BB conduzia o motociclo com a matrícula ……….., no sentido oposto, ou seja, de sul para norte.
3) Na aproximação do cruzamento com a Rua Abranches Ferrão e porque a arguida pretendia passar a circular nessa rua, interrompeu a marcha e sinalizou a intenção de virar à esquerda.
4) BB aproximou-se igualmente desse entroncamento, visando prossegui a sua marcha, sem mudar de direção.
5) Nessa altura, a arguida avançou com o veículo por si conduzido para o cruzamento referido, sem ceder a passagem ao motociclo conduzido por BB, que se apresentava pela sua direita.
6) Consequentemente a arguida ficou com o veículo por si conduzido atravessado na frente do motociclo conduzido por BB.
7) Face ao que não foi possível a BB deixar de embater com a frente do veículo por si conduzido na lateral anterior direita do veículo conduzido pela arguida. No dia 27 de Julho de 2016, pelas 13.47 horas, a arguida conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ………… na Estrada da Luz, em Lisboa,
8) Logo após o acidente, o INEM foi chamado ao local e transferiu o demandante para o serviço de urgências do Hospital de Santa Maria.
9) Foi diagnosticado ao demandante, como consequência direta e necessária do embate, traumatismo da face, do tórax e do membro superior esquerdo.
10) Resultaram para o demandante consequências permanentes de tais lesões, nomeadamente a limitação da mobilidade do ombro e cotovelo esquerdos.
11) Tendo estado o demandante de baixa médica ou com afetação da capacidade para o trabalho durante 733 dias.
12) Tendo nesse período o demandante sido sujeito a três intervenções cirúrgicas, diversas consultas, sessões de fisioterapia, exames e tratamentos médicos.
13) E mesmo após ter regressado ao trabalho, o demandante ficará para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelo esquerdos.
14) Por força das referidas sequelas, o demandante passou a sofrer fortes dores e uma terrível sensação de mal-estar, bem como dificuldades de locomoção do membro superior esquerdo, o que levou a que fosse operado três vezes.
15) O que se tem prolongado por todos estes anos, assente em muitas horas de tratamentos, fisioterapia, hidroterapia, nomeadamente para recuperação das três costelas e o osso da cara que fraturou na sequência do acidente em discussão nos presentes autos.
16) O demandante ficou com os ossos estilhaçados, o que obrigou à colocação de dezanove parafusos nas articulações e centenas de pontos e agrafos nas áreas afetadas, com as inerentes cicatrizes.
17) O que se manifestou na dificuldade do demandante em dormir com as dores que tinha.
18) Dificuldades estas que, embora não de modo tão acentuado, ainda se mantêm à presente data, e continuarão a manter-se de futuro.
19) E que se manifestam nos procedimentos mais simples da vida comum, como por exemplo conduzir um automóvel.
20) Para além do susto e do transtorno causados, a colisão afetou o ritmo de vida do demandante, porquanto ficou sujeito a um longo e complicado processo de reabilitação clínica.
21) O que, apesar de tudo, não evitará que um jovem de 26 anos ficasse para toda a vida com limitações no seu braço, nomeadamente pelas artroses e rigidez articular que o vão para sempre acompanhar.
22) Sendo mesmo bastante provável que o demandante venha a ser alvo de uma quarta intervenção cirúrgica a fim de colocar uma prótese para suporte da cabeça do úmero.
23) E, por conseguinte, o demandante viu-se dependente do apoio e cuidados das pessoas mais próximas, por não ter qualquer tipo de autonomia funcional.
24) Nos meses posteriores ao acidente, ou seja, nos meses de Agosto e Setembro de 2016, apenas foi pago metade de um vencimento ao demandante.
25) O demandante não auferiu qualquer prestação social naquele período.
26) O motociclo, considerado perda total, foi avaliado no montante de 2.800,00€, sendo o salvado avaliado em 505,00€.
27) A destruição completa do motociclo deveu-se à atuação da segurada da demandada.
28) A roupa, capacete e telemóvel que ficaram irremediavelmente danificados em consequência do aludido acidente.
29) A demandada não pagou a totalidade dos custos médicos em que incorreu o demandante, encontrando-se ainda por pagar os seguintes montantes:
- O montante de 175,00€ relativo a sete sessões de hidroterapia com fisioterapeuta; - O montante de 509,45€ relativo a diversas consultas médicas no Hospital de Santa Maria e da CUF.
30) O demandante tinha, na data do acidente, 26 anos de idade.
31) A arguida transferiu a sua responsabilidade civil automóvel para a CC- Companhia de Seguros, S.A. mediante contrato de seguro em vigor à data do acidente de viação em causa titulado pela apólice n.º ………………..
32) O demandante auferia o rendimento líquido mensal de 1.215,00€.
(...) Motivação da Decisão de Facto
O Tribunal baseou a sua convicção com base nas declarações do demandante, no depoimento das testemunhas DD, EE, FF, no teor da prova documental junta aos autos, nomeadamente, o auto de denúncia de fls. 2 e 3, o auto de participação do acidente, incluindo o croquis do acidente, de fls. 9 a 15, o relatório técnico de acidente de viação de fls. 144 a 181, o relatório complementar de fls. 237 a 239, a documentação clínica de fls. 55 a 69, 114 a 139, 200 e 201, 205 a 214, os documentos juntos pelo demandante e demandada no pedido de indemnização civil e na contestação, respetivamente, e ainda no teor da prova pericial de fls. 51, 52 82 a 84, 98, 99, 218, 219, 233, 234 e 545 a 548.
Foi ouvido o demandante, que de forma sincera, genuína e objetiva explicou que no dia 27 de Julho de 2016, o seu primeiro dia de férias, cerca das 13.00 horas, circulava na Estrada da Luz no sentido sul-norte, dirigindo-se para casa. Cerca de 60 metros antes do entroncamento com a Rua Abranches Ferrão, parou no semáforo que existe por baixo de um viaduto, não tendo nenhum carro à sua frente. Quando ficou verde, arrancou. Explicou que a arguida circulava de carro no sentido oposto e a dada altura sinalizou que iria virar à esquerda no entroncamento, para entrar na Rua Abranches Ferrão, e parou encostada ao eixo de rodagem. À última da hora, a arguida avançou de forma meio brusca, crendo o demandante que a arguida terá pensado que conseguiria passar antes de o demandante a alcançar, atravessando-se assim à frente dele. Assim que se apercebeu que a arguida tinha atravessado o seu carro à sua frente, o demandante travou e tentou desviar-se. Porém, não conseguiu impedir o embate, batendo com a frente da mota no carro da arguida do lado do “pendura” e caindo ao chão.
Esclareceu o demandante que iria a uma velocidade máxima de 50 km/hora, uma vez que tinha estado parado no semáforo poucos metros atrás, e que se trata de uma rua com boa visibilidade, sendo que não existia nenhum veículo entre a sua mota e o carro da arguida.
Ora, a dinâmica do acidente tal como foi descrita pelo demandante, de forma objetiva e genuína, está em consonância com os documentos constantes dos autos, designadamente o croquis elaborado pela polícia no dia do acidente e o relatório do acidente elaborado mais tarde pela esquadra de sinistralidade rodoviária da PSP. Efetivamente, analisando o croquis, pode observar-se o rasto de travagem deixado pelo motociclo do demandante, que mostra ainda um desvio para a esquerda, compatível com a descrição feita pelo demandante dos seus esforços para evitar o embate. Observa-se ainda que o motociclo do demandante se apresentava pela direita do carro da ofendida. Por sua vez, o relatório do acidente calculou que o demandante circularia a uma velocidade de 45,10km/hora, e embora refira que possivelmente a velocidade real fosse superior, a verdade é que o demandante tinha estado parado num semáforo momentos antes e poucos metros mais atrás, pelo que se afigura verosímil, de acordo com as regras da lógica e da experiência, que o mesmo não circulasse a uma velocidade muito superior a essa, não ultrapassando os 50 km/hora. De resto, a dinâmica do acidente não foi impugnada pela demandada. Assim, dá-se a mesma como provada.
Por outro lado, e quanto aos danos, o demandante relatou, de forma emotiva e sentida, que sentiu imensa dor e pânico. Foi assistido no local pelo INEM e levado para o Hospital de Santa Maria, onde verificaram que tinha partido um osso da cara ao pé do olho, uma fratura exposta no braço esquerdo, três costelas partidas e um dente rachado. Levou 19 pontos na cara e foi submetido a uma primeira cirurgia para fixar a fratura exposta, com 33 agrafos e 6 parafusos. Ficou internado cerca de 6 dias.
Quando voltou ao hospital para retirar os agrafos passados 10 dias, queixou-se de dores no ombro e no braço e nessa altura verificaram que tinha uma fratura articular explosiva e a clavícula partida. Foi então marcada uma nova cirurgia, tendo-lhe sido colocados 13 parafusos.
Passadas 6 semanas, iniciou um longo processo de fisioterapia, que durou 21 meses e que o demandante descreveu, de forma sentida, como muito duro. Além das sessões de fisioterapia que tinha três vezes por semana com o terapeuta, nos outros dias ainda tinha de cumprir um plano de treinos em casa para não perder o progresso que ia alcançando nas sessões presenciais. Fez também hidroterapia na Clínica da Cruz Vermelha; porém, devido ao custo elevado, abandonou essa terapia e inscreveu-se num ginásio com piscina onde repetia os exercícios que tinha feito na terapia.
Relatou ainda o demandante que, em maio de 2017, foi submetido a uma terceira cirurgia para ganhar um pouco mais de amplitude no movimento de flexão do braço. Porém, ainda hoje não consegue levantar o braço esquerdo acima da altura do queixo, nem voltará a conseguir fazê-lo. Efetivamente, após 21 meses de fisioterapia, o terapeuta disse-lhe que já não teria grandes ganhos com as sessões, pelo que ficou apenas com um conjunto de exercícios para fazer em casa. Contudo, estes exercícios servem apenas para a situação não se agravar e tentar evitar piorar. Ainda assim, foi-lhe dito que é provável vir a ter de submeter-se a nova cirurgia ao braço para colocar uma prótese. Neste caso, esta cirurgia terá de repetir-se de 10 em 10 anos. Também o médico lhe disse que ele tinha de começar a fazer o “luto” do braço, pois já não havia mais nada a fazer. O ofendido disse que demorou três anos a sentir-se resignado com as limitações que passou a ter por causa do acidente, mas a probabilidade de ter de colocar uma prótese ainda o deixa assustado e causa-lhe ansiedade.
Na verdade, o demandante relatou, de forma visivelmente emocionada, que nos primeiros meses sentiu muita revolta por ter ficado destruído porque uma senhora foi descuidada a conduzir. Ficou muitos meses sem conseguir dormir bem, de forma contínua, primeiro devido às dores, depois porque tinha insónias. Sentiu grande preocupação pelas questões financeiras, pois esteve dois meses sem trabalhar e sem receber ordenado. Aliás, só voltou ao trabalho em meados de setembro porque estava preocupado com as contas a aparecer, sendo que nessa altura ainda estava com o braço ao peito.
O demandante explicou ainda as consequências pessoais do acidente e como ficou com a vida completamente alterada, até hoje. Por um lado, o acidente obrigou-o a suspender os planos para pedir a então namorada em casamento durante dois anos, devido às cirurgias e às dificuldades financeiras que se lhe seguiram. Finalmente casaram em 2018 e tiveram uma filha, ainda bebé, mas devido às limitações de movimentação do braço e ombro esquerdos, o demandante não a consegue levantar acima da cintura nem atirar ao ar ou pôr às cavalitas. Na verdade, o demandante disse que sempre foi uma pessoa forte, mas agora ficou com um braço inútil e não consegue ajudar a mulher nas tarefas mais básicas. Sente-se frágil. Não consegue chegar com a mão esquerda à cabeça para lavar o cabelo, nem usar essa mão para tomar banho. A sua relação com a mulher também mudou em termos sexuais, devido à pouca mobilidade do braço esquerdo.
Também teve de abandonar várias atividades de lazer, nomeadamente as desportivas.
Referiu o demandante que jogava rugby e foi internacional pela seleção nacional, sendo que na altura do acidente jogava por lazer, o que teve de deixar de fazer. Deixou também de correr, pois embora no passado tenha chegado a correr meias maratonas, desde o acidente que fica com imensas dores após correr 2/3 km. Também deixou de jogar futebol após o trabalho com os amigos, pois é demasiado alto o risco de se lesionar.
Por outro lado, nunca mais voltou a andar de mota, sendo que se conduzir um carro durante mais de 20 minutos fica com a mão dormente. Aliás, de manhã, quando acorda, tem sempre o braço dormente, tendo de dormir sempre de lado, abraçado a uma almofada, para não acordar a meio da noite com o braço dormente. Tem dores crónicas, que afetam a sua relação matrimonial porque fica rabugento.
Refere ainda que o acidente e as cirurgias que lhe seguiram lhe deixaram cicatrizes enormes no braço, além da cicatriz acima do olho direito. Diz que está todo mutilado e sente vergonha sempre que vai à praia e fica com as cicatrizes do braço expostas, gordas e muito visíveis por terem sido reabertas e voltadas a fechar, tem noção de que faz muita confusão às pessoas estar a olhar para o braço dele quando falam consigo.
Quanto ao trabalho, diz que o mesmo voltou à normalidade e não é afetado pelas sequelas do acidente.
Foram ouvidas as testemunhas DD (mulher do demandante), EE (mãe do demandante) e FF (pai do demandante), que acompanharam o demandante no período de recuperação e, de forma igualmente sentida, confirmaram os danos sofridos pelo demandante.
Efetivamente, a mulher do demandante referiu que o mesmo perdeu muita autonomia nos primeiros tempos, não conseguia tomar banho sozinho, e demorou pelo menos 4 meses até conseguir voltar a fazê-lo sem ajuda. Confirmou as repercussões no seu relacionamento a nível sexual, que atribuiu não só às lesões, mas também à insegurança que diz que o demandante passou a sentir. De facto, disse que o marido era antes uma pessoa muito positiva e extrovertida, tendo agora momentos em que é muito acanhado. Também esteve muitos meses sem conduzir, sendo agora mais apreensivo na condução.
Esta testemunha descreveu a dor agoniante que o demandante sentiu, não só como consequência direta das lesões provocadas pelo acidente, mas também durante os exercícios que fazia nas sessões de fisioterapia e em casa e a que a testemunha assistiu. Indicou também as consequências a longo prazo: as cicatrizes que o inibem, as limitações de movimento e as coisas que deixou de fazer no dia-a-dia por causa das referidas limitações, a baixa autoestima por ter engordado ao ter deixado de praticar atividades desportivas, e as dores que permanecem.
Por sua vez, a mãe do demandante disse que no primeiro mês de recobro o filho ficou com os pais na respetiva casa de férias e recordou em tribunal as dores que viu o filho sentir durante mais de um mês. Por causa das dores, esteve muito tempo sem conseguir dormir de seguida, acordava de 10 em 10 minutos. O filho ficou muito em baixo psicologicamente e é hoje uma pessoa mais triste e reservada.
Finalmente, o pai do demandante reitera as dores horríveis que o filho sentiu, tanto em consequência das lesões provocadas pelo acidente como devido aos exercícios de fisioterapia que fazia, sendo que o ajudou a fazer alguns em casa. O filho chorava com as dores e tinha uma enorme dificuldade para dormir. Também esta testemunha nota uma grande diferença no demandante, que de pessoa sempre positiva, alegre e bem-disposta passou a ser alguém muito mais fragilizado e que chora com facilidade. Disse que o filho sente um grande constrangimento na praia por causa das cicatrizes muito evidentes que tem. Ou seja, as declarações das testemunhas encontram-se em plena consonância coma as do demandante pelo que considerou o tribunal que foram as mesmas sinceras e credíveis, sem que tenham sido infirmadas por quaisquer outros elementos dos autos.
Por seu turno, o relatório pericial confirma as sequelas descritas pelo demandante e as consequentes limitações, atribuindo-lhe um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 12 pontos, fixando, numa escala de 0 a 7, o quantum doloris no grau 5, o dano estético permanente no grau 4, a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer no grau 5 e a repercussão permanente na atividade sexual no grau 2.
Deste modo, conjugando toda a prova produzida, ficou o tribunal convencido de o demandante sofreu os danos não patrimoniais descritos no pedido de indemnização civil como consequência do acidente. Não se deu como provado que o demandante sofreu traumatismo do membro superior direito por o traumatismo ter sido no membro superior esquerdo, conforme é sempre mencionado, tratando-se, certamente, a menção ao lado direito de mero lapso.
No que aos danos patrimoniais se refere, o tribunal apenas deu como provados os que se encontram suportados pelos documentos comprovativos juntos aos autos.
Efetivamente, quanto às perdas salariais, o demandante juntou uma declaração da sua entidade patronal à data (fls. 294), em que a mesma declara que o demandante não recebeu o ordenado do mês de agosto e metade do ordenado do mês de setembro, pelo que deixou de receber o correspondente a um salário e meio. Por outro lado, compulsada a fotocópia do contrato de trabalho junto pelo demandante a fls. 293, verifica-se que o mesmo auferia o rendimento mensal ilíquido de 1.800,00€, sobre o qual incidiam os competentes descontos legais. Desta forma, deu-se como provado que o demandante auferia o valor líquido mensal de 1.215,00€ alegado pela demandante na sua contestação, uma vez que tal valor é coerente com que o próprio demandante indicou em tribunal, na medida em que afirmou que recebia cerca de 1.200,00€ líquidos.
Relativamente aos atos médicos, e ao contrário do que afirma a demandada na sua contestação, os recibos juntos aos autos pelo demandante são perfeitamente compreensíveis quando se analisa quais os atos médicos em causa e as datas dos mesmos, verificando-se que se referem todos a consultas e exames ortopédicos relacionados com as lesões sofridas por causa do acidente. De facto, a taxa moderadora do Hospital de Santa Maria reporta-se ora a datas em que o demandante teve consultas no referido hospital, conforme decorre, nomeadamente, do resumo de informação clínica de fls. 206 e 207, ora a exames ou consultas de ortopedia, sendo que as lesões e queixas do demandante neste foro decorreram do acidente de viação descrito nos autos. Também os recibos da CUF se situam em datas posteriores ao acidente e se referem a consultas e exames da área ortopédica. Relativamente ao recibo das sessões de fisioterapia de fls. 304, no valor de 175,00€, o mesmo reporta-se a 31-07-2017, data em que o demandante se encontrava a recuperar do acidente de viação, não tendo sido provado ou sequer mencionado qualquer outro facto que tivesse levado o demandante a ter de fazer fisioterapia; pelo contrário, decorre das regras da lógica que a referida fisioterapia visou o tratamento das sequelas do acidente. Desta forma, igualmente se dão como provados estes valores como despesas decorrentes do acidente de viação.
O valor do motociclo foi admitido pela demandada no documento de fls. 296, documento em que consta também o valor do salvado atribuído pela seguradora. Este valor não foi posto em causa pelo demandante, pelo que se dá como provado.
Em contrapartida, o demandante não juntou qualquer documento comprovativo do valor de 803,88€ reclamado a título de despesas com 12 meses de hidroterapia, pelo que se dá esse valor como não provado.
Igualmente como não provado se dá o valor referente ao telemóvel, ao capacete e à roupa do demandante que ficaram danificados com o acidente. De facto, embora decorra da normalidade das coisas e das regras da experiencia comum, aliadas às declarações o demandante e às fotografias juntas pelo mesmo aos autos a fls.298 a 301, que os referidos objetos tenham ficado danificados, o demandante não juntou qualquer documento comprovativo que permita comprovar o valor dos mesmos, nem tão pouco juntou ou exibiu as peças de vestuário ou fotografias das mesmas que permitisse aferir de que peças se trata.
Assim, não se pode dar como provado o respetivo valor.
No que se refere ao valor de 560,00€, referente às 14 sessões de fisioterapia que o demandante alega terem ficado por pagar, a demandada demonstrou, através de fotocópia do cheque e da carta enviada para o demandante de fls. 482 e 483, que as pagou, pelo que não se pode dar como provado que esse valor permanece em dívida.
Finalmente, quanto ao consumo habitual de analgésicos, em virtude das dores, por parte do demandante, tal não foi sequer mencionado em audiência, pelo que se dá como não provado.
A transferência do risco inerente à circulação do veículo da arguida encontra-se transferido para a companhia de seguros, ora demandada, conforme resulta da prova documental junta aos autos, sendo que tal transferência não foi impugnada pela própria demandada." (fim de transcrição).
Por seu turno, em sede de fundamentação e Direito, quanto ao pedido de indemnização civil, expendeu-se na decisão revidenda:
"Nos termos do artigo 129° do Código Penal, a indemnização por perdas e danos resultantes de um crime é regulada pela lei civil.
Nos termos do disposto no artigo 483° do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente os direitos de outrem é obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Assim, constituem pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos geradora da obrigação de indemnizar, a existência de um facto imputável ao agente, que se revista de ilicitude, por consubstanciar a violação de um direito de outrem ou de qualquer norma destinada a proteger interesses alheios, praticado com dolo ou mera culpa, que tenha dado causa ao dano, relevando aqui o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Verificados os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, surge a obrigação de indemnizar, regulada nos artigos 562° e seguintes do Código Civil. O princípio geral de tal obrigação baseia-se no facto de o lesante, obrigado a reparar um dano, dever reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obrigou à reparação.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, podendo ainda ser considerados danos futuros (artigo 564° do Código Civil).
A indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, sendo que a indemnização em dinheiro, salvo disposição legal em contrário, tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566° do Código Civil).
O artigo 496º nº 1 do Código Civil estabelece que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.
Por outro lado, dispõe o n° 1 do artigo 487° do Código Civil que o ónus da prova sobre a culpa do lesante impende sobre o lesado, consagrando o n° 2 da mesma norma a apreciação da culpa em abstrato. Isto é, o agente deve ser alvo de um juízo de censura por ter adotado uma conduta quando poderia e deveria ter adotado outra, apontando a norma para um padrão geral de conduta, não tendo em conta a diligência habitual do agente, mas sim a diligência do homem médio face às circunstâncias concretas do caso. E, conforme dispõe o n° 1 do artigo 493° do Código Civil, a culpa, neste âmbito, tanto pode existir a título de dolo como a título de negligência (“dolo ou mera culpa”), em qualquer das suas formas.
No caso concreto dos acidentes de viação, habitualmente a culpa reveste a forma negligente e traduz-se num juízo de censura ao agente por não ter adotado um comportamento conforme a um dever e que podia e devia ter tido, de modo a evitar o acidente, quer porque não o previu (negligência inconsciente) quer porque confiou em que ele se não verificaria (negligência consciente) – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-1996, relator Ramiro Vidigal, proc. n.° 96A012, disponível em www.dgsi.pt).
Por sua vez, a circulação rodoviária, embora considerada indispensável para a vida quotidiana da maioria dos cidadãos, é em si mesma uma atividade perigosa que implica potenciais riscos para a vida e integridade física tanto dos condutores envolvidos nessa atividade, como de terceiros; impõem-se, por isso, especiais cautelas no seu exercício.
Deste modo, o Código da Estrada regula os aspetos essenciais da circulação rodoviária, estabelecendo uma série de regras de conduta que devem ser obedecidas, designadamente, pelos condutores de veículos que circulam na via pública.
Assim, o artigo 3° n° 2 do Código da Estrada (na redação dada pela Lei n.° 116/2015, de 28 de agosto, em vigor à data do acidente e ao qual nos reportaremos sempre que mencionarmos o Código da Estrada) dispõe que as pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias, estabelecendo-se assim um dever geral de diligência que impende sobre os referidos utentes.
Por seu turno, o artigo 20° n° 1 do Código da Estrada dispõe que nos cruzamentos e entroncamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita.
Atendendo à matéria de facto provada, resulta claro que apenas à arguida Inês Eliseu, condutora do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 54-46-XH, seguro na demandada, pode ser imputada a infração de uma regra que disciplina a condução de veículos nas vias públicas.
Efetivamente, ao entrar na via por onde o demandante circulava, sendo certo que estava obrigada a ceder a passagem ao motociclo onde seguia o demandante por este se lhe apresentar pela direita, a arguida violou o disposto no artigo 30° n° 1 do Código da Estrada, assim dando causa à colisão entre os dois veículos.
Por outro lado, constitui entendimento jurisprudencial consolidado que a prova da inobservância das leis ou regulamentos de natureza rodoviária faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta inobservância da falta de diligência (neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 29-05­2012, relatora Márcia Portela, proc. n.° 6029/10.3TBMTS.P1, e do Supremo Tribunal de Justiça de 20-11-2003, relator Moreira Camilo, proc. n.° 03A345, disponíveis em www.dgsi.pt).
De facto, sendo a condução de veículos um ato voluntário, devendo os condutores observar as regras estradais e assegurar-se de que podem dominar o veículo, a culpa advém do desrespeito daquelas mesmas regras, a menos que se demonstre qualquer circunstância que justifique tal conduta.
Ora, no caso dos autos, provou-se que a arguida virou à esquerda no entroncamento, sem que tivesse cedido a passagem ao demandante, que se apresentava pela sua direita. Por outro lado, não se demonstrou qualquer conduta ilícita e culposa por parte do demandante que tenha concorrido para a produção do acidente.
Pelo exposto, resulta que, em consequência do acidente descrito nos autos, gerou-se na esfera jurídica do demandante o direito a ser indemnizado pela arguida, pelos danos que sofreu em consequência do acidente.
Por outro lado, ficou igualmente provado que o veículo conduzido pela arguida estava segurado pela demandada.
Ora, o contrato de seguro é “o negócio jurídico pelo qual uma das partes (a seguradora) se obriga a cobrir o risco que certo facto futuro e incerto (sinistro) constitui para a outra parte (segurado), mediante a prestação certa e periódica (prémio) que esta se compromete a efetuar (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª edição, Coimbra, 1996, pág. 732).
A disciplina do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel consta, assim, fundamentalmente, da apólice, dele decorrendo, para a seguradora, uma obrigação consistente na assunção do risco e no consequente pagamento de um determinado capital, se o sinistro típico do risco coberto se verificar.
E conforme resultou igualmente provado, à data do acidente a responsabilidade civil decorrente de sinistros com o veículo ligeiro de mercadorias conduzido pela arguida estava transferida para a demandada.
A demandada ficou, consequentemente, responsável pelos danos decorrentes do sinistro em causa, nos termos em que tal responsabilidade foi acima definida, tendo ficado constituída na obrigação de indemnizar o demandante pelos mesmos, em virtude do contrato de seguro relativo ao veículo conduzido pela arguida.
Conforme já se referiu, é pressuposto da responsabilidade civil a produção de um dano; sem dano não há responsabilidade civil, pois esta visa, em última análise, reparar os danos provocados pela conduta do agente. E pode definir-se o dano como a lesão de bens juridicamente tutelados, quer seja através de destruição, subtração ou deterioração.
Por outro lado, o dano tanto pode ser patrimonial como ou não patrimonial.
O dano patrimonial consiste no reflexo que o dano real tem no património do lesado, abrangendo os prejuízos que, sendo suscetíveis de avaliação pecuniária, podem ser reparados direta ou indiretamente.
Dentro dos danos patrimoniais, existem os danos emergentes (prejuízos causados em bens já existentes na titularidade do lesado à data da lesão) e os lucros cessantes (os benefícios que o lesado deixa de auferir por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão).
Por outro lado, são indemnizáveis não só os danos diretos (os efeitos imediatos do facto ilícito), mas também os danos indiretos (as consequências mediatas ou mesmo remotas do dano direto), desde que exista o nexo causal exigido pela lei.
Como também já acima se referiu, o artigo 562º do Código Civil determina que a reparação do dano reconstitua dispondo o artigo 566º do mesmo diploma legal que, não sendo possível a reconstituição natural, esta não repare totalmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização é, subsidiariamente, fixada em dinheiro (nº 1 da referida norma), tendo a mesma como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (nº 2).
Isto para os danos patrimoniais, pois não só se refere a norma à “situação patrimonial” como são os danos não patrimoniais insuscetíveis de avaliação pecuniária e reparação integral, visando-se antes uma compensação pelo mal sofrido. A compensação nestes termos será, então, decidida com recurso a critérios de equidade (artigo 566º nº 3 do Código Civil).
Efetivamente, os danos de natureza não patrimonial são insuscetíveis de avaliação pecuniária porque atingem bens (saúde física e psíquica, bem estar, liberdade, beleza, honra, etc.) que não integram o património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, constituindo esta mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada.
Como assinala Antunes Varela, a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, tomo I, 8ª edição, pág. 619).
No entanto, conforme refere o mesmo autor, da restrição do art. 496.º extrai-se indiretamente uma outra lição: a de que o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
Efetivamente, nos termos do artigo 496º nº 1 do Código Civil, são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que a gravidade do dano medir-se-á por um padrão objetivo, embora atendendo às circunstâncias do caso concreto.
Tendo em conta o que se discute nos presentes autos, é pertinente abordar especificamente o dano corporal e a forma como deve ser avaliado.
O dano corporal (ou dano biológico) consiste numa lesão na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica; trata-se de dano real ou dano-evento do qual podem decorrer danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais, podendo os primeiros assumir feição de danos emergentes ou de lucros cessantes. (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-11-2018, relatora Higina Castelo, proc. n.º 932/13.6TBALQ.L1, disponível em www.dgsi.pt).
Desta forma, relativamente ao dano patrimonial emergente diretamente relacionado com o dano corporal, a jurisprudência tem considerado ressarcíveis as despesas médicas, paramédicas, de farmácia e de reabilitação.
No que respeita ao dano patrimonial na vertente de lucro cessante, a sua ressarcibilidade encontra-se prevista no artigo 564º nº 1 do Código Civil. Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, pág. 505), o mesmo abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, as vantagens que, segundo o curso normal das coisas ou de harmonia com as circunstâncias especiais do caso, o lesado teria obtido não fora o ato lesivo. Inclui-se aqui o prejuízo correspondente à perda de rendimentos e salários que seriam devidos no período de incapacidade temporária, total ou parcial, para o exercício da profissão, e neste caso a fixação da indemnização bastar-se-á, em regra, com uma operação de simples cálculo aritmético.
Por outro lado, o artigo 564º nº 2 do Código Civil consagra a ressarcibilidade dos danos futuros, dispondo que na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior, através do incidente de liquidação respetivo. O dano futuro previsível mais típico advém da perda ou diminuição da capacidade de trabalho e da perda ou diminuição da capacidade de ganho, perda esta que se analisa como um efeito danoso, de natureza temporária ou definitiva, que resulta para o lesado do facto de ter sofrido determinada lesão impeditiva da sua obtenção normal de determinados proventos como remuneração pelo seu trabalho (neste sentido, cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de outubro de 1992, CJSTJ, tomo IV, pág. 29).
Quanto aos danos não patrimoniais, estes compreendem, nomeadamente, as dores físicas, as sequelas psicológicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética, entre outros.
Entre os danos não patrimoniais merecedores da tutela do direito inclui-se o dano corporal em sentido estrito, consubstanciado no prejuízo de natureza não patrimonial que recai na esfera do próprio corpo, o dano à integridade física e psíquica.
Neste campo, têm sido considerados com valorizáveis os seguintes danos:
- a dor física sofrida pelo lesado, a qual está relacionada com diversos fatores, tais como a idade da vítima, fatores psicossociais, tipo de personalidade do lesado, tipo de lesão e de tratamento que foi aplicado. Assim, a dor pode não ser proporcional à gravidade da lesão, podendo ser mais aguda em lesões menos graves;
- a dor moral ou psíquica sofrida pelo lesado por saber-se diminuído fisicamente;
- o dano biológico em sentido estrito, traduzido na afetação da integridade anatómica, fisiológica ou estética. Este dano representa um prejuízo consistente na privação da efetiva utilidade que um corpo são proporciona, e distingue-se, assim, do desgosto e sofrimento psíquico que o lesado sinta por se encontrar diminuído. A quantificação deste dano varia em função da parte do corpo lesada, da idade da pessoa e da gravidade da lesão;
- o dano estético tem sido valorado autonomamente, embora possa ser igualmente ressarcido enquanto dano patrimonial, se tiver reflexo económico na vida da pessoa afetada;
- o prejuízo de afirmação pessoal, valorando-se a diminuição ou anulação da capacidade do indivíduo para obter ou desfrutar os prazeres ou satisfações da vida, como consequência direta do dano, desde que se aleguem e provem as atividades lúdicas que, praticadas antes do facto gerador do dano, ficam comprometidas por causa dele;
- a perda de expectativas de duração de vida (neste sentido, cfr. supracitado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de abril de 1997), que pode resultar demonstrado no caso dos idosos cujo estado de saúde é normalmente mais frágil. Os traumatismos resultantes do acidente, as suas consequências, a permanência em hospitais, tratamentos, etc., poderão afetar a saúde débil preexistente ao acidente, contribuindo para uma diminuição da expectativa de vida.
O montante da compensação do dano não patrimonial, nas várias vertentes enunciadas, deve ser calculado segundo critérios de equidade, nos termos do n0 3 do artigo 4960 do Código Civil.
O valor encontrado não deve determinar nem enriquecimentos injustificados nem corresponder a um montante miserável, tanto mais que o valor atual do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel acompanha os valores fixados para os restantes países europeus.
No caso vertente, tendo em conta os parâmetros antes referidos, considerando os pedidos efetuados e face aos factos dados como provados, no que se refere aos danos patrimoniais, provou-se que, em consequência do acidente, o demandante não recebeu um salário e meio, pelo que deve o que deixou de receber ser pago a título de indemnização por lucros cessantes. Porém, ficou igualmente provado que o valor líquido recebido era de 1.215,00€. Desta forma, o demandante teria a receber 1.822,50€, correspondentes ao ordenado e meio que deixou de receber. Contudo, o demandante pediu 1.800,00€, e o tribunal, atendendo ao princípio do dispositivo manifestado pelo princípio do pedido (artigos 30 n0 1 e 6090 n0 1 do Código de Processo Civil) encontra-se vinculado a esse montante máximo.
Quanto ao valor do motociclo, sendo certo que a destruição total do mesmo se ficou a dever ao acidente e, logo, à atuação da segurada da demandada, a verdade é que, nos termos do artigo 410 n0 3 do Decreto-lei n.0 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), o valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização. Verifica-se que o salvado ficou, efetivamente, na posse do demandante, tendo o seu valor sido estimado em 505,00€, o que não foi posto em causa, pelo que deve a demandada ser condenada a pagar o valor de 2.295,00€, que constitui o valor do motociclo deduzido do valor do salvado.
Quanto às despesas com tratamentos, apenas juntou o demandante o comprovativo do pagamento do montante de 175,00€, pelo que é apenas este o valor a pagar pela demandada.
No que se refere às despesas médicas suportadas pelo demandante em consequência do acidente, ficou provado que o demandante despendeu o montante de 509,45€, pelo que deve a demandada ressarci-lo do mesmo.
Desta forma, tendo em atenção os critérios de fixação da indemnização (cfr. artigos 5640 e 5660 do Código Civil), conclui-se que o demandante tem direito a receber, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de 4.779,45€.
Sobre esta quantia incidem juros de mora, à taxa legal, desde a notificação da demandada para contestar o pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento (artigos 5590, 8040 n0 1, 8050 n0 3 e 8060 n.0s 1 e 2 do Código Civil).
Relativamente ao dano não patrimonial sofrido pelo demandante em consequência do acidente decompõe-se nos seguintes elementos:
- dano biológico em sentido estrito: em consequência do acidente, o demandante sofreu lesões que lhe determinaram sequelas permanentes, tendo ficado para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelo esquerdos. Consequentemente, e tendo por base que a capacidade integral do indivíduo corresponde a 100 pontos, o demandante, com 26 anos de idade, passou a sofrer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 12 pontos, conforme consta do relatório pericial, que se manifesta na sua incapacidade para efetuar tarefas simples do dia-a-dia. Efetivamente, o demandante explicou que deixou de conseguir fazer com o braço esquerdo tudo o que implique levantá-lo acima da zona do queixo. Desta forma, tarefas simples como retirar pratos do armário da cozinha, lavar o cabelo ou pendurar quadros tornaram-se impossível de realizar com esse braço; não consegue mais praticar rugby, que praticou durante longos anos, tendo inclusivamente chegado a ser internacional pela seleção portuguesa, pois as limitações de que passou a padecer não o permitem. Também, conforme explicou de forma impressiva, as relações com a sua mulher e filha ficaram daqui em diante condicionadas pelas sequelas físicas deixadas pelo acidente: o facto de ter um braço que perdeu muita amplitude de movimento afetou de forma permanente a sua atividade sexual e jamais poderá colocar a sua filha às cavalitas, atirá-la ao ar ou sequer levantá-la acima da sua cintura. Na verdade, o demandante tinha 26 anos à data do acidente, tem agora 30 anos, e jamais recuperará a amplitude de movimentos que perdeu no braço esquerdo, aliás, existe uma grande probabilidade de a situação se agravar e poder vir a ter de colocar uma prótese, tendo explicado que para tentar evitar esse desfecho não pode deixar de fazer os exercícios em casa, mesmo tendo já terminado as sessões de fisioterapia. Ou seja, tendo em conta a esperança média de vida para indivíduos do sexo masculino com a idade do demandante, o mesmo pode contar com 50 anos de limitações pela frente, limitações para realizar tarefas simples da vida quotidiana que a maioria das pessoas faz sem grande reflexão, mas que facilitam muito a vida, e limitações que se refletem na forma como se relaciona com a sua mulher e filha;
- dor física e dor psíquica sofridas pelo demandante: provou-se que o demandante sofreu fortes dores provocadas pelas lesões decorrentes do acidente, o que lhe causou incómodo físico e psíquico, insónias e uma terrível sensação de mal-estar. Neste campo, explicou o demandante que sofreu dores terríveis, não só como causa direta das lesões, mas também provocadas pela fisioterapia a que teve de submeter-se durante 21 meses, que implicavam exercícios dolorosos em que tinha de forçar o movimento do braço afetado. Revelou que durante muito tempo após o acidente não conseguia sequer ter um sono seguido, acordando constantemente com dores. Explicou ainda que não consegue conduzir um carro por mais de 20 minutos sem ficar com o braço dormente, e tem de dormir de lado e agarrado a uma almofada, caso contrário fica com o braço dormente. Contou o demandante que até de correr teve de desistir, pois passados cerca de 2/3 km fica com dores. Aliás, o demandante foi muito expressivo ao descrever a dor que sofreu, sendo que ficou ainda a sofrer dores de forma crónica. Explicou ainda o demandante como o acidente e as suas sequelas o afetaram psicologicamente, tendo sentido uma grande revolta, e embora atualmente considere que, passados 3 anos, conseguiu resignar-se com as limitações que terá para o resto da vida, revelou que sente ansiedade perante a probabilidade de poder vir a ter de colocar uma prótese, sendo que se isso acontecer terá de trocá-la de 10 em 10 anos. Disse que sempre foi uma pessoa forte e agora se sente frágil; aliás, descreveu o seu braço esquerdo como um braço inútil. Tudo isto encontra reflexo na perícia de avaliação do dano corporal, que fixou o quantum doloris no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente;
- dano estético: ficou ainda demonstrado que, em consequência do acidente, o demandante ficou com cicatrizes evidentes, tendo inclusivamente passado a sofrer de um dano estético permanente fixado pela perícia de avaliação do dano corporal no grau 3. O demandante revelou que sente uma grande vergonha e constrangimento quando as cicatrizes do braço, que descreve como gordas e muito visíveis, estão expostas, designadamente na praia, tendo noção de que olhar para elas incomoda as pessoas.
Tudo quanto se acabou de referir reveste-se de uma gravidade extrema, pois o demandante era, na data do acidente, um jovem de 26 anos, saudável, que tinha uma vida inteira pela sua frente, cheia de projectos. De um segundo para o outro, devido a uma negligência grave da arguida, o demandante viu a sua vida, usando uma expressão corriqueira, “virada de pernas para o ar”. Conforme ele relatou, tinha acabado de comprar a mota e ia partir de férias, com a sua namorada/companheira, com quem planeava casar em breve e ter filhos. Porém, de um momento para o outro, todo esse projecto de vida lhe foi roubado com este acidente, tendo ao invés, o demandante enfrentado um longo período de doença, contabilizado em 733 dias, com três intervenções cirúrgicas e longos e dolorosos tratamentos, para no final, concluir que apesar de melhor, nunca mais iria recuperar a possibilidade de levantar ou movimentar o seu braço, acima do nível do queixo.
Qualquer cidadão médio, sabe que quando vai a um médico e tem a notícia de que tem de fazer um tratamento a uma doença, fica logo incomodado e aborrecido, imaginemos então o sofrimento deste jovem de 26 anos, que se viu privado de quase tudo o que gostava de fazer durante 733 dias, sendo que ainda hoje não consegue fazer muitas dessas coisas.
Certamente, como foi referido em julgamento, o demandante acabou por fazer o “luto” do seu braço, como um médico lhe disse, pois parte desse braço tinha morrido (já não ia funcionar mais – levantar acima do queixo), mas dúvidas não restam que o demandante vai viver o resto da sua vida com esse peso, de não poder fazer uma série de coisas, ainda que simples, como lavar o cabelo com aquela mão. Vai sempre sentir essa deficiência, essa mazela, e ainda as cicatrizes no seu corpo. Acresce que tendo em conta uma esperança média de vida de oitenta anos, o demandante, hoje com trinta anos, ainda tem 50 anos de sofrimento pela frente.
Na verdade, não devemos ter só em atenção toda a dor e sofrimento que o demandante já passou, mas todo aquele que irá ainda passar durante o resto da sua vida, continuando incapacitado para fazer uma série de coisas, continuando a sofrer dores e estando sempre debaixo da espada de a sua situação óssea piorar e ter de ser novamente intervencionado, como é muito provável que venha a suceder.
Por seu turno, nota-se todo o transtorno, infelicidade e revolta que isto causou no demandante, o que decorre não só das regras da experiência, como também daquilo que ouvimos do demandante, sendo muito impressionante o seu relato em audiência de julgamento. Na verdade, as palavras não são suficientes para o descrever, sendo imprescindível a sua efectiva audição.
Por seu turno, importa realçar que não há quantia pecuniária que efectivamente “pague” toda esta situação, sendo certamente verdade, como foi afirmado em audiência pelo demandante, que pagava toda e qualquer quantia que venha a ser arbitrada pelo Tribunal, para não ter passado por isto e para recuperar o seu braço.
Esta situação, como muitas idênticas a esta, merecem uma compensação adequada e justa, à altura de todo o sofrimento causado, não se compadecendo com indemnizações de baixo valor, sobretudo tendo em atenção o valor mínimo da cobertura obrigatória do seguro automóvel, que todo e qualquer condutor tem de contratar, no valor mínimo total de € 7.290.000, e que no caso em apreço está a cargo da demandada seguradora.
Por outro lado, importa considerar que a negligência da arguida é grave, pois mesmo tendo total visão do motociclo conduzido pelo demandante, se atravessou à sua frente, não respeitando a prioridade deste, e dando causa a este acidente, com tão graves consequências para o demandante.
Assim, considerando os fundamentos acima expostos, bem como os critérios legais, tendo em conta a idade do demandante e as consequências do acidente na sua vida e integridade física e psíquica, afigura-se adequado fixar a indemnização por danos não patrimoniais a pagar pela demandada ao demandante no montante de 60.000,00€.
Note-se, aliás, que tal valor não corresponde sequer a 1% do valor mínimo obrigatório do seguro de responsabilidade automóvel.
Pelo exposto, afigura-se que tal valor é absolutamente adequado, à luz da equidade, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, a existência de um seguro válido, a intensa negligência da arguida e a extrema gravidade dos danos suportados pelo demandante.
Quanto aos juros, de acordo com o entendimento sufragado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002 (publicado no DR n.º146, I- Série de 2002-06-27), uma vez que o tribunal recorreu à equidade para alcançar os valores referidos quanto aos danos não patrimoniais e, nessa medida, efetuou um cálculo tendo em conta as condições e o valor monetário atuais, não deverão os mesmos vencer juros desde a notificação do pedido cível, mas apenas desde o trânsito em julgado desta sentença até efetivo e integral pagamento." (fim de transcrição).
3. Vejamos se assiste razão à recorrente.
Aquilatemos, então, se, como alega a demandada CC - Companhia de Seguros, S.A., é excessiva a quantia de 60.000,00€ arbitrada a título dos danos morais ao ofendido e demandante cível BB.
Atente-se que a circunstância de ter sido decidido na sentença recorrida que tal quantia (ou aquela que porventura se viesse a fixar em sede do presente recurso) será “acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado desta sentença até efetivo e integral pagamento” não é matéria controvertida.
Face ao disposto no artigo 129.° do Código Penal, «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime e regulada pela lei civil», tanto no que se refere ao respetivo quantitativo como aos seus pressupostos, uma vez que processualmente vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova.
A prática de uma infração penal implica, com frequência, a lesão de direitos patrimoniais ou não patrimoniais de terceiros. O ressarcimento de tais lesões deve, em consequência do princípio da adesão consagrado no artigo 71.°, do Código de Processo Penal, ser deduzido no processo penal.
Estabelece o artigo 483.°, n.º 1 do Código Civil: «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Tais danos são tanto os não patrimoniais como os patrimoniais, aqueles valorados equitativamente, conforme decorre do artigo 496.°, n.º 3 do Código Civil, estes levando em conta a possível reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso (“Princípio da Reposição Natural”), ponderados os critérios resultantes dos artigos 562.°, 564.° e 566.° do citado diploma, sendo que, face ao artigo 563.°, em relação a ambos os tipos de danos terá que verificar-se o respetivo nexo causal.
Pelo que respeita a fixação do montante da indemnização, a lei socorre-se aqui, como em outros casos em que há manifesta dificuldade de quantificação abstracta das obrigações, da equidade, entregando aos tribunais a solução do caso concreto, mas balizando o caminho a seguir para determinação do montante da indemnização ou, o que vai dar no mesmo, fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar.
Tais critérios são, em primeiro lugar, a gravidade dos danos, não podendo a decisão desconsiderar essa gravidade, proporcionando a indemnização a essa extensão, mas também o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstancias do caso concreto - artigo 494.°, aplicável ex vi do artigo 496.°, n.º 3, 1.ª parte, ambos do Código Civil.
Conforme faz notar Pessoa Jorge (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, p. 376), «(...) na generosa formulação do art. 496.° do C. Civil, que confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, no que fundamentalmente releva, não o rigor algébrico de quem faz a adição de custos, despesas, ou de ganhos (como acontece no cálculo da maior parte dos danos de natureza patrimonial), mas, antes, o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar ao lesado e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afectada» .
Na perspetiva da indemnização nos termos da responsabilidade civil pode afirmar-se que dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
No caso em apreço, atenta a factualidade dada como provada (cfr. pontos 1 e 8 a 23), verificamos que, logo após o acidente, ocorrido no dia 27 de Julho de 2016, pelas 13.47 horas, na Estrada da Luz, em Lisboa, o INEM foi chamado ao local e transferiu o demandante para o serviço de urgências do Hospital de Santa Maria. Foi-lhe diagnosticado, como consequência direta e necessária do embate, traumatismo da face, do tórax e do membro superior esquerdo. Resultaram para o demandante consequências permanentes de tais lesões, nomeadamente a limitação da mobilidade do ombro e cotovelo esquerdos. Tendo estado o demandante de baixa médica ou com afetação da capacidade para o trabalho durante 733 dias. Tendo nesse período o demandante sido sujeito a três intervenções cirúrgicas, diversas consultas, sessões de fisioterapia, exames e tratamentos médicos. E mesmo após ter regressado ao trabalho, o demandante ficará para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelo esquerdos. Por força das referidas sequelas, o demandante passou a sofrer fortes dores e uma terrível sensação de mal-estar, bem como dificuldades de locomoção do membro superior esquerdo, o que levou a que fosse operado três vezes. O que se tem prolongado por todos estes anos, assente em muitas horas de tratamentos, fisioterapia, hidroterapia, nomeadamente para recuperação das três costelas e o osso da cara que fraturou na sequência do acidente em discussão nos presentes autos. O demandante ficou com os ossos estilhaçados, o que obrigou à colocação de dezanove parafusos nas articulações e centenas de pontos e agrafos nas áreas afetadas, com as inerentes cicatrizes. O que se manifestou na dificuldade do demandante em dormir com as dores que tinha. Dificuldades estas que, embora não de modo tão acentuado, ainda se mantêm à presente data, e continuarão a manter-se de futuro. E que se manifestam nos procedimentos mais simples da vida comum, como por exemplo conduzir um automóvel. Para além do susto e do transtorno causados, a colisão afetou o ritmo de vida do demandante, porquanto ficou sujeito a um longo e complicado processo de reabilitação clínica. O que, apesar de tudo, não evitará que um jovem de 26 anos ficasse para toda a vida com limitações no seu braço, nomeadamente pelas artroses e rigidez articular que o vão para sempre acompanhar. Sendo mesmo bastante provável que o demandante venha a ser alvo de uma quarta intervenção cirúrgica a fim de colocar uma prótese para suporte da cabeça do úmero. E, por conseguinte, o demandante viu-se dependente do apoio e cuidados das pessoas mais próximas, por não ter qualquer tipo de autonomia funcional.”, deste modo, a conduta da arguida foi adequada a causar, como causou, tudo o supra exposto que se traduziu para o lesado na dor física sofrida, a par da dor moral ou psíquica sofrida por saber-se diminuído fisicamente, a que acresce o dano biológico em sentido estrito, traduzido, como se explicou na decisão recorrida, “na afetação da integridade anatómica, fisiológica ou estética. Este dano representa um prejuízo consistente na privação da efetiva utilidade que um corpo são proporciona, e distingue-se, assim, do desgosto e sofrimento psíquico que o lesado sinta por se encontrar diminuído. A quantificação deste dano varia em função da parte do corpo lesada, da idade da pessoa e da gravidade da lesão; - o dano estético tem sido valorado autonomamente, embora possa ser igualmente ressarcido enquanto dano patrimonial, se tiver reflexo económico na vida da pessoa afetada; - o prejuízo de afirmação pessoal, valorando-se a diminuição ou anulação da capacidade do indivíduo para obter ou desfrutar os prazeres ou satisfações da vida, como consequência direta do dano, desde que se aleguem e provem as atividades lúdicas que, praticadas antes do facto gerador do dano, ficam comprometidas por causa dele; - a perda de expectativas de duração de vida” nos termos também ali cabalmente explicados e que pela sua gravidade, merece indiscutivelmente a tutela do direito.
Nestes termos e, perante o exposto, estão reunidos os pressupostos de que depende a efetivação da responsabilidade civil da demandada CC- Companhia de Seguros, S.A., o que esta nem questiona, para com o demandante/ofendido BB, no que concerne aos danos não patrimoniais por estes sofridos, afigurando-se a este tribunal ad quem terem sidos integralmente respeitados os critérios para fixação da indemnização no que concerne aos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente BB no tocante aos danos morais, nas vertentes qua acima assinalámos, razão pela qual se julga totalmente adequado manter a condenação da demandada CC - Companhia de Seguros, S.A. no pagamento ao demandante BB da quantia de € 60.000,00 a este título, por força dos mencionados danos não patrimoniais, como adiante melhor se explicitará.
Alega a demandante e ora recorrente CC - Companhia de Seguros, S.A. que, sem querer desconsiderar a gravidade da situação relatada nos autos, peca por algum excesso a quantia de € 60.000,00 arbitrada a título de danos não patrimoniais tendo em consideração as circunstâncias do caso concreto, aos danos morais sofridos por BB e as decisões jurisprudenciais em casos semelhantes.
Contudo, em suporte desta sua afirmação trás a recorrente à colação dois arestos do Supremo Tribunal de Justiça, sendo que em rigor apenas um deles releva no que ora nos trás apreciar, quando nas suas parcas motivações de recurso expende:
“Conforme tem vindo a ser entendido pela Doutrina e Jurisprudência, a reparação dos danos deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e criteriosa ponderação da realidade da vida.
Tem vindo a ser considerado que “na determinação do quantum da compensação por danos não patrimoniais deve atender-se à culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, à flutuação do valor da moeda e à gravidade do dano, tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico e psíquico por ele experimentado, sob
o critério objectivo da equidade, envolvente da justa medida das coisas, com exclusão da influência da subjectividade inerente a particular sensibilidade” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2005, processo n.° 05B3436, disponível in www.dgsi.pt).
Neste tipo de casos, o Tribunal tem uma dupla tarefa: não só tem de ponderar o dano não patrimonial sofrido em concreto, como também deve atender a diversos critérios não diretamente ligados com a lesão, tal como critérios de conveniência, de justiça abstrata e de ordem social.
Conjugados todos estes critérios, entende a Recorrente que o valor arbitrado peca por algum excesso, notando que significativa parte da Jurisprudência dos nossos Tribunais superiores tem arbitrado quantias inferiores à ora fixada, em situações similares.
Assinale-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2019, processo n.° 7614/15.2T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se fixou uma indemnização de 30.000,00 € para uma situação que é descrita nos seguintes termos:
“Considerando (i) as cinco intervenções cirúrgicas a que o autor se submeteu, (ii) os tratamentos de fisioterapia durante cerca de dois anos, (iii) a dor física que padeceu (grau 4 numa escala de 1 a 7), (iv) o dano estético (grau 3 numa escala de 1 a 7), a afetação permanente nas atividades desportivas e de lazer (grau 3 numa escala de 1 a 7), (v) a limitação funcional do membro superior esquerdo em relação a alguns movimentos, (vi) a dor ligeira da anca no máximo da flexão e ao ficar de cócoras, (vii) a tristeza, a depressão e
o desgosto, considera-se adequado compensar estes danos não patrimoniais no montante de € 30 000,00”.
Existem evidentemente diferenças face ao caso concreto: idade superior (34 anos); quantum doloris em grau 4 (grau 5 nos presentes autos); dano estético em grau 3 (grau 4 nos presente autos); afetação permanente nas atividades desportivas e de lazer em grau 3 (grau 5 nos presentes autos).
No entanto, a Recorrente não pode deixar de notar que ao lesado (do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça) foi atribuído um défice funcional de 16 pontos por força das lesões sofridas, sem rebate profissional, mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional.
Por contraponto, ficou provado nos presentes autos (cfr. relatório pericial) que o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 12 pontos que afeta o Demandante, além de ser compatível com o exercício da atividade habitual, não implica qualquer esforço suplementar.
Parece-nos, portanto, em face do exposto, que o valor de 60.000,00 € é desproporcionado face aos danos sofridos.” (fim de transcrição).
Como doutamente expendeu o demandante BB na sua resposta ao recurso, a que aderimos face à sua boa argumentação pela clareza e acerto jurídico:
“À data do acidente o Recorrido tinha 26 anos de idade.
O Recorrido tem várias cicatrizes no corpo, incluindo no rosto, marcas estas bastante visíveis.
Como consequência do mesmo esteve de baixa médica mais de dois anos.
Foi sujeito a três intervenções cirúrgicas, sendo certo que no futuro seguramente terá de ser submetido a mais intervenções cirúrgicas por via da degradação do seu ombro esquerdo.
Viu-se, aos 26 anos e conforme decorre da sentença ora recorrida, impedido da prática de actos que são correntes da vida normal, bem como da prática desportiva onde foi atleta federado, por via de uma incapacidade permanente que o acompanhará para o resto da vida.
Terá de se conformar, numa esperança média de vida que ainda tem de mais de 50 anos de duração, com o facto que nunca mais terá uma mobilidade sequer normal no seu braço esquerdo. Como assente na douta sentença ora recorrida, o Recorrido ainda hoje não consegue levantar o braço esquerdo acima da altura do queixo, e não mais o voltará a conseguir.
Estamos a falar de um membro essencial para a prática de actos tão banais como pôr loiça na mesa, levantar um objecto, pegar num filho ao colo, ou mesmo lavar a cabeça, tudo actos que o Recorrido se viu limitado ou mesmo impedido de fazer.
Por outro lado, e relativamente ao dano estético, não podemos olvidar que o Recorrido foi suturado com 19 pontos no rosto, 166 agrafos e 19 parafusos, tudo isto em quatro intervenções cirúrgicas a que foi sujeito.
Isto deixou cicatrizes profundas no Recorrido, as quais são permanentes, e que, como também não foi posto em crise na motivação de recurso a que ora se responde, o deixam constrangido quando tem de exibir o seu corpo, nomeadamente na praia.
Para além disso foram 21 meses de fisioterapia, com exercícios diários e dolorosos conforme ficou demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento, sob a angústia de saber que provavelmente nunca mais teria a mobilidade normal no seu braço esquerdo, o que se veio a confirmar.
E como também foi dado como assente na douta sentença ora recorrida, o mais provável é que o Recorrido tenha de ser alvo de uma nova intervenção cirúrgica e colocar uma prótese no braço esquerdo.
Ou seja, para além de todo o sofrimento fisíco e psíquico, o Recorrido tem de viver o resto da sua vida, fazendo o luto ao seu braço esquerdo.
Resumindo, o Recorrido ficou privado de seguir uma vida normal, com todo o choque psicológico que tal representa, que se refletiu na personalidade do recorrido, no próprio receio em voltar a conduzir motociclos e muita insegurança conforme provado na douta sentença recorrida.
Entre muitos outros constrangimentos que constam da douta sentença recorrida e que não foram infirmados por outros elementos dos autos.
Bem andou o douto Tribunal a quo, quando considerou valorizáveis os danos físicos, psíquicos, biológicos, estéticos, de prejuízo de afirmação pessoal.
Como bem decidiu o douto Tribunal a quo, o valor arbitrado pelos Tribunais não deve determinar um enriquecimento injustificado para o lesado, mas também não deve corresponder a um montante miserável para este.
Tanto mais quanto é certo que o valor atual do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em Portugal acompanha os valores fixados para os restantes países europeus.
E na verdade, ficou dado como provado e não foi posto em causa pela recorrida que: O recorrido sofreu lesões que lhe determinaram sequelas permanentes, ficando para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelos esquerdos.
Ficou incapacitado para efetuar tarefas simples do dia-a-dia.
Não consegue mais praticar desporto, seja por limitações fisícas, seja por receio de se magoar novamente.
Ficou limitado na sua vida pessoal e familiar.
Existe a probabilidade séria do estado clínico do seu ombro e cotovelo agravarem e ter de ser sujeito a mais operações cirúrgicas e mais processos morosos de recuperação. Ficou com um dano estético permanente, com cicatrizes evidentes.
Mas sobretudo, e como bem refere a douta sentença ora recorrida, “...dúvidas não restam que o demandante vai viver o resto da sua vida com esse peso, de não poder fazer uma série de coisas, ainda que simples, como lavar o cabelo com aquela mão. Vai sempre sentir essa deficiência, essa mazela, e ainda as cicatrizes no seu corpo. Acresce que, tendo em conta uma esperança média de vida de oitenta anos, o demandante, hoje com trinta anos, ainda tem 50 anos de sofrimento pela frente”.
Perante tais factos, torna-se forçosamente necessário concluir que a indemnização arbitrada pelo douto Tribunal não constitui qualquer espécie de enriquecimento injustificado para o recorrido.
E, com toda a certeza, não compensa todo o sofrimento e as expectativas futuras de evolução do seu estado clínico.
Pelo que, a redução do montante em que foi condenada a Recorrida, seria sempre “miserável” face aos danos incorridos e em que poderá incorrer o Recorrido.
Os danos ali descritos não são, sequer comparáveis aos indicados pela Recorrida através do Acórdão a que faz alusão no seu recurso (O douto acórdão proferido pelo STJ de 29-10-2019).
Naquele processo verifica-se que o lesado ficou com uma limitação funcional do membro superior esquerdo em relação a alguns movimentos (negrito nosso).
No caso vertente o ora recorrida ficou com uma incapacidade permanente para todos e quaisquer actos que tenha de praticar e que impliquem uma rotação maior do seu cotovelo esquerdo ou movimentos acima da altura do seu queixo.
E que não se traduzem em quaisquer dores ligeiras mas sim agudas e impeditivas.
E como se pode verificar por aquele Acórdão, o aqui recorrido era mais jovem, teve um quantum doloris em grau superior, dano estético em grau superior, e uma afectação permanente nas actividades desportivas e de lazer em dois graus superior.
O que igualmente é demonstrativo que a indemnização arbitrada pelo douto Tribunal a quo, não não é manifestamente excessiva quanto ao montante ali referido.
Uma vez que, esta indemnização não só deve corresponder a toda a dor e sofrimento que o Recorrido teve, mas também que irá, e comprovadamente nos autos ficou demonstrado, ter no futuro.
Veja-se a este respeito o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 10 de Dezembro de 2019, no âmbito do processo 32/14.1TBMTR., disponível em www.dgsi.pt, que refere:
“O dano resultante da incapacidade permanente (ainda que parcial), na medida em que representa uma diminuição somática e funcional do lesado, não pode deixar de ser considerado um dano patrimonial (futuro), tanto mais, que, em regra, essa «capitis diminutio», obriga a um maior esforço na realização de tarefas”.
Prosseguindo ainda aquele acórdão, “na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, máxime do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional ou dano biológico, em que se traduz a incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão fundamental do lesado à saúde e à integridade física.”
E no âmbito daquele Acórdão, foi fixada uma indemnização superior à fixada nos presentes autos, tendo como pressupostos daquela decisão, a idade jovem da sinistrada, as intervenções cirúrgicas a que foi sujeita, o défice funcional permanente (este superior ao do recorrido), um tempo inferior de incapacidade temporária, dano estético e de quantum doloris apenas um grau acima dos do recorrido mas sobretudo, os projectos de vida interrompidos e o esforço acrescido que, ao nível da sua vida pessoal, terá de desenvolver para executar as tarefas diárias, agravada pela necessidade de, em algumas situações, tal como o recorrido, ter que recorrer à ajuda de terceiras pessoas.
Formulando-se um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objectiva e subjectiva dos prejuízos sofridos, tem forçosamente que se concluir que o montante em que a recorrente foi condenada não é excessivo face aos danos sofridos pelo recorrido.” (fim de transcrição).
Detalhemos um pouco mais.
A alegação da recorrente remete-nos para o quadro legal da indemnização dos danos não patrimoniais e para o papel das decisões judiciais na fixação do montante da indemnização.
O quadro legal a atender é constituído pelos n.°s 1 e 4 do artigo 496.° do Código Civil e pelo artigo 494.° do mesmo diploma.
O n.° 1 do artigo 496.° estabelece que, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito
Por sua vez, o n.° 4 do artigo 496.° do Código Civil estabelece que
o montante da indemnização dos danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.°.
O artigo 494.° refere como circunstâncias atendíveis o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e quaisquer outras que se justifiquem no caso.
Apesar de a letra da lei - n.° 4 do artigo 496.° - não dizer expressamente que o montante da indemnização dos danos não patrimoniais dever ser proporcional à gravidade dos danos, a proporcionalidade ente a gravidade dos danos e o montante da da indemnização tem apoio tanto neste número como no n.° 1 do mesmo preceito.
Tem apoio no n.° 1 porque, segundo esta norma, apenas são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Tem apoio no n.° 4 porque, dizendo esta norma que o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, não se concebe que haja equidade se o montante da indemnização não for proporcional à gravidade dos danos.
Como escreve Maria Manuel Veloso, Danos Não patrimoniais (Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Volume III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, páginas 543 e 544): "A ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial que se reflecte na fixação do montante da indemnização deve ter em conta uma ideia de proporcionalidade. A danos mais graves correspondem montantes mais avultados".
Visto que o Código Civil não contém quaisquer tabelas que estabeleçam montantes de indemnização em função da gravidade dos danos e que a compensação devida pelos danos não patrimoniais prevista na Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio, serve para efeitos de apresentação aos lesados, por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, por parte das seguradoras, não afastando a fixação de valores superiores aos aí previstos (n.°s 1 e 2 do artigo 1.° da Portaria), os tribunais procuram alcançar a equidade, a proporcionalidade na fixação da indemnização, recorrendo ao que é decidido, especialmente pelo Supremo Tribunal de Justiça, em casos análogos.
Este caminho tem apoio no n.° 3 do artigo 8.° do Código Civil, que estabelece que "nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito", e no princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (n.° 1 do artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa).
Bem sabemos existirem decisões judiciais em que foram fixadas indemnizações por danos não patrimoniais em montante inferior ao fixado pelo tribunal a quo em situações fácticas porventura parecidas com a dos presentes autos, se bem que, quanto a nós, em quadros de uma maneira geral menos gravosas que o ora nos é dado apreciar, a par de que, com o devido respeito por quem assim não entende, é necessário ter uma hermenêutica actualista e despojada de uma perspectiva miserabilista, na fixação das indemnizações por danos não patrimoniais .
Podemos referir, entre outros, fixando os seguintes montantes de indemnização, para ressarcimento de danos não patrimoniais, em sede de pedidos cíveis:
n € 10.000,00 “a uma lesada que sofreu fractura múltipla do braço direito, fractura do úmero, que foi sujeita a duas intervenções cirúrgicas, que teve de comparecer a diversas consultas (mais de 10) e sessões de tratamento (32 sessões de fisioterapia) e que ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral de 8%” - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31/05/2012, proferido no âmbito do processo n.° 1145/07.1TVLSB.L1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n € 12.500,00 “a uma sinistrada que ficou a padecer de cervicalgia residual com contratura dos paravertebrais e trapézios, rigidez na mobilização cervical, dorsalgia residual, dificuldade na permanência prolongada no trabalho com computador, por cansaço muscular fácil, que ficou a padecer de uma IPG de 10 (dez) pontos, a que acrescem mais 2 (dois) pontos a título de dano futuro, que irá necessitar de fazer fisioterapia durante toda a vida, que sofreu um quantum doloris de grau 4/7, que passou a sofrer de tonturas, enjoos e desequilíbrios, que perdeu a capacidade de concentração, tornando-se ríspida e agressiva” - decidido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/01/2013, proferido no no âmbito do processo n.° 13492/05.2TBMAI, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n 15.000,00 “ a um lesado de 24/25 anos, estudante, que ficou a padecer de uma IPG de 13 pontos, decorrente de lesões no punho e tornozelo esquerdo que tenderão a agravar-se no futuro, quantum doloris valorado em 4 numa escala de 7, que teve grande sofrimento físico e psíquico com a intervenção cirúrgica a que foi sujeito, e sente grandes dificuldades em nadar, andar de bicicleta e a pé” - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/04/2012, proferido no âmbito do processo n.° 3046/09.0TBFIG.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n € 20.000,00 numa situação com as seguintes características: “(1) [d]as dores físicas e psíquicas desde o acidente até à data da consolidação das lesões avaliadas no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; (2) [d]as dores sentidas na face superior do ombro direito com as mudanças de temperatura e com os movimentos do braço direito nos últimos graus da abdução/antepulsão e rotação externa do ombro; (3) [d]o dano estético, representado pela cicatriz na omoplata direita, avaliado num grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; (4) [d]o desgosto que a autora sofre pelo facto de ter ficado com a cicatriz na omoplata; (5) [d]as limitações na actividade física e de lazer, resultantes do facto de ter deixado de praticar futsal, actividade que contribuía para o seu bem-estar e satisfação; (6) [d]o condicionamento da sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, que experimentou desde o acidente até à consolidação das lesões.” - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/11/2019, proferido no âmbito do processo n.° 107/17.5T8MMV.C1.S1, disponível na JusNet
n € 20.000,00 num caso em que houve ausência de culpa da vítima na verificação do acidente de viação, e esta teve sofrimento físico e psíquico (quantum doloris de grau 4, quanto ao dano estético (grau 3) e quanto à repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer (grau 2)". - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5/12/2017, proferido no âmbito do processo n.° 505/15.9T8AVR, publicado em www.dgsi.pt;
n € 20.000,00 “numa situação com as seguintes características: 1. Dores avaliadas no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, entre a data do acidente e a cura ou consolidação das lesões; 2. Manutenção das dores, após a consolidação das lesões, apesar da toma de medicamentos; 3. Tristeza e ansiedade da autora com as sequelas do acidente; 4. Condicionamento na realização de actos correntes da vida diária, familiar e profissional, mesmo depois da consolidação das lesões, como o atestam os seguintes factos: a) não consegue estar muito tempo sentada à secretária, como exige a sua profissão; b) perdas de concentração; c) dificuldade em executar algumas tarefas domésticas; d) dificuldades em pegar no filho ao colo e dar-lhe banho; 5. Ausência de culpa quanto à produção dos danos.” - decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/12/2019, proferido no âmbito do processo n.° 5937/17, disponível na JusNet;
n € 40.000,00 numa situação com as seguintes características: “ jovem de 17 anos, vários tratamentos médicos, intervenções e internamentos, alta mais de 4 anos depois do acidente, repercussões estéticas, quantum doloris de grau 6, e grave culpa da condutora do veículo causador do acidente - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/06/2015, proferido no âmbito do processo n.° 1166/10.7TBVCD.P1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n € 40.000,00 numa situação com as seguintes características: “quantum doloris de grau 5, sujeição a quatro operações, internamento por longos períodos, mais duas operações a que ainda teria de se sujeitar, vários tratamentos de reabilitação, dano estético de grau 4” decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/01/2016, proferido no âmbito do processo n.° 7793/09.8T2SNT.L1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n € 45.000,00 numa situação com as seguintes características: “jovem de 20 anos, desportista, que ficou com várias cicatrizes em zonas visíveis e padeceu de acentuado grau de sofrimento (quantum doloris de grau 5) e relevante dano estético - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/01/2016, proferido no âmbito do processo n.° 2185/04.8TBOER.L1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n € 50.000,00 numa situação com as seguintes características: “jovem de 27 anos, múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos; incapacidade parcial de 16 pontos, repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 2, claudicação na marcha e rigidez da anca direita - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/01/2016, proferido no âmbito do processo n.° 1021/11.3 TBABT.E1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n € 50.000,00 numa situação com as seguintes características: “sinistrada com 36 anos de idade, deformação grave do pé direito, com amputação dos cinco dedos e do ante-pé, dificuldade na deslocação e uso de prótese para toda a vida, cicatrizes em 18% da superfície corporal e graves alterações psicológicas - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/03/2016, proferido no âmbito do processo n.° 338/09.1TTVRL.P3.G1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n50.000,00: numa situação com as seguintes características: “jovem de 22 anos de idade, défice funcional permanente de 8%, quantum doloris de grau 4, sequelas compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicando esforços suplementares, dano estético de grau 3, repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 1 e diversas sequelas psicológicas - - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/04/2016, proferido no âmbito do processo n.° 37/13.2TCGMR.G1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n50.000,00 tendo em conta “os danos sofridos pelo A., as cicatrizes que apresenta, as dores sofridas, as limitações a nível de lazer, a afectação da sua imagem corporal, a afectação psicológica” - decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/09/2018, proferido no âmbito do processo n.° 248/14, disponível na JusNet;
n 60.000,00 “Não merece censura o estabelecimento de indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de 60.000,00 euros num caso que, pese embora esteja longe das situações de invalidez, com total degradação do padrão de vida e da autonomia pessoal do lesado, não deixa de evidenciar, pela multiplicidade, extensão e natureza das lesões físicas e psíquicas e pela sua repercussão fortemente negativa e irreversível nas potencialidades pessoais e no padrão futuro de vida do autor, que à data do acidente contava apenas 45 anos de idade, uma onerosidade e gravidade objetiva e subjetiva.". - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/07/2018, proferido no âmbito do processo n.° 1842/15.8T8STR.E1.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n75.000,00 numa situação com as seguintes características: “adulto com 36 anos, amputação do membro inferior esquerdo, várias intervenções e tratamentos médicos, repercussões estéticas, claudicação por inadaptação à prótese, e quantum doloris de grau 6" - decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/07/2009, proferido no âmbito do processo n.° 1145/05.6TAMAI.C1, publicado no sítio www.dgsi.pt;
n€ 80.000,00 num caso em que o recorrente foi “submetido a 5 intervenções cirúrgicas, com o inerente sofrimento físico e psíquico. (...) Além de ter necessitado de se deslocar de cadeira de rodas por tempo não determinado, o recorrente andou cerca de seis meses com a marcha apoiada por duas canadianas e outros seis por uma canadiana. Tratou-se de uma grande limitação à vida normal do recorrente, inevitavelmente causadora de significativo esforço e sofrimento, durante cerca de um ano. (...) O recorrente, que tinha 51 anos à data do acidente, ficou, em consequência deste, com dificuldades de locomoção significativas para o resto da sua vida. Ficou com uma perna mais curta que a outra e tem dificuldade em caminhar, designadamente em subir e descer escadas ou rampas. Tem, também, dificuldade em permanecer de pé durante muito tempo. Claudica e apresenta instabilidade do joelho. Tendo em conta a esperança média de vida de um homem no nosso país, que é, actualmente, de pouco mais de 80 anos, estamos a falar em sensivelmente 30 anos da vida do recorrente (tendo como ponto de referência a data do acidente) em que este, em vez de poder andar, correr e, genericamente, movimentar-se normalmente, sentindo apenas as limitações decorrentes do envelhecimento, irá coxear, irá limitar-se nas actividades físicas que desenvolve, ver-se-á impedido de praticar os desportos de que retirava prazer e que contribuíam para o manter saudável, irá sentir-se diminuído relativamente àquilo que ele próprio seria se o acidente não tivesse ocorrido. Serão, em princípio, 30 anos de vida em que, em cada passo que der, o recorrente sentirá os efeitos do acidente. (...) O dano estético permanente e
o quantum doloris sofridos pelo recorrente também são significativos(...) Considerando ainda os restantes danos acima descritos, como o sofrimento psíquico do recorrente, afigura-se-nos justificada uma indemnização global, por danos não patrimoniais, no montante de € 80.000,00” - decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07/05/2020, proferido no âmbito do processo n.º 2072/14, disponível na JusNet, onde igualmente se expendeu, posição com que concordamos e aqui vale mutatis mutandis:
“Não se argumente, contra a fixação deste montante indemnizatório, que
o mesmo é da mesma ordem de grandeza daquele que habitualmente é fixado para o dano morte. De acordo com esta linha de argumentação, constituindo a vida humana o bem jurídico supremo, a lesão de qualquer outro teria de gerar um direito de indemnização de montante inferior.
Este tipo de argumentação é criticável por ser puramente dogmático, pois baseia-se exclusivamente numa hierarquia abstracta de bens jurídicos, encimada pelo bem vida, quando há que atentar noutros factores mais importantes em sede de indemnização por danos não patrimoniais, como a intensidade e a duração do sofrimento da vítima, bem como o de ser esta última a beneficiária da indemnização. Por isso mesmo, trata-se de uma abordagem superficial, mesmo simplista, da problemática de que nos ocupamos, devendo ser rejeitada.
No sentido, que defendemos, da não limitação do montante da indemnização por danos não patrimoniais graves - como o são os sofridos pelo recorrido - pelos valores habitualmente fixados para a indemnização do dano morte, decidiram, por exemplo, os acórdãos do STJ de 19.06.2014, proferido no processo n.° 1679/10.0TBVCT.G1 (relator: Sérgio Poças) e de 08.06.2017, proferido no processo n.° 2104/05.4TBPVZ.P1.S1 (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).” (fim de transcrição).
Importa, no entanto e ainda, notar que as decisões judiciais não têm a força de precedente obrigatório. Como escreve Filipe Albuquerque Matos (Reparação dos danos não patrimoniais: inconstitucionalidade da relevância da situação económica do lesado, artigos 496.°, n.° 3, e 494°, do Código Civil, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 142, n.° 3984, página 217), os valores fixados por decisões judiciais anteriores têm natureza meramente indicativa, e o que é decisivo é "o poder equitativo concedido ao juiz no artigo 496°, n.° 4, bem como os critérios ou circunstâncias atendíveis para o exercício do mesmo, mencionados no artigo 494°". Foi este também o entendimento do acórdão do STJ de 17 de Janeiro de 2012, proferido no processo n.° 211/09.3TBSRT, publicado no sítio www.dgsi.pt, onde, a propósito do valor das decisões judiciais na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, se escreveu o seguinte: "certo que os precedentes judiciários servem de critério auxiliar do julgador, de linha de orientação na fixação equitativa do quantum indemnizatório, mas importa ter sempre em atenção as semelhanças e dissemelhanças das situações factuais de cada caso, na medida em que são geralmente tais elementos que fundamentam as discrepâncias registadas. Importa, por outro lado, ter sempre presente também que, quando se trata de formular juízos equitativos, há sempre uma margem de discricionariedade, apesar da preocupação de observância do princípio da igualdade e da uniformização de critérios. Como não é desconhecido, por um lado inexiste uma medida-padrão, tudo dependendo dos contornos concretos do caso, embora pautando-se por critérios objectivos...". (fim de transcrição).
No caso concreto ora sub iudice, como assertivamente considerou a sentença revidenda e não é por demais sublinhá-lo:
“Relativamente ao dano não patrimonial sofrido pelo demandante em consequência do acidente decompõe-se nos seguintes elementos:
- dano biológico em sentido estrito: em consequência do acidente, o demandante sofreu lesões que lhe determinaram sequelas permanentes, tendo ficado para o resto da sua vida com movimentos limitados no ombro e cotovelo esquerdos. Consequentemente, e tendo por base que a capacidade integral do indivíduo corresponde a 100 pontos, o demandante, com 26 anos de idade, passou a sofrer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 12 pontos, conforme consta do relatório pericial, que se manifesta na sua incapacidade para efetuar tarefas simples do dia-a-dia. Efetivamente, o demandante explicou que deixou de conseguir fazer com o braço esquerdo tudo o que implique levantá-lo acima da zona do queixo. Desta forma, tarefas simples como retirar pratos do armário da cozinha, lavar o cabelo ou pendurar quadros tornaram-se impossível de realizar com esse braço; não consegue mais praticar rugby, que praticou durante longos anos, tendo inclusivamente chegado a ser internacional pela seleção portuguesa, pois as limitações de que passou a padecer não o permitem. Também, conforme explicou de forma impressiva, as relações com a sua mulher e filha ficaram daqui em diante condicionadas pelas sequelas físicas deixadas pelo acidente: o facto de ter um braço que perdeu muita amplitude de movimento afetou de forma permanente a sua atividade sexual e jamais poderá colocar a sua filha às cavalitas, atirá-la ao ar ou sequer levantá-la acima da sua cintura. Na verdade, o demandante tinha 26 anos à data do acidente, tem agora 30 anos, e jamais recuperará a amplitude de movimentos que perdeu no braço esquerdo, aliás, existe uma grande probabilidade de a situação se agravar e poder vir a ter de colocar uma prótese, tendo explicado que para tentar evitar esse desfecho não pode deixar de fazer os exercícios em casa, mesmo tendo já terminado as sessões de fisioterapia. Ou seja, tendo em conta a esperança média de vida para indivíduos do sexo masculino com a idade do demandante, o mesmo pode contar com 50 anos de limitações pela frente, limitações para realizar tarefas simples da vida quotidiana que a maioria das pessoas faz sem grande reflexão, mas que facilitam muito a vida, e limitações que se refletem na forma como se relaciona com a sua mulher e filha;
- dor física e dor psíquica sofridas pelo demandante: provou-se que o demandante sofreu fortes dores provocadas pelas lesões decorrentes do acidente, o que lhe causou incómodo físico e psíquico, insónias e uma terrível sensação de mal-estar. Neste campo, explicou o demandante que sofreu dores terríveis, não só como causa direta das lesões, mas também provocadas pela fisioterapia a que teve de submeter-se durante 21 meses, que implicavam exercícios dolorosos em que tinha de forçar o movimento do braço afetado. Revelou que durante muito tempo após o acidente não conseguia sequer ter um sono seguido, acordando constantemente com dores. Explicou ainda que não consegue conduzir um carro por mais de 20 minutos sem ficar com o braço dormente, e tem de dormir de lado e agarrado a uma almofada, caso contrário fica com o braço dormente. Contou o demandante que até de correr teve de desistir, pois passados cerca de 2/3 km fica com dores. Aliás, o demandante foi muito expressivo ao descrever a dor que sofreu, sendo que ficou ainda a sofrer dores de forma crónica. Explicou ainda o demandante como o acidente e as suas sequelas o afetaram psicologicamente, tendo sentido uma grande revolta, e embora atualmente considere que, passados 3 anos, conseguiu resignar-se com as limitações que terá para o resto da vida, revelou que sente ansiedade perante a probabilidade de poder vir a ter de colocar uma prótese, sendo que se isso acontecer terá de trocá-la de 10 em 10 anos. Disse que sempre foi uma pessoa forte e agora se sente frágil; aliás, descreveu o seu braço esquerdo como um braço inútil. Tudo isto encontra reflexo na perícia de avaliação do dano corporal, que fixou o quantum doloris no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente;
- dano estético: ficou ainda demonstrado que, em consequência do acidente, o demandante ficou com cicatrizes evidentes, tendo inclusivamente passado a sofrer de um dano estético permanente fixado pela perícia de avaliação do dano corporal no grau 3. O demandante revelou que sente uma grande vergonha e constrangimento quando as cicatrizes do braço, que descreve como gordas e muito visíveis, estão expostas, designadamente na praia, tendo noção de que olhar para elas incomoda as pessoas.
Tudo quanto se acabou de referir reveste-se de uma gravidade extrema, pois o demandante era, na data do acidente, um jovem de 26 anos, saudável, que tinha uma vida inteira pela sua frente, cheia de projectos. De um segundo para o outro, devido a uma negligência grave da arguida, o demandante viu a sua vida, usando uma expressão corriqueira, “virada de pernas para o ar”. Conforme ele relatou, tinha acabado de comprar a mota e ia partir de férias, com a sua namorada/companheira, com quem planeava casar em breve e ter filhos. Porém, de um momento para o outro, todo esse projecto de vida lhe foi roubado com este acidente, tendo ao invés, o demandante enfrentado um longo período de doença, contabilizado em 733 dias, com três intervenções cirúrgicas e longos e dolorosos tratamentos, para no final, concluir que apesar de melhor, nunca mais iria recuperar a possibilidade de levantar ou movimentar o seu braço, acima do nível do queixo.
Qualquer cidadão médio, sabe que quando vai a um médico e tem a notícia de que tem de fazer um tratamento a uma doença, fica logo incomodado e aborrecido, imaginemos então o sofrimento deste jovem de 26 anos, que se viu privado de quase tudo o que gostava de fazer durante 733 dias, sendo que ainda hoje não consegue fazer muitas dessas coisas.
Certamente, como foi referido em julgamento, o demandante acabou por fazer o “luto” do seu braço, como um médico lhe disse, pois parte desse braço tinha morrido (já não ia funcionar mais – levantar acima do queixo), mas dúvidas não restam que o demandante vai viver o resto da sua vida com esse peso, de não poder fazer uma série de coisas, ainda que simples, como lavar o cabelo com aquela mão. Vai sempre sentir essa deficiência, essa mazela, e ainda as cicatrizes no seu corpo. Acresce que tendo em conta uma esperança média de vida de oitenta anos, o demandante, hoje com trinta anos, ainda tem 50 anos de sofrimento pela frente.
Na verdade, não devemos ter só em atenção toda a dor e sofrimento que o demandante já passou, mas todo aquele que irá ainda passar durante o resto da sua vida, continuando incapacitado para fazer uma série de coisas, continuando a sofrer dores e estando sempre debaixo da espada de a sua situação óssea piorar e ter de ser novamente intervencionado, como é muito provável que venha a suceder.
Por seu turno, nota-se todo o transtorno, infelicidade e revolta que isto causou no demandante, o que decorre não só das regras da experiência, como também daquilo que ouvimos do demandante, sendo muito impressionante o seu relato em audiência de julgamento. Na verdade, as palavras não são suficientes para o descrever, sendo imprescindível a sua efectiva audição.
Por seu turno, importa realçar que não há quantia pecuniária que efectivamente “pague” toda esta situação, sendo certamente verdade, como foi afirmado em audiência pelo demandante, que pagava toda e qualquer quantia que venha a ser arbitrada pelo Tribunal, para não ter passado por isto e para recuperar o seu braço.
Esta situação, como muitas idênticas a esta, merecem uma compensação adequada e justa, à altura de todo o sofrimento causado, não se compadecendo com indemnizações de baixo valor, sobretudo tendo em atenção o valor mínimo da cobertura obrigatória do seguro automóvel, que todo e qualquer condutor tem de contratar, no valor mínimo total de € 7.290.000, e que no caso em apreço está a cargo da demandada seguradora.” (fim de transcrição).
Assim, tudo visto e ponderado, tendo presentes as circunstâncias atendíveis para o exercício do poder equitativo do juiz, mencionados no artigo 494.º, do Código Civil, entende este tribunal ad quem que é equitativa a indemnização de € 60.000,00 (sessenta mil euros) numa situação com as características específicas das verificadas nos presentes autos, pelo que é de manter a mesma, doutamente fixada em primeira instância, na qual e bem até se assinala que “tal valor não corresponde sequer a 1% do valor mínimo obrigatório do seguro de responsabilidade automóvel.”
Destarte, o recurso terá de improceder.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela demandada CC - Companhia de Seguros, S.A., confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exm° Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.°, n.° 2, do CPP)

Lisboa, 8 de abril de 2021
Calheiros da Gama
Abrunhosa de Carvalho